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Volume terceiro
Nicola ABAGNANO
DIGITALIZAÇÃO E ARRANJO:
ÂNGELO MIGUEL ABRANTES.
HISTÓRIA DA FILOSOFIA
VOLUME III
CAPA DE: J. C.
COMPOSIÇÃO E IMPRESSÃO
TERCEIRA PARTE
FILOSOFIA ESCOLÁSTICA
AS ORIGENS DA ESCOLáSTICA
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tradição eclesiástica.
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objectivo acabam por sofrer uma transformação mais ou menos radical quanto ao
seu significado original. Mas a escolástica não se propõe realizar esta
transformação de modo intencional o a maior parto das vezes não tem disso
consciência. O sentido da historicidade é-lhe estranho. Doutrinas e conceitos
surgem livres dos complexos históricos de que fazem parte e considerados
independentes dos problemas a que se referem e da personalidade autêntica do
filósofo que os elaborou. A Idade Média coloca tudo num mesmo plano e fez dos
filósofos mais afastados da sua mentalidade, seus contemporâneos, dos quais é
lícito colher os frutos mais característicos para adaptá-los às suas próprias
exigências.
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Como ideia directiva da vida individual e social, a noção desta ordem começa
a afirmar-se a partir do século VIII, com o desaparecimento quase total das
trocas económicas e culturais e o desaparecimento ou decadência das cidades,
deixando de pé apenas uma economia rural paupérrima e fechada. O despertar do
tráfego comercial e das artes que se verifica a partir do século XI, as
viagens e as trocas provocam a primeira crise da concepção medieval da ordem
cósmica. Essas transformações vêm demonstrar, com a própria força dos factos,
que o indivíduo pode adquirir para si os bens que se lhe oferecem,
incrementá-los o defendê-los com a sua actividade e com a colaboração dos
outros. O poder hierárquico começa a surgir, agora, como um limite ou uma
ameaça, mais do que uma ajuda ou garantia, à capacidade humana de adquirir ou
conservar os bens que são indispensáveis ao homem. A luta pela autonomia
comunal, pela libertação das limitações impostas pelo feudalismo, é
substancialmente baseada na crença do homem em si próprio, na sua capacidade
de providenciar sobre as suas necessidades e de organizar-se em comunidades
autónomas que, melhor que as hierarquias impostas de cima, podem providenciar
pela sua própria defesa. Nestas condições, a investigação filosófica adquire
um respirar novo e uma
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continuam ainda a ser reconhecidos; mas a parte devida à iniciativa racional
do homem começa a aumentar e a reforçar-se, e em certos domínios e em certos
Emites tal iniciativa acaba por ser reconhecida como legítima e eficaz.
Tenta-se em seguida estabelecer claramente os domínios e os limites de tal
iniciativa e julga-se haver realizado um perfeito acordo entre a razão e a
fé, ou seja, entre a verdade que o homem pode conseguir com os seus poderes
naturais o a que lhe foi revelada pelo alto e imposta pela hierarquia. Mas
até este equilíbrio começa a romper-se a partir dos últimos decénios do
século XIII; e agora não se renuncia à fé nem se denuncia, na sua totalidade,
a concepção h-ierárquica da ordem cósmica, mas alarga-se e reforça-se o
âmbito da iniciativa racional e a investigação filosófica debruça-se sobre
domínios que já nada têm a ver com os objectos da fé e nos quais pode avançar
com a sua força autónoma.
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dicar por si e das limitações que tal liberdade deve encontrar as hierarquias
que governam o mundo. É, em suma, o problema dos novos domínios da indagação
(a natureza, a sociedade) que se apresentam ao homem à medida que ele
reivindica, pela sua razão, uma maior autonomia. Se designarmos, nos
termos que assim ficam expostos, o "problema escolástico" pode ser facilmente
abordado para se poder dar conta da continuidade e da variedade, das
concordâncias e das polémicas do pensamento medieval. Isso pode permitir que
nos apercebamos de que a ortodoxia e a heterodoxia religiosas fazem parte
igualmente deste pensamento como fazem parte as especulações políticas e os
interesses, que se mantiveram ou ressurgiram, pela natureza e pela ciência; e
que as tendências heréticas, as rebeliões filosóficas, teológicas ou
políticas que, em certa medida, sempre o caracterizaram, não constituem os
aspectos históricos fundamentais a mesmo título que as grandes sínteses
doutrinais nas quais a iniciativa racional do homem e as exigências da fé e
da hierarquia eclesiástica parecem ter encontrado um compromisso efectivo. O
que este conceito do problema escolástico pretende excluir é a tentativa de
considerar a própria escolástica no seu conjunto como uma síntese doutrinal
homogénea ria qual se hajam unificado e fundido os contributos individuais.
Esta noção da escolástica parece sugerida pela vontade de privilegiar o
aspecto da existência (real ou presumida) de uma concordância plena e
definitiva entre a razão e a fé: aspecto que é característico da síntese
tomista. Mas este privilégio não tem nenhuma base histórica e não terá outro
efeito que o de excluir da escolástica, considerada como a única filosofia
existente na Idade Média, uma parte importante dos pensadores medievais. Uma
preferência ideológica, historiograficamente insustentável, está na base
deste privilégio. A filosofia medieval, tal
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Lat., 101, 853 c). No seu escrito teológico sobre a Trindade (De fide Sanctae
et individuae Trinítatis, três livros), Alcuíno trata da essência divina, das
propriedades de Deus, da trindade das pessoas, da encarnação e da redenção,
mantendo-se em tudo fiel à especulação de Santo Agostinho. Tal como este,
insiste na impossibilidade de se conceber e exprimir a essência divina, em
relação à qual as categorias, que servem para compreender as coisas finitas,
adquirem um novo significado. Em Deus tudo se identifica: o ser, a vida, o
pensamento, o querer e o agir, e no entanto Ele é a simplicidade absoluta.
Num escrito seu sobre a alma, dedicado à Jovem Eulália, Alcuíno define a alma
como "o espírito intelectual ou racional, sempre em movimento, sempre vivo e
capaz de boa ou má vontade>. A alma assume vários nomes consoante as suas
funções: chama-se alma enquanto vivifica; espírito quando contempla; sentido
enquanto sente; ânimo enquanto sabe; mente enquanto compreende; razão
enquanto julga; vontade enquanto consente; memória enquanto lembra. Mas estas
funções diversas não são próprias de várias substâncias, apesar de serem
indicadas com nomes diferentes: constituem todas uma alma única (De animae
ratione, 11). AIcuíno distingue nela três partes, de acordo com a doutrina
platónica: a racional, a irascível e a apetitiva. As três partes da alma
racional, memória, inteligência e vontade reproduzem a Trindade divina
(segundo a doutrina de Agostinho). A alma é o fundamento da personalidade
humana, mas o eu na sua totalidade pertence não só à alma como também ao
corpo. A alma é incorpórea o como tal imortal. O seu bem mais @levado é Deus
e o seu destino é o de amar a Deus. Para tal destino a alma prepara-se
através das virtudes; e entre estas Alcuíno coloca não apenas as cristãs: fé,
esperança e caridade, como também as pagãs: pradêwia,
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A obra de Alcuíno foi continuada pelos seus sucessores. Fredegiso, que lhe
sucedeu como abade de S. Martinho de Tours e foi, a partir de 819, até 834,
ano da sua morte, chanceler de Ludovico o Pio, compôs uma obra na qual se
levantava a questão de se saber se o nada é alguma coisa ou não (De nihilo et
tenebris). Fredegiso conclui que o nada de certo modo é; e de facto, se se
nega ,isso, essa mesma negação é já alguma coisa e por isso o nada de certa
maneira é (Patr. Lat., 105. .,
751). O próprio facto de o nada ter um nome demonstra a sua realidade, uma
vez que um nome que não se refira a qualquer coisa real não pode ser pensado.
A expressão bíblica de que o mundo foi criado do nada demonstra também a sua
realidade; porque do nada procedem todos os elementos e ainda a luz, os anjos
e as almas dos homens.
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Um discípulo de Rabano, Servato Lupo, que foi abade de Ferrières desde 842
até falecer, em 862, tem em grande conta a cultura humanística e nas suas
Cartas oferece o exemplo de um vivo interesse literário e filosófico. O seu
tratado Sobre três questões trata do livre arbítrio, da predestinação e da
Eucaristia, seguindo as pisadas dos padres e especialmente de Agostinho.
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Um outro monge de Corbie, Godescalco, falecido entre 866 e 869, sustentou com
particular energia, apesar das condenações de dois sínodos, a doutrina da
dupla predestinação. Sustentava que Deus predestina tanto o bem como o mal e
que alguns homens, pela predestinação divina que os constrange à morte
espiritual, não podem corrigir-se do erro e do pecado, porque Deus os criou
desde o princípio incorrigíveis e destinados ao castigo.
Esta doutrina da dupla predestinação que era ensinada também pelo mestre de
Godescalco, o monge Ratramno (falecido à volta de 868), foi combatida pelo
arcebispo de Reims Hinchmar e que chegou ao nosso conhecimento precisamente
através da refutação deste último.
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do mestre. Com efeito, foi autor de uma Vita S. Germatú, em verso, que
enriqueceu com glosas extraídas dos clássicos e também da Divisio Naiurae de
João Escoto. A ele foram atribuídas algumas glosas marginais a um texto
pseudo-agustiniano sobre as Categorias. Estas glosas apresentam uma tese que
será a do conceptualismo posterior, isto é, que os conceitos universais não
são realidades em si, e designam apenas as coisas particulares conhecidas
pela experiência. A formação dos conceitos de género e espécie é feita por
uma exigência de economia mental. Uma vez que os nomes dos seres individuais
são inumeráveis e o intelecto e a memória não bastam para conhecê-los e fixá-
los, formam-se os conceitos de espécie (por exemplo, homem, cavalo, leão),
com os quais se podem reconhecer e recordar facilmente inumeráveis
indivíduos. Mas como os conceitos de espécie são, por sua vez, inumeráveis e,
por isso, em grande parte incognoscíveis, agrupam-se em conceitos mais amplos
e menos numerosos, formando os conceitos de género, como animal ou pedra. Em
seguida recorre-se a um grau mais elevado, a um conceito extensíssimo que
permite designar com um só nome todos os seres: é o conceito de substância.
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A essência divide-se nos géneros e nas espécies até à última espécie, que é o
indivíduo, o qual, como a própria palavra -indica, é indivisível. Segundo
esta doutrina, que se relaciona com a de João Escoto, o indivíduo seria o
resultado da repartição sucessiva de uma realidade universal. Igualmente se
relaciona com o platonismo a doutrina de Remígio sobre o conhecimento humano.
A natureza humana possui em si todas as artes; mas estas foram ocultas pelo
pecado original e apenas podem ser reconquistadas mediante esforços
fatigantes, que pouco a pouco as libertam das trevas que as encobrem à
inteligência. Assim se explica que nem todos possam ser oradores, dialécticos
ou músicos, apesar de todos possuírem em si as noções correspondentes. Com
efeito, nem todos se empenham no esforço exigido para -trazerem de novo para
a luz o saber originário obscurecido pelas trevas do pecado.
NOTA BIBLIOGRÁFICA
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ters, textos e investigações, Mónaco, a partir de 1891; ElAuRÉAu, Notices et
extraits de quelques manuscrits de Ia Bibliothêque Nationale, Paris, 1890-
1893, 6. vols. Não se faz aqui referência às numerosas colecções nas quais
existem e foram publicados textos e estudos de filosofia medieval (e que
possivelmente poderão estar indicados nos instrumentos bibliográficos
re@ferid4Ds) uma vez que tais textos e estudos serão indicados na nota
bibliográfica referente a cada um dos filósofos.
ALCUINO
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A obra de João Escoto teve uma importância decisiva para a ulterior evolução
da escolástica. As suas fontes principais são as obras de Santo Agostinho, do
Pseudo-Dionísio (que o próprio Escoto traduziu do grego) e dos Padres da
Igreja, especialmente de S. Gregório e S. Máximo. Em toda a especulação
posterior, não há filósofo da escolástica que não se relacione com ele
directa ou poa. O papa Honório 111, -numa Bula de 23 de Janeiro de 1225,
condenou a sua obra-prima: De divisione naturae. Muitos doutores
escolásticos, antes e depois da condenação, entram em polémica contra as suas
afirmações; mas a sua especulação assinala em todos os pontos um marco
fundamental na filosofia escolástica.
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Na investigação humana quem encontra, não é o homem que procura, mas a luz
divina que no homem procura. A palavra de Jesus, segundo S. João: "Não sois
vós que falais é Deus que fala em vós" é entendida por Escoto da seguinte
forma: "Não sois vós que me compreendeis, sou Eu que mo compreendo a Mim
próprio em vós, através do meti espírito" (Hom. in Joh., p. 291-A).
Faz parte destas quatro naturezas não só tudo o que é, como também tudo
aquilo que não é. Pelo não-ser, não se entende o nada, mas a negação das
várias determinações possíveis do ser. Deste modo poderá afirmar-se que não
são as coisas que escapam aos sentidos e ao intelecto; ou as coisas infe-
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Mas os mesmos caracteres que a teologia positiva atribui a Deus assumem nesta
referência um valor diferente daquele que possuem quando se
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vez o problema seja mais aparente do que real. As coisas que subsistem no
espaço e no tempo e estão distribuídas nos géneros e nas formas do mundo
sensível não são, em verdade, distintas das causas primeiras que subsistem em
Deus, e são o próprio Deus. Não se trata de duas substâncias diversas, mas de
dois modos diversos de entender as mesmas substâncias; na eternidade do Verbo
divino, ou na vida do tempo. Assim, não há duas substâncias "homem", uma como
causa primordial, o outra individuada no mundo; mas uma só substância, que
pode ser entendida de dois modos, ou na sua causa intelectual, ou nos seus
efeitos criados. Entendida da primeira forma, está livre de toda a
mutabilidade; entendida da segunda, surge formada por qualidades
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Vê-se assim, que Deus não é apenas o princípio, mas também o fim das coisas.
A Ele, portanto, retornarão as coisas que dele saíram e nele se movem e
estão. A Sagrada Escritura ensina claramente o fim do mundo e é por outro
lado evidente, que tudo o que começa a ser o que antes não era, deixará
também de ser o que é. Pois bem, se os princípios do mundo são as causas de
que saiu, estas mesmas causas serão o último termo do seu retorno. O mundo
não será reduzido ao nada, mas às suas causas primeiras; e, uma vez terminado
o seu movimento, será conservado perpetuamente em repouso. Pois bem, as
causas primeiras do mundo são o próprio Verbo divino: ao Verbo divino
voltará, portanto, o mundo quando chegar o seu termo. Uma vez reunido a Deus,
para o qual tende no seu movimento, o mundo não terá um fim ulterior a
atingir o necessariamente repousará. Por isso o princípio e o fim do mundo
subsistem no Verbo de Deus e são o próprio Verbo (V, 3, 20).
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a substância do mundo. Por outro lado, poderá compreender-se que uma outra
enérgica afirmação de Escoto Erígena, a de que Deus está fora de todo o
universo e que não é nem o todo nem a parte, possa ser assumida como prova do
carácter não panteísta da sua doutrina.
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ANSELMO DE AOSTA
que nele estão as causas primordiais. O terceiro movimento é o que diz
respeito às razões das coisas singulares. Parte das imagens recolhidas pelos
sentidos externos e, a partir dessas imagens, ergue-se até às razões ú ltimas
das coisas das quais são imagens. Através deste movimento, a própria imagem
sensível transfigura-se. De imagem impressa nos órgãos dos sentidos,
transforma-se em imagem que a alma sente em si como própria; é precisamente
desta imagem espiritualizada que a alma parte para ascender até às razões
eternas das coisas (11, 23).
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nas suas causas primordiais todas as coisas criadas. Se o primeiro homem não
tivesse pecado, a semelhança entre a natureza angélica e a humana ter-se-ia
transformado numa identidade, e o homem e o anjo ter-se-iam convertido numa
mesma coisa. E isto explica-se porque a mesma identidade se estabelece entre
homem e homem, quando reciprocamente se compreendem. "Se, afirma Escoto, eu
compreendo 9 que tu compreendes, converto-me no teu próprio entendimento e de
certa maneira inefável, converto-me em ti próprio. E quando tu compreendes o
que, eu compreendo, convertes-te no meu entendimento, e dos dois
entendimentos resulta um só, constituído por aquilo que ambos sincera e
correctamente compreendemos. Porque o homem é verdadeiramente o seu
entendimento, o qual se especifica e individualiza pela contemplação da
verdade (IV, 9).
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mesmo o pecado original chega para destruí-Ia. Com elo o homem não perdeu a
sua natureza que, enquanto imagem de Deus, é necessariamente incorruptível;
perdeu apenas a felicidade, à qual estava destinado se não houvesse
desprezado o mandamento divino. "É preciso afirmar, diz Escoto, que a
natureza humana, feita à imagem de Deus, nunca perdeu a força da sua beleza e
a integridade da sua essência e nunca poderá perdê-las. Uma forma, divina
como é a alma, permanece sempre incorruptível, além do mais, torna-se capaz
de suportar a pena do pecado" (V, 6).
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Para Escoto, tal como para Santo Agostinho, o mal reduz-se ao pecado, à
deficiência ou ausência de vontade. Mas enquanto para Santo Agostinho a
vontade livre é unicamente a vontade do bem, para Escoto Erígena a vontade
livre é o livre arbítrio, capaz de decidir-se quer pelo bem, quer pelo mal. É
certo que a causa do pecado está na mutabilidade da vontade. Esta
mutabilidade, que é causa do mal, é certamente ela própria um mal (Do div.,
nat., IV,
14). Mas sem ela o homem não seria verdadeira e plenamente livre. Se Deus
tivesse dado ao homem apenas a capacidade de querer o bem e de viver de
acordo com a justiça, de forma a que o homem só se pudesse mover numa
direcção, o homem não sena absolutamente livre, mas apenas livre em parte e
em parte não livre. Ora uma liberdade parcial não é possível. Se mesmo numa
parte mínima o homem não é livre, ele é absolutamente não-livre. Um livre
arbítrio que oscila não pode permanecer de pé (De praedest., 5, 8). Se se
afirma que não viria dano ao homem pelo facto de possuir um livre arbítrio
claudicante, poderá objectar-se que sem um verdadeiro e total livre arbítrio
a justiça divina não poderia exercer-se. Uma vez que a jus-
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NOTA BIBLIOGRÁFICA
§ 178. J. Huber, Johannes Scotus Erigena, 1861, ed. fot., 1960; Bett, J. S.
E., Cambridge, 1925; Cappuyns, J. S. E., Paris-Louvaina, 1933, com bibl.; Dal
Pra, S. E., Milão, 1951 com bibliografia.
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III
DIALÉCTICOS E ANTIDIALÉCTICOS
§ 187. GERBERTO
Neste período aparece uma grande figura de erudito e de mestre, Gerberto, que
se formou na escola de Aurillac. A partir de 972 foi professor na escola de
Reims; em 982 foi designado abade de Bobbio, em 991, arcebispo de Reims; em
998, arcebispo de Ravena; em 999, papa, com o nome de Silvestre 11. Morreu no
ano de 1003. Gerberto ocupou-se de todas as ciências mas sobretudo destacou-
se no estudo da mecânica e das matemáticas. Atribui-se-lhe a invenção de um
relógio e de uma espécie de sirene a vapor de água. Para explicar a sua vasta
erudição, um antigo cronista, Vicente de Beauvais (Speculum historiale, XXIV,
98) conta que Gerberto tinha feito uma larga estadia em Espanha,
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mento da Eucaristia os acidentes do pão e do vinho mantêm-se: a substância
não pode, por conseguinte, ter sido destruída, e o pão e o vinho devem
permanecer como tais, mesmo depois da consagração. Esta vem acrescentar à
substância do pão e do vinho um corpo inteligível que é o corpo de Cristo.
Tal doutrina impugnava a definição dogmática. da Eucaristia, que afirma a
transformação da substância do pão e do vinho no corpo e no sangue de Cristo;
e suscitou violentas polémicas. A doutrina de Berengário foi condenada pela
Igreja.
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NOTA BIBLIOGRÁFICA
§ 187. As obras de Gerberto, em Patrist. Lat., vol. 139, 57-338; outra edição
de Olleris, Paris, 1867. Epistolae, ed. Havet, Paris, 1889; Opera
mathematica, ed. Bubnov, Berlim, 1899.-PICAVET, Gerbert ou le pape
philosophe, Paris, 1897; LEFLON, Gerbert, P=3,
1946.
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IV
ANSELMO DE AOSTA
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Entre os anos 1070 e 1078 Anselmo compôs o Monologion, cujo primeiro capítulo
era Exemplum meditandi de ratione fidei; em seguida o Proslogion, que
primeiramente se intitulava Fides quarens intellectum e o apêndice polémico
Liber apologeticus contra Gaunilonem; em continuação, compôs quatro diálogos,
De veritate, De libero arbítrio De casu diabuli, De gramatico. Nos últimos
anos da sua vida escreveu o Cur Deus homo e o seu apêndice De conceptu
virginali. Outras obras suas: De fide
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TritWatis, De concordia praescientiae et praedestinationis, Meditationes, e,
além disso, homilias, discursos e cartas.
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"Certamente, aquilo de que não se pode pensar nada maior, não pode existir
apenas no intelecto. Porque se existisse apenas no intelecto, poder-se-ia
pensar que existe também na real-idade e que, portanto, era maior. Assim, se
aquilo em relação ao qual nada maior se pode pensar existe apenas no
intelecto, aquilo em relação ao qual nada maior se pode pensar é, por sua
vez, aquilo de que se pode pensar algo de maior. Mas isto é, certamente,
impossível. Portanto, não há dúvida de que aquilo do qual nada maior se pode
pensar existe tanto no intelecto como na realidade. "(Prosl., 2). O argumento
baseia-se em dois pontos: 1.o que o que existe na realidade é "maior", ou
mais perfeito do que o que existe apenas no intelecto; 2.o que negar que
existe realmente aquilo em relação ao qual nada maior pode pensar-se,
significa contradizer-se, porque significa admitir que se pode pensá-lo
maior, isto é, existente na realidade. À objecção de que então não se vê como
é possível pensar que Deus não existe, Anselmo responde que a palavra
pensar tem dois significados: pode pensar-se a palavra que indica a coisa e
pode pensar-se a própria coisa. No primeiro sentido pode pensar-se que
Deus não existe, como, por exemplo, se pode pensar que o fogo é água; no
segundo sentido, não se pode pensar que Deus não existe (Prosl., 4).
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Das próprias provas que demonstram a existência de Deus, resulta que só Deus
é o ser perfeito e absoluto e que as outras coisas quase não são ou apenas
são (fere non esse et vix esse, Mon., 28). Sujeito ao devir e ao tempo, o ser
das coisas finitas começa e acaba continuamente e continuamente muda; é por
isso um ser aproximativo e apenas tal, não podendo ser comparado com o ser
imutável de Deus. Ao qual Santo Anselmo reconhece aquela necessidade, cujo
conceito ia sendo elaborado pela escolástica árabe, a partir de Avicenas. A
natureza de Deus é tal que não pode proceder nem de si nem de outro; nem dá a
si própria uma matéria da qual possa ser retirada, nem outro pode dar-lhe tal
matéria (Mon., 6). É, portanto, originária e necessária.
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Por outro lado, todas estas qualidades não podem subsistir na essência divina
como uma multiplicidade numérica. A natureza divina exclui toda a composição
e não pode constar de partes ou de aspectos diversos. As qualidades diversas
que se lhe atribuem, enquanto idênticas a ela, são idênticas entre si; e
assim a justiça ou a sabedoria e qualquer outra qualidade é a própria
essência divina e, quem afirma uma delas afirma também esta (Mon., 17). Disto
se conclui que a essência divina não é substância, no sentido de substracto
ou esteio de qualidades ou acidentes. É substância no sentido de que subsiste
por si e em si; mas neste sentido não pode ser compreendida sob a categoria
universal de substância, uma vez que está fora de todo e qualquer conceito
genérico. A única determinação que se pode atribuir à essência divina como
substância é a espiritualidade; o ser espiritual é, com efeito, mais
excelente que o ser corpóreo e
Uma tal substância está absolutamente para além das variações temporais. Na
vida divina, não existe sucessão, tudo está presente num único acto
indivisível. Está completa de uma vez para sempre na sua totalidade o não
pode ter aumento ou
diminuição (ibid., 24). A sua imutabilidade exclui, em suma, que nela existam
caracteres acidentais, que, como tais, implicariam mutabilidade. Em Deus
podem subsistir tais caracteres, mas não analogamente ao que, por exemplo, é
a cor do corpo, mas apenas como relações determinadas, puramente exteriores,
como quando se diz que é maior que todas as outras naturezas. Só nestes
limites, a categoria de acidente não contradiz a natureza divina (Ibid., 25).
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Uma vez que Deus é o ser e as coisas existem apenas pela participação do ser,
toda a coisa tem o seu ser através de Deus. Tal derivação é uma criação do
nada. E de facto, as coisas criadas não podem proceder de uma matéria. Esta,
por sua vez, deveria derivar de si própria, o que é impossível, ou da
natureza divina. Neste caso, a natureza divina seria a matéria das coisas
mutáveis e estaria sujeita às mudanças e à corrupção daquelas. Ela, que é o
Sumo Bem, estaria submetida à mutabilidade e à corrupção; mas o Sumo Bem não
pode deixar de o ser. A matéria das coisas criadas não pode ser nem por si
nem de Deus; não há, portanto, matéria das coisas criadas. Só resta então
admitir que foram criadas do nada (ibid., 7).
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necessidade de uma matéria exterior para realizar a sua obra e Deus não, e de
que o primeiro deve obter das coisas externas o próprio conceito da obra,
enquanto Deus cria por si próprio a ideia exemplar (ibid., 11). Num e noutro
caso, não obstante, a ideia da obra é uma espécie de palavra interior; Deus
manifesta-se nas ideias, como o artista através do seu conceito, mas a
expressão não é uma palavra exterior, uma voz; é a própria coisa, à qual se
dirige o engenho da mente criadora (ibid., 10).
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Santo Anselmo procurou esclarecer com uma imagem este mistério. Consideremos,
afirma (De fide Trinitatis, 8), uma fonte, o rio que nasce dela
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homem consiga chegar junto desta o mais perto possível. Mas paralelamente a
esta investigação, Anselmo empreende outra, dirigida ao homem e às suas
possibilidades de elevar-se até Deus. O tema desta investigação é a
liberdade. A ela Anselmo, dedicou duas obras: o De libero arbitrio, e o De
concordia praescientiae et praedestinationis nec non et gratiae Dei cum
libero arbitrio, composta, esta última, no ano de 1109, depois do seu
regresso a Inglaterra.
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Este poder em que consiste a liberdade não o perde o homem em caso algum, nem
sequer com o pecado. Como quem já não vê um objecto, conserva a capacidade de
vê-lo, porque o vê-lo ou não depende da distância do objecto e não da perda
de vista, assim a capacidade de conservar a rectidão da vontade permanece no
homem mesmo através do pecado e entra em acção logo que Deus restitui ao
homem a rectidão da vontade que perdeu.
Portanto, o homem pode perdê-la apenas por um acto seu de vontade e nunca por
causas externas. O próprio Deus não pode retirá-la ao homem. Uma vez que
consiste em querer o que Deus quer que se queira, se Deus a afastasse do
homem não quereria que o homem quisesse aquilo que Ele quer que ele queira.
Uma vez que isto não se pode imaginar, Deus não pode tirar ao homem a vontade
justa: só o homem pode perdê-la. Nada é portanto mais livre que a vontade
(ibid., 11).
Não contradiz isto a frase bíblica de que o homem que peca se converte em
"escravo do pecado". O converter-se em escravo do pecado significa apenas que
perde a rectidão da vontade e que não tem a capacidade de voltar a adquiri-la
a não ser por dádiva gratuita de Deus. A escravidão do pecado é a impotentia
non peccandi: o homem que perdeu a rectidão da vontade não pode deixar de
pecar; mas mesmo assim permanece livre porque conserva a possibilidade de
conservar aquele.
la
Disto :resulta que, tal como Santo Agostinho, Anselmo estabelece uma estreita
relação entre a liberdade humana e a graça divina. Não há dúvida de que a
vontade quer com rectidão apenas porque é recta. Mas como a vista boa não é
boa porque vê bem, mas porque vê bem é boa, também a vontade não é recta
porque quer com rectidão, mas quer com rectidão porque é recta. Isto
significa que
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ABELARDO
Como a liberdade humana não se opõe, em nada, à graça divina, assim também
nenhum limite ou restrição produzem na liberdade humana a presciência e a
predestinação divinas. É certo que Deus prevê todas as acções futuras dos
homens, mas esta previsão não impede que as acções dos homens sejam
efectuadas livremente. Com efeito, Deus prevê as acções dos homens na
liberdade, que é atributo fundamental das mesmas. Não é preciso dizer, afirma
Santo Anselmo, "Deus prevê que eu vou ou não pecar" mas é necessário
acrescentar que Ele prevê que eu vou ou não pecar sem necessidade e assim,
tenha eu pecado ou não, uma e outra coisa será liberdade, porque o próprio
Deus prevê que isso acontecerá sem necessidade. (De concord. praesc., q. 1,
3). Existe uma dupla necessidade: uma que precede o efeito, a outra que se
segue à realização da coisa. A primeira é verdadeiramente determinante, a
segunda não. A primeira está, por exemplo, imcluída na afirmação "os céus
necessariamente giram"; a segunda está contida na afirmação "tu falarás". De
facto, a necessidade natural obriga os céus a moverem-se, embora não exista
nenhuma necessidade que obrigue o homem a falar. Mesmo neste caso, a previsão
verificar-se-á e, por conseguinte, é certa; mas a sua certeza em nada
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74
negação e pode, com todo o direito, ser chamado o nada (De casu diaboli, 12-
26).
Quanto ao dano, ou seja, o mal físico, também é na sua essência uma negação;
mas como às vezes surge acompanhado de uma acção positiva, é nesta que se
pensa quando se lhe chama mal. Não há dúvida de que a cegueira, por exemplo,
é simples negação da vista; mas é acompanhada de tristeza e dor, que são
realidades positivas e constituem o aspecto pavoroso do mal (Ibid., 26).
Contudo, a tristeza, a dor e o horror que estas coisas determinam na alma,
seguem-se à privação do bem, que é o verdadeiro fundamento de todo o mal. O
verdadeiro e único bem é a justiça, pela qual são bons, isto é, justos, os
anjos e os homens e pela qual a própria vontade é boa ou justa. Pois bem, a
justiça consiste na conformidade da vontade humana com a vontade divina. A
vontade da criatura racional deve estar submetida à vontade divina e aquela
que não tributa a Deus esta honra devida, tira a Deus o que é seu e por isso
peca. A Deus apenas pertence ter vontade própria, isto é, uma vontade que não
está sujeita a ninguém. Todo aquele que se atribui de uma vontade própria
esforça-se por tornar-se semelhante a Deus per rapinam e por
privar Deus, naquilo a que a Ele se refere, da sua dignidade e singular
excelência (De fide Trinit., 5).
O traço característico destas formulações de Anselmo consiste na redução de
todo o valor moral à vontade, a ú nica em que reside a justiça e a injustiça.
Os apetites sensíveis, por seu lado, não são bons nem maus. O homem é justo
ou injusto, não porque os sente ou não, mas apenas porque os consente ou não
com a vontade. O pecado consiste não em senti-los, mas em consenti-los (De
concep. virg., 4). A única origem do mal é a própria vontade. A vontade pode
perder a sua rectidão enquanto quer o que não deve querer; mas o
75
poder perdê-la não é fundamento do mal; uma vez que não a perde porque pode
perdê-la, mas apenas porque quer perdê-la. O mal não tem outra causa
positiva. Também não se pode atribuir a Deus, porque não se pode afirmar que
Ele dê aos homens uma vontade má, senão no sentido de que não impede, podendo
fazê-lo, que uma tal vontade aconteça. Tudo o que há de bom na vontade e nas
acções dos homens, procede da graça de Deus; só o mal procede do homem.
E assim como a vontade é o único sujeito das valorações morais, assim também
apenas ela é responsável e pode ser castigada. Não existe pena que não esteja
dirigida contra a vontade e nenhuma coisa pode sofrer um castigo se não está
dotada de vontade. Assim como é a vontade que actua sobre os membros e os
sentidos, assim também é a vontade que, através dos membros e dos sentidos é
castigada ou recompensada (ibid., 23). Num cas @ apenas o pecado não depende
da vontade, é o caso do pecado original. Adão pecou por livre vontade; os
seus descendentes pecam por necessidade natural (lhid., 23). Mas em Adão
estava presente toda a natureza humana; nele, portanto, pecaram todos os
homens, não pessoalmente, mas na sua origem e na sua natureza comuns.
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Deste seu destino deriva a sua imortalidade. Se a alma está destinada a amar
sem fim a sua essência é necessário que esteja viva sempre e que a morte não
venha interromper, em certo ponto, sem demérito seu, o amor que deve a Deus.
Nem Deus poderia reduzir a nada uma criatura que Ele criou para que o amasse
ou permitir que lhe seja retirada a criatura que ama a vida que Ele lho deu,
quando ela ainda não O amava, para que possa amá-LO: tanto mais que o Criador
ama toda a criatura que verdadeiramente o ama. É portanto evidente que uma
vida entregue ao amor de Deus não pode ser senão feliz. A alma tem, por
conseguinte, assegurada pelo seu destino uma vida eterna e feliz (ibid., 69).
Mas a imortalidade não se refere apenas à alma que ama a Deus. Se para a alma
que ama Deus, a imortalidade é, por parte de Deus, um dom de amor, para a
alma que despreza Deus, a imortalidade é, por parte de Deus, um acto de
justiça. Seria, com efeito, injusto que a alma que despreza Deus fosse
castigada com a perda da vida e do próprio ser, e não tivesse outro castigo
além do de tornar ao estado em que se encontrava antes de toda a culpa, isto
é, antes de existir. Mesmo
77
a alma injusta deve, por conseguinte ser imortal, para sofrer uma pena, tal
como é imortal a alma justa para gozar do prémio eterno (Ibid., 71). Todas as
almas são, portanto, imortais, tanto as justas como as injustas; mesmo
aquelas que não são capazes nem de uma coisa nem de outra, como as almas das
crianças, devem sê-lo, porque devem ter a mesma natureza (ibid., 72).
Sabemos pelo biógrafo Eadmer que Anselmo morreu quando tentava ansiosamente
esclarecer a natureza e a origem da alma. Com efeito, pouco nos dizem as
obras que nos deixou. A investigação de Anselmo, que começa com Deus, termina
com a alma humana. Na verdade, Anselmo tinha feito suas as palavras de Santo
Agostinho: "Desejo conhecer Deus e a alma: e nada mais".
NOTA BIBLIOGRÁFICA
78
79
81
Apesar do problema sobre o qual se discutia não fosse precisamente novo (como
veremos em seguida), o próprio facto da posição explícita do problema (ainda
que mediante o recurso a um texto antigo) e o reconhecimento da possibilidade
de resolvê-lo em mais direcções é já por si significativo e pode ser
considerado com um sinal do novo espírito que começa a invadir a escolástica
a partir dos últimos decénios do século XI. Anteriormente a este período,
nenhum pensador conseguia pôr em dúvida que os géneros e as espécies fossem
ideias arquétipos na mente divina e formas dessa mesma mente impressas nas
coisas. Deste ponto de vista, o problema dos universais não tinha sentido.
Levantá-lo significa, com efeito, admitir que o mesmo pode ser Tesolvido de
forma diferente das doutrinas que a primeira escolástica tinha deduzido da
patrística e que se tornaram o património da especulação teológica. A posição
do problema significa, portanto, a consideração do assunto de um ponto de
vista, que deixa de ser apenas teológico, para passar a ser também
filosófico: isto é, de um ponto de vista que vê nos universais não apenas os
instrumentos da acção criadora de Deus mas também, e sobretudo, os
instrumentos ou condições das operações
82
83
urna marca das próprias coisas e está em lugar (supponit) delas. Apesar das
suas querelas e de procurarem sempre novas soluções (que muitas vezes se
distinguem umas das outras apenas por um cabelo), os Escolásticos, com o seu
eclectismo desenvolto, não renunciam, no entanto, aos resultados que no campo
da lógica se possam obter, utilizando ora uma ora outra das duas orientações.
A partir do século XIII os tratados lógicos justapõem simplesmente às
doutrinas lógicas aristotélicas, as estóicas, dando igual importância tanto a
umas como a outras sem se preocuparem com as divergentes orientações
teóricas. As Summulae logicales de Pedro Hispano constituem o mais famoso
modelo desta justaposição.
84
§ 201. ROSCELINO
85
n=m enredadas nos sentidos e não conseguem libertar deles a razão. "Nas suas
almas, a razão que deve ser a parte dominante e julgadora de tudo o que há no
homem, está de tal maneira submergida nas imaginações corporais que não
conseguem livrar-se delas; e mantêm-se incapazes de discerni-la quando afinal
deveriam servir-se dela apenas para a especulação". (De fide Trin., 2). Esta
incapacidade de Roscelino para seperar a razão do envólucro sensível é também
motivo, segundo Anselmo, da heresia trinitária defendida pelo clérigo de
Compiègne: "Quem não compreende nem sequer a maneira como os homens
constituem a única espécie homem, como poderá compreender a maneira como
através da misteriosíssima natureza divina, várias pessoas, sendo cada uma
delas um Deus perfeito, constituem as três um só Deus? E quem tem a mente tão
obscurecida que não sabe distinguir o cavalo da sua cor, como poderá
distinguir o Deus único das suas diferentes relações? Em suma, quem não
compreende que o homem não é o próprio indivíduo, de forma alguma poderá
entender por homem a natureza humana" (ibid.). João de Salisbúria dá-nos um
testemunho análogo sobre o nominalismo de Roscelino: coloca-o "entre os que
afirmam que os géneros e as espécies não são outra coisa a não ser vozes"
(Metal., 11, 13, Policrat., VII, 12). Abelardo ilustra-nos outro aspecto de
tal nominalismo. Roscelino sustentou que é impossível que as coisas constem
de partes e que as partes das coisas são, como as espécies, nomes diversos
das próprias coisas (Obras inéditas, edic. Cousin, 471).
86
idênticas pela vontade e podem (De fide Tiin., 3); podendo-se acrescentar, se
fosse costume admiti-lo, que constituem três divindades (Epist., 11, 41). Mas
sobro esta doutrina temos algumas referências do próprio Roscelino na sua
carta a Abelardo. Roscelino começa por identificar pessoa com substância, a
propósito de Deus. Uma vez que, em Deus, diversos nomes não indicam real-
idades diversas, mas a mesma única e simplicíssima realidade, a pessoa só
pode significar substância. Mas se as pessoas são diversas porque uma gera e
a outra é gerada, é evidente que são diversas as substâncias da Trindade
divina. A Trindade é una pela comunhão das três substâncias, não porque seja
constituída por uma única substância. Reconhece-se, portanto, à Trindade uma
unidade de semelhança ou de igualdade, mas não de substância. Daí se conclui
que Roscelino deduziu o seu trideísmo da identificação de substância e pessoa
(que na tradição eclesiástica sempre foram distintas): e foi levado a essa
identificação por imaginar que as determinações diversas que se atribuem a
Deus não são mais que nomes diversos de uma realidade única.
A heresia de Roscelino foi condenada pela primeira vez num Concílio que se
celebrou em Reims em 1092 ou 1093. Roscelino foi obrigado a abjurar e a ele
se submeteu com receio de ser assassinado pelo povo de Reiras; mas tendo
abandonado a cidade, voltou a defender as suas teses. Foi novamente condenado
em 1094 num concílio convocado pelo rei Filipe para celebrar as suas bodas
com Bertrada. Expulso de França, dirigiu-se a Inglaterra, onde uma nova
perseguição o obrigou a regressar a França. Tornou a aparecer para combater a
doutrina de Abelardo, em 1121. O seu carácter surge-nos, através da carta que
conhecemos dele, como pouco recomendável: ataca Abelardo nos
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88
O tratado De generibus et speciebus foi considerado por Cousin como uma obra
de Abelardo e incluído entre as suas obras inéditas. Ritter foi o primeiro a
negar esta atribuição e atribui o tratado a Joscelino (Gausleno, 1125-1151),
bispo de Soissons. Esta atribuição foi logo confirmada por outros eruditos,
e, com efeito, João de Salisbúria, no seu Metalogicus (11, 17) atribui a
Gausleno a doutrina de que o universal é o conjunto das coisas siri-
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NOTA BIBLIOGRáFICA
90
vi
ABELARDO
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93
mãos, o livro De unitate et trinitate divina (1121). Nos últimos anos da sua
vida manteve uma polémica com São Bernardo, que provocou a sua condenação
pelo Sínodo de Sens (1140). Abelardo apelou para o Papa o resolveu dirigir-se
a Roma para defender a sua causa; mas o abade Podro de Cluny convenceu-o a
permanecer em Cluny e a reconciliar-se com a Igreja, com o Papa e com São
Bernardo. Abelardo compôs, nesta altura, uma Apologia e passou os últimos
dias da sua vida na abadia de Saint Marcel. Aqui morreu em 20 de Abril de
1142 com 63 anos. Os seus restos mortais foram sepultados no Paracleto o para
ali foram levados e sepultados a seu lado, vinte e um anos depois, os restos
mortais de Heloísa (1164).
94
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Este método, em breve se fixou, depois dele, num esquema que foi seguido
universalmente, o esquema da questio, que consiste em partir de textos que
dão soluções opostas ao mesmo problema
96
Mas isto não implica que a fé não se deva alcançar e defender com a
razão. Se não é preciso discutir, nem sequer sobre o que se deve ou não deve
crer, que nos resta senão prestar fé tanto
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aos que dizem a verdade como aos que dizem o que é falso? (Ibid., 11, 3). Não
cremos numa coisa porque Deus a tenha dito, mas porque admitimos que Ele a
disse, e assim nos convencemos de que a coisa é verdadeira. Uma fé cega,
prestada com ligeireza, não tem nenhuma estabilidade, é uma fé incauta e
privada de discernimento: em qualquer caso é preciso discutir, pelo menos de
antemão, se é necessário acreditar ou não (Ibid., 11, 3). A última convicção
de Abelardo está expressa na Historia calamitatum (cap. 9). Nela afirma que
escreveu o livro sobre a Unidade e Trindade divina para os seus discípulos
que, no campo teológico, procuravam argumentos humanos e filosóficos e
queriam mais raciocínios do que palavras. É ingénuo pronunciar-se palavras
cujo significado não se entende, uma vez que não se pode crer senão no que se
entende, e é ridículo predicar aos outros aquilo que quem predica ou quem
ouve não consegue apreender. Não se pode crer senão no que se compreende.
Nesta frase se contém o verdadeiro cerne da investigação de Abelardo. A
própria verdade -revelada não é verdade para o homem, se não apelar para a
sua racionalidade, se não o deixa entender e apropriar-se dela.
98
que nasceu para ser predicado de muitas coisas". Em virtude desta definição,
Abelardo acentua o carácter lógico e puramente funcional do universal e, por
um lado, nega que possa, por qualquer título, ser considerado como uma
realidade ou res, e por outro, que possa considerar-se como um puro nome. Não
pode ser considerado como realidade porque nenhuma realidade pode ser
predIcada de outra. Rem de re praedicari monstrum dicunt, afirma João de
Salisbúria no Metalogicus (11, 17) referindo-se a Abelardo e aos seus
continuadores. Por outro lado, não pode ser uma pura voz, porque a própria
voz como tal é uma coisa, uma realidade particular que não _ pode ser
predicada de outra. A fórmula de Roscelino: universal est vox, é substituída
por Abelardo pela fórmula universal est sermo: diferentemente de vox,
sermo supõe predicabilidade, referenoia a uma realidade significada, o que
a escolástica posterior chamará intencionalidade.
Este ponto de vista que encontra a sua expressão mais clara nas Glosas a
Boécio, tem o grande mérito de ter clarificado a natureza puramente lógica e
funcional do conceito. Trata-se de uma descoberta que o posterior
desenvolvimento da lógica medieval não irá esquecer. Através dela, Abelardo
pode justificar a realidade objectiva do universal sem ter de recorrer às
hipóstases metafísicas do realismo. É evidente que não existe o universal
fora das coisas individuais. Quando os filósofos afirmam que a espécie é
criada pelo género, não pressupõem com isto que o género preceda às suas
espécies no tempo ou exista antes delas. O género não é de forma alguma
anterior à espécie, e nunca pôde existir um animal que não fosse nem racional
nem irracional: o género não pode existir senão com a espécie, tal como esta
não pode existir senão com aquele. (Int. ad theol., 11, 13). Mas o facto de o
universal não existir na realidade como tal, não significa que não
99
seja nada. As coisas singulares, nas suas propriedades e na sua natureza, são
uniformes ou semelhantes, a~r desta uniformidade ou semelhança não
constituir, por sua vez, uma coisa singular. Todas as coisas separadas, como
Sócrates e Platão, são opostas em número mas convergem nalguma coisa, por
exemplo, no facto de serem homens. E esta convergência ou uniformidade é
real: Abelardo define-a, como um status, que não é nem uma res nem um
nihilum. Quando se diz que todos os homens se aproximam pelo facto de serem
homens (In statu hominis), deve-se entender apenas que todos são homens e que
nisto não diferem em nada. (Philosophische Schriften, ed. Glyer p. 19-20).
Tal é a a tese típica do nominalismo medieval; e a lógica nominalista
integrá-lo mais tarde, com a doutrina da suppositio: mediante a qual se
exprime a função própria do conceito (como -sinal) de estar em lugar, nas
proposições e nos raciocínios em que é utilizado, de um conjunto de objectos
entre os seus similares.
O valor que a investigação racional como tal assume aos olhos de Abelardo,
condu-lo naturalmente a reconhecer o valor de todos aqueles que se dedicam ao
mesmo tipo de investigação, mesmo que estejam fora do cristianismo. Abelardo
reconhece assim que a verdade falou também pela própria boca dos filósofos
pagãos, que também poderiam ter reconhecido a natureza trinitária de Deus
(Intr., ad. Theol., 1, 20). A distinção entre filósofos pagãos e cristãos
deixa de ter valor para ele: todos estão unidos pela razão. Tanto a vida como
a doutrina dos filósofos, afirma ele, encarnam o mais alto grau da perfeição
evangélica ou apostólica, e pouco
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101
Alma foi colocada por Deus no meio do mundo e que a partir daí se estende
igualmente por todo o globo, o que ele quer afirmar, de forma elegante, é que
a graça de Deus se oferece igualmente a todos, e que nesta casa ou templo que
é seu, o mundo, ele dispõe todas as coisas de modo salutar e justo (Introd.
ad theol., 1, 27). A doutrina Platónica coincide assim de forma substancial,
com a fé na Trindade; e se Platão afirma que a Mente e a Alma do mundo foram
criadas, trata-se de uma expressão imprópria que quer significar a geração
e a providência das duas pessoas, divinas do Pai Ubid. 1, 10).
de Filho ou Verbo designa-se a sapiência de Deus, pela qual ele pode conhecer
tudo e de modo algum ser enganado. Com o nome de Espírito Santo exprime-se a
caridade ou benignidade divina, pela qual Deus quer que tudo seja disposto do
melhor modo e dirigido ao melhor fim. Estes três momentos da Trindade
garantem a perfeição divina, uma
vez que não é perfeito em tudo quem é importante em qualquer coisa, nem é
perfeitamente santo quem pode enganar-se em qualquer coisa, nem é
perfeitamente bondoso quem não quer que tudo seja disposto do melhor modo. Os
três atributos de Deus, expressos nas três pessoas da Trindade, pressupõem-se
e reclamam-se uns aos outros. E assim, ainda que a sapiência pertença ao
Filho e a caridade ao Espírito Santo, todavia, tanto o Pai como
102
o Espírito Santo são inteira sapiência; e, do mesmo modo, tanto o Pai como o
Filho são também caridade (Int. ad Theol., 1, 7-10). Em razão desta unidade
dos atributos divinos, as várias pessoas derivam umas das outras. O Pai, que
é a potência, gera em si a sua sapiência, que é o Filho, se bem que a própria
sapiência divina, seja uma potência, isto é: um poder de Deus: o poder de
discernir a forma de evitar qualquer engano ou erro, de modo a que nada pode
subtrair-se ao conhecimento de Deus. O Espírito Santo procede do Pai e do
Filho, enquanto a bondade é própria do Espírito, a forma de produzir os seus
efeitos deriva da potência e da sapiência de Deus: pois se não derivasse da
potência seria privado de eficácia e se não derivasse da sapiência não
conheceria a melhor forma de explicar-se e de produzir os seus efeitos. O
Espírito Santo designa portanto o proceder de Deus de si para as criaturas,
que têm necessidade dos benefícios da graça divina, proceder que é ditado
pelo amor de Deus (1b., 11, 14). O Filho e o Espírito Santo diferem, todavia,
na sua derivação de Deus Pai: o Filho é gerado pelo Pai, e é da mesma
substância do Pai, uma vez que a sapiência é uma determinada potência; o
Espírito Santo não é da mesma substância do Pai e do Filho porque a caridade,
que não é atributo, não é nem potência nem sapiência, ainda que esteja
condicionada na sua eficácia, tanto por uma como por outra. Fala-se,
portanto, de geração do Filho em relação ao Pai, e de processão do Espírito
Santo, tanto em relação ao Pai como ao Filho (1b., 11, 14).
103
da divina Potência tal como O selo de bronze recebe o seu ser do bronze de
que é formado. Para que seja um selo de bronze, é necessário que exista o
bronze; assim a divina Sapiência que é a potência de conhecer, exige
necessariamente que haja a divina Potência, de que é formada. E como o bronze
se chama a substância do selo, assim a divina Potência é a substância da
divina Sapiência.
Nesta similitude, o Espírito Santo é aquele que se serve do selo e aquele que
pressupõe o ser do próprio selo e do bronze que o constitui. Tal como aquele
que ao usar o selo se serve de qualquer coisa mole sobre a qual imprime a
imagem que existe na substância do selo, assim o Espírito Santo, com a
distribuição dos seus dons, reconstitui em nós, a imagem destruída de Deus,
para que de novo sejamos feitos conforme a imagem do Filho de Deus, isto é:
de Cristo. Em suma, tal como o bronze, o selo e o acto de selar são uma só
coisa na sua essência, ainda que se trate de três coisas distintas uma das
outras; assim também o Pai, o Filho, e o Espírito Santo são uma única
essência, mas são distintos uns dos outros nos seus atributos pessoais, de
forma que nenhuma pessoa pode ser substituída por outra. O bronze, como
matéria, não é a forma do selo e reciprocamente. Assim o Pai não é o Filho, e
a Potência divina não é a divina Sapiência; e reciprocamente (Int. ad.
theol., 11, 14).
104
Convento do Paráclito
lardo tem uma intencionalidade mais cosmológica do que teológica. O seu
objectivo é mais o de esclarecer a estrutura e a constituição do mundo e a
relação entre o mundo e Deus, do que propriamente esclarecer a natureza de
Deus. E esta sua intencionalidade cosmológica foi aplicada e utilizada pelos
filósofos posteriores, especialmente os da escola de Chartres.
105
Para compreender a unidade das pessoas divinas é útil considerar uma outra
imagem que Abelardo vai buscar à gramática. A gramática distingue três
pessoas: a que fala, aquela a quem se fala e aquela de que se fala; mas
reconhece que estas três pessoas podem ser atribuídas a um mesmo sujeito. Uma
pessoa pode falar de si a si própria; neste caso, referem-se ao mesmo sujeito
todas as três pessoas da gramática. Além disso, a primeira pessoa é o
fundamento das outras, uma vez que não há ninguém que fale, também não há
ninguém a quem se fale e ninguém de que se fale. Em suma, a terceira pessoa
depende das duas precedentes, pois que só entre duas pessoas que falam se
pode falar de uma terceira pessoa. Em tudo isto podemos encontrar a imagem da
unidade divina; ainda que a segunda pessoa, com efeito, pressuponha a
primeira e a terceira as outras duas. E como um e mesmo homem pode ser a
primeira, a segunda e a terceira pessoas gramaticais, sem que estas três
pessoas se confundam ou anulam; assim também em Deus a mesma essência pode
ser as três pessoas, sem que as três pessoas se identifiquem umas com as
outras (lbid., 11, 12).
106
daquilo que faz e por isso a sua acção é necessária. Com efeito, Deus apenas
pode fazer o bem. Deus faz aquilo que quer, mas quer aquilo que é bom.
O princípio da sua acção não é o sic volo, sic iubeo, sit pro ratione
voluntas: Ele quer apenas que aconteça aquilo que é bom que aconteça. (Theol.
christ., V, col. 1323). É claro pois, que, em tudo aquilo que Deus faz ou
deixa de fazer, há uma justa causa... Tudo aquilo que ele faz, deve fazê-lo,
porque se é justo que alguma coisa aconteça, é injusto que essa coisa seja
omitida (Intr., ad theol.,
111, 5). Nem se pode dizer que, se Deus tivesse feito algo de diferente
daquilo que fez, esse algo seria também bom, porque seria feito por ele; uma
vez que, se aquilo que não fez, fosse bom como aquilo que faz, não haveria
fundamento para a sua escolha nem motivo para fazer uma coisa e omitir outra.
Se aquilo que faz é apenas o bem, Deus pode fazer apenas aquilo que faz.
Tinha pois razão Platão ao afirmar que Deus não podia criar um mundo melhor
do que aquele que criou (lb., 111, 5). Em Deus, possibilidade e vontade são
uma e só coisa: é verdade que ele pode tudo o que quer, mas é verdade também
que ele não pode, senão aquilo que quer. Esta doutrina de Abelardo implica a
necessidade da criação do mundo e o optimismo metafísico. O mundo foi
necessariamente querido e criado por Deus. Tudo o que Deus quer, quere-o
necessariamente, nem a sua vontade pode permanecer ineficaz; necessariamente,
pois, Ele leva a seu termo tudo aquilo que quer (Theol., christ., V, col.
1325 e segs.).
Deus: pois tudo aquilo que ele faz, fá-lo apenas por sua vontade, e portanto
sem precisar de qualquer coacção (Intr. ad theol., 111, 5).
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da vontade (1b., 111, 7). Pode dizer-se, assim, que a liberdade de escolha é
mais ampla no âmbito do bem, quando aquele que escolhe está livre da servidão
do pecado (1b., 111, 7).
Ho
rações mormis. A acção pecaminosa nada acrescenta ao pecado que é o acto pelo
qual o homem despreza o querer divino. Onde não existe consentimento da
vontade não existe pecado, ainda que a acção seja em si pecaminosa (como no
caso de quem mata coagido), e quando existe consentimento da vontade na
inclinação viciosa, o facto de se seguir a ela uma acção pecaminosa nada
acrescenta à culpa. Deve-se chamar transgressor, não àquele que faz aquilo
que é proibido, mas àquele que apenas consente no que é proibido por Deus: e
assim a proibição deve entender-se como referida não à acção, mas ao
consentimento. "Deus tem em conta não as coisas que se fazem mas o ânimo com
que elas são feitas; e o mérito e o valor do que actua não consiste na acção
mas na intenção" (1b.). Uma mesma acção pode ser boa ou má; por exemplo,
enforcar um homem tanto pode ser um acto de justiça como de malvadez.
111
do homem. Para esta real-idade não é a acção mas a intenção que conta, e a
acção só é boa quando procede de uma boa intenção. Na verdade, a bondade da
intenção deve ser real, não aparente; é necessário que o homem não se engane
ao crer que o fim para que tende seja da vontade de Deus (1b., 11). Abelardo
procede coerentemente nesta ética da intenção e não se detém perante as
consequências teologicamente perigosas da mesma. Se o pecado está apenas na
intenção, como se justifica o pecado original? Abelardo responde que o pecado
original não é um pecado, mas a pena de um pecado. "Quando se diz que as
crianças nascem com o pecado original e que nós todos, segundo o Apóstolo,
pecámos como Adão, é como se se dissesse que do pecado de Adão derivou a
nossa pena, que é a sentença da nossa condenação" (1b., 14). Igualmente
impróprio é chamar pecado à ,ignorância em que vivem os infiéis em relação à
verdade cristã e as consequências que surgem de tal ignorância. "Não
constitui pecado o ser infiel, ainda que -tal coisa impeça a entrada na vida
eterna àqueles que chegaram ao uso da razão. Para ser-se condenado é
suficiente não acreditar no Evangelho, ignorar a Cristo não se aproximar dos
Sacramentos da Igreja, ainda que isto aconteça não por maldade, mas apenas
por ignorância" (1b., 14). Não se pode ter por culpa o facto de não
acreditarem no Evangelho e em Cristo aqueles que nunca ouviram falar nem dum
nem doutro. Afirmar que se pode pecar por ignorância significa entender o
pecado num sentido lato e impróprio, já que o pecado é verdadeiramente apenas
a ignorância quando é efeito de negligência consciente.
112
(Cousin tem uma nova edição das obras já editadas, conjuntamente com
Jourdain, Paris, 1849-1859); outros por GYEER, Abaelards philosophie
Schriften, nei "Beitrage", XX1, 1-4, 1933; e por DAL PRA, P. Abelardo Scritti
filosofici, Milão, 1954.
§ 208. REINERS, nei "1@eitrãge", VH1, 5, 1910; GEYER, nei "Beitrage", supp1.
1, 1913; ARNOLD, Zur Geschichte der Suppositionstheorie, in " Symposion",
1952; MOODY, Truth and Consequence in Medieval Logic, Amsterdão, 1953.
§ 210, 211. GRUNWALD, nei "Beitrage", VII, 3, 36-40; MCCALLUM, A.Is Christian
Theology, Londres, 1948.
§ 214. DITTRicH, Geschichte der Ethik, 111, 67-74; DAL PRA, in "Riv. Stor.
F*Ilos.", 1948; in "Acme", 1948.
113
VII
A ESCOLA DE CHARTRES
115
século XII; uma viragem através da qual o mundo do homem passa a ser
observado e encarado com renovado interesse, ainda que no lugar subordinado
que apesar de tudo mantém perante as forças transcendentes que o dominam.
116
está nos seus resultados, mas antes nos caminhos filosóficos para que
apontam; caminhos que se dispõem a dar um relevo cada vez maior à natureza e
ao homem, mesmo que a natureza e o homem sejam concebidos, não em oposição ao
transcendente, mas como manifestações do próprio transcendente.
117
compõe dois livros dos quais um, Quaestiones naturales, é uma obra de física;
o outro, De codem et diverso, tem a forma de uma carta a um sobrinho o é uma
alegoria na qual a filosofia e a filoscomia disputam o jovem Adelardo,
vangloriando-se cada uma dos seus próprios méritos.
118
Todos estes temas e motivos são abordados na escola de Chartres cujo primeiro
representante de envergadura foi Bernardo, professor de 1114 a 1119 na Escola
catedral, e de 1119 a 1124, chanceler da Abadia. Dele não possuímos escritos
mas conhecemos a sua doutrina através dos testemunhos de João de Salisbúria
que no seu Metalogicus (IV, 35) lhe chama "o mais perfeito entre os
platónicos do seu século". O que sabemos das suas doutrinas aparece como um
resumo do Timeu platónico visto através de Abelardo. Bernardo identifica os
géneros e as espécies com as ideias platónicas e sustenta que, tal como as
ideias, são eternos. Não são todavia coeternos com Deus no sentido em que são
coeternas entre si as pessoas da Trindade. As ideias, enquanto subsistentes
na mente divina, estão privadas de matéria e não são sujeitas ao movimento:
na matéria estão apenas as imagens dessas formas ideais, impressas por Deus,
imagens a que Bernardo chama formas inatas e que têm o destino das coisas
singulares (1b., 11, 17). Mas Bernardo foi sobretudo (quanto sabemos) um
gramático e um literato, admirador entusiasta dos autores antigos: dizia ele
que nós somos, em relação aos antigos, como anões sobre os ombros de
gigantes: podemos ver mais além apenas porque podemos subir até à sua altura
(1b., RI, 4).
119
1140 ensinou em Paris onde João de Salisbúria foi seu aluno e em 1141 foi
chanceler de Chartres e ao mesmo tempo arquidiácono de Dreux. Morreu em 1150.
Teodorico, é autor de um Heptateucon ou manual das sete artes liberais de que
se servia no seu ensino e que é um documento do material de estudo utilizado
nas escolas na primeira metade do século XII; de um comentário ao géneses
Hexameron ou De septem diebus e de um comentário ao De Trínitate de Boécio.
Na especulação de Teodorico é sensível a influência das obras de Escoto
Erígena. Como este, Teodorico distingue quatro causas e que em seguida são
quatro fases do processo de auto-realização de Deus no mundo: a causa
eficiente, que é Deus Pai; a causa formal que é a Sapiência ou o Filho de
Deus, que organiza a matéria; a causa final que é o Espírito Santo que anima
e vivifica a matéria já formada e organizada; e finalmente a causa material
que são os quatro elementos que o próprio Deus criou do nada no princípio.
Como se vê, Teodorico, tal como Abelardo, identifica o Espírito Santo com a
Alma do mundo e na sua obra é frequente a insistência neoplatónica (obtida em
Escoto Erígena) sobre o primado ontológico da Unidade, que é o próprio Deus.
Teodorico insiste também na sua noção de unidade ao considerar Deus, no seu
comentário ao De Trh*ate de Boécio, como a única forma do ser (forma essendi)
de que participam todas as coisas existentes, tal como da única matéria
participam todas as coisas materiais. É provável que esta doutrina não tenha,
para Teodorico, o significado panteístico que à primeira vista pode
apresentar; mas com tal significado podia ser encarada, assim como foi, por
alguns escolásticos, como veremos. É portanto característica de Teodorico
(como de todos os filósofos de Chartres) a tese de que a obra miraculosamente
criadora de Deus se extingue
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123
é o fundamento mais firme e certo mesmo dos conceitos naturais (In Boeth. de
praed. trium pers., in P. L., 64. , 1303). Com base neste pressuposto.
Gilberto defende a estreita união entre a razão e a fé em toda a investigação
filosófica. "Une a fé à razão, afirma ele, para que a fé confira, em primeiro
lugar, autoridade à razão e em seguida a razão confira assentimento à fé"
(Ib., 1310).
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Gilberto fazia deste modo valer com lógica rigorosa, em todas as partes do
seu sistema, a distinção entre subsistência e subsistente, entre essência e
substância. É evidente que na sua investigação a solução do problema dos
universais havia de influir a de todos os outros problemas. Gilberto é,
sobretudo, um lógico e no discorrer do seu pensamento obedece às exigências
da sua doutrina lógica. E mesmo as suas investigações lógicas exerceram sobre
a escolástica posterior a maior influência. O seu escrito De sex ptincipÚs
baseia-se na pretensa diferença entre as primeiras quatro e as outras seis
restantes categorias aristotélicas. As primeiras quatro
128
João de Salisbúria está ligado à Escola de Chartres não só pelas relações que
teve com alguns mestres daquela escola mas também pelo entusiasmo pelos
estudos humanísticos e pela independência de pensamento que, tal como
aqueles, sempre demonstrou ter. No entanto, as suas doutrinas teológicas e
cosmológicas afastaram-se das que eram defendidas na escola de Chartres: as
quais foram além dos seus interesses porque suportadas por ele para lá dos
limites da capacidade humana.
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130
búria com as próprias limitações da ciência humana, às quais se subtraem as
coisas futuras. "Sei com certeza que a pedra ou a seta que lanço às nuvens
deverá cair por terra, porque assim exige a natureza das coisas, todavia, não
sei se elas apenas podem cair no chão e porquê; com efeito, elas poderão cair
ou não. Também a outra alternativa é verdadeira, ainda que não
necessariamente, como é verdadeira aquela que eu sei que acontecerá... Aquilo
que ainda não é, não é ciência, mas apenas opinião" (Policrat., 11, 21).
Daqui deriva que todas as afirmações que implicitamente e explicitamente
digam respeito ao futuro têm um valor provável, não necessário: a sua
probabilidade é baseada na indeterminação do seu objecto e é por isso
impossível de eliminar. Com efeito, deve-se chamar provável àquilo que
acontece frequentissimamente: o que não acontece nunca de outra maneira é
ainda mais provável: e o que se crê que não pode acontecer de outra maneira
adquire o nome de necessário (Metal., 111, 9). Donde se conclui que o
"necessário" segundo João de Salisbúria é limitado à "crença"; enquanto que o
"provável" exprime a uniformidade objectiva dos eventos e baseia-se na
frequência com que acontecem. João de Salisbúria tira todas as consequências
implícitas neste ponto de vista. A dialéctica, como lógica do provável, é o
instrumento indispensável de todas as disciplinas (,Metal., 11, 13). A
pretensão da astronomia divinatória de predizer infalivelmente o futuro é
absurda porque o futuro não é necessariamente determinado e é por isso
imprevisível (Policrat., 11, 19). A infalível presciência que Deus tem das
coisas futuras não implica de forma alguma a sua necessidade (lb.,
11, 21).
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Deus é o fundamento da ordem do mundo, mas não se pode conceber essa ordem
como um facto inelutável, segundo a concepção dos Estóicos, porque isso não
exclui a mobilidade das coisas e a liberdade da vontade humana (1b., 11, 20).
João de Salisbúria insiste no carácter prático e de devoção da fé religiosa.
Tal como a alma é a vida do corpo, também Deus é a vida da alma. Tal como o
corpo morre se a alma o abandona, também a alma perde a sua verdadeira vida
se Deus a abandona (Entet.,
181). Por isso o destino da alma o a sua felicidade consiste em entregar-se à
acção da graça de Deus (Policrat., 111, 1).
espécies são produto da abstracção, figmenta rationis, que a razão cria a fim
de melhor proceder na sua investigação sobre as coisas naturais (Metal., U,
20). No entanto não são privados de verdade objectiva, porque correspondem a
uma conformidade efectiva das coisas singulares entre si: por isso
Aristóteles lhes chamou substâncias segundas, querendo com isto indicar que,
sendo insubsistentes enquanto realidades singulares, são no entanto, algo de
real.
O intelecto humano pode erguer-se até aos universais apenas pela via da
indução, partindo das coisas sensíveis. João de Salisbúria refere-se à
doutrina aristotélica de que evidentemente aceita os resultados: "Os
conceitos comuns são criados pela indução sobre as coisas singulares. Com
efeito, é impossível chegar-se a considerar os universais senão através das
induções que estão na base de todas as nossas noções abstractas. Mas é
impossível induzir aquilo que é desprovido de sensibilidade. Com efeito, os
sentidos são a forma de conhecimento das coisas singulares e não é possível
ter conhecimento das coisas singulares senão através dos universais
conseguidos pela indução; não é possível a indução sem a sensibilidade. Com
efeito, dos sentidos deriva a
134
Essa atitude polémica dirige-se em primeiro lugar contra a seita herética dos
Cátaros: cuja doutrina fundamental consistia no reconhecimento de um dualismo
fundamental de princípios: um óptimo e criador da ordem e da perfeição do
mundo, o outro
137
Algumas das mais importantes e mais debatidas teses da escola de Chartres têm
um franco sabor panteístico. O panteísmo consiste em sustentar que
138
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140
consequências que ele tirava das próprias teses: Deus identifica-se com todas
as coisas, disseminadas como estão no espaço e no tempo, identifica-se também
com o próprio tempo e com o espaço como se identifica com todos os homens que
assim se unificam nele. Desta presença de Deus nos homens, Amalrico extrai a
negação, como já foi dito, da validade dos sacramentos e do magistério
eclesiástico. Todas estas doutrinas foram condenadas no Sínodo de Paris de
1210 e pela obra de Inocêncio III, no IV Concílio de Latrão de 1215.
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145
NOTA BIBLIOGRÁFICA
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VIII
O MISTICISMO
Nos confrontos dos movimentos heréticos que concluíam todos por negar
qualquer função ao aparelho eclesiástico, o misticismo oferecia a tal
aparelho um poderoso instrumento de defesa, porque lhe consentia reivindicar
para si a administração dos poderes carismáticos sem os quais a ascese
mística não seria possível. E nos confrontos da razão, a que faziam apelo as
escolas filosóficas contemporâneas, o misticismo oferecia ao mesmo aparelho
eclesiástico o modo de contrapor ao carácter incerto e até então erróneo dos
resultados a que a razão conduzia, a certeza e a glória do êxito místico que
permitem reunir os poderes sobrenaturais da Igreja. Não é nada de espantar,
portanto, que, na época de que agora nos ocupamos, o misticismo tenha servido
em primeiro lugar de arma polémica contra as aberrações das heresias e as
divagações da dialéctica; isto é , como arma polémica para afirmar o poder da
Igreja e reforçar a ortodoxia doutrinal pela qual esse poder era justificado.
Mas não foi esta a única função do misticismo medieval. Decorrida a fase
polémica ou em concomitância com esta fase, o misticismo coloca-se,
150
com o fundamento de uma mais nítida distinção dos limites entre a razão e a
fé, já não como alternativa rival da investigação racional mas como
complemento e coroamento dessa mesma investigação. É nesta forma que aparece
na escola dos Vitorinos e se conserva na escolástica sucessiva, até ao século
XIV, em que a mística alemã assume de novo a posição anti-racionalista mas
desta vez fora de qualquer preocupação de defesa da Igreja.
151
A doutrina de S. Bernardo, nos seus pontos essenciais, não é mais que o plano
estratégico da luta contra as heresias, a favor da autoridade absoluta da
Igreja. Os pontos fundamentais desta doutrina podem ser assim resumidos: 1) a
negação do valor da razão; 2) a negação do valor do homem,
3) a actuação do homem reduz-se à ascese e à elevação mística. Sobre o
primeiro ponto, Bernardo pronuncia-se sem reservas contra a razão e contra a
ciência. O desejo de conhecer surge-lhe como uma <dorpe, curiosidade" (Se. in
Cant., 36, 2). As discussões dos filósofos como "loquacidade cheia de vento"
(Ib., 58, 7). " A minha filosofia mais sublime -proclama ele-é esta: conhecer
Jesus e
a sua crucificação" (lb., 43, 4). Quanto ao segundo ponto, S. Bernardo afirma
sem reservas que a única atitude possível ao homem é a da humildade, da
virtude "pelas quais o homem, conhecendo-se verdadeiramente, sente vergonha
de si próprio" (De gradibus humilitatis, 1, 2). Reconhecer-se a si próprio
como nada sendo é para o homem a condição indispensável para que possa
libertar-se de todos os vínculos corpóreos e identificar inteiramente a
sua vida com o amor por Deus. O amor de que S. Bernardo fala baseia-se no
conceito do De amicitia de Cícero e a linguagem do Cântico dos Cânticos é
entendida por ele substancialmente como o
processo ascético de libertação do corpo e em geral de todos os vínculos
naturais e como pura obediência ou abandono à vontade divina. Os graus
mais altos do amor consistem em amar a Deus por si mesmo e no amar-
se a si próprio por amor de Deus: neste grau, o homem abandona
a sua
152
ALEGORIA DA CABALA
vontade inteiramente ao querer divino (De diligendo Deo, XIII, 36). Com este
ascetismo do amor teológico coincide o processo da ascese mística, cujos
graus são significativamente identificados por S. Bernardo com os graus da
humildade. O primeiro grau da ascese mística é a consideração (consideratio),
que é um intenso pensamento de investigação e uma intenção da alma que
investiga a Verdade criadora.
O segundo grau é a contemplação (contemplatio) que é a intuição corta, uma
apreensão indubitável da verdade (De contemplatione, 11, 2). A primeira
contemplação é a admiração pela majestade divina que exige um coração
purificado do vício e do pecado. O supremo grau da contemplação é o êxtase ou
excessus mentis, pelo qual Deus desce sobre a alma humana e a alma se une a
Deus. "Tal como uma gota de água que cai no vinho se dissolve e assume o
sabor e a cor do vinho; tal como o ferro candente e incandescente se torna
semelhante ao fogo e perde a sua forma própria; tal como o
153
154
O inglês Isaac foi monge em Citeaux, depois, de 1147 a 1169, abade de Stella,
na diocese de Poitiers. A sua obra mais significativa filosoficamente é uma
Epistola ad quendam familiarem suum de anima, escrita à volta de 1162.
"A razão, afirma ele, abstrai dos corpos as formas ou naturezas que no corpo
subsistem, mas abstrai-as não em acto, mas apenas ao considerá-las; o vendo
que em acto subsistem apenas no corpo, percebe no entanto que elas não são o
próprio corpo. Assim a razão percebe o que nem os sentidos nem a imaginação
conseguem perceber, ou seja, na natureza das coisas corpóreas as formas, as
diferenças, os atributos próprios e acidentais; todas as coisas ,incorpóreas
que, não obstante, não existirem fora dos corpos, mas na própria razão" (P.
L., 194.O,
1884). Acima da razão, o intelecto é a força que percebe as formas das coisas
incorpóreas, isto é, dos seres espirituais; e a inteligência. vê, na medida
em que é possível à sua natureza, o sumo ser, isto é, Deus na sua pureza e
incorporeidade. Deste conhecimento supremo da inteligência, o homem recebe a
luz para os conhecimentos inferiores. Aqui Isaac: reproduz a doutrina
agustiniana da iluminação exprimindo-a com os termos de Escoto Erígena: as
verdades que através da inteligência descem de Deus ao homem são teofanias,
manifestações de Deus (1b., 1888).
156
157
coordenar num único sistema. Desse modo tenta coordenar a via mística com a
investigação racional: "Há dois modos e duas vias através das quais Deus, que
permanece primeiramente oculto no coração do homem, pode ser conhecido e
julgado: a razão humana e a revelação divina. A razão humana empreende de
duas formas a investigação de Deus; em si e nas coisas que estão fora de si.
Do mesmo modo a revelação de Deus actua de duas formas a fim de dissipar a
ignorância e a dúvida do homem: com a iluminação interior e com a doutrina
exteriormente transmitida e confirmada pelos miJagres" (1b., 1, 3, 3). Os
caminhos da razão são dados pela natureza, os da revelação pela graça. Uma e
outra servem-se tanto do interior como do que é exterior ao homem para o
conduzir até Deus. E como se se coordenam entre si, tendo em vista o fim
único do conhecimento de Deus, a investigação racional e a revelação, assim
se coordenam também entre si para o mesmo fim os objectos da investigação
humana. Hugo de S. Victor distingue todos os objectos possíveis em quatro
categorias, determinadas pelas suas relações com a razão humana. "Certas
coisas derivam da razão, outras são conformes com a razão, outras estão acima
da razão, outras ainda estão contra a razão. As coisas que derivam da razão
são necessárias,- as que são conformes à razão, prováveís; as que estão acima
da razão, admiráveis; e as contrárias à razão, impossíveis. As primeiras e as
últimas excluem a fé: as primeiras, derivando da razão, são absolutamente
conhecidas e não podem ser criadas porque se conhecem, as outras não podem
ser criadas porque a razão não pode assentar nelas. Portanto, podem ser
apenas objecto de fé as coisas que são conformes com a razão e as que estão
acima da razão. Nas primeiras, a fé é sustentada pela razão e é aperfeiçoada
pela fé: se a razão não compreende a sua
158
verdade, também não cria obstáculos a que a fé acredite nelas. Nas coisas que
estão acima da razão, a fé não pode ser ajudada pela razão, que não
compreende aquilo em que a fé crê; há nelas, no entanto, qualquer coisa que
exorta a razão a venerar a fé, ainda que não a compreenda" (1b., 1, 3, 30).
O domínio da investigação racional é agora rigorosamente distinto do da fé,
como domínio da necessidade lógica absoluta: a fé não tem lugar no que é
demonstrável ou evidente. Mas, por outro lado, a fé não se opõe à razão
porque o seu objecto seja incrível, mas porque é provável ou admirável, o que
se aproxima da razão ou a transcende, sem no entanto a negar. O princípio de
S. Tomás, o da graça que completa a natureza sem a destruir, encontra aqui
pela primeira vez uma clara formulação. A esta classificação dos objectos do
conhecimento, corresponde a classificação das correspondentes posições
subjectivas. Estas posições são : a negação, a opinião, a fé e a ciência. A
negação, a opinião, e a fé dirigem-se não à coisa, mas ao que se ouve, dizer
da coisa. Apenas na ciência a própria coisa está realmente presente; a
ciência é conhecimento perfeito, porque convalidade e garantida pela presença
própria do seu objecto (1b., I,
10, 2).
159
elementos que nas coisas naturais se encontram confusos entre si; e assim,
ainda que, na realidade, a linha não exista sem a superfície e o volume, a
razão considera, na matemática, a linha em si, prescindindo da superfície e
do volume. Isto, porque a razão frequentemente considera as coisas, não como
elas são, mas como podem ser, isto é: não em si mesmas, mas em referência a
ela própria (Didasc.,
11, 18). Do mesmo modo, a física considera distintos uns dos outros os
elementos que nos corpos do mundo se encontram confundidos, isto é, o fogo, a
terra, a água e o ar; e julga todos os corpos como um produto da composição e
da força de tais elementos (1b., 11, 18). Como muitos representantes da
escola de Chartres, Hugo de S. Victor admite a composição atómica dos
elementos (De sacram., 1,
6, 37) e afirma o princípio da conservaçao da matéria, princípio que apoia na
autoridade de Pérsio (Sat., 111, 84): de nihilo nihil, in nihilum nil posse
reverti (Didasc., 1, 7).
160
nhecer uma causa criadora que seja o fundamento da sua existência. E como não
pode pensar que esta causa criadora tenha s-ido por sua vez criada sem se
integrar num processo ad infitzitum deve admitir que tal causa subsiste em si
e que o ser da mesma não tenha princípio, mas seja eternamente real (De
sacram., 1, 3, 6-9). À mesma conclusão se chegará pela consideração das
coisas externas. Todas as coisas que têm nascimento e morte devem ter uma
origem e um criador. Tudo o que é mutável nem sempre existiu e por isso deve
ter tido um princípio. Deste modo as coisas externas confirmam o que a alma
encontra em si; e a natureza revela o seu autor tal como o revela a própria
alma (1b., 1, 3, 10).
Tal como a existência de Deus, também a Trindade pode ser demonstrada através
das duas vias, interna e externa. No homem de palavra interior revela-se na
palavra exterior; assim em Deus a palavra interior, qu,@ é a sua eterna
Sapiência, reveIa-se na palavra externa, que é o mundo criado. No nosso
espírito, a razão, a sabedoria que- nasce da razão, e o amor, que procede de
ambas são uma única realidade-, assim em Deus espírito, sapiência e amor
constituem uma única substância. Mas, enquanto que no nosso espírito a
sabedoria e o amor não têm personalidade porque são puros acidentes ou
afeições do espírito, em Deus a Sapiência, e o Amor são o próprio ser de
Deus, são o que o próprio Deus é, por conseguinte, pessoas. Assim, em Deus há
três pessoas numa só natureza, enquanto que no homem há uma só pessoa, a
qual, com as diversas qualidades da sua vida interior, corresponde à Trindade
Divina, sem no entanto a reproduzir adequadamente (Ib., 1, 3, 25). As coisas
exteriores reproduzem também a divindade. A grandeza do mundo corresponde ao
poder divino, a sua beleza, à sabedoria, o seu finalismo e a sua
161
Em polémica com Abelardo, que tinha afirmado que Deus não pode fazer
coisa diferente daquilo que faz, nem aquilo que faz pode fazê-lo melhor do
que fez, Hugo de S. Victor sustenta que Deus teria também podido criar um
mundo melhor. Com efeito, a razão porque Deus não pôde criar um mundo melhor
pode ser devida ao facto de ao mundo não faltar qualquer possível perfeição
ou ao facto de o mesmo não ser susceptível de urna maior perfeição. Más no
primeiro caso, o mundo seria semelhante ao Criador e assim o Criador seria
coagido aos limites do finito ou então o mundo
162
elevado para além desses limites; e tanto uma hipótese como a outra são
impossíveis. Se se pode afirmar a incapacidade do mundo de assumir uma
perfeição maior, isto é já uma prova de que o mundo não é o melhor nem o mais
perfeito, porque esta incapacidade é, por si, defeito e imperfeição. Na
verdade, apenas Deus é de tal modo perfeito que não pode ser mais perfeito. O
mundo criado não participa destaperfeição absoluta e por isso Deus teria
podido criá-lo ainda melhor do que realmente o criou. Ele não pode fazer
apenas o que é impossível, uma vez que "não poder o impossível não é não
podem Ub., 1, 2, 22).
A criação não é uma acção necessária de Deus, mas uma livre manifestação da
sua bondade. A decisão e a vontade de criar os homens estão desde a
eternidade em Deus, mas a própria criação não é eterna. Deus quis sempre que
o mundo existisse, mas não quis que ele fosse eterno: o querer criador de
Deus é eterno, e o que é criado não é eterno (1, 2, 10). Na criação
participaram não só o poder e a bondade de Deus, como também a sua sabedoria.
A sabedoria divina é ciência, presciência, disposição predestinação,
providência: ciência das coisas existentes, presciência das coisas futuras,
disposições das coisas a fazer, predestinação dos homens para a salvação,
providência daqueles que estão sujeitos ao querer divino. Desde a eternidade
que todas as coisas criadas existiam no conhecimento divino; mas isso não as
torna necessárias. As coisas não chegam necessàriamente ao ser porque foram
pensadas por Deus. Podem também não se tornarem reais e neste caso as ideias
divinas não são causas das coisas. Só a vontade divina pode transformar as
ideias divinas em realidade criada (lb., 2, 16-18).
163
justo é-o porque Deus o quis. Com efeito, o ser justo é propriedade essencial
do querer divino. "Quando se pergunta porque é que é justo o que é justo é
preciso responder: porque é conforme com a vontade divina, que é justa. E
quando se pergunta porque é que a vontade de Deus é justa, é preciso
responder: não há causa da primeira causa e ela é por si o que é" (1b., 1, 4,
1).
164
servir a Deus e assim alcançar aquela plemitude e felicidade que não possui
ainda. Para ele existe um duplo bem, um bem de necessidade e um bem de
felicidade: o primeiro é-lhe dado pelas coisas do mundo, o segundo pelo
próprio Criador. O primeiro suige criado por causa do homem e para se lhe
tornar útil; o segundo é o fim para que foi criado o homem (De sacrum, 1, 2,
1). Sendo este o lugar do homem no mundo, distinguem-se na própria natureza
do homem duas partes, o corpo e a alma. A alma é, em contraposição com o
corpo, uma substância simples e espiritual. Juntamente com Boécio, Hugo de S.
Victor distingue o intelectível e o inteligível: o intelectível é o que não é
sensível e não é semelhante ao sensível; o inteligível é que, apesar de não
ser sensível, tem relações de semelhança com o sensível. A alma é
intelectível porque não é nem sensível nem semelhante ao sensível; mas é ao
mesmo tempo inteligível porque é dotada de sensibilidade e de imaginação e
pode assim compreender o sensível (Didase., 11, 3, 4). Como tal, por um lado,
está em relação com o sensível e, por outro, em relação com o supra-sensível.
A sua relação com o sensível é baseada na sua sensibilidade, a relação com o
supra-sensível é baseada na inteligência. Entre as faculdades sensíveis e a
inteligência está a razão, que é a faculdade discursiva (De sacrum., 1, 1,
19). Definida com Boécio a pessoa como "uma substância individual de natureza
racional", Hugo atribui a personalidade à alma em si e por si. O corpo não
contribui para formar a pessoa, e apenas se une a ela. A própria alma como
tal, é pessoa (1b., 11, 1, 11). A característica fundamental da alma como
pessoa é a autoconsciência. Nas pegadas de S. Agostinho, Hugo de S. Victor
insiste na necessidade e no valor da consciência da própria existência. "Não
existe sábio que não saiba que existe. E no entanto o homem,
165
se começa a considerar verdadeiramente aquilo que é, compreende que não é
nenhuma das coisas que percebe ou pode perceber em si mesmo. O que em nós é
capaz de razão, ainda que, por assim dizer, esteja confundido com a carne,
distingue-se no entanto da substância da carne e compreende o que é distinto
dela (Didasc., VII, 17).
A via mística para alcançar a visão directa de Deus tem três momentos
principais: o pensamento, a meditação e a contemplação. O pensamento
(cogitatio) é determinado pela presença na alma de uma coisa em imagem, que
ou provém dos sentidos ou é suscitada pela memória. A meditação (meditatio) é
o contínuo e sagaz exame do pensamento, que se esforça por explicar o que é
obscuro e de penetrar no que está oculto. A contemplação (contemplatio) é a
livre e perspicaz intu-ição da alma que se difunde sobre as coisas
examinadas. A contem- ,plação possui aquilo que a meditação procura: a visão
manifesta e completa. Por seu lado, a contemplação cinde-se na consideração
das criaturas e na contemplação do Criador, que é o seu grau último e
perfeito (De nwd. dicend. et meditand., 8). Este último grau é a contemplação
mística, na qual a
166
167
168
se pode difundir além de si, para uma terceira pessoa co-igual. A perfeição
do amor pressupõe que tal possa estender-se a uma tercelra pessoa que seja
igualmente amada e que seja igual em dignidade e em potência. A perfeição do
amor e em geral da vida divina requer portanto a trindade das pessoas
divinas, sem a qual não haveria a inte- ,-,ridade da sua plenitude (1b.,
111, 11). A Trindade divina deve ser constituída por pessoas que tenham os
nossos atributos. A perfeição da divindade ,implica a perfeição da Potência,
a perfeição da Sabedoria, a perfeição do Bem. Assim como é omnipotente uma
delas, assim são as outras; assim como uma delas é infinita, assim são as
outras: assim como uma delas é Deus, assim são Deus também as outras. Mas
existe apenas um só Deus, porque assim como as três pessoas são igualmente
omnipotentes, assim as três são igualmente Deus.
O que significa que as três pessoas tenham uma única e idêntica substância,
ou melhor, que sejam uma única e mesma substância (Ibid., 111, 9). Enquanto
que no homem existe mais que uma substância (alma e corpo) mas uma só pessoa,
em Deus existe uma só substância e várias pessoas. À definição boeciana de
pessoa, aceite já por Hugo como "substância individual de natureza racional",
Ricardo acrescenta a determinação "dotada de existência incomunicável" (Ib.,
IV, 18). A interpretação trinitária de Ricardo constitui na escolástica uma
fórmula fundamental que foi seguida sobretudo pela escola franciscana.
169
170
cimento mais alto. As virtudes são portanto os filhos de Lia, mas a vida
mística começa apenas com o conhecimento que a alma tem de si. O último filho
de Jacob e de Raquel, Benjamim, é o símbolo desse conhecimento de si, que é
a verdadeira e própria -introdução à união mística com Deus (De praep. ad
contempl., 67-71). "Aprenda o homem a conhecer o que há nele de invisível,
antes de conhecer o que há de invisível em Deus. Se não te podes conhecer a
ti próprio, como pretendes poder conhecer aquele que está acima de ti?" (lb.,
7).
171
NOTA BIBLIOGRÁFTCA
172
173
IX
A SISTEMATIZAÇÃO DA TEOLOGIA
175
Mas havia outras compilações nas quais as sentenças dos Padres eram
reagrupadas segundo uma ordem mais ou menos lógica. Isidoro de Sevilha é o
autor de uma obra deste gênero que intitulou Sententiarum libri tres, e que
em seguida foi citada com o titulo De summo bono. Estas recolhas de textos
que seguiam uma ordem mais ou menos lógica, eram designadas com o nome de
Sententiae.mas, progressivamente, a parte correspondente à elaboração pessoal
na explicação e nos comentários dos excertos era cada vez maior. No entanto,
as recolhas continuaram a manter o nome de Setaentiae, uma vez que o texto
original não era mais que a explicação e o comentário das sentenças
transcritas. Abelardo reformou profundamente este costume literário. A partir
dele as obras que mantiveram o nome de Sententiae passaram a ser compêndios
sistemáticos, completos e racionais, das verdades fundamentais do
Cristianismo.
Para exprimir este novo carácter adoptou-se o termo Summa. Abelardo serve-se
deste termo no prólogo da Introdução à Teologia: "Escrevi uma summa da
erudição sacra como introdução às divinas Escrituras". E Hugo de S. Vietor no
prólogo do 1 Livro do De sacramentis, que é a primeira verdadeira e própria
suma de teologia medieval, diz: "Reuní numa única cadeia (series), esta breve
suma de todas as coisas". No século XII o nome de
176
Summa substitui o de Sententiae e os livros que continham a exposição
sistemática das verdades cristãs chamavam-se Sumas de teologia.
177
178
vemos é mutável e tudo o que é mutável deve ter a sua origem numa essência
imutável. O corpo e o espírito estão igualmente sujeitos à mudança: o ser de
que obtêm a sua origem deve ser, por isso, superior a ambos. E uma vez que
todas as coisas corpos e espíritos, têm uma determinada forma e espécie, há
que pensar numa forma originária, ou numa primeira espécie da qual, tanto o
espírito como o corpo, recebam as suas formas ou espécies. Essa primeira
espécie é Deus (Sent. 1, dist 3, n. 3-5).
179
não falta qualquer perfeição, e em tal caso o próprio mundo seria semelhante
a Deus: ou então Deus não poderia dar-lhe maior perfeição e assim o mundo
manifestaria uma imperfeição que estaria em contraste com a tese, segundo a
qual, é o melhor dos mundos possíveis (1b., 1, dist. 44, 2-3).
180
NOTA BIBLIOGRÁFICA
181
A FILOSOFIA ÁRABE
183
dental tinha, em comum com a filosofia oriental, a própria natureza dos seus
problemas. Também a
184
185
186
§ 233. AL.XINDI
Gerardo de Cremona traduz no século X11 um texto seu com o título Verbum
Jacob Al Kindi de intentione antiquorum in ratione. Um outro texto foi
traduzido com o título De intellectu. A parte do comentário aristotélico de
AI-Kindi que chamou a especial atenção dos escolásticos latinos é a que diz
respeito à doutrina do intelecto. Al-Kindi teve a pretensão de expor as
opiniões de Platão e Aristóteles, mas, na verdade, segue de perto a
interpretação de Alexandre de Afrodísia (§ 111). Enumera quatro intelectos:
"0 primeiro é o que está sempre em acto; o segundo é o que está em potência
na alma; o terceiro é o que na alma passa da potência a realidade efectiva; o
quarto é o intelecto que chamamos demonstrativo: este último, Aristóteles
assimila-o aos sentidos porque os sentidos estão próximos da verdade e em
comunicação com ela". Destes quatro intelectos os três primeiros correspondem
respectivamente ao nous poieticós, ao nous ylikós e ao nous epiktetós de
Alexandre; o quarto é a alma sensitiva. Em AI-Kindi surge pela primeira vez,
de uma forma nítida, o princípio típico do aristotelismo árabe que atribui
directamente ao intelecto de Deus a iniciativa do processo de conhecer do
homem. "A alma, afirma ele, é inteligente em potência: passa a ser
inteligente de modo efec-
187
fivo pela acção do Intelecto primeiro, quando dirige o seu olhar para este.
Quando uma forma inteli-
1 givel se une à alma, esta forma e a inteligência da alma passam a ser uma
só e mesma coisa, que é ao mesmo tempo aquilo que conhece e o que à
conhecido. Mas o Intelecto que está sempre em acto, e que atrai a alma para a
converter em intelecto efectivo, de intelecto potencial que era, não se
identifica com o que é conhecido. Em relação ao Intelecto primeiro, portanto,
o intelecto e o inteligível que a alma co"ece não são a mesma coisa; em
relação à alma, o intelecto que conhece e o inteligível que é conhecido são a
mesma coisa". Está implícita nesta doutrina de AI-Kindi a separação entre o
Intelecto activo, que é o divino, e os outros intelectos, que são próprios do
homem.
§ 234. AL FARABI
AI Farabi, assim chamado por ser natural de Farab e que foi célebre entre os
muçulmanos não apenas como filósofo peripatético, mas também como matemático
o médico, continua a tradição enciclopédica de AI-Kindi. All Farabi ensinou
em Bagdad e morreu em Dezembro do ano de 950. Escreveu uma obra sobre as
ciências, De scientiis, um texto sobre o intelecto, De intelectu, e ainda
outras obras de ética e de política, todas inspiradas no pensamento
aristotélico.
188
faça passar a acto; e como o mundo no seu todo é possível, é preciso que o
agente do mundo seja um ser necessário (Destr. destruct. Algazelis, 1, 4, 5).
Na realidade, a primeira origem desta distinção está no Liber de causis que,
como já foi dito, é uma das principais fontes de inspiração da especulação
árabe.
O Liber de causis (cap. 9) distingue, nas coisas, a existência e a forma,
ambas procedentes do exterior: a existência do primeiro Ser pela via da
criação; a forma das Inteligências subordinadas pela via das impressões. Mas
no Liber de causis a existência é o substracto receptivo da forma, e, por
isso, a possibilidade da própria forma: funciona como matéria; no pensamento
árabe a relação inverte-se e a essência ou forma será considerada como
matéria ou possib',lidade e a existência como acto.
Segundo AI Farabi, tudo o que existe é ou possível ou necessário. Ao afirmar-
se que uma coisa dotada de existência possível não existe, não se enuncia
nenhum absurdo, uma vez que para receber a existência essa coisa precisa de
uma causa. Uma coisa possível não pode passar ao número das coisas
necessárias, senão através da acção de um ser nocessário. Pelo contrário, se
afirmamos o ser necessário como não existente, fazemos uma suposição absurda,
pois esse ser não tem uma essência distinta da sua própria existência. O ser
necessário é único e nenhum outro além dele possui uma verdadeira substância:
escapa a todas as categorias e a todas as distinções de matéria e de forma.
"É o acto de pensamento na sua pureza, o puro objecto pensado, o puro sujeito
pensante. Nele, as três coisas seguintes são apenas uma: é sábio, sapiente e
vivente. Tem actividade perfeita e perfeita vontade. Goza de uma imensa
felicidade na sua própria substância e é o primeiro amante e o primeiro
amado". (Dieterici, Alfarabis philos. AbhandIungen, p. 93-96).
189
Mas o Intelecto agente, como se viu, nasce pela reflexão do Ser necessário: e
assim também a sua acção se integra na necessidade própria deste ser. A
necessidade exclui toda a possibilidade de escolha: o conhecimento com que o
Ser necessário produz tudo está necessàriamente conexo com a sua própria
essência e não separa a necessidade (1b., p. 96). A necessidade reflecte-se
portanto em todas as coisas do mundo: a própria vontade humana surge
determinada pela cadeia das causas naturais que tem como origem primordial a
causa absoluta. O Ser necessário.
191
192
193
194
sendo inteligível apenas por essa essência. É um ser simples, sem vínculos,
sem deficiências e sem matéria. No Livro das directívas, Avicena insiste na
superioridade desta prova de Deus extraída da simples consideração do ser:
"Quando consideramos o estado do ser, afirma, o ser é testemunho de si
enquanto ser, e ele mesmo, em razão disso, testemunha tudo o que vem a ter
existência depois dele". (1b., p. 146; trad. franc., P. 371-372).
195
criação. Convém no entanto salientar que, não obstante esta exclusão de todo
o possível da realidade, Avicenaexpõe um conceito do possível bastante mais
preciso e rigoroso do que aquele que tinha sido admitido por Aristóteles.
Avicena distingue, com efeito, dois sentidos do possível. No primeiro sentido
possível é o "não impossível"; neste sentido o que não é possível é
impossível e portanto o próprio necessário é possível. No segundo sentido,
que é o próprio, o possível é uma terceira alternativa ailém do impossível e,
do necessário em tal caso o possível é o que pode ser ou não ser; o nem o
impossível nem o necessário podem dizer-se possíveis (Livre des directives,
p. 34, 35; trad. franc., p. 138-141). óbviamente, neste segundo sentido o
possível subtrai-se a todos os paradoxos a que dava lugar na lógica. de
Aristóteles (§ 85).
196
princípio: sabe que é princípio das coisas cuja existência é perfeita na sua
singularidade (as coisas celestes) e também das coisas que estão sujeitas à
geração e à corrupção. Estas últimas são por ele conhecidas quer atravé s das
suas espécies quer através das respectivas individualizações; mas quando
conhece estes entes mutáveis, não os conhiece a eles e à res- pectiva
mutação, enquanto seres mutáveis, não os conhece com uma inteligê ncia
individual" (1b., VIII, 6).
197
O que distingue os animais dotados de razão daqueles que dela são privados é
o poder de conhecer as formas inteligíveis. Este poder é a alma racional a
que se costuma também chamar intelecto material, ou seja, o intelecto em
potência ou intelecto possível. As formas inteligíveis formam a alma de três
modos distintos. Em primeiro lugar, mediante emanação
198
199
reservada a poucos: "Em alguns homens a vigília prolongada e uma certa união
íntima com o Intelecto universal (isto é, o Intelecto em acto de Deus)
conferiram ao poder da razão uma tal disposição que a alma racional destes
homens deixa de ter necess);dade de qualquer raciocínio discursivo ou do
socorro da reflexão para conhecer e aumentar a sua ciência. A esta disposição
dá-se o nome de santidade e a alma que dela é dotada é uma alma santificada.
Mas esta graça e esta dignidade são apenas concedidas aos profetas e aos
apóstolos, nos quais se encontra a
outros homens a relação imediata com a imanação ou com o ser de que provem é
limitada e não constante porque o corpo o impede. Desta situação Avicena
extraía, platónicamente uma prova de imortalidade da alma: " Quando a alma se
encontrar separada do corpo, a continuidade que une a alma ao Ser que a
aperfeiçoa e do qual depende não será suprimida. A união continua com a
realidade, da qual deriva e da qual depende a sua perfeição, colocando a
coberto de qualquer corrupção, a tal ponto, que ela nunca fica destruida nem
mesmo quando se
200
MAIMõNIDAS
ar)roximar da verdade, enquanto que os outros homens actuam por uma espécie
de troca comercial, renunciando a certos bens nesta vida para terem depois a
recompensa na outra (Livre des directives, p. 199; trad. franc. p. 485-487).
A via mística coincide assim com o conhecimento filosófico e a ambos se opõem
todas as formas populares de culto religioso que no entanto, segundo Avicena,
não devem ser desprezadas pelo sábio (lb. p. 221; trad. franc., p. 524).
§ 237. AL GAZALI
Em oposição ao espírito filosófico de Avicena surge-nos o espírito xeligioso
de AI Gazali, o mais célebre dos teólogos muçulmanos. AI Gazali, chainado
pelos escolásticos latinos Algazel, nasceu em Tous do Khorasan, em 1059.
Ensinou, em primeiro
201
202
203
é determinada pela acção do fogo, mas pela acção directa de Deus. "0 fogo é
algo de inanimado, não pode por si explicar qualquer acção. Porque razão
haveríamos nós de o considerar activo? Os fi-lósofos não têm outra razão para
afirmarem tal, a não ser a da evidência de que ao aproximar-squalquer coisa
do fogo se verifica a combustão. Mas esta evidência apenas se refere ao facto
de que a combustão se dá juntamente com o fogo, e não que ela provenha do
fogo; não exclui portanto que haja outra causa, para além dele" (Destr.
destruct., 1, dub. 3). Esta outra causa, a única verdadeira causa, é Deus.
Mas a acção de Deus é livre e não está ligada a qualquer ordem determinada. A
possibilidade de existência do milagre permanece, deste modo, garantida.
§ 238. IBN-BADJA
204
dele uma carta Sobre a continuidade do intelecto com o homem, que fazia parte
do seu escrito Sobre a alma e uma Carta de despedida (Epistola expeditionis).
A sua obra principal é o Regime do Sol;tário, hoje perdida mas da qual existe
um resumo elaborado por um filósofo do século XIV, Moisés de Narbona,
incluído no seu comentário à obra de Ibrt-Tofail.
que estão ligadas nas coisas terrenas. O intelecto adquirido é o único que
pode conseguir pensar-se a si próprio e desta forma alcançar o seu termo mais
alto, que é a união com o intelecto em acto, ou intelecto separado de Deus.
§ 239. IBN-TOFAIL
205
tro o médico da corte dos almorávidas que atraiíu flustres sábios do tempo e,
entre eles, Averróis que foi encarregado pelo rei, a seu conselho, de redigir
uma análise clara exacional de Aristóteles. Abubekr morreu em 1185, em
Marrocos.
Tal como aconteceu com lbn-Badja, também ele levantou o problema de encontrar
a via através da qual o homem possa conseguir unir-se ao mtelecto universal.
Mas a sua originalidade consiste em ter criado sobre este problema um
verdadeiro romance filosófico intitulado O vivente, filho do vigilante (Hajj-
Jaqzân). lbn-Tofail faz nascer o protagonista, sem pai nem mãe, numa ilha
desabitada do Equador. A criança nasce da terra e uma gazela encarregi-se de
alimentá-la. com o seu leite. Os diversos períodos da sua -idade são
assinalados com os progressos sucessivos do seu conhecimento. Partindo do
conhecimento sensível, o protagonista consegue, gradualmente, dar-se conta da
unidade dos vários seres e a conceber as formas inteligíveis, sendo a
primeira a da espécie. Debruçando-se sobre uma concepção do mundo, na sua
fflade, e através dos conceitos de forma e de matéria, Hajj chega ao
conhecimento de um Ser activo que perpetua a existência do mundo e o põe em
movimento. O regresso a este Ser supremo torna-se então o objectivo da sua
vida. Pretende afastar-se dos sentidos e da imaginação e concentrar-se no
pensamento, para poder identificar-se com ele. No grau mais elevado da
contemplação descobre o reflexo de Deus no universo e a proximidade da esfera
celeste. Finalmente, no êxtase, vê a Deus dele dimanando diversas esferas
celestes e descendo sobre diversos seres humanos, alguns puros e piedosos,
outros impuros e condenados.
206
anos, com um homem criado na religião e que por uma via diferente consegue
chegar às mesmas conclusões que ele. Os dois juntam-se para criar uma
comunidade religiosa, mas depois, reconhecendo a irrípossibilidade de
comunicar a todos a verdade por eles alcançada, retiram-se de novo para o
isolamento, para viverem uma vida contemplativa.
207
208
Não obstante a suspeita de heresia que sobre ele pesou, Averróis não concebe
a investigação filosófica em desacordo com a tradição religiosa. Em primeiro
lugar, está consciente do valor absoluto dessa mesma investigação. "Na
verdade, afirma, a religião própria dos filósofos consiste em aprofundar o
estudo de tudo o que é, não se poderá render a Deus um culto melhor do que
aquele que consiste em conhecer as suas obras e leva ao conhecimento do
próprio Deus em toda a sua realidade. Esta é, aos olhos de Deus, a acção mais
nobre, enquanto que a acção mais desprezível é a de
209
Não se lhe pode portanto atribuir aquela doutrina da dupla verdade, que os
escolásticos consideraram como pedra angular do seu sistema. Para ele não
existe uma verdade religiosa ao lado de uma verdade filosófica. A verdade é
uma só: o filósofo procura-a através da demonstração necessária, o crente
recebe-a da tradição religiosa (a lei do Corão) numa forma simples e
narrativa, que se adapta à natureza da maior parte dos homens. Mas não existe
um contraste entre as duas vias, nem dua-
210
Segundo Averró@s, uma tal solução permite resolver todas as dificuldades que
a doutrina do intelecto provocava nas soluções adoptadas pelos seus
predecessores. "Se o objecto inteligível, afirma Avarróis, fosse
absolutamente único em mim e em ti, aconteceria que, quando eu o conhecesse,
tu também o conhecerias; e outras coisas impossíveis. Por outro lado, se o
objecto inteligível fosse diferente para os diferentes indivíduos,
aconteceria que o mesmo estaria em ti e em mim, único, na sua espécie, duplo
naindividualidade uma vez que haveria um outro objecto fora dele e este outro
por sua vez um outro e assim sucessivamente. Seria ainda impossível neste
caso que o discípulo aprendesse,
212
o mestre, a menos que a ciência que existe no mestre não seja uma
virtude que gera e cria a ciência que existe no discípulo, do mesmo
modo que um fogo gera outro fogo a ele semelhante: o que é impossível.
Mas quando pensamos que o objecto inteligível que está em mim e em
ti é múltiplo para o sujeito para o qual é verdadeiro, isto é, para as formas
da imaginação, e único para o sujeito que é o _;ntelecto existente e
material, tais questões acabam totalmente por desaparecem (Comm. inagiuim De
an., 111, 5). Portanto, segundo Averróis, a virtude cognitiva própria do
homem limita-se à esfera das formas imaginativas, ou seja, das formas
extraídas das imagens sensíveis; uma tal vàrtude é simples preparação do
Intelecto material, ~elhante à preparação da matéria que se dispõe a receber
a obra do artífice (1b., 111, 20).
Deste modo, o processo total do conhecimento iotelectivo, que vai da potência
ao acto, desenrrola-se independente e separadamente da alma humana, que se
limita a reflecti-lo imperfeita e parcialmente. O processo integral é posto
directamente em movimento e mantido pelo intelecto activo. A acção deste é
comparada por Averróis. de acordo com a imagem aristotélica, à do sol
enquanto que o intelecto potencial ou materiaí (hí,lico) é comparado à
capacidade de ver, que existe graças à luz solar; e as formas inteligíveis
(verdades ou conceitos) existentes na alma humana são comparáveis às cores.
Tal como o sol, que flumina, o meio transparente (o ar) e deste modo conduz
ao acto as cores que existem no objecto, o intelecto activo, ao iluminar o
intelecto potencial, faz com que este disponha a alma de forma a que esta
possa abstrair das representações sensíveis os conceitos e as verdades
universais. Por conseguinte, a alma individual não possui mais nada além do
material das representações; mas é ela que abstrai
215
e em especial à criação, Averróis não faz mais que retomar a doutrina dos
seus predecessores. A necessidade do ser, tão enèrgicamente defendida por
Avicena, é também a pedra angular da metafísica de Averróis. É de notar que
tal necessidade não exclui, mas antes exige, a criação: o ser possível em
relação a si mesmo exige o ser necessário que o conduza ao acto e o crie. Mas
esta criação é apenas, como já notou S. Tomás (§ 278), a dependência causal
do ser possível, que é a-penas necessário em relação a outro, desse outro que
é Deus. Exclui assim o início no tempo do ser possível, ou seja do mundo, e
nada tem a ver com a criação tal como é concebida na Bíblia e no Corão. Esta
depende de um acto de vontade do Criador, que dá início no tempo ao mundo e
prescreve ao mesmo limites temporais definidos. Mas contra este conceito,
Averróis Emita-se a repetir as objecções de Avicena. Se Deus criou o mundo do
nada, isso pode significar que ele o tenha criado por um motivo estranho à
sua natureza ou que se tenha verificado na sua natureza uma alteração que de
certo modo o haja determinado à criação. Ora ambas estas alternativas são
impossíveis. Nada existe fora de Deus, excepto o mundo, por isso Deus não
pôde buscar o inóbil da sua criação no exterior. Por outro lado, nenhuma
coisa pode alterar-se a si própria; por conseguânte, a natureza de Deus não
pode também sofrer alteracão. Além disso, se a criação significa uma escolha
áivina, essa escolha deve ser contínua e eterna, a não ser que se verifique
algum obstáculo ou se lhe apresente uma coisa melhor para escolher. Mas não
podemos falar em obstáculos em relação a Deus, nem se pode conceber uma
alternativa melhor na
216
criação do mundo. A escolha de Deus deve ser por isso eterna e contínua e não
se pode falar de um princípio do mundo (Dest. destruct., disp. 1, dub. 1-2).
217
218
NOTA BIBLIOGRÁFICA
§ 233. Os escritos de AI Kindi foram publicados pela primeira vez por ALBINO
NAGY, Die philosophischen AbhandIungen des AI-Kindi, em (Beitrãge" de
Baeumker, 11, 5, 1897. Um escrito de introducão ao estudo de Aristóteles foi
publicado por GUIDI e WALZER, em "Atti Aec. dei Lincei", 1940, série VI, vol.
VI. Um escrito moral de WALzER e RITTER, V01. VIII.
219
CARRA DE Vxux, A., Paris, 1900; SALIBA, Mudes sur métaphysique d'Avicenna,
Paris, 1926; GoiCHON, La distinction de Vessence et de rexistence d'après Ibn
Sina, Paris, 1937; La phil. dA. et son influence en Europe médiévale, Paris,
1944, 1951; GARDET, La pemée religieuse d'A., Paris, 1951; La connaissance
mystique chez Ibn-Sina, Cairo, 1952; RAHMAN, Avicenna's Psychology, Oxford,
1952; AFNAN, A., His Life and Works, Londres-New York, 1958.
220
MUNK, Mélanges, cit. p. 386-410; FARRUKH, Ibn Baajja (Avem pace) and the
Philosophy in the Modern West, Beirute, 1945.
§ 239. De Ibn Tofail: o tratado, cujo títu@o em árabe é Hajj ibn Jaqzân, vem
publicado no original e numa tradução latina de E. Pococke, Oxford, 1671, com
o título: Philosophus autodidactus sive epistola in qua ostenditur quomodo ex
inferiorum contemplatione ad superiorum notitiam mens ascendere possit. O
texto árabe com tradução francesa foi publicado por Gauthier, Argel, 1900, e
teve numerosas traduções em outras línguas.
221
xI
A FILOSOFIA JUDAICA
§ 244. A CABALA
Como acontece com a filosofia árabe, com a qual tem muitos caracteres em
comum, a filosofia judaica começa a constituir, a partir do século XIII, uma
das componentes fundamentais da escolástica latina. Como acontece com a
filosofia árabe e a filosofia cristã da Idade Média, a filosofia judaica é
uma escolástica que tem em comum com as duas primeiras os problemas
fundamentais (as relações entre a razão e a fé, entre Deus e o mundo, entre o
intelecto e a alma) e empenha-se em resolvê-los com os mesmos dados ou com
dados semelhantes: a filosofia grega e a tradição religiosa judaica. Mais
próximo desta tradição e em polémica com as tentativas mais francamente
filosóficas para encontrar uma justifi- cação racional das crenças
religiosas, encontra-se o misticismo que assume predominantemente a forma da
Cabala.
223
dos, dois dos quais existem na totalidade ou quase: o Livro da Cri4ção (Sefer
Yetsirá) e"o Livro do Esplendor (Zohar). Trata-se de escritos em cuja
composição entram elementos heterogéneos. Se bem que alguns destes elementos
sejam provàvelmente bastante antigos, o segundo destes escritos, o Zohar, na
forma que chegou até nós, pertence, quase de certeza, à segunda metade do
século XIII. Tal como são, estes textos apresentam uma doutrina emanenhista,
substancialmente semelhante à dos Neopitagóricos e dos Neoplatónicos dos
primeiros séculos. Neles se afirma que Deus é ilimitado (En Sof.), isto é,
inacessível a toda a determinação e a todo o conhecimento. Como tal, é a
negação de to-da a coisa determinada, não é nenhuma coisa, é portanto o não-
ser ou o Nada. A criação do mundo surge mediante a aparição de substâncias
intermédias chamadas Números (Sephiroth) que são, no tempo, os atributos
fundamentais de Deus e as forças através das quais se realiza a criação
divina. A mediação dos Sephiroth serve para garantir a Deus a absoluta
unidade, ainda que a sua acção se expanda na multiplícidade das coisas, e
neste sentido podem ser comparados aos primeiros e mais directos raios do
Esplendor divino. Os Sephi -
224
225
§ 246. SAADJA
verso, em 932.
226
Salomão Ibn-Gebirol, foi reconhecido por Munk como o autor da Fons Vitae,
aquele que os escolásticos latinos conheceram sob o nome de Avicebron como
sendo árabe. Nasceu em Málaga em 1020 ou 1021, fez a sua educação em Saragoça
e viveu provàvelmente até 1069 ou 1070. Foi célebre como poeta e, segundo uma
tradição lendária, foi morto por um muçulmano que tinha inveja do seu génio.
A figueira sob a qual foi sepultado deu frutos de tal modo extraordinários
que atraiu a atenção do rei sobre o seu proprietário que foi obrigado a
corifessar o crime. A sua obra, A Fonte da Vida, escrita em árabe, foi
traduzida para o Iatim por João Hispano e Domingos Gundisalvo. Está composta
em forma de diálogo entre mestre e aluno e dividida em cinco livros.
Mas a matéria não é apenas corpo, uma vez que se só torna corpo quando a ela
se junta a forma particular que é a corporéidade; e por outro
227
228
229
230
231
232
que Deus existe, que é uno, que é incorpáreo, sem que isto implique decidir o
que quer que seja quanto ao mundo, se ele é eterno ou se foi criado. Uma vez
resolvidas, com uma verdadeira demonstração, estas três questões graves e
importantes, poderemos voltar em seguida ao problema da novidade do inundo e
para isso deitaremos mão de todos os argumentos possiveis". Noutros termos,
Maimónidas admite a título de hipótese provisória o princípio da necessidade
do ser para poder demonstrar certas verdades fundamentais-, deixando para
depois, num
233
234
Se alguém afirmar que ela é produzida pelos intelectos separados isso nada
explicaria: os intelectos não são corpos que possam ocupar uma posição
relativamente à esfora. Porque razão o desejo que atrai cada uma das esferas
para a sua inteligência separada arrastaria uma esfera para leste e outra
para oeste? Por outro lado, qual a razão porque uma esfera seria mais lenta e
outra mais rápida?" (-1b., 11, 19). A única resposta possível a estas
perguntas é, segundo Maimónidas, a contingência do mundo. "Deus determinou
como quis a direcção o a rap@dez do movimento de cada esfera, mas nós
ignoramos o modo como ele realizou o facto, segundo a sua sabedoria". E deste
modo, Maimóffides partindo da hipótese da eternidade para chegar a Deus
mediante uma demonstração necessária, consegue negar a própria hipótese e
inutilizar, no terreno da filosofia, a necessidade do mundo que era o
resultado fundamental da especulação árabe.
235
236
237
apenas, como parte do Intelecto agente; e a medida da sua imorta-lídade é
devida à medida da sua participação nesse intelecto, ou seja, à medida da
sua elevação espiritual.
NOTA BIBLIOGRÃFICA
§ 245. As obras de Isaque com o titulo Opera Omnia, editadas em Lyon em 1515;
esta edição compreende a tradução latina do Livro das Definições e do Livro
dos Elementos; ed. Muckle, in "Archiv. d'Hist. doctr. et litt. du m. â."
1937-38; trad. ing. de Stern, Londres, 1958.
238
§ 249. O livro de Bachja Sobre os deveres dos corações teve idêntica edição
na tradução hebraica; Nápoles, 1490; Leipsig, 1846; Viena, 1854. Com tradução
alemã de STERN, Viena, 1856; tradução alemã de FURRSTENTHAL, 1836.
239
xII
DE ARISTóTELES
241
e outros textos.
242
Liber de causis, já traduzido por Gerardo de Cremona.
243
Guilherme começa por distinguir uma dupla predicação: uma predicação secundum
essentiam e uma predicação secundum partecipationem. Todo o predicado que se
aplica a uma coisa ou pertence à própria essência da coisa ou permanece
exterior à essência da coisa em que participa. A predicação por participação
supõe a predicação por essência. Se se afirma, por exemplo, que uma coisa é
boa porque participa de uma outra coisa, e que essa outra coisa é boa também
por participação, dá-se início a um processo infinito, que apenas se evi-
,tará quando se chegar a um ser que seja bom por essência (De trin., 1). Ora,
quando se atribui o ser às coisas finitas faz-se uma predicação por
participação, que pressupõe uma predicação por essência: ou seja, supomos um
-ser que é ser por essência e, portanto, impensável como não existente. A
estes dois modos de predicação correspondem assim dois modos fundamentais do
ser: o Ser por
244
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247
248
S.BOAVENTURA
249
Mas se existe uma matéria das criaturas espirituais, ela não é, como queria
Ibn Gabirol, idêntica à das coisas corpórcas. Não ex@ste uma matéria comum a
ambas; nem sequer existe uma matéria comum entre os corpos celestes e os
sublunares, ainda que a matéria de uns e de outros pertença ao mesmo gênero
(1b., 11, q. 44, 2).
250
lecto agente faz parte da alma; mas, apesar de ser a-ente, não conhece em
acto to-das as formas. Recebe do primeiro Agente uma iluminação relativa a um
certo número de forma inteligív&s; mas uma vez iluminado, aperfeiçoa por sua
vez o intelecto em potência (lb., 11, q. 69, 3). Deste modo, a alma humana
apresenta uma tripla distinção: o
Tais são os pontos sobre os quais a Summa de Alexandre assume uma posição,
frente ao aristotelismo árabe e judaico. Estes pontos implicam a aceitação de
poucos conceitos fundamentais: a distinção real entre essência e existência;
a composição hilomórfica de todas as criaturas; a distinção entre os
intelectos. Mas a Summa é uma obra vastíssima que tem a pretensão de reunir
toda a tradição integral da escolástica latina para assim formar um dique
contra a invasão das novas correntes aristotélicas. Como tal é obra de
escassa ou nenhuma originalidade. De destacar, contudo, a recapitulação que
faz das provas da existência de Deus, que se encontram expostas no primeiro
livro da obra. Aí podemos descobrir a prova de Ricardo de S. Victor que, da
existência de coisas que dependem de outras, deduz a existência do Ser que
apenas depende de si próprio; a prova causal extraída do De fide orthodoxa
(1, 3) de João Damasceno; a prova agustíniana deduzida da verdade que existe
no homem, e que Alexandre vai buscar a Hu_ao de S. Victor; a prova ontológica
de Santo Anselmo; e a prova deduzida da necessidade da essência divina,
tirada do Monologion do próprio Santo Anselmo.
251
A Summa de Alexandre de Hales, além de ser uma assimilação parcial das teses
do aristotelismo, é também uma tentativa de reacção polémica-o que representa
um regresso à posição platónico-agustiniana, tradicional na escolástica. O
regresso ao agustinismo como método para conservar e reformar a tradição
origináda da escolástica é levado a efeito, com o maior vigor, pelo
franciscano Roberto Grossetête. Já Rogério Bacon se havia apercebido deste
aspecto da obra de Roberto. "Monsenhor Roberto, bispo de LincoIn, de santa
memoria, pos completamente de parte os livros de Aristóteles e as vias que
ele -indicou, e tratou os temas aristotélicos valendo-se da sua própria
experiência, de outros autores e de outras ciências. Deste modo conseguiu
escrever sobre os problemas de que se ocupava o estagirita coisas mil vezes
melhores do que aquelas que se podem aprender nas más traduções daquele
filósofo" (Comp. stud. phil.,
8, Opera, ed. Brewer, p. 469). A observação de Bacon não significa que
Roberto ignorasse os livros de Aristóteles. Pelo contrário conhecia-os e
citava-os: mas pretendia no entanto regressar à pura inspiração agustiniana.
252
Rogério Bacon. tinha-o entre aqueles "que souberam explicar as causas de tudo
com o auxílio da matemática" (Op. maius, ed. Bridges, 1, 108); e, na verdade,
a sua actividade abrange todos os ramos do saber: astronomia, meteorologia,
óptica, física e disciplinas liberais. Os seus escritos respeitantes à
filosofia são: De unica forma omnium, De statu causarum, De poteidia et actu,
De veritate propositionis, De sciência Dei, De ordine emanandi causatorum a
Deo, De libero arbitrio.
253
também o modelo que o artesão têm no seu espírito, quando apenas considera o
que no seu espírito existe para produzir uma obra que a isso se assemelhe".
(lb., 109). Estes três significados da palavra forma como modelo interior,
modelo exterior e molde da coisa a produzir não são diversos uns dos outros;
a forma é em qualquer caso o exemplar ou modelo: e, tratando-se de Deus, o
exemplar ou modelo da sua obra não pode ser exterior a EleEle próprio, e
precisamente a sua Sabedoria ou o ,seu Verbo, é o exemplar, a causa
eficiente, o agente que confere a forma, e conserva as criaturas na forma que
lhes deu (M., 110). Roberto ilustra a função formadora do Verbo com a
doutrina de Santo Agostinho do Verbo como verdade. As coisas foram criadas
para toda a eternidade pelo Verbo ou Discurso divino; a sua verdade consiste
na sua conformidade com o Discurso que as pronunciou. A conformidade das
coisas com o que foi eternamento enunciado é a rectitudo das próprias coisas,
a norma da sua constituição. A verdade das coisas consiste em serem como
devem ser, em possuirem a plenitude de ser (plenitudo essendi) que é
conforrnidade com o Verbo criador (De verit., ed. Baur,
134-5).
254
puros podem ver a luz divina. Mas também os ámpuros têm, de qualquer forma,
conhecimento da verdade, uma vez que, sem o saberem, vêem as coisas à luz
divina, tal como um homem vê as cores à luz do sol, sem necessidade de olhar
para o sol Qb., 138).
é por isso designada, por Roberto, como capacidade natural e espontânea. Este
conceito deveria permanecer tradicional e típico na corrente platónico-
agustiniana tal como permanecerá típico, na própria corrente, o primado da
vontade afirmado claramente por Roberto (Opera, ed. Baur, 23.1).- "0 ser da
natureza racional é duplo: o querer e o aprender. Mas o ser primeiro e máximo
é o querer, uma vez
255
Entre as doutrinas físicas que lhe são próprias, merecem especial relevo as
que dizem respeito aos motores do céu e à luz. Os céus têm dois motores,
segundo ele: a alma que existe em cada céu e o motor que existe
separadamente. Este motor é único
* move-se infinitamente com movimento uniforme
* contínuo: é o próprio Deus. Pelo contrário, as almas são múltiplas, uma
para cada céu, e cada uma se move no seu céu de forma diversa (De motu super-
celestium, ed. Baur, 100). Esta doutrina, que Roberto apresenta como
exposição da que se encontra no X11 Livro da Metafisica de Aristóteles, na
realidade nada tem a ver com esta, uma vez que Aristóteles não falava de
almas ligadas à maté-
256
258
NOTA BIBLIOGRÁFICA
259
260
XIII
S. BOAVENTURA
261
262
263
264
Por conseguinte, a ciência não torna inútil a iluminação da fé, antes a exige
e a torna necessária. Os filósofos que conseguiram conhecer muitas verdades
acerca de Deus, acabaram, por falta de fé, por incorrer em erro ou por
desconhecer muitas outras Un Sent., 111, dist. 24, a. q. 3). Portanto, nunca
a ciência poderá deixar de valer-se da f4 A fé é a adesão integral do
homem à verdade, pela qual o homem vive da verdade e a verdade vive no homem.
265
mento deriva dos sentidos, ele responde que não: tem de adraitir que a alma
conhece Deus, se conhece a si mesma e a tudo o que há em si sem o auxílio dos
sentidos externos (In Sent., 11, dist. 39, a. 1, q. 2). Mas por outro lado
tem também de admitir que alma não pode fornecer por si só todo o
conhecimento. O material desse conhecimento deve provir necessàriamente do
exterior, através dos sentidos, já que é constituído por semelhanças das
coisas, abstraídas das imagens sensoriais (De scientia Christi, q. 4). Diz S.
Boaventura: "As espécies e as semelhanças das coisas adquirem-se mediante os
sentidos, como diz explicitamente o filósofo (isto é, Aristóteles) em muitas
passagens; e também o ensina * experiência. Com efeito ninguém poderia
conhecer * que é o todo ou a parte, ou o pai ou a mãe, se não recebe a
espécie de um dos sentidos externos" (lt-i Sent., 11, dist. 39, a. 1, q. s).
Se entendemos por espécie as semelhanças das coisas, que são como que
retratos das próprias coisas, teremos de dizer que a alma foi criada
vazia de toda a esp&e, e que Aristóteles tinha razão ao afirmar que ela é
uma tábula rasa (In Sent., 1, dist. 17, a. q. 4).
266
267
acto da razão que abstrai do lugar, do tempo e do movimento; mas o que está
fora do tempo, do lugar e do movimento é eterno, é portanto Deus ou um
elemento divino. No juizo, a razão vale-se pois de uma regra infalível, que é
o próprio Deus como verdade, segundo as palavras de Santo Agostinho (Ib., 2).
268
conselho, que consiste em procurar o que seja melhor e que, portanto, supõe a
noção do óptimo, ou seja, o sumo bem, que é Deus; o juízo, que versa sobre os
objectos do conselho e supõe um critério ou
lei que é o próprio Deus; o desejo, que tende para a felicidade, a qual
consiste na posição do fim último, isto é , do Sumo Bem, e que portanto
depende dele (Itin., 3).
269
§ 263. S. BOAVENTURA: METAFíSICA E TEOLOGIA
A relação intrínseca que o intelecto humano tem com Deus não implica que lhe
seja dado conhecer Deus directamente e em si. "É preciso dizer que, tal como
cada causa brilha no seu efeito e a sabedoria do artífice se manUesta na sua
obra, assim também Deus, que é artífice e causa da criatura, se conhece
através da criatura. E para isso existe uma dupla razão: uma de conveniência
e outra de indigência. De conveniência: porque não podendo Deus, como luz
supremamente espiritual, ser conhecido pelo intelecto na sua espiritualidade,
a alma, para o poder conhecer, necessita como que de uma luz material, isto
é, da criatura" (In Sent., 1, dist.
3, a. 1, q. 2). Dever-se-ia esperar, dada esta nova concessão ao empirismo,
que S. Boaventura seguisse, na demonstração da existência de Deus, a via a
posteriori, escolhida e seguida por S. Tomás, e que por isso recusasse o
argumento de Santo Anselmo. Na realidade não foi assim: S. Boaventura
reproduz e defende o argumento ontológico: "A verdade do ser divino, diz ele,
é tal que não pode pensar-se com consentimento [isto é, crer efectivamente]
que ele não exista, a não ser por ignorância daquilo que significa o nome de
Deus" (1b., 1, dist. 8, a. 1, q. 2). O argumento de Santo Anselmo move-se no
âmbito da especulação agustiniana e dificilmente pode ser negado por quem,
como S. Boaventura, considera que a mente humana, para entender e julgar,
deve estar unida a Deus. Não se pode pôr Deus como pressuposto e condição do
conhecimento de todas as coisas particulares, sem admitir que a sua realidade
é certa e demonstrável independentemente dessas coisas, portanto a priori. Se
o conhecimento das coisas é condicionado pelo conhecimento de Deus, e não
inversamente, só através da relação directa com Deus é que o intelecto pode
270
entender e julgar as coisas. Que o homem se eleve das coisas até Deus é uma
possibilidade condicionada pela relação do homem com Deus: não pode, pois,
condicioná-lo. O argumento ontológico reentra na lógica da posição
agustiniana da relação entre o homem e Deus: tal como S. Boaventura,
considerá-lo-ão válido todos os que se novam no âmbito do pensamento
agustiniano.
Deus, como causa criadora das coisas, é também o seu modelo. A ideia ou o
modelo das coisas na mente divina identifica-se com a essência divina, e mul-
tiplica-se só em referência às coisas criadas, mas não no próprio Deus (lb.,
1, dist. 35, a. 1, q. 2-3). Na sua omnipotência infin-ita, Deus é a causa de
todas as coisas, que ele criou do nada. A criação não implica nenhum
problema insolúvel, é um ponto sobre o qual coincidem plenamente a fé a a
razão, quer no que se refere à dependência causal do mundo em relação a Deus,
quer no que se refere ao início do mundo no tempo. Que o mundo tenha sido
criado do nada resulta evidente de que sendo Deus, pela sua omnipotência, o
agente mais nobre e mais perfeito, a sua acção é portanto radical, e
determina todo o ser da coisa produzida, não sendo condicionada por nada de
estranho (1b., 11, dist.
1, a. q. 1). Mas é impossível, segundo S. Boaventura, afirmar ao mesmo tempo
que o mundo foi criado e é eterno. É impossível que seja eterno aquilo que
chegue a ser depois de não-ser; e é este o caso do mundo, enquanto criado a
partir do nada. Além disso, a duração infinita do mundo implicaria infinitas
revoluções celestes. Mas aquilo que é infinito não pode ser ordenado; no
infinito não existe um primeiro, portanto, não existe ordem. Mas é impossível
que haja revoluções celestes que não sejam ordenadas. Além disso a eternidade
do inundo suporia a existência simultânea de infinitas almas humanas, o que é
impossível. Poder-se-ia
271
negar este último argumento admitindo uma palingenesia, uma real unidade das
almas dos homens: mas isto não só é contrário à fé cristã como também é
declarado falso pela filosofia (1b., 11, dist. 1, a. 1, q. 2). A criação como
início do mundo no tempo é pois uma verdade necessária. S. Boaventura assume
aqui, como dotadas de valor demonstrativo as razões aduzidas por MaÀmónidas
(§ 250) e procede sem a mínima hesitação. A sua atitude está neste ponto em
franco contraste com a prudente cautela com que o próprio Maimónidas (e mais
tarde S. Tomás) considera a questão, declarando impossível a sua solução
demonstrativa.
Todos os seres são pois compostos por matéria e forma. A forma é a essência
que restringue e define a matéria a um determinado ser. Mas esta essência é
sempre universal, porque tem em si a capacidade de se realizar numa
multiplicidade de
272
Tal como Roberto Grossetête, S. Boaventura elabora uma doutrina física, que é
uma teoria da luz. A luz não é um corpo, mas a forma de todos os
273
274
directa de Deus. O seu destino é alcançar a beatitude em Deus, pelo que pode
ser definida como uma "forma beatificável" (Ib., 11, 9).
275
276
277
A estas seis potências da alma correspondem seis graus da ascese para Deus. O
primeiro consiste na consideração das coisas na sua ordem e na sua beleza e
em todos os atributos que permitem remontar à sua origem divina. O segundo
consiste na consideração das coisas não em si próprias, mas na alma humana
que delas apreende as espécies que purifica, abstraindo-as das condições,
sensíveis, com
* faculdade do juízo. No terceiro grau contempla-se
* imagem de Deus reflectida nos poderes naturais da alma: a memória, o
intelecto e a vontade. No quarto grau contempla-se Deus na alma iluminada e
aperfeiçoada pelas três virtudes teologais. No quinto grau contempla-se Deus
directamente no seu primeiro atributo que é o ser. No sexto grau contempla-se
Deus na sua máxima potência que é o bem, pelo qual Deus se difunde e se
articula na Trindade. Com este sexto grau termina a investigação mística, mas
não a ascese mística. À alma que já percorreu os seis graus da investigação "
resta únicamente transcender e superar não só o mundo sensível, mas também a
si própria". Neste ponto, necessita abandonar todas as operações intelectuais
e projectar em Deus todo o afecto. "Pois que aqui nada pode a natureza, e bem
pouco a actividade humana, pouca importância se deve dar-se à investigação, à
eloquência, às palavras, ao estudo, à criatura, e muito à piedade, à alegria
interior, ao dom divino, ao Espírito Santo, isto é, à essência criadora, Pai,
Filho e Espírito Santo" (Itin., 7). Esta condição de êxtase (excessus mentis)
é descrita por S. Boaventura com as palavras do Pseudo-Dio-
278
NOTA BIBLIOGRÃFICA
GILSON, La phil. de St. B., Paris, 1924, 1953 3 (COM bibl.); STEFANINI, Il
problema religioso in PTatone e S. Bonaventura, Turim, 1934; BRETON, St. B.,
Paris,
1943; LAzZARINI, S. Bonaventura, filosofo e mistico del cristianesimo, Milão,
1946 (com bibl.).
§ 261. Acerca das relações entre fé e ciência: ZIESCHE, Die h1. B. Lehre von
der logisch-psychologischen analys-, des Glaubensaktes, Breslau, 1908.
279
TAVARD, Transi~ and Permanence. The Nature of Theology According to St. B.,
Saint Bonaventure (New York), 1954.
§ 265. Sobre a antr~ogia: LUTZ, in "Beitráge", VI, 4-5, 1909; 0- DONNFL, The
Psychology of St. B. and St. Thom" Aquinas, Washingtm, 1937.
280
íND1CE
TERCEIRA PARTE
FILOSOFIA ESCOLÃSTICA
281
DIALr@,
§ 187. § 188.
ANSEI,
§ 189. § 190. § 191. § 192. § 193. § 194. § 195. § 196. § 197. § 198. § 199.
CTICOS E ANTIDIAL1,=ICOS
49
49
51
55
57
57
58
60
61
65
67
68
70
73
74
76
78
V_A DIS
SAIS
§ 200.
§ 201. § 202. § 203.
VI - ABE
§210. §211.
A figura histórica ... ... ... Vida e Obra ... ... ... ... ...
A figura histõrica ... ... ... ... 91 -ida e Escritos ... ... ...
... 92
... ... 95
A Trindade ... ... ... ... ...
1. X ... 100
r~ aç o ... ... ... ... A Trindade Divina ... ... ... 102 A
Unidade Divina ... ... ... 105
283
282
VII-A ESC
§220.
viu -o MIS
§ 221.
§ 222.
106
108
110
112
115
115
123
129
135
138
142
146
149
149
151
IX - A SIS
§ 230. § 231.
X-A FIL
§ 232. § 233.
155
156
160
164
166
167
169
172
175
175
177
181
183
183
187
O naturalismo chartrense ... ... Gilberto de ia Porrêe, ... ... ... T-5- A.
Salisbúria
olo-ia Mistica
... ... ... ... Alano de Lille ... ... ... ...
TEMATIZAÇÃO DA TEOLOGIA
T->.A,- T-1-1-
Caracíceristicas e origens ... ... Al-Kindi ... ... ... ... ... ...
284
285
§234. AI Farabi ... ... ... ... ... 188 §235. Avicena: a
Metafisica ... ... 191 §236. Avicena: a Antropologia
... ... 198 §237. AI Gazali. ... ... ... ... ... 201 §238.
Ibn-Badja ... ... ... ... ... 204 §239. Ibn-Tofail ...
... ... ... ... 205 §240. Averróis: Vida e Obra ... ...
207 §241. Averróis: FiIosofia e Religião ... 209 §242. Averróis:
a Doutrina do Intelecto 211 §243. Averróis: a Eternidade do
Mundo 215
§244. A cabala ... ... ... ... ... ... 223 §24,5. Isaque Israeli
... ... ... ... 225 §246. Saadja ... ... ... ... ...
... 226 §247. Ibn-Gebiroil: Matéria e Forma ... 227 §248. Ibn-
Gebirol: a Vontade ... ... 228 §249. Reacção contra a Filosofia
... 230 §250. Maimónidas: a Teologia ... ... 231
§251. Maimõnidas: a Antropologia ... 235
XH --A POLI=CA CONTRA O ARISTOTELISMO ... ... ... ... ... ... ...
... 2@
teles ... ... ... ... ... ... ... 24 § 253. Guilherme d'Auvergne
... ... ... 2@ § 254. Alexandre de Hales ... ... ...
2@ § 255. Roberto Grossetê te: A Teologia 2,1 § 256. Roberto
Grossetête: A Física ... 2,1 § 257. João de ia Rochelle
... ... ... 2,1
287