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HISTÓRIA DA FILOSOFIA

Volume terceiro
Nicola ABAGNANO

DIGITALIZAÇÃO E ARRANJO:
ÂNGELO MIGUEL ABRANTES.

HISTÓRIA DA FILOSOFIA

VOLUME III

TRADUÇÃO DE: ARMANDO DA SILVA CARVALHO

CAPA DE: J. C.

COMPOSIÇÃO E IMPRESSÃO

TIPOGRAFIA NUNES R. José Falcão, 57-Porto

EDITORIAL PRESENÇA . Lishoa 1969

TíTULO ORIGINAL STORIA DELLA FILOSOFIA

Copyright by NICOLA ABBAGNANO

Reservados todos os direitos para a língua portuguesa à EDITORIAL PRESENÇA,


LDA. - R. Augusto Bil, 2 cIE. - Lisboa

TERCEIRA PARTE

FILOSOFIA ESCOLÁSTICA

AS ORIGENS DA ESCOLáSTICA

§ 173. CARÁCTER DA ESCOLáSTICA

A palavra escolástica designa a filosofia cristã da Idade Média. O termo


scholasticus indicava nos primeiros séculos da Idade Média aquele que
ensinava as artes liberais, isto é, as disciplinas que constituíam o trívio
(gramática, lógica ou dialéctica, e retórica) e o quadrívio (geometria,
aritmética, astronomia e música). Mais tarde passou a chaMar-se também
scholasticus ao professor de filosofia ou de teologia, cujo título oficial
era o de magister (magister artílim ou magister in theologia) e que a
princípio dava as suas lições na escola do claustro ou da catedral e mais
tarde na universidade (studium genei-ale). A origem e o desenvolvimento da
escolástica encontram-se estritamente ligados às funções docentes, funções
que determinaram também a forma e o método de actividade literária dos
escritores escolásticos. Como as formas fundamentais do ensino eram duas, a
lectio, que consistia no comentário de um texto, e a disputatio, que
consistia no exame de um problema tendo-se em consideração todos os

argumentos que se possam aduzir pro e contra, a actividade literária dos


Escolásticos assume sobretudo a forma de Commentari (à Bíblia, às obras de
Boécio, à lógica de Aristóteles e mais tarde às Sentenze de Pedro Lombardo e
às outras obras de Aristóteles) ou de recolha de questioni. Recolhas deste
género são os Quodlibeta que compreendem as questões que os -aspirantes ao
grau de teologia deviam discutir duas vezes por ano (pelo Natal e pela
Páscoa) sobre qualquer tema, de quodlibet. As questiones disputatae são
muitas vezes o resultado das disputationes ordinariae que os professores de
teologÍa mantinham durante os seus cursos sobre os mais importantes problemas
filosóficos e teológicos.

A conexão da escolástica com a função docente não é um facto puramente


acidental e extrínseco; faz parte da própria natureza da escolástica. Todas
as filosofias são determinadas na sua natureza pelos problemas que constituem
o centro da sua investigação; e o problema da escolástica consistia em levar
o homem à compreensão da verdade revelada. Tratava-se portanto de um problema
de escola, ou seja, de educação: o problema da formação dos clérigos. A
coincidência típica e total do problema especulativo com o problema educativo
justifica plenamente o nome da filosofia medieval e não explica os caracteres
fundamentais. Em primeiro lugar, a escolástica não é, como a filosofia grega,
uma investigação autónoma que afirme a sua independência crítica frente a
qualquer tradição. A tradição religiosa é, para a escolástica, o fundamento e
a norma da sua investigação. A verdade foi revelada ao homem através das
Sagradas Escrituras, através das definições dogmáticas de que a comunidade
cristã se serviu para fundamentar a sua vida histórica, através dos padres e
doutores inspirados ou iluminados por Deus. Para o homem, trata-se apenas de
aproximar-se dessa verdade, compreendê-la na

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medida do possível, mediante os poderes naturais e com a ajuda da graça


divina, e fazê-la sua para assumi-Ia como fundamento da própria vida
religiosa. Mas mesmo nesta perspectiva, que é a da própria investigação
filosófica, o homem não pode nem deve basear-se apenas nas suas faculdades; a
tradição religiosa ajuda-o e deve ajudá-lo fornecendo-lhe, através dos órgãos
da Igreja, um guia esclarecedor e uma garantia contra o erro. Trata-se mais
de uma obra comum que individual: de uma obra na qual o simples indivíduo não
pode nem deve basear-se apenas nas suas forças, mas pode e deve recorrer à
ajuda dos outros e especialmente daqueles que a própria Igreja reconhece como
particularmente inspirados e apoiados na graça divina. Daí o uso constante
das auctoritates na especulação. Auctoritas é a decisão de um concílio, uma
expressão bíblica, uma sententia de um Padre da Igreja.
O recurso à autoridade é a manifestação típica do carácter comum e
superindividual da investigação escolástica, na qual o indivíduo quer sentir-
se continuamente apoiado e sustentado pela autoridade e

tradição eclesiástica.

Daqui deriva o outro aspecto fundamental da investigação escolástica. Esta


não se propõe formular ex novo nem doutrinas nem conceitos. O seu principal
objectivo é o de compreender a verdade já dada na revelação, e não o de
encontrar a verdade. Deste modo, como a norma da investigação resulta da
tradição religiosa, os instrumentos e os materiais dessa investigação são
provenientes da tradição filosófica. Esta vive substancialmente à custa da
filosofia grega; primeiro a doutrina platónico-agostiniana, depois a
aristotélica, fornecem-lhe os instrumentos e os materiais de especulação. A
filosofia, como tal, é para ela simplesmente um meio: ancilla theologiae.
Claro que as doutrinas o os conceitos que são adoptadas de acordo com aquele

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objectivo acabam por sofrer uma transformação mais ou menos radical quanto ao
seu significado original. Mas a escolástica não se propõe realizar esta
transformação de modo intencional o a maior parto das vezes não tem disso
consciência. O sentido da historicidade é-lhe estranho. Doutrinas e conceitos
surgem livres dos complexos históricos de que fazem parte e considerados
independentes dos problemas a que se referem e da personalidade autêntica do
filósofo que os elaborou. A Idade Média coloca tudo num mesmo plano e fez dos
filósofos mais afastados da sua mentalidade, seus contemporâneos, dos quais é
lícito colher os frutos mais característicos para adaptá-los às suas próprias
exigências.

Nesta estrutura formal que a filosofia medieva apresenta, reflecte-se a


própria estrutura social e política do mundo medievaL Este é um mundo
constituído como uma hierarquia rigorosa apoiada numa única força que do alto
dirige e determina todos os aspectos. Tem-se afirmado em regra que a
concepção medieval do mundo se inspira no aristotelismo: com efeito, essa é
substancialmente a concepção estoico-platónica à qual acabam por se reduzir e
adaptar as próprias doutrinas aristotélicas. O mundo é uma ordem necessária o
perfeita na qual todas as coisas têm um lugar e uma função determinados,
permanecendo nesse lugar e nessa função pela força infalível que determina e
orienta o mundo vindo do alto. Tudo o que o homem pode e deve fazer é
conformar-se com esta ordem: o próprio livre arbítrio pode ser utilizado com
utilidade desde que integrado nessa conformidade. As instituições
fundamentais do mundo medieval, O Império, a Igreja, o Feudalismo,
apresentam-se como os defensores da ordem cósmica e como os instrumentos da
força que o rege. Essas são dirigidas substancialmente no sentido de fazer
surgir todos os bens materiais e espirituais a que o homem pode aspirar,
desde o

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pão quotidiano à verdade, como derivantes da ordem a que pertencem, assim


como da hierarquia de que são intérpretes e os guardiães dessa mesma ordem.
Num mundo assim constituído, a investigação filosófica não pode desenvolver
os seus princípios e a sua disciplina senão a partir da hierarquia em que
se concretiza a ordem universal ou da força que se

mantém causa dessa estrutura.

Como ideia directiva da vida individual e social, a noção desta ordem começa
a afirmar-se a partir do século VIII, com o desaparecimento quase total das
trocas económicas e culturais e o desaparecimento ou decadência das cidades,
deixando de pé apenas uma economia rural paupérrima e fechada. O despertar do
tráfego comercial e das artes que se verifica a partir do século XI, as
viagens e as trocas provocam a primeira crise da concepção medieval da ordem
cósmica. Essas transformações vêm demonstrar, com a própria força dos factos,
que o indivíduo pode adquirir para si os bens que se lhe oferecem,
incrementá-los o defendê-los com a sua actividade e com a colaboração dos
outros. O poder hierárquico começa a surgir, agora, como um limite ou uma
ameaça, mais do que uma ajuda ou garantia, à capacidade humana de adquirir ou
conservar os bens que são indispensáveis ao homem. A luta pela autonomia
comunal, pela libertação das limitações impostas pelo feudalismo, é
substancialmente baseada na crença do homem em si próprio, na sua capacidade
de providenciar sobre as suas necessidades e de organizar-se em comunidades
autónomas que, melhor que as hierarquias impostas de cima, podem providenciar
pela sua própria defesa. Nestas condições, a investigação filosófica adquire
um respirar novo e uma

nova dimensão de liberdade. Os seus pressupostos hierárquicos não são por


enquanto postos em dúvida, os seus limites e as suas condições sobrenaturais

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continuam ainda a ser reconhecidos; mas a parte devida à iniciativa racional
do homem começa a aumentar e a reforçar-se, e em certos domínios e em certos
Emites tal iniciativa acaba por ser reconhecida como legítima e eficaz.
Tenta-se em seguida estabelecer claramente os domínios e os limites de tal
iniciativa e julga-se haver realizado um perfeito acordo entre a razão e a
fé, ou seja, entre a verdade que o homem pode conseguir com os seus poderes
naturais o a que lhe foi revelada pelo alto e imposta pela hierarquia. Mas
até este equilíbrio começa a romper-se a partir dos últimos decénios do
século XIII; e agora não se renuncia à fé nem se denuncia, na sua totalidade,
a concepção h-ierárquica da ordem cósmica, mas alarga-se e reforça-se o
âmbito da iniciativa racional e a investigação filosófica debruça-se sobre
domínios que já nada têm a ver com os objectos da fé e nos quais pode avançar
com a sua força autónoma.

Sobre este desenvolvimento, que compreende os aspectos sociais e políticos


como os filosóficos do inundo ocidental nos séculos da Idade Média, se funda
a caracterização da filosofia escolástica como o problema da relação entre
razão e fé e a sua periodização fundada nas diversas formas de resolver
tal problema. É evidente que deste ponto de vista o problema da relação
entre razão e fé não é um problema puramente especulativo. É também um
problema especulativo considerável se nos basearmos no confronto entre os
textos filosóficos e os textos religiosos e as suas interpretações e
implicações; mas não é apenas isto. É sobretudo o problema do papel que pode
e deve ter a -iniciativa racional do homem na busca da verdade e da direcção
da vinda individual e colectiva, perante a posição que deve ocupar a ordem
cósmica e a hierarquia que a representa. Por isso é também o Problema da
liberdade que o homem pode reivin-

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dicar por si e das limitações que tal liberdade deve encontrar as hierarquias
que governam o mundo. É, em suma, o problema dos novos domínios da indagação
(a natureza, a sociedade) que se apresentam ao homem à medida que ele
reivindica, pela sua razão, uma maior autonomia. Se designarmos, nos

termos que assim ficam expostos, o "problema escolástico" pode ser facilmente
abordado para se poder dar conta da continuidade e da variedade, das
concordâncias e das polémicas do pensamento medieval. Isso pode permitir que
nos apercebamos de que a ortodoxia e a heterodoxia religiosas fazem parte
igualmente deste pensamento como fazem parte as especulações políticas e os
interesses, que se mantiveram ou ressurgiram, pela natureza e pela ciência; e
que as tendências heréticas, as rebeliões filosóficas, teológicas ou
políticas que, em certa medida, sempre o caracterizaram, não constituem os
aspectos históricos fundamentais a mesmo título que as grandes sínteses
doutrinais nas quais a iniciativa racional do homem e as exigências da fé e
da hierarquia eclesiástica parecem ter encontrado um compromisso efectivo. O
que este conceito do problema escolástico pretende excluir é a tentativa de
considerar a própria escolástica no seu conjunto como uma síntese doutrinal
homogénea ria qual se hajam unificado e fundido os contributos individuais.
Esta noção da escolástica parece sugerida pela vontade de privilegiar o
aspecto da existência (real ou presumida) de uma concordância plena e
definitiva entre a razão e a fé: aspecto que é característico da síntese
tomista. Mas este privilégio não tem nenhuma base histórica e não terá outro
efeito que o de excluir da escolástica, considerada como a única filosofia
existente na Idade Média, uma parte importante dos pensadores medievais. Uma
preferência ideológica, historiograficamente insustentável, está na base
deste privilégio. A filosofia medieval, tal

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como a filosofia de qualquer outro período, pode ser descrita o caracterizada


apenas com base no seu Problema dominante, e não nas soluções que foram dadas
a esse mesmo -problema. A continuidade desta filosofia pode ser reconhecida
apenas com o fundamento da unidade do seu problema e das diferenças nas
soluções apresentadas. E a periodização da mesma pode ser efectuada apenas
com base na prevalência de uma ou de outra das soluções fundamentais.

A esta exigência responde a periodização tradicional que distingue quatro


fases na escolástica. A primeira, chamada pré-escolástica, é a do
renascimento carolíngio, durante a qual é pressuposta e admitida pura e
simplesmente a identidade da razão e da fé. Na segunda, chamada alta-
escolástica, que vai da metade do século XI até ao fim do século XII, o
problema da relação entre a razão e a fé começa a esboçar-se e a ser posto
claramente na base da antítese potencial entre os dois termos. Na terceira,
que vai de 1200 aos primeiros anos de 1300, organizam-se os grandes sistemas
escolásticos que constituem o que se costuma chamar o "florescimento da
escolástica". Na quarta, que compreende o século XIV, verifica-se a
dissolução da escolástica pela reconhecida insolubilidade do problema que foi
seu fundamento.

Todavia, ainda que acabada como período histórico, a escolástica permanece


actual para exprimir a exigência, para o homem que vive numa tradição
religiosa, de compreender e justificar racionalmente essa mesma tradição.
Esta exigência surge com frequência ao longo da história da filosofia. Outras
formas de escolástica, recorrendo às formas filosóficas na altura dominantes,
apresentar-se-ão no ulterior decurso do pensamento filosófico.
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§ 174. O RENASCIMENTO CAROLINGIO

Os séculos VIII e IX -assinalam a concentração das forças sobreviventes da


cultura nos grandes impérios do Ocidente: o império árabe e o império
carolíngio. Tanto um como o outro tomaram possível um -renascimento cultural.
Carlos Magno, pela própria necessidade de garantir a unidade do seu império e
de administrá-lo, necessidade que exigia o emprego de numerosos funcionários
dotados de uma corta cultura, promoveu e encorajou os estudos. No período
precedente, estes eram cultivados apenas nas regiões periféricas: por um
lado, nas cidades da Itália meridional, como Nápoles, Amalfi e Salerno; por
outro, nos mosteiros ingleses e irlandeses. Na época carolíngia converteram-
se no património das grandes Abadias, que exerceram a função que
primeiramente havia pertencido às cidades.

Nos fins do século VIII, a obra de Alcuíno foi o início da -reconstrução


intelectual da Europa. Tendo nascido em 730 na Inglaterra, Alcuíno formou-se
na escola episcopal de York; em 781 foi chamado pelo imperador Carlos Magno
para dirigir a Escola Palatina e transformou-se no organizador dos estudos no
império franco. Morreu no ano de 804. As obras de Alcuíno são quase
exclusivamente constituídas por extractos tirados de outros autores. A sua
Gramática foi obtida em Prisciano, Donato, Isidoro, Beda; a sua Retórica num
texto de Cícero De inventione, a sua, Dialéctica num texto pseudo-agostiniano
sobre as categorias. Mesmo o texto De animae ratione ad Eulaliam Virginem,
que é o primeiro tratado de psicologia da Idade Média, não passa de uma série
de extractos de Agostinho e Cassiano.

Alcuíno é o grande organizador do ensino no reino franco. Foi ele quem


ordenou os estudos segundo as sete disciplinas do trívio e do quadrívio, o a
que chama as sete colunas da sabedor-ia (Patri.

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Lat., 101, 853 c). No seu escrito teológico sobre a Trindade (De fide Sanctae
et individuae Trinítatis, três livros), Alcuíno trata da essência divina, das
propriedades de Deus, da trindade das pessoas, da encarnação e da redenção,
mantendo-se em tudo fiel à especulação de Santo Agostinho. Tal como este,
insiste na impossibilidade de se conceber e exprimir a essência divina, em
relação à qual as categorias, que servem para compreender as coisas finitas,
adquirem um novo significado. Em Deus tudo se identifica: o ser, a vida, o
pensamento, o querer e o agir, e no entanto Ele é a simplicidade absoluta.
Num escrito seu sobre a alma, dedicado à Jovem Eulália, Alcuíno define a alma
como "o espírito intelectual ou racional, sempre em movimento, sempre vivo e
capaz de boa ou má vontade>. A alma assume vários nomes consoante as suas
funções: chama-se alma enquanto vivifica; espírito quando contempla; sentido
enquanto sente; ânimo enquanto sabe; mente enquanto compreende; razão
enquanto julga; vontade enquanto consente; memória enquanto lembra. Mas estas
funções diversas não são próprias de várias substâncias, apesar de serem
indicadas com nomes diferentes: constituem todas uma alma única (De animae
ratione, 11). AIcuíno distingue nela três partes, de acordo com a doutrina
platónica: a racional, a irascível e a apetitiva. As três partes da alma
racional, memória, inteligência e vontade reproduzem a Trindade divina
(segundo a doutrina de Agostinho). A alma é o fundamento da personalidade
humana, mas o eu na sua totalidade pertence não só à alma como também ao
corpo. A alma é incorpórea o como tal imortal. O seu bem mais @levado é Deus
e o seu destino é o de amar a Deus. Para tal destino a alma prepara-se
através das virtudes; e entre estas Alcuíno coloca não apenas as cristãs: fé,
esperança e caridade, como também as pagãs: pradêwia,

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justiça, força e temperança, das quais dá definições platónicas de De


officiis de Cicero.

A obra de Alcuíno foi continuada pelos seus sucessores. Fredegiso, que lhe
sucedeu como abade de S. Martinho de Tours e foi, a partir de 819, até 834,
ano da sua morte, chanceler de Ludovico o Pio, compôs uma obra na qual se
levantava a questão de se saber se o nada é alguma coisa ou não (De nihilo et
tenebris). Fredegiso conclui que o nada de certo modo é; e de facto, se se
nega ,isso, essa mesma negação é já alguma coisa e por isso o nada de certa
maneira é (Patr. Lat., 105. .,
751). O próprio facto de o nada ter um nome demonstra a sua realidade, uma
vez que um nome que não se refira a qualquer coisa real não pode ser pensado.
A expressão bíblica de que o mundo foi criado do nada demonstra também a sua
realidade; porque do nada procedem todos os elementos e ainda a luz, os anjos
e as almas dos homens.

Discípulo de Alcuíno foi Rabano Mauro. Nascido na Mogúncia no ano de 776 ou


784, foi primeiro professor e depois abade no mosteiro de Fulda; em 847 foi
nomeado arcebispo de Mogúncia, onde morreu no ano de 856. Rabano é
considerado como o escritor da Escola da Alemanha. Da escola de Fulda saíram
um grande número de doutores que foram ensinar pelas províncias vizinhas o
que haviam aprendido com o seu mestre. Um caso anedótico ;revela-nos a
hostilidade de alguns eclesiásticos do tempo contra a cultura e a fama que
Rabano tinha conquistado. O abade de Fulda apoderou-se um dia dos cadernos de
Rabano e dos seus alunos e declarou que proibia para o futuro a introdução de
qualquer novidade no mosteiro; além disso empregou os monges mais aplicados
em trabalhos pesados e contínuos. Os monges apelaram para o rei que se
pronunciou contra o abade. Rabano foi reintegrado na sua cátedra continuando
a leccio-

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nar. Os seus contemporâneos chamaram-lhe Rabano o Sofista.

Rabano preocupou-se sobretudo com a educação filosófica e teológica do clero.


Com este fim, compÔs três livros Sobre a instrução dos Clérigos (De
institutione clericorum) que é uma compilação cujo material foi extraído dos
Padres da Igreja, de Isidoro e de Beda. Rabano insiste na necessidade e
importância do estudo das artes liberais e também dos filósofos pa gãos e em
particular dos platónicos. Justifica a utilização da cultura profana com a
teoria da injusta posse: "Se os filósofos disseram nos seus escritos coisas
verdadeiras e que estão de acordo com a fé, não se deve recear e retomá-los
como injustos possuidores" (111, 26). Na verdade, os filósofos descobriram-
nas enquanto guiados pela verdade, isto é, por Deus: por isso elas não lhes
pertencem, mas a Deus.

Num tratado De Universo, tirado em grande parte das Etimologias de Isidoro e


da De natura reruni de Beda, recolheu um rico material profano de ciências
naturais. Numa glosa às Categorias de Aristóteles, Rabano nega, referindo-se
à doutrina deste filósofo, a univocidade do ser, isto é, nega que o termo
"ser" conserve o mesmo significado referindo-se a tudo o que existe, e
afirma, em contrapartida, a sua equivocidade, a diversidade dos seus
significados. A univocidade ou a equivocidade do ser devia converter-se, no
século XIII, num dos ternas fundamentais da polémica filosófica.

Um discípulo de Rabano, Servato Lupo, que foi abade de Ferrières desde 842
até falecer, em 862, tem em grande conta a cultura humanística e nas suas
Cartas oferece o exemplo de um vivo interesse literário e filosófico. O seu
tratado Sobre três questões trata do livre arbítrio, da predestinação e da
Eucaristia, seguindo as pisadas dos padres e especialmente de Agostinho.

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Da escola de Alcuíno saiu também Pascásio Radoberto, abade de Corbie desde


842 e falecido em
860. Pascásio compôs em 831 a obra De corpore et sanguine Domini. A sua obra
maJor é um Comentário ao Evangelho de São Mateus. Na obra intitulada De fide,
spe et charitate, distingue três espécies de coisas críveis. A primeira é a
das que se podem crer imediatamente, como as coisas visíveis; a segunda, a
das coisas que se podem crer e compreender ao mesmo tempo, como os axiomas e
as verdades racionais. A terceira é a das coisas que a revelação ensina
acerca de Deus; e estas não são simultaneamente críveis e compreensíveis,
devem ser primeiramente cridas com todo o coração o com ,toda a alma, para
depois serem compreendidas. Pascásio exprime assim aquela precedência da fé
sobre a razão que devia ser a especulação de Anselmo.

Um outro monge de Corbie, Godescalco, falecido entre 866 e 869, sustentou com
particular energia, apesar das condenações de dois sínodos, a doutrina da
dupla predestinação. Sustentava que Deus predestina tanto o bem como o mal e
que alguns homens, pela predestinação divina que os constrange à morte
espiritual, não podem corrigir-se do erro e do pecado, porque Deus os criou
desde o princípio incorrigíveis e destinados ao castigo.

Esta doutrina da dupla predestinação que era ensinada também pelo mestre de
Godescalco, o monge Ratramno (falecido à volta de 868), foi combatida pelo
arcebispo de Reims Hinchmar e que chegou ao nosso conhecimento precisamente
através da refutação deste último.

§ 175. HENRIQUE E REMIGIO DE AUXERRE

Henrique de Auxerre (841-876) foi discípulo de Servato Lupo e continuou a


tradição humanística

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do mestre. Com efeito, foi autor de uma Vita S. Germatú, em verso, que
enriqueceu com glosas extraídas dos clássicos e também da Divisio Naiurae de
João Escoto. A ele foram atribuídas algumas glosas marginais a um texto
pseudo-agustiniano sobre as Categorias. Estas glosas apresentam uma tese que
será a do conceptualismo posterior, isto é, que os conceitos universais não
são realidades em si, e designam apenas as coisas particulares conhecidas
pela experiência. A formação dos conceitos de género e espécie é feita por
uma exigência de economia mental. Uma vez que os nomes dos seres individuais
são inumeráveis e o intelecto e a memória não bastam para conhecê-los e fixá-
los, formam-se os conceitos de espécie (por exemplo, homem, cavalo, leão),
com os quais se podem reconhecer e recordar facilmente inumeráveis
indivíduos. Mas como os conceitos de espécie são, por sua vez, inumeráveis e,
por isso, em grande parte incognoscíveis, agrupam-se em conceitos mais amplos
e menos numerosos, formando os conceitos de género, como animal ou pedra. Em
seguida recorre-se a um grau mais elevado, a um conceito extensíssimo que
permite designar com um só nome todos os seres: é o conceito de substância.

Um discípulo de Henrique, Remígio de Auxerre (841-908) ensinou na escola de


Auxerre todas as artes liberais e especialmente a gramática, a dialéctica e a
música. Escreveu comentários às obras de gramáticos e poetas latinos; ao
Génesis e aos S -

mos. O seu comentário a Marciano Capella possui significado filosófico. Ao


contrário do seu mestre Henrique, Remígio inclina-se para o -realismo, ou
seja, para a afirmação da realidade substancial dos conceitos. Remí gio
sustenta que o conceito mais geral que a inteligência pode alcançar é o da
essência, que compreende todas as naturezas; e que tudo o que existe, existe
pela participação na essência.

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A essência divide-se nos géneros e nas espécies até à última espécie, que é o
indivíduo, o qual, como a própria palavra -indica, é indivisível. Segundo
esta doutrina, que se relaciona com a de João Escoto, o indivíduo seria o
resultado da repartição sucessiva de uma realidade universal. Igualmente se
relaciona com o platonismo a doutrina de Remígio sobre o conhecimento humano.
A natureza humana possui em si todas as artes; mas estas foram ocultas pelo
pecado original e apenas podem ser reconquistadas mediante esforços
fatigantes, que pouco a pouco as libertam das trevas que as encobrem à
inteligência. Assim se explica que nem todos possam ser oradores, dialécticos
ou músicos, apesar de todos possuírem em si as noções correspondentes. Com
efeito, nem todos se empenham no esforço exigido para -trazerem de novo para
a luz o saber originário obscurecido pelas trevas do pecado.

NOTA BIBLIOGRÁFICA

§ 173. A tentativa de compreender a escolástica do ponto de vista do


conteúdo, como uma síntese doutrinal, foi levada a efeito por De Walf,
Histoire de Ia phil. méd., (V. ediç. 1924 e ediç. post.) que colocou os
fundamentos desta síntese na geração da comunidade entre o ser divino e o ser
das criaturas, na afirmação do valor da personalidade humana, na existência
de uma essência supra-material e na objectividade do saber humano. De Walf
considerou anti-escolásticos os sistemas que se afastam destes fundamentos,
por exemplo, o de Escoto Erigena, o panteísmo do sé culo XII, a averroísmo.
Mas aqueles fundamentos são tão genéricos que não chegam para caracterizar a
escolástica e explicar as suas mais importantes afirmações.

Para o estudo da escolástica são fundamentais, além da Patrologia Grega e


Latina de MIGNE, aS seguintes colecções de textos e estudos: BARACH e WORBEL,
Bibliotheca philosophiae mediae aetatis BAEUMKER, Reitrage zur Geschichte der
Philosophie des Mittelal-

23
ters, textos e investigações, Mónaco, a partir de 1891; ElAuRÉAu, Notices et
extraits de quelques manuscrits de Ia Bibliothêque Nationale, Paris, 1890-
1893, 6. vols. Não se faz aqui referência às numerosas colecções nas quais
existem e foram publicados textos e estudos de filosofia medieval (e que
possivelmente poderão estar indicados nos instrumentos bibliográficos
re@ferid4Ds) uma vez que tais textos e estudos serão indicados na nota
bibliográfica referente a cada um dos filósofos.

Obras de carácter geral sobre a escolástica: SOCKL, Geschichte der


Philosophie des Mittelalters,
3 vols., Mogúncia, 1864-1866; HAuRÉAu, Histoire de Ia Philosophie
scolastique, 2 vol., Paris, 1872-1880; PimVET, Essai d'une histoire générale
et comparée des philosophies médiéval,es, Paris, 1905, 2.1 ed., 1913;
BAEUMKER, Die ehristliche Philosophie des Mittelalters, in Allgem-eine
Geshichte der Philosophie, Leipsig,
1913; GRABMANN, Geschichte der scholastischen Me@ thode, 2 vols., Freiburgo,
1909-1911; 1956 (ed. fotoestática); DUHEm, Le systême du monde, de Platon à
Copernic, 10 vols., Paris, 1913-1959; GILSON, La Philosophi,e au Moyen Age,
1922, 1952; Wesprit de Ia philosophie médiévale, Paris, 1932, 1944; BRÉHIER,
La philosophie du moyen áge, Paris, 1937; COPLESTON, A HistGry of Philosophy,
H: Medieval Philosophy, Londres, 1958; VIGNAUX, La philosophie du moyen âge,
Paris, 1958; VASOLI, La fiJ-osofia mediovale, Milão,
1961.

Para bibliografia especial: UEBERWEG-GEYER, Die Patristische und


scholastische Philosophie, Berlim, 1928; DE BRIE, Bibliographia Philosophica,
1934-1945; 2 vols., Bruxelas, 1950-1954; MOSCIIETTi, Bibliografia critica
general per Ia storia del pensiero cristiano, in Grande Antologia Filosofica,
III, Milão, 1954; VASOLI, Op. Cit. Para ulteriores actualizações
bibliográficas: Repertoire Bibliographique de Ia Revue Philosophique de
Louvain.

§ 174. Sobre o renascimento carolíngio: BRUNHES, La foi chrétienne et Ia


philosophie au temps de Ia renaissance carolingienne, Paris, 1903; PiRENNE,
Mahomet et Charlemagne, Paris, 1937.

As obras de AIcuino em Pat. Lat., 100.,_101.o_ E. M. WILMONT-13UXTON, Alcuin,


Londres, 1922.

O texto de Fredegiso em Pat. Lat., 105.1, 751-756. -GEYMONAT, 1 problemi del


nulila e delle- tenebre in Fredegiso di Tours, in Saggi di filosofia
neorazionalistica, Turim, 1953, p. 101-111.
24

ALCUINO

As obras de Servato Lupo in Pat. Lat., 119.1,


431-700.

As obras de Pascásio Radúberto in. Pat. Lat., 120.o. As obras de Ratramno in


Pat. Lat., 121.o, 13-346. As obras de I-linkmar in Pat. Lat., 125.---126.o.
Sobre este autor: J. A. ENDRES, em "Beitrage", XVII, 2-3.

§ 175. De Henrique de Auxerre, La vita de San Germano, editada em "Mon.


Germ. Hist.". Poeti Latini dell'evo carolingio, M, 428-517. Excertos das
glosas ao texto pseudo-agustiniano em Cousin, inédits d'Abélard, p. 621, e
HAUREAu, De Ia phil. schal., I, p. 131-143. De Remígio os Comentários in Pat.
Lat., 131.1,
51-134.-J. BURNAM, Commentaire anonyme sur Prudence d'après de ms. 413 de
Valenciennes, Paris, 1910.

25

11

JOÃO ESCOTO ERÍGENA

§ 176. JOÃO ESCOTO: A PERSONALIDADE HISTÓRICA

Inesperadamente aparece, na primeira metade do século IX, a grande figura de


João Escoto. Na pobreza cultural e especulativa do seu tempo, este homem
dotado de um espírito extremamente livre, de excepcional capacidade
especulativa e vasta erudição greco-latina, surge como um milagre. Através de
Santo Agostinho, João Escoto relaciona-se como o mais genuíno espírito da
investigação filosófica, tal como havia surgido na idade clássica da Grécia.
Erígena tem consciência das exigências soberanas da investigação e afirma-as
decididamente. Quando tropeça com a realidade incompreensível de Deus ou da
essência das coisas, não afasta as armas dialécticas nem prescreve o
abandono, à fé, mas volta a assumir a mesma incompreensibilidade no âmbito da
investigação, dialectiza-a e faz dela um elemento de clareza. A razão
preguiçosa, que neste período da história da filosofia descobre tantas formas
de entrincheirar-se por detrás das exigências da fé, não consegue
assenhorear-se dele.

27
A obra de João Escoto teve uma importância decisiva para a ulterior evolução
da escolástica. As suas fontes principais são as obras de Santo Agostinho, do
Pseudo-Dionísio (que o próprio Escoto traduziu do grego) e dos Padres da
Igreja, especialmente de S. Gregório e S. Máximo. Em toda a especulação
posterior, não há filósofo da escolástica que não se relacione com ele
directa ou poa. O papa Honório 111, -numa Bula de 23 de Janeiro de 1225,
condenou a sua obra-prima: De divisione naturae. Muitos doutores
escolásticos, antes e depois da condenação, entram em polémica contra as suas
afirmações; mas a sua especulação assinala em todos os pontos um marco
fundamental na filosofia escolástica.

§ 177. JOÃO ESCOTO: VIDA E OBRA

João Escoto é chamado Erígena devido ao facto de ter nascido na Irlanda


(Eriu-Erin, Irlanda). A data do seu nascimento deve andar à volta de 810. Não
se sabe com precisão o ano em que se dirigiu a França, para a corte de Carlos
o Calvo; mas deve ter sido nos primeiros anos do reinado deste rei. Com
efeito, Escoto Erígena participou na controvérsia teológica suscitada pela
tese do monge Godescalco sobre a predestinação, ora a condenação de
Godescalco verificou-se em 853, depois de largos e solenes debates. Muito
provavelmente, a vinda de João Escoto para França foi anterior ao ano de 847.
Carlos o Calvo nomeou-o director da Academia do Palácio, a Schola Palatina,
em Paris; a convite do mesmo rei, Erígena traduz as obras de Dionísio o
Areopagita, cujos textos o imperador bizantino, Miguel Balbo, tinha oferecido
a Ludovico Pio no ano de 827. O papa Nicolau 1 queixou-se ao rei do facto de
Erígena não haver submetido essa tradução à censura eclesiástica antes de a
publi-

28

car e quis instaurar um processo contra as heresias que a mesma continha.


Depois da morte de Carlos o Calvo, no ano de 877, não há notícias seguras
sobre João Escoto. Segundo alguns, teria morrido em França nesse mesmo ano;
segundo outros, teria sido chamado pelo rei Alfredo o Grande, para a escola
de Oxford e, mais tarde, como abade de Malmesbury ou de Athelney, teria sido
assassinado pelos monges.

A actividade filosófica de João Escoto pode ser dividida em dois períodos. No


primeiro período, Escoto Erígena inspirou-se sobretudo nos Padres latinos,
isto é, em Gregório Magno, Isidoro e especialmente em Santo Agostinho. A este
período pertence o texto contra o monge Godescalco: De divina
praedestinatione. Num segundo período, Erígena sofre a influência dos
teólogos e filósofos gregos. Em 858, traduz os textos do Pseudo-Dionísio o
Areopagita; em 864, os Ambígua de Máximo o Confessor e o texto De hominis
opificio de Gregório de Nisa. Estes trabalhos guiaram-no na criação da sua
obra-prima, a De divisione naturae, em cinco livros. Escrita em forma de
diálogo entre mestre e aluno, é o primeiro grande texto especulativo da Idade
Média.

Esta obra denuncia já o carácter da investigação escolástica: o método


apriorístico ou dedutivo que o autor maneja com grande mestria. As glosas de
Erígena aos Opuscula theologica de Boécio, são o comentário mais antigo aos
escritos teológicos de Boécio. Muito conhecidas na Idade Média, mas nunca
impressas, deviam ter sido escritas nos últimos anos da sua vida, à volta de
870, e apresentam com a Divisio naturae a mesma relação que existe entre as
Retractationes e as outras obras de Santo Agostinho.

A cultura e capacidade especulativa de João Escoto colocam-no acima do nível


dos seus con-

29

temporâneos. Não só conhece o grego e o traduz, como adquire dos escritores e


do espírito grego, grande liberdade tanto no campo da investigação como da
orientação especulativa.

§ 178. JOÃO ESCOTO: FÉ E RAZÃO

O pressuposto da investigação de João Escoto é o acordo intrínseco entre


razão e fé; entre a verdade a que chega a lIvre investigação e a que é
revelada ao homem pela autoridade dos Livros Sagrados e dos escritores
iluminados. "Não há salvação para as almas dos fiéis se não em crer no que se
diz com verdade sobre o único princípio das coisas, e em entender o que com
verdade se crê" (De div. nat., 11, 20). A autoridade das Sagradas Escrituras
é indubitavelmente indispensável ao homem, porque só elas podem conduzi-lo
aos lugares secretos em que reside a verdade (1, 64). Mas o peso da
autoridade não deve, de forma alguma, afastá -lo daquilo que a recta razão o
persuada. "A verdadeira autoridade não cria obstáculos à recta razão, nem a
recta razão cria obstáculos à autoridade. Não há dúvida de que ambas dimanam
de uma fonte única, isto é, da sabedoria divina" (1, 66). Mas a dignidade
maior e a prioridade da natureza correspondem à razão, e não à autoridade. A
razão nasceu no princípio dos tempos, juntamente com a natureza: a autoridade
nasceu depois. A autoridade deve ser aprovada pela razão, de contrário poderá
não parecer sólida: a razão não precisa de ser apoiada ou corroborada por
qualquer autoridade. Em suma, a própria autoridade nasce da razão, porque a
verdadeira autoridade não é mais que a verdade descoberta pela razão dos
Santos Padres e por eles transmitidas por escrito em benefício da posteridade
(1, 69). E João Escoto coloca na boca
30

do mestre, que é o principal interlocutor do diálogo, um enérgico convite à


livre investigação: "Devemos, seguir a razão que procura a verdade e não está
oprimida por qualquer autoridade e que de nenhuma maneira pode impedir que
seja publicamente exposto e difundido aquilo que os filósofos procuram
assiduamente e com dificuldade conseguem encontrar" (11, 63).

Esta enérgica afirmação da liberdade de investigação, que faz de Escoto


Erígena um sobrevivente exaltado do espírito filosófico dos gregos, não
implica neste autor qualquer limitação ou negação da religião. E isto porque
a religião não se identifica com a autoridade, mas com a investigação.
Religião e filosofia são uma e a mesma coisa: "Que significa -lidar com a
filosofia senão expor as regras da verdadeira religião, por meio das quais a
suma o principal causa de todas as coisas, isto é Deus, é humildemente
adorada e racionalmente investigada? (De praedest., 1). João Escoto, neste
ponto, está muito próximo do espírito de investigação agustiniana, para a
qual a fé é mais um ponto de chegada que de partida, e no término da longa e
laboriosa via da investigação, e muito mais um princípio, uma direcção, um
guia da investigação, do que um limito ou um obstáculo. E de facto, o
pressuposto agustiniano da Verdade suprema, que se revela e afirma na
investigação humana, volta a repetir-se- em Escoto Erígena. A natureza humana
considerada por si, é uma substância em trevas que, não obstante, é capaz de
participar da luz da sabedoria. Quando o ar participa do raio solar não
significa que o mesmo seja luminoso por si, mas pelo esplendor do sol que
nele aparece. Assim acontece com a parte racional na nossa natureza quando
participa do Verbo, ou seja, da Verdade divina, que por si só não compreende
as coisas inteligíveis e Deus e apenas as conhece por inter-

31

médio da luz divina que nela existe (De div. nat.,


11, 23).

Na investigação humana quem encontra, não é o homem que procura, mas a luz
divina que no homem procura. A palavra de Jesus, segundo S. João: "Não sois
vós que falais é Deus que fala em vós" é entendida por Escoto da seguinte
forma: "Não sois vós que me compreendeis, sou Eu que mo compreendo a Mim
próprio em vós, através do meti espírito" (Hom. in Joh., p. 291-A).

§ 179. JOÃO ESCOTO: AS QUATRO NATUREZAS

O título da obra principal de João Escoto: * divisão da natureza é de pura


origem platónica. * "divisão" a que se refere significa a operação
fundamental da dialéctica platónica, operação que Erígena defende como
constitutiva da própria estrutura da natureza; e a "natureza", segundo os
ensinamentos do Parménides e do Sofista, é o conjunto do ser e do não ser.
Retomando um modelo de Santo Agostinho (De civ. Dei, V, 9). Erígena divide
* natureza em quatro partes.

A primeira natureza cria e não é criada: é ela


* causa de tudo o que é e que não é. A segunda é criada e cria, constitui o
conjunto das causas primordiais. A terceira é criada e não cria e corresponde
ao conjunto de tudo o que é gerado no espaço e no tempo. A quarta não cria
nem é criada, é o próprio Deus, como fim último da criação (De div. nat., 1,
1).

Faz parte destas quatro naturezas não só tudo o que é, como também tudo
aquilo que não é. Pelo não-ser, não se entende o nada, mas a negação das
várias determinações possíveis do ser. Deste modo poderá afirmar-se que não
são as coisas que escapam aos sentidos e ao intelecto; ou as coisas infe-

32

riores em relação às coisas superiores e celestes, ou as coisas futuras que


ainda não são; ou as que nascem e morrem; ou, em suma, as que transcendem o
entendimento e a razão. To-das as coisas deste género, de certa forma, não
são: todavia não se identificam com o nada e, constituem parte da realidade
universal a que Escoto chama natureza (1, 3 e segs.).

As quatro naturezas constituem o círculo vital do ser divino: "Em primeiro


lugar, Deus descende da super-essencialidade da sua natureza, na qual deve
dizer-se que Ele não é; criado por si próprio nas causas primeiras, converte-
se em princípio de toda a essência, de toda a vida, de toda a inteligência, o
que a teoria gnóstica considera como causas primordiais. Em segundo lugar,
ele desce às causas primordiais que estão entre Deus e a criatura, entre a
inefável super-essencialmente de Deus, que transcende toda a inteligência e a
natureza que se manifesta aos que têm um espírito puro; encontra-se no efeito
das causas primordiais e manifesta-se abertamente nas suas teofanias. Em
terceiro lugar, procede através das formas múltiplas de ta-is efeitos até à
última ordem da natureza inteira que contém os corpos. Deste modo, procedendo
ordenadamente em todas as coisas, cria todas as coisas e acaba por ser tudo
em tudo; e volta a si próprio, chamando a si todas as coisas, e apesar de se
encontrar em todas as coisas, não deixa de estar acima de tudo" (111, 20).

Este círculo, pelo qual a vida divina procede a constituir-se constituindo


todas as coisas e com elas torna a si própria, é o pensamento fundamental de
João Escoto. Nele se encontra contida e determinada a relação entre Deus e o
mundo. O mundo

é o próprio Deus, enquanto teofania ou manifestação de Deus; mas Deus não é o


mundo, porque

33

ao criar-se e converter-se em mundo, se mantém acima dele.

§ 180. JOÃO ESCOTO: A PRIMEIRA NATUREZA: DEUS

A primeira natureza é Deus, na medida em que não tem princípio, e é a causa


principal de tudo o que procede d'Ele. Com efeito, Deus é o princípio, o meio
e o fim: é princípio na medida que d'Ele derivam todas as coisas que
participam da essência; é o meio, na medida em que n'Ele e por Ele subsistem
e se movem todas as coisas; é o fim, na medida em que todas as coisas se
movem para Ele, em busca do repouso do seu movimento e da estabilidade da sua
perfeição (1, 11). Como princípio, meio e fim, a natureza divina não se
limita a criar, é também criada. É criada por si própria nas coisas que ela
própria cria, tal como o nosso intelecto se cria a si próprio através dos
pensamentos que formula e das imagens que recebe dos sentidos (1, 12). Deus é
incriado, no sentido em que não é criado por outro; como tal está acima de
todos os seres e não pode ser compreendido nem definido adequadamente. É
unidade, mas unidade inefável que não se encerra esterilmente na sua
singularidade; articula-se em três substâncias: a substância ingénita, o Pai;
a substância génita, o Filho; a substância procedente da ingénita e da
génita, o Espírito Santo. João Escoto vai buscar ao Pseudo-Dionísio, a
distinção das duas teologias: a positiva e a negativa. A primeira afirma de
Deus todos os atributos que lhe correspondem. A outra nega que a substância
divina possa ser determinada mediante os caracteres das coisas que são; isto
é: que possa ser de algum modo compreendida ou exprimida.

Mas os mesmos caracteres que a teologia positiva atribui a Deus assumem nesta
referência um valor diferente daquele que possuem quando se

34

referem às coisas criadas. Deus não é propriamente essência, mas super-


essência; não é verdade, mas supra-verdade, e o mesmo se deve dizer de todos
os caracteres positivos que possam ser atribuídos a Deus. De modo que a
própria teologia positiva é na realidade negativa; a menos que não se lhe
queira chamar positiva e negativa ao mesmo tempo; uma vez que, dizer que Deus
é a super-essência, equivale a afirmar e negar ao mesmo tempo que ele seja
essência (1, 14). É certo que a Deus não se pode atribuir nenhuma das
categorias aristotélicas que, referidas a ele, assumem um significado
diferente. Se Deus caísse no âmbito de algumas categorias seria um género
(como, por exemplo, animal). Ora Deus não é nem género nem espécie nem
acidente e, deste modo, nenhuma categoria pode propriamente qualificá-lo (1-
15). A conclusão é de que tudo o que a razão humana pode conseguir em relação
a Deus é demonstrar que nada se pode propriamente afirmar d'Ele. "Ele supera
todo o entendimento e todo o significado sensível e inteligível, de modo que
o conhecemos ignorando-o, e a ignorância acerca dele é a verdadeira
sapiência" (1, 66).

Mas se Deus é inacessível como natureza supra-essencial revela-se por si


próprio na criação, que é uma contínua manifestação d'Ele ou teofania. A
essência divina, que é em si incompreensível, manifesta-se nas criaturas
intelectuais e é possível conhecê-la nelas. Teofania é o processo que desce
de Deus ao homem através da graça, para regressar do homem a Deus, com o
amor. Teofania significa, também, toda a obra de criação, enquanto manifeste
a essência divina, que deste modo se torna visível nela e através dela (1,
10; V, 23). Cada uma das pessoas divinas tem a sua própria função no processo
da teofania. O Pai é o criador de tudo, o Filho cria as causas primordiais
das coisas que

35

subsistem nele de forma universal e simples; o Espírito Santo multiplica


estas causas primordiais nos seus efeitos; isto é, distribui-as por géneros e
espécies, por números e diferenças, quer se trate das coisas celestiais, quer
das sensíveis (11, 22).

§ 181. JOÃO ESCOTO: A SEGUNDA NATUREZA: O VERBO

A segunda natureza, a que é criada e cria, corresponde à segunda pessoa da


Trindade. Contém as ideias e as formas das coisas; é portanto o Verbo divino,
através do qual todas as coisas foram criadas. Escoto interroga-se sobre o
valor causal que podem ter as formas subsistentes no Verbo divino; se os
corpos do mundo são formados por elementos que foram criados do nada. Se o
nada fosse efectivamente a origem de tais corpos, teria sido também a sua
causa. Sendo assim, o nada seria melhor que as próprias coisas de que foi
causa, uma vez que a causa é sempre superior ao efeito. Escoto resolve a
dificuldade afirmando que os elementos que compõem o mundo não foram criados
pelo nada, mas pelas causas primordiais. E volta a levantar o problema a
propósito destas últimas. Teriam sido estas criadas do nada? Escoto responde
que também estas não foram criadas do nada; sempre estiveram com o Verbo
porque são coessências. A criação do nada não se refere às causas
primordiais, nem tão-pouco às coisas que dependem delas.
O nada não encontra lugar nem dentro nem fora de Deus. O facto de as coisas
terem sido criadas do nada significa apenas que existe um sentido no qual não
são: com efeito, as coisas tiveram um princípio no tempo através da geração e
antes desta não apareciam nas formas nem nas espécies do mundo sensível. Mas,
noutro sentido, são sempre, já que subsistem como causas primordiais no Verbo

36

divino, na qual nunca começam ou deixam de existir (111, 15). A teofania


divina começa nas causas primeiras que subsistem no Verbo. Para elas, o
próprio Criador é criado por si mesmo e por si se cria, isto é, começa por
surgir nas. suas teofanias, a emergir dos recessos da sua natureza o a descer
aos princípios e às coisas, começando assim a existir juntamente com elas
(111, 23). João Escoto, ao longo de toda a sua obra, insiste na identidade
essencial das criaturas com o Criador, na permanência da criatura na própria
essência do Criador, ria presença substancial deste naquelas. O mundo é o
próprio Deus na sua auto-revelação. Tal é o princípio que domina toda a
especulação de Erígena. Deus não pode, certamente, subsistir antes do mundo.
Deus precede o mundo, não no tempo, mas apenas racionalmente enquanto causa
dele. Mas não começa a ser causa num momento dado, uma vez que é
essencialmente causa e, embora não fosse causa se não criasse o mundo, a sua
criação deve ser eterna, co-eterna com Ele (111, 8). "Deus não existia antes
de criar todas as coisas" Q, 72) afirma Escoto.

§ 182. JOÃO ESCOTO: A TERCEIRA NATUREZA: O MUNDO

A terceira natureza, criada e não criadora, é o próprio mundo-o conjunto


universal das coisas sensíveis e não sensíveis que procedem das causas
primeiras pela acção distributiva e multiplicadora do Espírito Santo.

Escoto -sustenta que todos os corpos do mundo são constituídos de forma e


matéria. A matéria, quando privada de forma e de cor, é invisível e
incorpórea e é por isso, objecto não dos sentidos mas da razão. É resultado
do conjunto das diversas qualidades, por si mesmas incorpóreas, que a cons-

37

tituem reunindo-se conjuntamente: e transforma-se nos distintos corpos à


medida que se lhe juntam as formas e as cores (111, 14).

Também a terceira natureza, isto é, o mundo, não se distingue na realidade do


Verbo divino. A razão, afirma energicamente Escoto, obriga-nos a reconhecer
que no Verão não só subsistem as causas primeiras, como ainda os seus
efeitos, e do mesmo modo, nele se encontram os lugares e os tempos, as
substâncias, os géneros e as espécies, até as espécies especialíssimas
representadas pelos indivíduos com todas as suas qualidades naturais. Numa
palavra, subsiste no Verbo tudo o que está reunido no universo das coisas
criadas, tanto o que é compreendido pelos sentidos, ou pela inteligência
humana ou angélica, como o que transcende os sentidos e a própria mente (111,
16). O mundo foi certamente criado: afirma-o a Sagrada Escritura.
O mundo é certamente eterno, porque subsiste no Verbo; afirma-o a razão. De
que maneira se conciliam criação e eternidade, é problema que a mente humana
não pode resolver. Mas, na realidade, tal-

vez o problema seja mais aparente do que real. As coisas que subsistem no
espaço e no tempo e estão distribuídas nos géneros e nas formas do mundo
sensível não são, em verdade, distintas das causas primeiras que subsistem em
Deus, e são o próprio Deus. Não se trata de duas substâncias diversas, mas de
dois modos diversos de entender as mesmas substâncias; na eternidade do Verbo
divino, ou na vida do tempo. Assim, não há duas substâncias "homem", uma como
causa primordial, o outra individuada no mundo; mas uma só substância, que
pode ser entendida de dois modos, ou na sua causa intelectual, ou nos seus
efeitos criados. Entendida da primeira forma, está livre de toda a
mutabilidade; entendida da segunda, surge formada por qualidades

38

e quantidades diversas e é susceptível de ser conhecida pela inteligência


(IV, 7).

Vê-se assim, que Deus não é apenas o princípio, mas também o fim das coisas.
A Ele, portanto, retornarão as coisas que dele saíram e nele se movem e
estão. A Sagrada Escritura ensina claramente o fim do mundo e é por outro
lado evidente, que tudo o que começa a ser o que antes não era, deixará
também de ser o que é. Pois bem, se os princípios do mundo são as causas de
que saiu, estas mesmas causas serão o último termo do seu retorno. O mundo
não será reduzido ao nada, mas às suas causas primeiras; e, uma vez terminado
o seu movimento, será conservado perpetuamente em repouso. Pois bem, as
causas primeiras do mundo são o próprio Verbo divino: ao Verbo divino
voltará, portanto, o mundo quando chegar o seu termo. Uma vez reunido a Deus,
para o qual tende no seu movimento, o mundo não terá um fim ulterior a
atingir o necessariamente repousará. Por isso o princípio e o fim do mundo
subsistem no Verbo de Deus e são o próprio Verbo (V, 3, 20).

Se a tese típica do panteísmo é de que Deus é a substância ou a essência do


mundo, não há dúvida de que a doutrina de Escoto é um rigoroso panteísmo.
"Deus está acima de todas as coisas e em tudo, disse Escoto, só Ele é a
essência de todas as coisas porque só ele é; e, sendo tudo em tudo, não deixa
de ser tudo fora de todas as coisas. Ele é tudo no mundo, tudo ao redor do
mundo, tudo ria criatura sensível, tudo na criatura inteligível, é tudo ao
criar o universo, torna-se tudo no universo, está todo em todo o universo,
está todo nas várias partes deste, porque ele é o todo e a parte e não é nem
o todo nem a parte" (IV, 5).

Constantemente, o panteísmo, quer na filosofia medieval quer na moderna,


assumiu como princípio seu a tese-deste modo expressa,-de que Deus é

39

a substância do mundo. Por outro lado, poderá compreender-se que uma outra
enérgica afirmação de Escoto Erígena, a de que Deus está fora de todo o
universo e que não é nem o todo nem a parte, possa ser assumida como prova do
carácter não panteísta da sua doutrina.

§ 183. JOÃO ESCOTO: O CONHECIMENTO HUMANO

O homem interior é uma imagem da Trindade divina. Escoto retoma e desenvolve,


à sua maneira, este pensamento de Santo Agostinho. As três pessoas divinas
relacionam-se entre si como a essência (Ousia,) a potência (Dytzaniis) e o
acto (Energheia). Na alma humana, a essência é a inteligência ou nous, que é
a parte mais elevada da nossa natureza e pode perceber Deus e as coisas nas
suas causas primordiais. A razão ou logos corresponde à virtus ou dynamis e
refere-se aos princípios das coisas que vêm imediatamente a seguir a Deus. O
sentido interior ou dianoia corresponde ao acto ou energheia e diz respeito
aos efeitos, visíveis ou invisíveis, das causas primordiais. Este sentido
interior é essencial à razão e ao entendimento, apesar de o sentido interior,
que se serve dos cinco órgãos e reside no coração, pertencer mais ao corpo do
que à alma e perecer com a dissolução do corpo (11, 23).

A estas três partes da alma correspondem três movimentos diversos: segundo a


alma, segundo a razão, segundo os sentidos. O primeiro movimento é aquele
mediante o qual, a alma se move até ao Deus desconhecido, para além de si
própria e de toda a criatura. Através deste primeiro movimento, Deus aparece
à alma como transcendente a tudo o que é e como absolutamente indefinível. O
segundo movimento é aquele pela qual a alma define o Deus desconhecido como
causa de todas as coisas, por-

40

ANSELMO DE AOSTA
que nele estão as causas primordiais. O terceiro movimento é o que diz
respeito às razões das coisas singulares. Parte das imagens recolhidas pelos
sentidos externos e, a partir dessas imagens, ergue-se até às razões ú ltimas
das coisas das quais são imagens. Através deste movimento, a própria imagem
sensível transfigura-se. De imagem impressa nos órgãos dos sentidos,
transforma-se em imagem que a alma sente em si como própria; é precisamente
desta imagem espiritualizada que a alma parte para ascender até às razões
eternas das coisas (11, 23).

A correspondência entre a alma e Deus estende-se também àquilo que diz


respeito ao conhecimento que a alma tem de si própria. Como Deus é
cognoscível. através das suas criaturas, mas incompreensível em si próprio,
já que nem ele próprio nem outro pode entender que coisa seja, uma vez
que não possui um quid, uma essência determinada que se possa entender, assim
a alma humana sabe que é, mas de nenhuma maneira pode conhecer aquilo que é.
E isto não é um limite ou uma imperfeição da própria mente. Assim como a
melhor maneira de aproximarmo-nos de Deus não é a afirmação mas a negação,
não é o conhecimento mas a ignorância, porque Deus, não tendo limites, não
pode ser definido nem restringido a uma essência determinada; também se à
alma fosse possível conhecer a sua própria essência, isso significaria a
possibilidade de circunscrevê-la e implicaria a sua dissemelhança com o
Criador (IV, 7).

§ 184. JOÃO ESCOTO: DIVINDADE DO HOMEM

Circula em toda a obra de João Escoto o sentido do valor superior e divino do


homem. O pessimismo próprio dos pensadores cristãos, e até de

41

Santo Agostinho, sobre a natureza e o destino do homem, parece atenuar-se


neste filósofo até se transformar em exaltação do homem, das suas capacidades
e do seu êxito final. "0 homem, afirma, não foi chamado imerecidamente
fábrica de todas as criaturas; com efeito, todas as criaturas se contêm nele.
Compreende como o anjo. raciocina como homem, sente como animal irracional,
vive como o verme, compõe-se de corpo e alma e não carece de nenhuma coisa
criada". Em certo sentido, o homem é superior ao próprio anjo que, por
carecer de corpo, não tem sensibilidade, nem movimento vital (111, 37).

Muito significativas são as considerações que Escoto tece, com visível


complacência, em torno do tema "se o homem não pecasse ... ". Se o homem não
pecasse seria de certo omnipotente como Deus. Com efeito, nada o separaria de
Deus, e ele, que é a imagem de Deus, participaria totalmente na perfeição do
seu modelo. Pelo mesmo motivo, seria omnisciente, porque, tal como Deus,
conheceria

nas suas causas primordiais todas as coisas criadas. Se o primeiro homem não
tivesse pecado, a semelhança entre a natureza angélica e a humana ter-se-ia
transformado numa identidade, e o homem e o anjo ter-se-iam convertido numa
mesma coisa. E isto explica-se porque a mesma identidade se estabelece entre
homem e homem, quando reciprocamente se compreendem. "Se, afirma Escoto, eu
compreendo 9 que tu compreendes, converto-me no teu próprio entendimento e de
certa maneira inefável, converto-me em ti próprio. E quando tu compreendes o
que, eu compreendo, convertes-te no meu entendimento, e dos dois
entendimentos resulta um só, constituído por aquilo que ambos sincera e
correctamente compreendemos. Porque o homem é verdadeiramente o seu
entendimento, o qual se especifica e individualiza pela contemplação da
verdade (IV, 9).

42

A perfeição do homem é tão grande que nem

mesmo o pecado original chega para destruí-Ia. Com elo o homem não perdeu a
sua natureza que, enquanto imagem de Deus, é necessariamente incorruptível;
perdeu apenas a felicidade, à qual estava destinado se não houvesse
desprezado o mandamento divino. "É preciso afirmar, diz Escoto, que a
natureza humana, feita à imagem de Deus, nunca perdeu a força da sua beleza e
a integridade da sua essência e nunca poderá perdê-las. Uma forma, divina
como é a alma, permanece sempre incorruptível, além do mais, torna-se capaz
de suportar a pena do pecado" (V, 6).

Com o mesmo optimismo Escoto considera o destino último do homem. A morte é


para o homem o princípio de uma ascensão que o leva a identificar-se com
Deus. Não há morte para o homem, mas o retorno a um estado antigo que perdeu
ao pecar. A primeira fase deste retorno a Deus dá-se quando o corpo se
dissolve nos quatro elementos de que é formado. A segunda fase é a
ressurreição, na qual cada um receberá de novo o seu corpo, através da
reunião dos quatro elementos. Na terceira fase, o corpo transformar-se-á em
espírito. Na quarta fase, toda a natureza humana voltará às suas causas
primordiais, que subsistem em Deus de forma imutável. Na quinta fase, a
natureza humana, juntamente com as suas causas, mover-se-á em Deus "como o
ar se move na luz" (V, 8). Este triunfo final da natureza humana não será, no
entanto, uma anulação em Deus. O dissolver-se místico do homem
em Deus está excluído por João Escoto. O destino da natureza humana não é o
de perder-se no ser divino, mas o de permanecer na sua verdadeira substância,
de reintegrá-la nas suas causas primordiais e de subsistir na sua total perfeição o âmbito do ser
divino, como o ar na luz. O misticismo neoplatónico é aqui corrigido
43

pelo sentido do carácter irredutível da natureza humana, carácter pelo qual


conserva, mesmo perante Deus, e em virtude de Deus, a sua autonomia
substancial.

§ 185. JOÃO ESCOTO: O MAL E A LIBERDADE HUMANA

Esta mesma posição leva João Escoto a modificar a doutrina agustiniana da


liberdade humana. De Santo Agostinho, retoma o ponto de partida para a sua
doutrina do mal. Que o mal não é uma realidade, mas uma negação da realidade,
é para Escoto Erígena um pressuposto evidente. Deste pressuposto tira a
conclusão de que Deus não conhece o mal. Com efeito, o conhecimento divino é
imediatamente criador: Deus não conhece as coisas que são, porque são: mas as
coisas são porque Deus as conhece. A causa da sua essência é a ciência
divina. Tudo o que é, é pensamento divino. O homem é definido por Escoto como
"uma noção intelectual eternamente criada na mente divina"; e esta mesma
definição aplica-se a tudo o que existe (IV, 7). Daqui se conclui que se Deus
conhecesse o mal, se o mal fosse um pensamento divino, o mal seria real no
mundo (11, 28). Mas o mal não é real. Não é algo substancial e as próprias
aparências sedutoras de que se reveste perante os homens maus, não são por
si, más. Um objecto belo e precioso que inspira ambição no avarento pode
inspirar, pelo contrário, admiração desinteressada no homem sábio. Não é,
portanto, a aparência bela que leva ao pecado e é por si o mal, mas a
disposição maléfica daquele que a contempla (IV, 16). Do mal, que não é
realidade, não há portanto em Deus presciência; nem tão-pouco predestinação.
A pena que recai sobre o que peca não foi predestinada por Deus; pois também
ela é dor e privação, e não uma realidade

44

positiva. A pena é consequência do pecado e segue-se como se estivesse ligada


a ele por uma corrente; mas nem a pena, nem o pecado subsistem na mente
divina, na qual apenas encontra lugar o ser e o bem (De praedest., 15, 8).
Quando as Sagradas Escrituras falam de predestinação ou de presciência divina
do mal, há que entender estas expressões no sentido com que nós costumamos
saber que, depois do sol se pôr vêm as trevas, que o silêncio vem depois das
aclamações e a tristeza depois da alegria. Mas as trevas, o silêncio, a
tristeza, não são mais que noções negativas e indicam. apenas a ausência das
realidades -positivas correspondentes (ibid., 15, 9).

Para Escoto, tal como para Santo Agostinho, o mal reduz-se ao pecado, à
deficiência ou ausência de vontade. Mas enquanto para Santo Agostinho a
vontade livre é unicamente a vontade do bem, para Escoto Erígena a vontade
livre é o livre arbítrio, capaz de decidir-se quer pelo bem, quer pelo mal. É
certo que a causa do pecado está na mutabilidade da vontade. Esta
mutabilidade, que é causa do mal, é certamente ela própria um mal (Do div.,
nat., IV,
14). Mas sem ela o homem não seria verdadeira e plenamente livre. Se Deus
tivesse dado ao homem apenas a capacidade de querer o bem e de viver de
acordo com a justiça, de forma a que o homem só se pudesse mover numa
direcção, o homem não sena absolutamente livre, mas apenas livre em parte e
em parte não livre. Ora uma liberdade parcial não é possível. Se mesmo numa
parte mínima o homem não é livre, ele é absolutamente não-livre. Um livre
arbítrio que oscila não pode permanecer de pé (De praedest., 5, 8). Se se
afirma que não viria dano ao homem pelo facto de possuir um livre arbítrio
claudicante, poderá objectar-se que sem um verdadeiro e total livre arbítrio
a justiça divina não poderia exercer-se. Uma vez que a jus-

45

tiça consiste em dar a cada um o que é seu, e da parte de Deus em reconhecer


a cada homem o mérito de haver obedecido aos seus preceitos. Mas que
significado poderiam ter esses preceitos para um homem que apenas pudesse
fazer o bem? Deus teve portanto, que dar ao homem um livre arbítrio pelo qual
ele pudesse pecar ou não pecar. Só um livre arbítrio assim criado torna o
homem capaz de usufruir livremente a ajuda que lhe oferece a graça divina
(Ibid., 5, 9).

A liberdade do homem consiste portanto na possibilidade de pecar ou não


pecar, uma vez que só essa possibilidade torna o homem susceptível de ser
premiado ou castigado segundo um juízo. E como só a vontade dotada de livre
arbítrio é responsável pelo pecado, só a vontade pode ser castigada por
Deus. Também os juízes humanos, se não são impelidos pela sede de
vingança, têm em vista a correcção dos réus e castigam não a sua natureza,
mas apenas os seus delitos. Do mesmo modo, a punição divina do pecado dirige-
se apenas à vontade que cometeu o pecado, mas deixa íntegra e salva a
natureza do pecador, que permanece capaz de regressar a Deus, no triunfo
final (V, 31). Para este triunfo o homem é ajudado tanto pela sua natureza
como pela graça divina. O homem deve à própria natureza o haver sido retirado
do nada e existir; à graça deve a sua deificatio pela qual regressa à
substância divina. A natureza é dada, a graça é um dom gratuito, concebido
pela divina bondade sem que tenha havido mérito por parte do homem.

§ 186. JOÃO ESCOTO: A LóGICA

De acordo com a orientação platonizante do sistema, a lógica de Escoto


Erígena é realista: pressupõe a realidade objectiva de todas as deter-

46

minações lógicas universais, de todos os conceitos de género e espécie. Está


no espírito de uma lógica que quanto mais um conceito é universal, tanto
maior é a sua realidade objectiva; assim os conceitos dos géneros supremos
são mais reais que os dos géneros menos extensos; e os conceitos de género
são mais reais que os conceitos de espécie, nos quais todo o género se
subdivide; enfim, as espécies especialíssimas, isto é, os indivíduos, têm uma
-realidade menor que as espécies superiores ou mais extensas. Comentando uma
passagem bíblica, Escoto afirma que Deus criou primeiro o género, porque nele
se contêm e estão reunidas todas as espécies; o género divide-se em seguida e
multiplica-se nas formas gerais e nas espécies especialíssimas. Daqui pode
tirar-se uma conclusão fundamental sobre o valor objectivo da dialéctica: "A
arte que divide os géneros em espécies e resolve as espécies e os géneros, a
chamada dialéctica, não foi criada através das investigações humanas, mas
baseia-se na própria natureza e foi criada pelo Autor de todas as artes que
são verdadeiramente artes, descoberta pelos sábios e empregada para proveito
de toda a classe de investigações sobre as coisas." (IV, 4". E assim a tábua
lógica dos conceitos dispostos segundo a ordem da sua universalidade,
identifica-se, segundo Escoto, com a ordem metafísica das determinações do
ser.

A mais universal determinação lógica, e por conseguinte, a mais real


determinação objectiva, é a essência (ousia), que é incorpórea, simples e
indivisível. A essência existe nos géneros e nas espécies, mas não se divide
neles, permanecendo não-multiplicada, mesmo que se multiplique nos géneros,
nas espécies e nos indivíduos (1, 34). "A essência subsiste toda reunida,
está eterna e imutavelmente nas suas subdivisões, e todas as suas subdivisões
constituem simultaneamente e sempre, nela, uma

47

unidade inseparável" (1, 49). Por isso, a essência de todas as coisas é na


realidade uma só, é o próprio Deus (1, 1). É incognoscível, e incompreensível
como o próprio Deus; o que se percebe com os sentidos ou se compreende com o
intelecto em toda a criatura, é apenas algum acidente da essência
incompreensível (1, 3).

A lógica de Escoto, que nasceu dois séculos antes de a discussão sobre os


universais se transformar no problema fundamental da dialéctica, apresenta
antecipadamente a solução tipicamente realista do problema e é a fonte de
todas as soluções do mesmo tipo que foram adoptadas depois. Representa também
o papel de um termo de comparação polémico para as escolas anti-,realistas.

NOTA BIBLIOGRÁFICA

§ 177. As obras de João Escoto e as suas traduções do Pseudo-Dionísio e dos


Ambígua de Mássimo o Confesor, in P. L. 122.1; De divisione naturae, ed.
Schlüter, Munique, 1938; Commentarius ad Opuscula Boethii, ed. Rand, Mónaco,
1906;Autographa, ed. Rand, Mónaco, 1912.

§ 178. J. Huber, Johannes Scotus Erigena, 1861, ed. fot., 1960; Bett, J. S.
E., Cambridge, 1925; Cappuyns, J. S. E., Paris-Louvaina, 1933, com bibl.; Dal
Pra, S. E., Milão, 1951 com bibliografia.

§ 181. Gregory, Sulla metafisica di G. S. E., in "Giorh. Crit. della Fil.


Ital.", 1957; Mediazione e incarnazione, n~ filosofia dell'E.> Ib., 1960.

48

III

DIALÉCTICOS E ANTIDIALÉCTICOS

§ 187. GERBERTO

As condições políticas do século X, sobretudo a dissolução do império


carolíngio, detiveram quase por completo a recuperação intelectual do
Ocidente. Restabelecida a unidade do império com Otão o Grande, o movimento
da cultura tornou a prosseguir.

Neste período aparece uma grande figura de erudito e de mestre, Gerberto, que
se formou na escola de Aurillac. A partir de 972 foi professor na escola de
Reims; em 982 foi designado abade de Bobbio, em 991, arcebispo de Reims; em
998, arcebispo de Ravena; em 999, papa, com o nome de Silvestre 11. Morreu no
ano de 1003. Gerberto ocupou-se de todas as ciências mas sobretudo destacou-
se no estudo da mecânica e das matemáticas. Atribui-se-lhe a invenção de um
relógio e de uma espécie de sirene a vapor de água. Para explicar a sua vasta
erudição, um antigo cronista, Vicente de Beauvais (Speculum historiale, XXIV,
98) conta que Gerberto tinha feito uma larga estadia em Espanha,

49

país de nigromantes. Aí, conseguiu seduzir a filha de um desses doutores


diabólicos e roubar-lhe, em seguida, os livros. O mago, advertido pelas
constelações celestes, dispôs-se a perseguir o ladrão; este, no entanto,
aproveitando-se das indicações dos mesmos astros, conseguiu furtar-se à
perseguição que aquele lhe movera, escondendo-se durante uma noite debaixo do
arco de uma ponte destruída. O diabo em pessoa foi buscá-lo depois e levou-o
sobre o mar para que um dia algum dos seus adeptos pudesse ocupar a cátedra
do príncipe dos apóstolos. Provavelmente, esta lenda fabulosa oculta a
realidade de uma viagem de Gerberto a Espanha e da procedência árabe de boa
parte da sua cultura.

Gerberto escreveu comentários à Isagoge de Porfírio, às Categorias e ao livro


De interpretatione, de Aristóteles, e aos Comentários lógicos de Boécio.
O seu escrito, De rationali et ratione uti, uma questão que disputou em
Ravena com Otrício, na presença de Otão II, propõe-se investigar o
significado da expressão "empregar a razão". A questão apresenta-se, à
primeira vista, com carácter lógico-gramatical; mas a solução de Gerberto
eleva-a. a um plano metafísico. É regra fundamental da lógica aristotélica
que o predicado seja mais universal que o sujeito: por exemplo, na proposição
"Sócrates é mortal", o predicado mortal é mais universal que o sujeito,
porque pode referir-se a muitos outros seres além de Sócrates. Mas na
expressão que se encontra em Santo Agostinho (De ord., 11, 12, 35):
Rationale, id est quod ratione utitur, o predicado "ratione utitur" é mais
restrito que o sujeito "rationale", porque nem sempre quem é racional se
serve efectivamente da razão. Esta é a dificuldade que dá origem à discussão.
Para resolvê-la, Gerberto distingue as substâncias necessárias e eternas das
mutáveis e caducas. As primeiras são suprasensíveis, cognoscíveis apenas pela
razão e sempre em acto.

50

As outras são sensíveis e naturais, sujeitas a mudança e, por conseguinte, à


geração e à corrupção. Ora, uma vez que todas as substâncias da primeira
classe estão sempre em acto, o ser -racional e o servir-se da razão são nelas
completamente coincidentes; porque são racionais precisamente no sentido de
que a sua razão está sempre em acto, ou seja, que sempre se servem dela. A
situação é diversa quando se trata de substância da segunda classe. Na alma,
que está unida ao corpo, a racionalidade não está em acto, mas em potência, e
passa da potência ao acto precisamente quando se diz que a alma "se serve da
razão". Daqui se conclui que, para a alma, o servir-se da razão não é um
predicado necessário, como para as substâncias supra-sensíveis, que são razão
em acto, mas um atributo acidental que pode acontecer ou não à racionalidade
potencial da pró pria alma. Deste modo, Cerberto, empregava os conceitos
aristotélicos de potência e acto, para chegar a uma distinção entre
substâncias racionais puras e substâncias racionais sensíveis, que é de
grande interesse para o posterior desenvolvimento da metafísica escolástica.
§ 188. DIALÉCTICOS E ANTIDIALÉCTICOS

A segunda metade do século XI e o século XII são, no Ocidente, um período de


florescimento intelectual. A cultura deixa de ser património das abadias e o
ensino tende a organizar-se na forma que há-de possuir no século XIII com as
universidades. Este período representa a primeira verdadeira idade da
escolástica que alcança a consciência do seu problema fundamental: o de
compreender e justificar as crenças da fé. Alguns julgam encontrar a solução
do problema entregando-o à razão e à ciência que parece ser mais própria
dele, a dia-

51

Jéctica; outros desconfiam da dialéctica. e apelam para a autoridade dos


santos e dos profetas, limitando a sua tarefa de investigação filosófica à
defesa das doutrinas reveladas. Daqui nasce a polémica entre dialécticos e
teólogos e que ocupa o século XI. Na realidade, mesmo os mais hostis à
dialéctica, mesmo os mais acérrimos defensores da superioridade da fé, não
abandonam a investigação, propriamente escolástica, do melhor caminho para
levar o homem à inteligência das verdades reveladas.

Entre os dialécticos sobressai a figura de Berengário de Tours. Formou-se no


convento de Saint-Martin, em seguida frequentou a escola de Chartres,
dirigida por Fulberto, de quem foi discípulo. Desdenhando as outras artes
liberais, dedicou-se à dialéctica e em breve se divertia ao recolher nos

escritos dos filósofos argumentos contra a fé dos simples. Conta-se que


Fulberto, no leito de morte, disse que Berengário era um diabo enviado pelos
abismos para corromper e seduzir os povos. O seu êxito como professor foi,
todavia, enorme. No ano de 1040 chegou a arquidiácono de Angers. Morreu em
1088. Berengário põe a razão acima da autoridade e exalta a dialéctica,
sobrepondo-a a todas as ciências. Baseando-se em Santo Agostinho, considera a
dialéctica como a arte das artes, a ciência das ciências. Recorrer à
dialéctica significa recorrer à razão. E quem não recorre à razão pela qual o
homem é a imagem de Deus, abandona a sua dignidade e não renova em si, no dia
a dia, a imagem divina (De sacra coena, edic. Vischer, p. 100). A mais famosa
das polémicas de Berengário é a que se refere à Eucaristia, que sustentou
contra Lanfranco, e à qual está dedicado o seu escrito De sacra coena
adversus Lanfrancum. Berengário sustenta o

princípio aristotélico de que os acidentes ou qualidades de uma coisa não


podem subsistir sem a substância dessa mesma coisa. Deste modo, no sacra-

52
mento da Eucaristia os acidentes do pão e do vinho mantêm-se: a substância
não pode, por conseguinte, ter sido destruída, e o pão e o vinho devem
permanecer como tais, mesmo depois da consagração. Esta vem acrescentar à
substância do pão e do vinho um corpo inteligível que é o corpo de Cristo.
Tal doutrina impugnava a definição dogmática. da Eucaristia, que afirma a
transformação da substância do pão e do vinho no corpo e no sangue de Cristo;
e suscitou violentas polémicas. A doutrina de Berengário foi condenada pela
Igreja.

O mais notável adversário de Berengário foi Lanfranco de Pavia, nascido no


ano de 1010, aluno da escola de Bolonha, já então florescente. Lanfranco,
dotado de um espírito aventureiro e entusiasta, percorreu a Borgonha e a
França e fixou-se na Normandia. Aqui fez-se monge na abadia de Bec, que
através dele se tornou famosa. Em 1070 foi nomeado arcebispo de Cantuária;
morreu em 1089. Lanfranco é um adversário da dialéctica que é, segundo pensa,
completamente incapaz de levar o homem a compreender os mistérios divinos.
Declara energicamente que prefere ouvir discutir sobre os mistérios da fé com
autoridades sagradas de que com razões dialécticas. (De corp. et sang.
Domitú, 7). "Quem vive da fé, afirma, não procura analizá-la com a
argumentação nem concebê-la com a razão; prefere prestar fé aos mistérios
celestes em vez de se cansar em vão, pondo de lado a fé, para compreender o
que não pode ser compreendido" (ibid.
17). Mas, não obstante estas afirmações, Lanfranco não deixou de ser um
dialéctico. Se a dialéctica, abandonada a si própria, falha no campo dos
mistérios da fé, guiada e sustentada pela fé, pode prestar úteis serviços
àquela. Com este espírito comentou as cartas de São Paulo, como nos dá
testemunhos Sigiberto de Gemblou (De sctipt. eccles., c. 155; em Patr. Lat.,
160, 582 c): "Lanfranco, dia-

53

léctico e arcebispo de Cantuária, expôs as cartas do apóstolo São Paulo: e


sempre que teve oportunidade, apresentou as suas teses, os seus argumentos e
as suas conclusões segundo as regras da dialéctica". Pode dizer-se que na
relação entre a razão e a fé, Lanfranco escolheu a mesma posição que depois
foi assumida pelo seu grande discípulo, Anselmo de Aosta.

Contra os dialécticos polemizou Pedro Damiano, nascido em 1007 em Ravena. Em


1035 retirou-se para viver como ermitão em Fonte Avellana, e dali foi
chamado, no ano de 1057, para ser consagrado cardeal-bispo de Aosta. Morreu
em Faenza em 1072. A maior parte da obra de Pedro Damiano é dedicada à ascese
monástica e a questões eclesiásticas. A sua posição perante a dialéctica e as
ciências mundanas está expressa na obra que compôs em 1067, De divina
omnipotentia. "Muitas vezes, afirmou, a virtude divina destrói os silogismos
armados pelos dialécticos e as suas subtilezas e confunde os argumentos que
foram considerados Inevitáveis e necessários pelos filósofos" (De div.
omnip., 10). A dialéctica e, em geral, toda a arte ou perícia humana não deve
chamar a si arrogantemente o trabalho principal e pelo contrário deve servir
velut ancilla dominae quodam famulatus obsequio (ibid. 5).

A tese típica de Pedro Damiano é a da superioridade da omnipotência divina


nos confrontos da natureza e da história. Uma vez que as leis são atribuídas
à natureza por Deus, as coisas naturais obedecem às suas leis até que Deus o
queira; mas, quando Deus não quer, esquecem a sua natureza e obedecem a Ele.
A omnipotência divina não encontra nenhum limite, nem mesmo no passado: pois
Deus pode fazer com que as coisas que aconteceram não tenham acontecido:
portanto o pode (no tempo presente) refere-se à vontade de Deus que é eterna
e está fora do tempo; e nós devemos antes dizer que podia

54

não fazê-las acontecer. A muitos dos próprios Escolásticos considerações


semelhantes parecerão implicar a tese da superioridade da omnipotência divina
em relação ao próprio princípio da contradição: aquela tese pode, com efeito,
exprimir-se com a afirmação de que Deus pode fazer com que não tenham
acontecido as coisas que aconteceram. De qualquer modo, Pedro Damiano servia-
se da tese da omnipotência divina para retirar validade autónoma ao mundo da
natureza e do homem; e mesmo no campo político (como testemunham as
considerações desenvolvidas na sua Disceptatio Sinodalis) a sua preocupação
dominante é a de retirar ao Imperador toda a dignidade de potência autónoma e
de considerá-lo como um simples delegado do Papa.

NOTA BIBLIOGRÁFICA

§ 187. As obras de Gerberto, em Patrist. Lat., vol. 139, 57-338; outra edição
de Olleris, Paris, 1867. Epistolae, ed. Havet, Paris, 1889; Opera
mathematica, ed. Bubnov, Berlim, 1899.-PICAVET, Gerbert ou le pape
philosophe, Paris, 1897; LEFLON, Gerbert, P=3,
1946.

§ 188. As obras de Berengãrio in P. L., 150.1; De sacra coena, ed. Vischer,


Berlim, 1834; ed. Beekenkamp, L'Aya, 1941.-A. J. MACDONALD, Berengar and the
Reform of Sacramental Doctrine, Londres, 1930.

As obras de Lanfranco in P. L., 150.'.-MACDONALD, Lanfrane, Oxford, 1926.

As obras de Pedro Damiano in P. L., 144.o-145.o; De divina omnipotentia e


outros opusculos, ao cuidado de Brezzi e Nardi, com trad. ital., Florença,
1943. -ENDREs, nei "Beitrãge", VLU, 3, 1910; J. GONSETTE, P. D. et Ia culture
profane, Lovaina, 1956.

55

IV

ANSELMO DE AOSTA

§ 189. ANSELMO: A FIGURA HISTÓRICA

Anselmo de Aosta representa a primeira grande afirmação da investigação na


Idade Média. Mas a sua investigação tem mais um valor religioso e
transcendente do que humano. Com acentos agustinianos, abandona a Deus a
iniciativa e a orientação das suas pesquisas; e no esforço de aproximar-se da
verdade revelada não vê mais que a progressiva acção iluminadora da própria
verdade. "Ensina-me a procurar-te, diz (Pros., 1), e mostra-te a mim que te
procuro. Eu não posso procurar-te, se Tu não me ensinas, nem encontrar-te se
Tu não te mostras. Que eu te procure desejando-te, que eu te deseje
procurando-te, que te encontre amando-te e que te ame procurando-te.
Reconheço-te, Senhor, e dou-te graças por teres criado em mim esta tua imagem
para que me lembre de Ti, pense em Ti e te ame; mas esta imagem está tão
gasta pela miséria dos vícios, tão ofuscada pela acumulação dos pecados, que
não pode fazer aquilo para que foi feita se Tu não a renovares e a não
reconstituíres. Não pretendo,

57

Senhor, penetrar na tua altíssima dignidade, porque não posso, de facto,


comparar a ela o meu entendimento, mas desejo entender de alguma maneira a
tua vontade que o meu coração crê e ama. Também não procuro entender para
crer mas creio para entender. E também creio nisto: que senão acreditar
primeiro, também não poderei compreendem. A -prioridade da fé sobre a
compreensão exprime claramente o carácter religioso da investigação de
Anselmo, tal como a prioridade da compreensão sobre a fé exprimirá o carácter
filosófico da investigação de Abelardo.

Esta religiosidade encontra a sua melhor expressão no ponto culminante da


investigação de Santo Anselmo, a prova ontológica da existência de Deus. Como
o próprio Anselmo reconhece, na sua resposta a Gaunilon, o pressuposto da -
prova é a fé. Só a fé transforma em afirmação indubitável a possibilidade de
pensar o ser maior de todos. Se se pode pensar este ser, deve-se pensá-lo
como existente; mas não se pode pensá-lo verdadeiramente apenas com a fé. A
prova ontológica é a própria fé que esclarece o seu princípio e se converte
em certeza intelectual.

§ 190. ANSELMO: VIDA E OBRA

Anselmo nasceu em 1033 em Aosta, no Piemonte. Entrou para o mosteiro de Bec,


na Normandia, foi prior em 1063 e abade em 1078. A maior parte das suas obras
são o resultado das discussões que dirigia no mosteiro. De 1093 até
1109, ano da sua morte, foi arcebispo de Cantuár@a.

O seu secretário, Eadmer, dá-nos uma pormenorizada descrição da sua vida. De


natureza dócil e contemplativa, Anselmo foi impelido para a vida do claustro
por necessidade de recolhimento e de

58

meditação. A sua fama de santo atribuiu-lhe bem cedo poderes sobrenaturais.


Curou e levou à penitência um velho monge, de quem previu a morte, que se
verificou na altura e da forma que havia predito. Apagou um incêndio numa
casa vizinha do mosteiro fazencio o sinal da cruz sobre as chamas. E uma vez
que estava na sua cela meditando sobre o dom da profecia viu através, das
paredes, os frades que preparavam na igreja o ofício da meia-noite. Afastado
contra a sua vontade da vida contemplativa, teve que ocupar-se de negócios e
política, primeiro como abade de Bec e depois como arcebispo de Cantuária. Na
qualidade de arcebispo viu-se envolvido na vida agitada da Igreja inglesa nos
tempos de Guilherme o Vermelho que pretendia subordinar à sua vontade o cloro
inglês e subtrair-se à vontade papal. Anselmo dirigiu-se a Roma para buscar
apoio e conforto junto de Urbano 11. Regressado a Inglaterra teve novos
desentendimentos com Henrique 1, que queria conservar o direito de
investidura dos bispos com o anel e a cruz. Conseguiu um compromisso pelo
qual o rei renunciava a conferir a investidura e os bispos rendiam-lhe
homenagem (1106). Alguns anos depois, Anselmo, que nunca abandonara as suas
meditações, morria, quando procurava concluir as suas investigações sobro a
origem da alma.

Entre os anos 1070 e 1078 Anselmo compôs o Monologion, cujo primeiro capítulo
era Exemplum meditandi de ratione fidei; em seguida o Proslogion, que
primeiramente se intitulava Fides quarens intellectum e o apêndice polémico
Liber apologeticus contra Gaunilonem; em continuação, compôs quatro diálogos,
De veritate, De libero arbítrio De casu diabuli, De gramatico. Nos últimos
anos da sua vida escreveu o Cur Deus homo e o seu apêndice De conceptu
virginali. Outras obras suas: De fide

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TritWatis, De concordia praescientiae et praedestinationis, Meditationes, e,
além disso, homilias, discursos e cartas.

§ 191. ANSELMO: FÉ E RAZÃO

A frase que exprime a posição de Anselmo, sobre o problema escolástico é a


seguinte: Credo ut inielligum (Pros., 1). A fé é o ponto de partida da
investigação filosófica. Nada se pode compreender se não se tem fé; mas a fé
por si só não basta, é preciso confirmá-la e demonstrá-la. Esta confirmação é
possível. "0 que nós cremos pela fé sobre
* natureza divina e as pessoas da mesma, excepto
* encamação, pode ser demonstrado com razões necessárias, sem se recorrer à
autoridade das Escrituras" (De fide Trin., 4). E, uma vez que isso é
possível, passa a ser um dever: "É negligência não intentar compreender o que
se crê, depois de havermos sido confirmados pela fé" (Cur Deus homo,
12). A própria encarnação é apresentada por Anselmo, na obra que dedicou a
este tema, como uma verdade que a razão pode alcançar por si própria; não
existe dúvida, com efeito, de que os

homens não teriam podido salvar-se, se o próprio Deus não tivesse


encarnado e não tivesse morrido por eles (ibid. prol.). Deste modo, Anselmo
considera o acordo entre a fé e a razão intrínseca e essencial. Certamente
que, se uma contradição se produzisse, não seria necessário admitir a verdade
do raciocínio, mesmo quando este parecesse irrefutável (De concordia
praescientiae, 6); mas Anselmo está intimamente seguro de que não pode haver
uma

verdadeira contradição, porque a inteligência está iluminada pela luz divina,


exactamente como a fé.
O que não implica, por outro lado, que a verdade se encontre inteiramente ao
alcance do homem. "Seja o que for que o homem possa dizer sobre o saber,

60

afirma Anselmo, as razões supremas, os mistérios da fé, -permanecem sempre


escondidos" (Cur Deus homo, 1, 2). O que investiga uma realidade
incompreensível, como é a Trindade, deve bastar-lhe alcançar com a
inteligência o conhecimento de que isso exista, ainda que não compreenda de
que modo exista. (Mon., 64). Anselmo afirmou desta forma, em limites
extensos, o valor da investigação.

Distingue a verdade do conhecimento, a verdade do querer e a verdade da


coisa. A verdade do conhecimento consiste na conformidade do conhecimento com
a coisa e consegue-se quando se conhece a coisa tal como é. Esta verdade
define-a Anselmo como rectitudo cognitionis. A verdade da vontade é,
analogamente, rectitudo voluntatis. Agir segundo a verdade, significa fazer o
bem, fazer o que se deve fazer. Mas também aqui o critério é objectivo; a
medida está no objecto, isto é, na coisa. O fundamento de toda a verdade é a
verdade da coisa, a rectitudo rei. Mas esta verdade, por sua vez, está
fundada na verdade eterna, que é Deus: as coisas são verdadeiramente aquelas
que estão na mente de Deus, na qual subsistem as suas ideias ou exemplares. O
próprio Deus é, portanto, a absoluta verdade, que é norma e condição de
qualquer outra verdade (De verit., 2-10). Anselmo segue aqui os passos da
especulação de Santo Agostinho na sua De vera religione. No âmbito do
pensamento platónico-agustiniano movem-se também as suas investigações sobre
a existência de Deus.

§ 192. ANSELMO: A EXISTÊNCIA DE DEUS

O Monologion é um conjunto de reflexões sobre a essência divina que conduzem


a uma demonstração da existência de Deus. Anselmo parte do pressuposto de que
o bem, a verdade, e em geral

61

todo o universal, subsiste independentemente das coisas particulares e não


apenas nelas. Há muitas coisas boas, quer sejam meios, isto é, por utilidade,
quer sejam fins, isto é, pela sua bondade ou beleza intrínseca. Mas todas são
mais ou menos boas e não de forma absoluta; pressupõem, portanto, um bem
absoluto, que seja a sua medida e do qual obtenham o grau de bondade ou
verdade que possuem. Este sumo bem é Deus. Da mesma maneira, tudo o que é
perfeito e, em geral, tudo o que existe, existe por participação de um Ser
único e sumo. O sumo bem, o sumo ser, o sumo grau, tudo o que no mundo tem
verdade e valor, coincidem em Deus.

O Monologion desenvolve uma argumentação cosmológica que vai do particular ao


universal e do universal a Deus. O Proslogion desenvolve, pelo contrário, uma
argumentação ontológica que começa no simples conceito de Deus para chegar à
demonstração da sua existência. Está dirigido contra a negação pura e simples
da existência de Deus, contra o néscio do Salmo XIII "que disse em seu
coração: Deus não existe". Evidentemente, mesmo o que nega a existência de
Deus deve pensar no conceito de Deus, pois é impossível negar a realidade de
algo que nem sequer se pensa; a prova que vai do conceito à realidade é,
portanto, a que não pode ser negada de modo nenhum. Portanto o conceito de
Deus é o de um Ser maior de que não se pode pensar nada maior (quo maius
cogitari nequit). Mesmo o néscio deve admitir que o Ser, a respeito do qual
nada maior pode ser pensado. existe no intelecto, mesmo que não exista na
realidade. Com efeito, uma coisa é existir na nossa inteligência, e outra
coisa existir na realidade; a imagem que o pintor quer pintar não existe
ainda na realidade, mas existe certamente no seu pensamento. Posto isto,
aprova de Anselmo é a seguinte:

62

"Certamente, aquilo de que não se pode pensar nada maior, não pode existir
apenas no intelecto. Porque se existisse apenas no intelecto, poder-se-ia
pensar que existe também na real-idade e que, portanto, era maior. Assim, se
aquilo em relação ao qual nada maior se pode pensar existe apenas no
intelecto, aquilo em relação ao qual nada maior se pode pensar é, por sua
vez, aquilo de que se pode pensar algo de maior. Mas isto é, certamente,
impossível. Portanto, não há dúvida de que aquilo do qual nada maior se pode
pensar existe tanto no intelecto como na realidade. "(Prosl., 2). O argumento
baseia-se em dois pontos: 1.o que o que existe na realidade é "maior", ou
mais perfeito do que o que existe apenas no intelecto; 2.o que negar que
existe realmente aquilo em relação ao qual nada maior pode pensar-se,
significa contradizer-se, porque significa admitir que se pode pensá-lo
maior, isto é, existente na realidade. À objecção de que então não se vê como
é possível pensar que Deus não existe, Anselmo responde que a palavra
pensar tem dois significados: pode pensar-se a palavra que indica a coisa e
pode pensar-se a própria coisa. No primeiro sentido pode pensar-se que
Deus não existe, como, por exemplo, se pode pensar que o fogo é água; no
segundo sentido, não se pode pensar que Deus não existe (Prosl., 4).

Ao argumento ontológico, o monge Gaunilone, do mosteiro Mar-Montier, no seu


Liber pro insipiente, opôs que, em primeiro lugar todo aquele que
decididamente nega a existência de Deus começaria por negar que tivesse o Seu
conceito (que é o ponto de partida do argumento ontológico); e, em segundo
lugar, mesmo admitindo que se tenha o conceito de Deus como o de um ser
perfeitíssimo, deste conceito não pode deduzir-se a existência de Deus, da
mesma maneira que não pode deduzir-se

63

a realidade de uma ilha perfeitíssima a partir do conceito de tal ilha.

Anselmo replicou com o Uber apologeticus. É impossível negar que se pode,


pensar em Deus: para demonstrax esta impossibilidade basta a mesma fé de que
tanto Anselmo como Gaunilonern estão dotados; e se se pode pensar em Deus,
deve-se reconhecê-lo como existente, sendo impossível negar a existência
àquilo que se pode pensar como a maior de todas as coisas. De uma ilha
fantástica, ainda que se a conceba perfeita, não se pode dizer que ;seja
aquilo em relação ao qual nada mais perfeito pode pensar-se. Da possibilidade
de pensá-la não se segue da simples possibilidade de pensar em Deus como o
ser mais perfeito de todos.

O argumento ontológico foi uma vez defendido e outras criticado durante a


Escolástica e estas alternativas mantiveram-se no pensamento moderno. Na
realidade, o argumento não é uma prova mas um princípio. Não é uma prova,
porque a existência que se pretende deduzir está já implicitamente contida na
definição de Deus como o ser em relação ao qual nada maior se pode pensar e,
por isso, no simples pensamento de Deus: como prova é um círculo vicioso.
Como princípio, exprime a identidade de possibilidade e realidade no conceito
de Deus. Se se pode pensar Deus, deve-se pensá-lo como existente: o
pensamento de Deus é o próprio pensamento desta identidade da possibilidade e
da existência, identidade que, como Anselmo afirma no Liber apologeticus, é
realizada pela fé. A fé consiste precisamente em admitir, como
necessariamente real, a perfeição possível: o argumento ontológico, que deduz
dessa perfeição aquela existência não é, por conseguinte, outra coisa senão a

explicação da fé na sua expressão racional ou no seu princípio lógico. Trata-


se uma vez mais das fides quarens intellectum, do credo ut intellígam: do

64

processo através do qual o acto de fé se converte em acto de razão e a


iluminação divina em investigação filosófica.

§ 193. ANSELMO: A ESSêNCIA DE DEUS

Das próprias provas que demonstram a existência de Deus, resulta que só Deus
é o ser perfeito e absoluto e que as outras coisas quase não são ou apenas
são (fere non esse et vix esse, Mon., 28). Sujeito ao devir e ao tempo, o ser
das coisas finitas começa e acaba continuamente e continuamente muda; é por
isso um ser aproximativo e apenas tal, não podendo ser comparado com o ser
imutável de Deus. Ao qual Santo Anselmo reconhece aquela necessidade, cujo
conceito ia sendo elaborado pela escolástica árabe, a partir de Avicenas. A
natureza de Deus é tal que não pode proceder nem de si nem de outro; nem dá a
si própria uma matéria da qual possa ser retirada, nem outro pode dar-lhe tal
matéria (Mon., 6). É, portanto, originária e necessária.

Por conseguinte, as propriedades que se afirmam da natureza divina devem ser


predicados dela quidditativamente e não qualitativamente: isto é, como partes
ou aspectos integrantes da essência divina, mas de forma alguma diversas
desta essência. Deus não pode ser justo ou sábio, se o não for em si e por
si; não é, certamente, pela participação de uma justiça ou sabedoria
distintas d'Ele. O melhor portanto, é dizer não que Deus é justo, mas que é *
justiça; não que tem vida, mas que é a vida; * analogamente que é a verdade,
o bem, a grandeza, a felicidade, a eternidade, o poder, a imutabilidade, a
unidade e, em geral, todas as qualidades

65

que implicam excelência e perfeição em quem as possui (Mon., 15-16).

Por outro lado, todas estas qualidades não podem subsistir na essência divina
como uma multiplicidade numérica. A natureza divina exclui toda a composição
e não pode constar de partes ou de aspectos diversos. As qualidades diversas
que se lhe atribuem, enquanto idênticas a ela, são idênticas entre si; e
assim a justiça ou a sabedoria e qualquer outra qualidade é a própria
essência divina e, quem afirma uma delas afirma também esta (Mon., 17). Disto
se conclui que a essência divina não é substância, no sentido de substracto
ou esteio de qualidades ou acidentes. É substância no sentido de que subsiste
por si e em si; mas neste sentido não pode ser compreendida sob a categoria
universal de substância, uma vez que está fora de todo e qualquer conceito
genérico. A única determinação que se pode atribuir à essência divina como
substância é a espiritualidade; o ser espiritual é, com efeito, mais
excelente que o ser corpóreo e

por isso o único que é próprio de Deus (Mon., 27).

Uma tal substância está absolutamente para além das variações temporais. Na
vida divina, não existe sucessão, tudo está presente num único acto
indivisível. Está completa de uma vez para sempre na sua totalidade o não
pode ter aumento ou

diminuição (ibid., 24). A sua imutabilidade exclui, em suma, que nela existam
caracteres acidentais, que, como tais, implicariam mutabilidade. Em Deus
podem subsistir tais caracteres, mas não analogamente ao que, por exemplo, é
a cor do corpo, mas apenas como relações determinadas, puramente exteriores,
como quando se diz que é maior que todas as outras naturezas. Só nestes
limites, a categoria de acidente não contradiz a natureza divina (Ibid., 25).

66

§ 194. ANSELMO: A CRIAÇÃO

Uma vez que Deus é o ser e as coisas existem apenas pela participação do ser,
toda a coisa tem o seu ser através de Deus. Tal derivação é uma criação do
nada. E de facto, as coisas criadas não podem proceder de uma matéria. Esta,
por sua vez, deveria derivar de si própria, o que é impossível, ou da
natureza divina. Neste caso, a natureza divina seria a matéria das coisas
mutáveis e estaria sujeita às mudanças e à corrupção daquelas. Ela, que é o
Sumo Bem, estaria submetida à mutabilidade e à corrupção; mas o Sumo Bem não
pode deixar de o ser. A matéria das coisas criadas não pode ser nem por si
nem de Deus; não há, portanto, matéria das coisas criadas. Só resta então
admitir que foram criadas do nada (ibid., 7).

Contra a interpretação (que se encontra, por exemplo em Erígena) de que o


"nada" do qual as coisas procedem é algo positivo, por exemplo, uma causa
material ou uma realidade potencial, Anselmo tem o cuidado de acrescentar que
isso não é nem uma matéria nem outra coisa real; e que a expressão criação do
nada significa apenas que o mundo primeiramente não existia mas existe agora.
A expressão "criação do nada" é idêntica à que se emprega dizendo que "se fez
do nada" um homem que agora é rico e poderoso e que dantes não era. Significa
o salto do nada para qualquer coisa (ibid., 8). Todavia, o mundo foi
racionalmente criado e nada pode ser produzido de tal modo sem se supor na
frazão de quem produz um exemplar da coisa a produzir, isto é, uma forma,
similitude ou regra dela. Deve existir, na mente divina, o modelo da ideia da
coisa produzida, como na mente do artista humano existe o conceito da obra
que vai realizar: com a diferença de que o artista tem

67

necessidade de uma matéria exterior para realizar a sua obra e Deus não, e de
que o primeiro deve obter das coisas externas o próprio conceito da obra,
enquanto Deus cria por si próprio a ideia exemplar (ibid., 11). Num e noutro
caso, não obstante, a ideia da obra é uma espécie de palavra interior; Deus
manifesta-se nas ideias, como o artista através do seu conceito, mas a
expressão não é uma palavra exterior, uma voz; é a própria coisa, à qual se
dirige o engenho da mente criadora (ibid., 10).

A criação do nada é precisamente esta articulação interior da palavra divina.


Sem a actividade criadora de Deus, nada existe e nada dura; Deus não só dá o
ser às coisas, como também as conserva e faz durar continuando a sua acção
criadora. A criação é contínua (ibid., 13). Daqui se segue que Deus está e
deve estar por todas as partes; onde Ele não está, nada existe e nada está de
pé. Isto não quer dizer, certamente, que Ele esteja condicionado pelo espaço
e pelo tempo. N'Ele não existe nem o alto nem o baixo, nem o antes nem o
depois: Ele está em todas as coisas existentes e em cada uma delas vive uma
vida interminável, que é toda ao mesmo tempo (totum simul) presente e
perfeita (lbid., 14,22-24).

§ 195. ANSELMO: A TRINDADE


A palavra interior de Deus não é o som de uma voz, mas essência criadora.
Este é o ponto de partida da especulação trinitária de Santo Anselmo. Aquela
palavra interior é a divina sabedoria, o Verbo de Deus: por isso tudo foi
dito e tudo foi feito. O Verbo, por um lado, é idêntico com a essência de
Deus; por outro, idêntico com a essência da criatura. É idêntico com a
essência de Deus, porque não é criatura, mas princípio da criatura, e porque
está em Deus, no qual não subsiste nem

68

diversidade nem multiplicidade. Por outro lado, é a própria essência das


coisas criadas: pois de que seria Verbo se não fosse Verbo das mesmas? Todo o
verbo é verbo de alguma coisa. É necessário portanto entender que não
existiria o Verbo se não existissem as criaturas? A coisa é
inconcebível, porque o Verbo é necessário e eterno como o próprio Deus. Mas,
por outro lado, se as criaturas não existissem, como poderia ser verbo
do que não existe? A solução é de que o Verbo é, em primeiro lugar, a
inteligência que Deus tem de si mesmo. Assim, tal como a mente humana tem
conhecimento e compreensão de si própria, o mesmo acontece com Deus: o Verbo
é, portanto, coeterno com Deus porque é a eterna inteligência que Deus tem de
si. Mas, ao mesmo tempo, é também Verbo das coisas criadas. "Com um só e
mesmo Verbo o Sumo Espírito fala de si próprio e de todas as coisas criadas"
(Ibid., 33). Se tais coisas em si mesmas são mutáveis, são todavia imutáveis
na sua essência e no seu fundamento, que está no Verbo divino; e existem
tanto mais verdadeiramente quanto mais semelhantes são a tal fundamento
(Ibid., 34). Por seu lado, o Verbo, mesmo na sua identidade com o Sumo
Espírito, distingue-se dele: são dois, apesar de não ser possível exprimir a
forma como o são. São distintos pela recíproca relação, porquanto um é o Pai
e outro o Filho; e são, por sua vez, idênticos na substância, porquanto no
Pai há a essência do Filho, e no Filho a essência do Pai. l@nica e
indivisível é, com efeito, a essência de ambos (ibid., 43).

Portanto, uma vez que o Sumo Espírito se i-econ,hece o se compreende no


Filho, deve também amar-se, seria inútil, com efeito, a inteligência sem o
amor (ibid., 43). O amor depende, portanto, da inteligência que o Sumo
Espírito tem de si, isto é, depende do Pai e do Filho, conjuntamente. Esta

69

dependência não significa geração: o amor não é filho. E, no entanto, é uma


dependência que supõe participação na sua natureza comum; e uma vez que tal
natureza é espírito, o amor chama-se Espírito (Ibid., 57). Cada uma das três
pessoas divinas, participando da total natureza divina, recorda, compreende e
ama sem necessidade de outra. E, apesar de a memória ser própria do pai, a
inteligência do Filho, o amor do Espírito, cada uma das pessoas é
essencialmente memória, inteligência e amor. Da inteligência, memória e amor
de cada uma delas não derivam nem outros filhos nem outros espíritos: nisto
consiste o mistério inexplicável da Trindade divina (ibid., 62-64).

Santo Anselmo procurou esclarecer com uma imagem este mistério. Consideremos,
afirma (De fide Trinitatis, 8), uma fonte, o rio que nasce dela

e o lago no qual se recolhem as suas águas: damos ao conjunto destas três


coisas o nome de Nilo. Trata-se de três coisas distintas uma das outras; não
obstante, chamamos Nilo à nascente, Nilo ao rio, Nilo ao lago e, finalmente,
Nilo a todo o conjunto. Não falamos de três Nilos, ainda que sejam três
coisas distintas entre si. São três, a nascente, o rio e o lago; pois é
sempre o único e o mesmo Nilo, um só fluir, urna só água, uma só natureza. Há
aqui uma trindade no uno e uma unidade em três, que é a imagem da Trindade
divina.

§ 196. ANSELMO: A LIBERDADE

A investigação levada a cabo por Anselmo no Monologion e no Proslogion tende


a compreender Deus na sua essência e na sua existência. Anselmo procura
traduzir com ela, a certeza da fé em verdade filosófica; e com isto oferecer
um caminho de abordagem à verdade revelada, de modo que o

70

homem consiga chegar junto desta o mais perto possível. Mas paralelamente a
esta investigação, Anselmo empreende outra, dirigida ao homem e às suas
possibilidades de elevar-se até Deus. O tema desta investigação é a
liberdade. A ela Anselmo, dedicou duas obras: o De libero arbitrio, e o De
concordia praescientiae et praedestinationis nec non et gratiae Dei cum
libero arbitrio, composta, esta última, no ano de 1109, depois do seu
regresso a Inglaterra.

A liberdade supõe, em primeiro lugar, duas condições negativas: que a vontade


seja livre de coacção por parte do toda a causa externa e seja livre da
necessidade natural interna, como é o instinto nos animais (De libero
arbitrio, 2, 5). A liberdade é essencialmente liberdade de escolha e esta
está ausente quando existe coacção e necessidade. Posto isto, Anselmo exclui
a ideia de que a liberdade possa definir-se (como havia feito Escoto) como
possibilidade de escolher entre pecar e não pecar. Se fosse assim, nem Deus
nem os anjos, que não podem pecar, seriam livres. Em todo o caso, quem não
pode perder aquilo que o favorece é mais livre do que aquele que pode perder;
e deste modo quem não pode afastar-se da rectidão de não pecar é mais livre
do que qualquer outro que pode fazê-lo. A capacidade de pecar não aumenta nem
diminui a liberdade; por isso não é elemento ou parte da
liberdade (De lib. arb., 1). O primeiro homem recebeu de Deus originariamente
a rectidão da vontade, isto é. a justiça. Poderia ter podido e devido
conservá-la; e para esse fim precisamente lhe foi dada a liberdade. Portanto,
esta, não é arbítrio de indiferença, isto é, vontade que se decide
indiferentemente entre o bem e o mal; é a capacidade positiva de conservar a
justiça originária e de conservá-la pela mesma justiça, e não em vista de um
motivo estranho (lbi(l., 13).

71

Este poder em que consiste a liberdade não o perde o homem em caso algum, nem
sequer com o pecado. Como quem já não vê um objecto, conserva a capacidade de
vê-lo, porque o vê-lo ou não depende da distância do objecto e não da perda
de vista, assim a capacidade de conservar a rectidão da vontade permanece no
homem mesmo através do pecado e entra em acção logo que Deus restitui ao
homem a rectidão da vontade que perdeu.

Portanto, o homem pode perdê-la apenas por um acto seu de vontade e nunca por
causas externas. O próprio Deus não pode retirá-la ao homem. Uma vez que
consiste em querer o que Deus quer que se queira, se Deus a afastasse do
homem não quereria que o homem quisesse aquilo que Ele quer que ele queira.
Uma vez que isto não se pode imaginar, Deus não pode tirar ao homem a vontade
justa: só o homem pode perdê-la. Nada é portanto mais livre que a vontade
(ibid., 11).

Não contradiz isto a frase bíblica de que o homem que peca se converte em
"escravo do pecado". O converter-se em escravo do pecado significa apenas que
perde a rectidão da vontade e que não tem a capacidade de voltar a adquiri-la
a não ser por dádiva gratuita de Deus. A escravidão do pecado é a impotentia
non peccandi: o homem que perdeu a rectidão da vontade não pode deixar de
pecar; mas mesmo assim permanece livre porque conserva a possibilidade de
conservar aquele.

la

rectidão, se essa lhe for devolvida.

Disto :resulta que, tal como Santo Agostinho, Anselmo estabelece uma estreita
relação entre a liberdade humana e a graça divina. Não há dúvida de que a
vontade quer com rectidão apenas porque é recta. Mas como a vista boa não é
boa porque vê bem, mas porque vê bem é boa, também a vontade não é recta
porque quer com rectidão, mas quer com rectidão porque é recta. Isto
significa que

72

ABELARDO

a vontade recebe a sua rectidão não de si própria (a partir do momento em que


cada acto recto seu a pressupõe), mas da graça divina (De concord. praesc. c.
3, 3). A última condição da liberdade humana é, portanto, a graça divina.
Como capacidade de conservar a justiça originária, a liberdade humana está
condicionada pela posse dessa justiça; e uma tal posse apenas pode vir-lhe de
Deus.

§ 197. ANSELMO: PRESCIÊNCIA E PREDESTINAÇÃO

Como a liberdade humana não se opõe, em nada, à graça divina, assim também
nenhum limite ou restrição produzem na liberdade humana a presciência e a
predestinação divinas. É certo que Deus prevê todas as acções futuras dos
homens, mas esta previsão não impede que as acções dos homens sejam
efectuadas livremente. Com efeito, Deus prevê as acções dos homens na
liberdade, que é atributo fundamental das mesmas. Não é preciso dizer, afirma
Santo Anselmo, "Deus prevê que eu vou ou não pecar" mas é necessário
acrescentar que Ele prevê que eu vou ou não pecar sem necessidade e assim,
tenha eu pecado ou não, uma e outra coisa será liberdade, porque o próprio
Deus prevê que isso acontecerá sem necessidade. (De concord. praesc., q. 1,
3). Existe uma dupla necessidade: uma que precede o efeito, a outra que se
segue à realização da coisa. A primeira é verdadeiramente determinante, a
segunda não. A primeira está, por exemplo, imcluída na afirmação "os céus
necessariamente giram"; a segunda está contida na afirmação "tu falarás". De
facto, a necessidade natural obriga os céus a moverem-se, embora não exista
nenhuma necessidade que obrigue o homem a falar. Mesmo neste caso, a previsão
verificar-se-á e, por conseguinte, é certa; mas a sua certeza em nada

73

anula ou diminui a liberdade do facto previsto. indubitavelmente, o que é não


pode não ser. Uma acção livre, uma vez que se haja verificado, tem uma
necessidade de facto, que obriga a admiti-Ia tal como é. Mas esta necessidade
de facto não anula a liberdade, ainda que a torne previsível com absoluta
certeza por parte de Deus. Análogas considerações valem para a predestinação.
Deus predestina a salvação dos eleitos e aqueles que não predestina estão
condenados. Pode-se, por conseguinte, falar também de uma predestinação dos
condenados, porquanto Deus permite a sua condenação: ainda que a
predestinação só seja positiva e efectiva para os eleitos. A predestinação
tem em conta a liberdade. Deus não predestina ninguém coagindo uma vontade,
deixa sempre a salvação nas mãos do predestinado. Tal como a presciência que
nunca se engana, sabe de antemão tudo o que acontecerá, quer aconteça
necessária quer livremente, também a predestinação, que nunca se altera,
apenas prodestina em virtude e em conformidade com a presciência (De
concordía praese. q. 2, 3). São predestinados à salvação aqueles apenas cuja
boa vontade Deus conhece de antemão.

§ 198. ANSELMO: O MAL

Relaciona-se com os conceitos agustinianos o tratado de Anselmo, sobre o


problema do mal. Como existem duas espécies fundamentais de bem, a justiça e
o útil, assim existem também duas espécies fundamentais de mal: a injustiça
(malum injustitiae) e odano (malum incommodi). O verdadeiro e próprio mal é
apenas a injustiça. A injustiça é sempre algo de negativo; é a pura e sim les
negação do

ZD p que deve ser, isto é, da justiça. E mesmo que o


bem seja verdadeiramente a justiça, o mal não tem em nenhum caso realidade
positiva: é uma pura

74

negação e pode, com todo o direito, ser chamado o nada (De casu diaboli, 12-
26).

Quanto ao dano, ou seja, o mal físico, também é na sua essência uma negação;
mas como às vezes surge acompanhado de uma acção positiva, é nesta que se
pensa quando se lhe chama mal. Não há dúvida de que a cegueira, por exemplo,
é simples negação da vista; mas é acompanhada de tristeza e dor, que são
realidades positivas e constituem o aspecto pavoroso do mal (Ibid., 26).
Contudo, a tristeza, a dor e o horror que estas coisas determinam na alma,
seguem-se à privação do bem, que é o verdadeiro fundamento de todo o mal. O
verdadeiro e único bem é a justiça, pela qual são bons, isto é, justos, os
anjos e os homens e pela qual a própria vontade é boa ou justa. Pois bem, a
justiça consiste na conformidade da vontade humana com a vontade divina. A
vontade da criatura racional deve estar submetida à vontade divina e aquela
que não tributa a Deus esta honra devida, tira a Deus o que é seu e por isso
peca. A Deus apenas pertence ter vontade própria, isto é, uma vontade que não
está sujeita a ninguém. Todo aquele que se atribui de uma vontade própria
esforça-se por tornar-se semelhante a Deus per rapinam e por
privar Deus, naquilo a que a Ele se refere, da sua dignidade e singular
excelência (De fide Trinit., 5).
O traço característico destas formulações de Anselmo consiste na redução de
todo o valor moral à vontade, a ú nica em que reside a justiça e a injustiça.
Os apetites sensíveis, por seu lado, não são bons nem maus. O homem é justo
ou injusto, não porque os sente ou não, mas apenas porque os consente ou não
com a vontade. O pecado consiste não em senti-los, mas em consenti-los (De
concep. virg., 4). A única origem do mal é a própria vontade. A vontade pode
perder a sua rectidão enquanto quer o que não deve querer; mas o

75

poder perdê-la não é fundamento do mal; uma vez que não a perde porque pode
perdê-la, mas apenas porque quer perdê-la. O mal não tem outra causa
positiva. Também não se pode atribuir a Deus, porque não se pode afirmar que
Ele dê aos homens uma vontade má, senão no sentido de que não impede, podendo
fazê-lo, que uma tal vontade aconteça. Tudo o que há de bom na vontade e nas
acções dos homens, procede da graça de Deus; só o mal procede do homem.

E assim como a vontade é o único sujeito das valorações morais, assim também
apenas ela é responsável e pode ser castigada. Não existe pena que não esteja
dirigida contra a vontade e nenhuma coisa pode sofrer um castigo se não está
dotada de vontade. Assim como é a vontade que actua sobre os membros e os
sentidos, assim também é a vontade que, através dos membros e dos sentidos é
castigada ou recompensada (ibid., 23). Num cas @ apenas o pecado não depende
da vontade, é o caso do pecado original. Adão pecou por livre vontade; os
seus descendentes pecam por necessidade natural (lhid., 23). Mas em Adão
estava presente toda a natureza humana; nele, portanto, pecaram todos os
homens, não pessoalmente, mas na sua origem e na sua natureza comuns.

§ 199. ANSELMO: A ALMA

A doutrina de Anselmo sobre a alma segue de perto a agustiniana sobre o mesmo


tema, mas possui um notável avanço em relação àquela no que se refere à
demonstração da imortal-idade. O homem é formado por duas naturezas, a alma e
o corpo (Medit., 19) a parte mais elevada, porque está mais pró)Qimo da suma
essência, é a alma e mais precisamente, o intelecto. De facto, só através da
inte-

76

ligência se pode conhecer e buscar a Deus e pode o homem aproximar-se d'Ele.


A alma é como um espelho na qual se reflecte a imagem da Suma essência, que
não se pode contemplar face a face. Anselmo segue, neste ponto, Santo
Agostinho: a alma recorda, compreende e ama-se a si própria; e desta forma
reproduz a Trindade divina, que é precisamente Memória, Inteligência e Amor
(Monol.,
67). A natureza da alma marca o seu destino. A alma deve exprimir com actos
de vontade a imagem da Trindade divina que nela está impressa naturalmente:
deve, por conseguinte, empenhar toda a sua vontade em recordar, compreender e
amar o Sumo Bem; esse é o fim da sua existência (Ibid., 68).

Deste seu destino deriva a sua imortalidade. Se a alma está destinada a amar
sem fim a sua essência é necessário que esteja viva sempre e que a morte não
venha interromper, em certo ponto, sem demérito seu, o amor que deve a Deus.
Nem Deus poderia reduzir a nada uma criatura que Ele criou para que o amasse
ou permitir que lhe seja retirada a criatura que ama a vida que Ele lho deu,
quando ela ainda não O amava, para que possa amá-LO: tanto mais que o Criador
ama toda a criatura que verdadeiramente o ama. É portanto evidente que uma
vida entregue ao amor de Deus não pode ser senão feliz. A alma tem, por
conseguinte, assegurada pelo seu destino uma vida eterna e feliz (ibid., 69).
Mas a imortalidade não se refere apenas à alma que ama a Deus. Se para a alma
que ama Deus, a imortalidade é, por parte de Deus, um dom de amor, para a
alma que despreza Deus, a imortalidade é, por parte de Deus, um acto de
justiça. Seria, com efeito, injusto que a alma que despreza Deus fosse
castigada com a perda da vida e do próprio ser, e não tivesse outro castigo
além do de tornar ao estado em que se encontrava antes de toda a culpa, isto
é, antes de existir. Mesmo

77

a alma injusta deve, por conseguinte ser imortal, para sofrer uma pena, tal
como é imortal a alma justa para gozar do prémio eterno (Ibid., 71). Todas as
almas são, portanto, imortais, tanto as justas como as injustas; mesmo
aquelas que não são capazes nem de uma coisa nem de outra, como as almas das
crianças, devem sê-lo, porque devem ter a mesma natureza (ibid., 72).

Sabemos pelo biógrafo Eadmer que Anselmo morreu quando tentava ansiosamente
esclarecer a natureza e a origem da alma. Com efeito, pouco nos dizem as
obras que nos deixou. A investigação de Anselmo, que começa com Deus, termina
com a alma humana. Na verdade, Anselmo tinha feito suas as palavras de Santo
Agostinho: "Desejo conhecer Deus e a alma: e nada mais".

NOTA BIBLIOGRÁFICA

§ 190. As obras de Santo Anselmo em P. L.,


158.---159.1, e>d. Schmitt 5 vols., Roma-Londres, 1938-1951. Opere
filosofiche, trad. ital. de C. Ottaviano, 3 vols., Lanciano, 1938. - De
Rémusat, Saint-Anselme de Canterbury; Vanni-Rovighi, SanVAnselmo, Milão, 1949
com bibliografia; Levasti, SantIAnselmo, Bari, 1929; Domet de Vorges,
Saint-Anselme, Paris, 1901.

§ 191. Heitz, Essai historique sur les rapports entre Ia philosophie


e Ia foi Bérenger de Tours à Saint-Thomas, Paris, 1909; Betzendõrfer,
Glauben und Wissen bei den grassen Denkern des Mittelalters,
1931; Gilson, in "Arch. Hist. Doct. Lit. M<)yen Age"
1934, 5-51.

§ 192. Koyré, L'idée de Dieu dans Ia philosophie de Saint-Anselme,


Paris, 1923; K. Barth, Fides quaerens intellectum, Mónaco, 1931. Sobre o
argumento ontológico na escolástica: Daniels, nei Beitrage, VII1@
1-2. Muitissimos filósofos tomaram posição sobre o argumento ontológico e das
discussões referentes a esse ponto encontrar-,se-á eco na presente obra.

78

§ 193. Seeberg, Dogmengeschischte, EI, 1913, p. 150 sgs., 207-226.

§ 194. Baeumker, nei Beitrâge, X, 6, 1912. § 195. Martin, La question de


péché originel dans Saint-Anselme, in Reme des Sciences philos. et Théol.
1911, p. 735-749.

79

A DISCUSSÃO SOBRE OS UNIVERSAIS

§ 200. UNIVERSAIS: O PROBLEMA E O SEU SIGNIFICADO HISTÓRICO

A partir do século XII um dos tomas de discussão mais frequentes entre os


escolásticos é o chamado problema dos universais. O problema parece ter
surgido com uma passagem de 1sagoge (introdução) de Porfirio às Categorias de
Aristóteles e dos comentários de Boécio a elas referentes. A passagem de
Porfirio é a seguinte: "Sobre os géneros

e as espécies não direi aqui se subsistem ou se estão s@mplesmente no


intelecto, e, no caso de subsistirem, se são corpóreos ou incorpóreos,
separados das coisas sensíveis ou situados nas mesmas, exprimindo os seus
caeacteres uniformes". Das alternativas indicadas por Porfirio nesta
passagem, uma apenas não obtém qualquer confrontação na história desta
polémica: aquela, segundo a qual, os universais seriam realidades corpó reas.
Em compensação, uma alternativa que, Porfirio não tinha previsto verificou-se
históricamente: isto é, que o universal não existe

81

nem no intelecto e não passa de um simples; nome, de um flatus vocis. De


qualquer modo, resulta da passagem de Porfirio que as duas soluções
fundamentais do problema são aquelas que mais tarde se chamarão realismo (ou
formalismo) e nom;inalismo (ou terminismo), a primeira das quais afirma,
enquanto a outra nega, que os universais existem, de qualquer forma, fora da
alma. As soluções que a discussão dos universais encontrou dentro da
escolástica foram numerossímas: João de Salisbúria (Metalogicus, 11, 17) dá-
nos disso uma primeira amostra, no entanto bastante incompleta (Cfr. PrantI,
Geschishte der Logik, II, p. 121 sgs.).

Apesar do problema sobre o qual se discutia não fosse precisamente novo (como
veremos em seguida), o próprio facto da posição explícita do problema (ainda
que mediante o recurso a um texto antigo) e o reconhecimento da possibilidade
de resolvê-lo em mais direcções é já por si significativo e pode ser
considerado com um sinal do novo espírito que começa a invadir a escolástica
a partir dos últimos decénios do século XI. Anteriormente a este período,
nenhum pensador conseguia pôr em dúvida que os géneros e as espécies fossem
ideias arquétipos na mente divina e formas dessa mesma mente impressas nas
coisas. Deste ponto de vista, o problema dos universais não tinha sentido.
Levantá-lo significa, com efeito, admitir que o mesmo pode ser Tesolvido de
forma diferente das doutrinas que a primeira escolástica tinha deduzido da
patrística e que se tornaram o património da especulação teológica. A posição
do problema significa, portanto, a consideração do assunto de um ponto de
vista, que deixa de ser apenas teológico, para passar a ser também
filosófico: isto é, de um ponto de vista que vê nos universais não apenas os
instrumentos da acção criadora de Deus mas também, e sobretudo, os
instrumentos ou condições das operações
82

cognoscitivas do homem. A posição deste problema é, já de per si, a


instauração de um ponto de vista que diz mais respeito ao homem que a Deus:
com efeito, o problema colocado nos termos de Porfírio não é outro senão o
problema da validade do conhecimento racional em geral. Isso é o indício de
uma nova importância atribuída ao homem; e. deste ponto de vista, também as
inumeráveis subtilezas que desde logo possam ser consideradas como a
expressão da nova liberdade com que o homem se encara e encara os seus
problemas. Esta nova liberdade, que se manifesta, (como veremos no capítulo
seguinte) na renovada atenção que os filósofos dispensam ao mundo da natureza
e aos seus problemas, acompanha e suporta o ressurgir económico e social da
época: que se exprime na formação ou na consolidação das repúblicas marítimas
e das comunas, nas trocas, nas viagens, na economia mercantil e, em geral, no
prosseguimento da actividade e do espírito lógico.

Do ponto de vista da história da lógica, a posição do problema dos universais


está condicionada pela possibilidade reconhecida de uma alternativa diferente
da metafísica ou da teologia que era aceite sem discussão no período
precedente. É esta a alternativa nominalística que em breve passa a chamar-se
a via moderna da ló gica e que não é mais que a direcção cínico-estoica
apontada pela lógica, de harmonia com as obras de Boécio e de Cícero e
contraposta à direcção tradicional platónico-aristotélica. Nominalismo e
realismo correspondem, substancialmente, a estas duas direcções originárias.
Para o realismo, isto é, para a tradição platónica-aristotélica, o universal
é algo de diferente, um conceptus mentis, é a essência necessária ou a
substância das coisas e a ideia de Deus. Para o nominalismo, isto é, para a
tradição estoicizante, o universal é

83

urna marca das próprias coisas e está em lugar (supponit) delas. Apesar das
suas querelas e de procurarem sempre novas soluções (que muitas vezes se
distinguem umas das outras apenas por um cabelo), os Escolásticos, com o seu
eclectismo desenvolto, não renunciam, no entanto, aos resultados que no campo
da lógica se possam obter, utilizando ora uma ora outra das duas orientações.
A partir do século XIII os tratados lógicos justapõem simplesmente às
doutrinas lógicas aristotélicas, as estóicas, dando igual importância tanto a
umas como a outras sem se preocuparem com as divergentes orientações
teóricas. As Summulae logicales de Pedro Hispano constituem o mais famoso
modelo desta justaposição.

O antagonismo entre o realismo e o nominalismo, entre a via antiga e a via


moderna, é no entanto um antagonismo de fundo que transcende o alcance das
subtis, abstractas e frequentemente aborrecidas querelas a que deu lugar. Do
realismo pode-se fazer uso teológico e cosmológico, com o nominalismo não.
Por isso, as correntes da escolástica que se inspiraram no realismo foram as
que se aplicaram a defender a teologia e a concepção teológica do mundo. As
que se inspiraram no nominalismo alinharam em geral contra a teologia e
assumiram posições críticas nos confrontos da concepção teológica do mundo,
conseguindo algumas vezes alcançar ousadas inovações que constituem como que
o anunciar ou a preparação de novas

concepções da natureza e do homem. Compreende-se a razão porque, no final da


escolástica, o nominalismo tenha prevalecido: os problemas da teologia,
respeitantes ao domínio da fé, não interessavam já à filosofia, que se
voltava para outros campos, nos quais se poderiam deter, de forma mais
oportuna e eficaz, os poderes racionais do homem.

84

§ 201. ROSCELINO

A primeira e clamorosa fase da querela dos universais foi provocada pelo


aparecimento em cena de um nominalismo na sua forma mais extrema, defendido
por uma figura singular, a de Roscelino.

Otão de Freising, na sua crónica Sobre as proezas de Frederico, afirma que


Roscelino "foi o primeiro nos nossos tempos, que propôs na lógica a doutrina
das palavras (setentiam vocum)". Sabemos que Roscelino nasceu em Compiègne,
estudou em Soissons e Reims e ensinou como teólogo na escola-cátedra de
Compiègne, depois na de Loches, Bretanha, onde teve entre os seus alunos
Abelardo, e em seguida em Besançon e Tours. Devia ter morrido entre 1123 e
1125, a julgar pelas apóstrofes que Abelardo lhe dirige nos seus escritos.

De Roscelino, temos apenas uma carta dirigida a Abelardo sobre a questão da


Trindade. Não sabemos se escreveu mais alguma outra coisa ou se as suas obras
não foram ainda descobertas entre os manuscritos medievais. É provável que
não tenha escrito mais nada, porque os seus adversários, Anselmo, Abelardo e
João de Salisbúria não lhe atribuem nenhum livro e os Padres do Concílio de
Soissons, que condenaram a sua doutrina trinitária, não deixariam de entregar
às chamas os seus escritos se tivessem existido. Não podemos, portanto,
conhecer a doutrina de Roscelino a não ser a-través dos escritos dos seus
adversários e, especialmente, de Anselmo e de Abelardo. Anselmo coloca
Roscelino entre os dialécticos, mais ainda, entre os hereges dialécticos do
seu tempo, "que acreditam que as substâncias universais não passam de um
sopro de voz (flatus vocis); e que, por "com, apenas entendem o corpo
colorido, e por "sabedoria" a própria alma do homem". Santo Anselmo
acrescenta ainda a explicação de semelhante opinião: tais pessoas perma-

85

n=m enredadas nos sentidos e não conseguem libertar deles a razão. "Nas suas
almas, a razão que deve ser a parte dominante e julgadora de tudo o que há no
homem, está de tal maneira submergida nas imaginações corporais que não
conseguem livrar-se delas; e mantêm-se incapazes de discerni-la quando afinal
deveriam servir-se dela apenas para a especulação". (De fide Trin., 2). Esta
incapacidade de Roscelino para seperar a razão do envólucro sensível é também
motivo, segundo Anselmo, da heresia trinitária defendida pelo clérigo de
Compiègne: "Quem não compreende nem sequer a maneira como os homens
constituem a única espécie homem, como poderá compreender a maneira como
através da misteriosíssima natureza divina, várias pessoas, sendo cada uma
delas um Deus perfeito, constituem as três um só Deus? E quem tem a mente tão
obscurecida que não sabe distinguir o cavalo da sua cor, como poderá
distinguir o Deus único das suas diferentes relações? Em suma, quem não
compreende que o homem não é o próprio indivíduo, de forma alguma poderá
entender por homem a natureza humana" (ibid.). João de Salisbúria dá-nos um
testemunho análogo sobre o nominalismo de Roscelino: coloca-o "entre os que
afirmam que os géneros e as espécies não são outra coisa a não ser vozes"
(Metal., 11, 13, Policrat., VII, 12). Abelardo ilustra-nos outro aspecto de
tal nominalismo. Roscelino sustentou que é impossível que as coisas constem
de partes e que as partes das coisas são, como as espécies, nomes diversos
das próprias coisas (Obras inéditas, edic. Cousin, 471).

Vimos já como Santo Anselmo relaciona com o nominalismo a heresia trinitária


de Roscelino. Ele próprio nos afirma que, segundo Roscelino, "as três pessoas
da Trindade são três real-idades como três anjos ou três almas, apesar de
serem absolutamente

86

idênticas pela vontade e podem (De fide Tiin., 3); podendo-se acrescentar, se
fosse costume admiti-lo, que constituem três divindades (Epist., 11, 41). Mas
sobro esta doutrina temos algumas referências do próprio Roscelino na sua
carta a Abelardo. Roscelino começa por identificar pessoa com substância, a
propósito de Deus. Uma vez que, em Deus, diversos nomes não indicam real-
idades diversas, mas a mesma única e simplicíssima realidade, a pessoa só
pode significar substância. Mas se as pessoas são diversas porque uma gera e
a outra é gerada, é evidente que são diversas as substâncias da Trindade
divina. A Trindade é una pela comunhão das três substâncias, não porque seja
constituída por uma única substância. Reconhece-se, portanto, à Trindade uma
unidade de semelhança ou de igualdade, mas não de substância. Daí se conclui
que Roscelino deduziu o seu trideísmo da identificação de substância e pessoa
(que na tradição eclesiástica sempre foram distintas): e foi levado a essa
identificação por imaginar que as determinações diversas que se atribuem a
Deus não são mais que nomes diversos de uma realidade única.

A heresia de Roscelino foi condenada pela primeira vez num Concílio que se
celebrou em Reims em 1092 ou 1093. Roscelino foi obrigado a abjurar e a ele
se submeteu com receio de ser assassinado pelo povo de Reiras; mas tendo
abandonado a cidade, voltou a defender as suas teses. Foi novamente condenado
em 1094 num concílio convocado pelo rei Filipe para celebrar as suas bodas
com Bertrada. Expulso de França, dirigiu-se a Inglaterra, onde uma nova
perseguição o obrigou a regressar a França. Tornou a aparecer para combater a
doutrina de Abelardo, em 1121. O seu carácter surge-nos, através da carta que
conhecemos dele, como pouco recomendável: ataca Abelardo nos

87

é termos mais violentos e atira-lhe em cara cinicamente a mutilação que lhe


havia sido infligida. 1

§ 202. GUILHERME DE CHAMPEAUX

O realismo de Guilherme de Champeaux opõe-se ao nominalismo de Roscelino.


Guilherme nasceu em Champeaux, perto de Melun, à volta de 1070 e foi
discípulo em Paris de Anselmo de Laon (falecido em 1117), que contou entre os
seus alunos alguns dos homens mais notáveis do seu tempo, entre os quais se
encontravam Abelardo e Gilberto. Até 1108, Guilherme passou da escola
catedral de Paris para a abadia de São Victor, da qual foi prior e abade. Em
seguida foi nomeado bispo de Chálons-sur-Marne. Viveu até morrer em grande
amizade com São Bernardo e faleceu no ano de 1121. Dos seus numerosos
escritos ficaram: o De eucaristia, o De origine animae e um diálogo Sobre a
fé católica.

No que se refere à doutrina sobre os universais,


a nossa principal fonte é a polémica que contra ele desencadeou Abelardo.
Guilherme sustentava a realidade substancial dos universais e afirmava que
tal realidade se encontra inteiramente em todos os indivíduos, que se
multiplicam e se diferenciam entre si por qualidades acidentais. Por exemplo,
a espécie "homem" é uma realidade que permanece una e idêntica em todos os
homens; a ela se acrescentam depois as qualidades acidentais que são
diferentes em Sócrates, Platão e nos outros indivíduos particulares
(Abelardo, Obras inéditas, De gen. et. spec., 513).

Abelardo, que foi discípulo de Guilherme, vangloria-se de o ter obrigado a


modificar, e mais ainda, a abandonar completamente esta tese. Eis o texto de
Abelardo (Hist. calam., 2): "Guilherme corrigiu a

88

sua opinião afirmando que a realidade universal se encontra nos indivíduos


não essencialmente, mas individualmente". Individualiza-se, isto é, nos
indivíduos de modo que perde a sua unidade essencial e se multiplica neles, o
que é uma renúncia a afirmar a realidade em si do universal. Mas com isto a
tese do realismo não se encontrava de todo abandonada: estava apenas
abandonada a realidade separada do universal e admitia-se o universal in i-e,
o universal individualizado e incorporado na mesma coisa individual. Esta é
uma segunda fase do pensamento de Guilherme. Enquanto que a primeira nega
efectivamente a realidade dos indivíduos, reduzindo-os a meras modificações
acidentais da essência universal, a segunda sustenta a realidade dos
indivíduos, afirmando, não obstante, a presença neles da essência universal
individualizada. Um fragmento das Senientiae faz-nos conhecer uma terceira
fase da doutrina de Guilherme sobre os universais; a essência comum dos
indivíduos particulares nem seria a mesma: os diversos indivíduos teriam
apenas essências semelhantes. Nesta terceira fase, a doutrina de Guilherme
transforma-se em puro conceptualismo.

§ 203. O TRATADO "DE GENERIBUS ET SPECIEBUS"

O tratado De generibus et speciebus foi considerado por Cousin como uma obra
de Abelardo e incluído entre as suas obras inéditas. Ritter foi o primeiro a
negar esta atribuição e atribui o tratado a Joscelino (Gausleno, 1125-1151),
bispo de Soissons. Esta atribuição foi logo confirmada por outros eruditos,
e, com efeito, João de Salisbúria, no seu Metalogicus (11, 17) atribui a
Gausleno a doutrina de que o universal é o conjunto das coisas siri-

89

gulares; doutrina contida no tratado. Nele se define a espécie como todo o


conjunto de indivíduos que têm a mesma natureza. "Essa colecção, apesar de
ser essencialmente múltiplice, chama-se tradicionalmente uma só espécie, um
só universal, uma só natureza da mesma maneira que se fala de um só povo,
ainda que este seja constituído por muitas pessoas" (Abelardo, Obras
inéditas, edic., Cousin,
527). Para o indivíduo, a espécie é matéria, a individualidade a forma. Por
exemplo, Sócrates é composto da matéria "homem" e da forma "Sócrates",
Platão, de uma forma semelhante, isto é, "homem", e de uma forma diferente,
isto é, "Platão", e assim para os outros. E como a socratitas que constitui
formalmente Sócrates não subsiste fora de Sócrates, também a essência "homem"
que em Sócrates constitui a socratitas não subsiste se não está em Sócrates.
O ponto de vista defendido neste tratado aproxima-se muito do de Abelardo.

NOTA BIBLIOGRáFICA

§ 200. Sobre a querela dos universais, que ocupa a actividade filos6fica de


todos os escritos da época, veja-se a seguinte bibliografia.

§ 201. A carta de Roscelino a Abelardo está publicada nas obras de Abelardo,


em Patr. Lat., verl.
1.78.o, 357 e sgs. Nova ed. de Reiners, em Beitrage, VIII, 5, 66-80.
PICAVETE: PosceZin, Paris, 1911. Sobre o nominalismo: Reiners, op. cit.
§ 202. As obras de Guilherme de Champeaux, em P. L., 163., 1037-1072. As
Sententiae (ou Quaest"es), em LEFÈVRE, Les variations de G. de Ch. et de Ia
question des universaux, Lille, 1898; GRABMANN, GeSchischte des scholast.
Methode, n 136-168. @ 203. O De generibus et speciebus, encontra-se nas obras
inéditas de Abelardo, editadas por Cousin; RITTER, Gesch. d. Phil., VII,
1844, 364; PRANTL, II,
142-147; RoBERT, Les écoles et Ilenseignement de ta Theologie pendant ta
preinière moitié du XII Mcle, Paris, 1909, 202, 205.

90

vi

ABELARDO

§ 204. ABELARDO: A FIGURA HISTÓRICA

Abelardo é a primeira grande afirmação medieval do valor humano da


investigação. Trata-se de urna figura que nem sequer a tradição medieval
conseguiu reduzir ao esquema estereotipado de sábio ou santo; trata-se de um
homem que pecou e sofreu e que colocou todo o significado da sua vida na
investigação; de um mestre genial que fez durante séculos a fortuna e a fama
da Universidade de Paris, e que encarna, pela primeira vez na Idade Média, a
filosofia na sua liberdade e no seu significado humano. Dotado de grande
presença física (Heloísa dá-nos disso testemunho em Ep., H em Patri 178.*,
col. 185, quando ele se dirigia ou Regressava das aulas, com o seu olhar
enérgico e a

cabeça erguida, despertava a admiração de todos), de uma eloquência precisa e


cortante, de um extraordinário poder dialéctico que o tornava invencível em
todas as discussões, estava destinado ao êxito, que efectivamente lhe sorriu,
acarretando-lhe invejas, perseguições e condenações. Mas o centro da sua

91

personalidade é a exigência da investigação: a necessidade de resolver em


motivos racionais toda a verdade que seja ou queira ser como tal para o
homem, de enfrentar com armas dialécticas todos os problemas para levá-los ao
plano de uma compreensão humana efectiva. Para Abelardo, a fé no que se não
pode entender é uma fé puramente verbal, privada de conteúdo espiritual e
humano. A fé, que é um acto de vida, é inteligência do que se crê: todas as
forças do homem devem portanto dirigir-se para a compreensão. Nesta convicção
reside a força da sua especulação e do seu fascínio como professor. Nele
torna-se claro o significado, até então incerto e débil, da ratio medieval. A
ratio é a investigação a que o homem se entrega para compreender e fazer a
sua verdade revelada e na qual realiza e encontra a sua substância humana. A
razão é para o homem o **tiruico gu ,ia possível; e o exercício da razão,
que é próprio da filosofia, é a actividade mais elevada do homem. Portanto,
se a fé não é uma obrigação cega que pode dirigir-se no sentido do
preconceito e do erro, deverá estar sujeita à joeira da razão. Deste ponto de
vista, não subsiste uma diferença radical entre os filósofos pagãos e os
filósofos cristãos; se o cristianismo constitui a perfeição do homem, também
os filósofos pagãos, enquanto filósofos, foram cristãos na sua vida e na sua
doutrina (Theol. christ., 11, 1).

§ 205. ABELARDO: VIDA E ESCRITOS

As movimentadas circunstâncias da vida de Abelardo são contadas por ele


próprio numa carta que tem o título de Historia calamitaium. Pedro Abelardo
nasceu perto de Nantes, no ano de 1079, estudou dialéctica com Guilherme
Champeaux, de

92

quem logo se tornou adversário e rival. Ensinou primeiramente dialéctica em


várias localidades de França, depois, em 1113, teologia na escola catedral de
Paris. O ensino de Abelardo desenrolou-se entre discussões clamorosas e
polémicas violentas, suscitadas pela sua intemperança dialéctica e pela
inveja que o seu êxito provocava.

Em Paris, apaixonou-se por Heloísa, sobrinha de um tal Fulberto, cónego, que


era bela e muito culta e de quem teve um filho, Astrolábio. Tendo casado com
ela para aplacar a ira do tio, quis manter secreto esse casamento, com receio
que pudesse prejudicar a sua fama e carreira de professor, e enviou Heloísa
para o convento de Argenteuil, perto de Paris, onde fora educada desde
criança. Mas os tios e os parentes de Heloísa, julgando que Abelardo
pretendia desembaraçar-se dela, vingaram-se e mandaram-no castrar enquanto
ele dormia. Coberto de vergonha pelo ultraje recebido, Abelardo entrou num
convento; e os dois esposos consagraram-se a

Deus: Abelardo na abadia de São Dionísio perto de Paris; Heloísa, no mosteiro


de Argenteuil. No epistolário de Abelardo conservam-se algumas cartas de
Heloísa plenas de afecto e força de resignação

Depois deste infortúnio, Abelardo renovou com redobrado entusiasmo o ensino,


num lugar afastado em Nogent-sur-Seine, para onde os discípulos o
acompanharam e onde construíram um oratório que ele consagrou ao Espírito
Santo ou Paracleto. Em
1136 reapareceu em Paris e reatou as suas lições na montanha de Santa
Genoveva, onde tinha conseguido os seus primeiros êxitos como professor.
Exaltado pelos seus discípulos pela eloquência e ardor da sua dialéctica,
invejado pelos outros professores, em breve Abelardo deu aso a que fosse
apontado como herege.
O Concílio de Soissons condenou a sua doutrina trinitária e obrigou-o a
queimar por suas próprias

93

mãos, o livro De unitate et trinitate divina (1121). Nos últimos anos da sua
vida manteve uma polémica com São Bernardo, que provocou a sua condenação
pelo Sínodo de Sens (1140). Abelardo apelou para o Papa o resolveu dirigir-se
a Roma para defender a sua causa; mas o abade Podro de Cluny convenceu-o a
permanecer em Cluny e a reconciliar-se com a Igreja, com o Papa e com São
Bernardo. Abelardo compôs, nesta altura, uma Apologia e passou os últimos
dias da sua vida na abadia de Saint Marcel. Aqui morreu em 20 de Abril de
1142 com 63 anos. Os seus restos mortais foram sepultados no Paracleto o para
ali foram levados e sepultados a seu lado, vinte e um anos depois, os restos
mortais de Heloísa (1164).

Abelardo é o autor de uma Dialéctica, escrita em 1121, de numerosas obras


lógicas constituídas de comentários (Glossae) aos escritos lógicos de
Porfírio e Boécio e de uma obra intitulada Sic et non, que é a típica
expressão do seu método. Além disso, escreveu três obras sobre o problema
trinitário: Tractatus de unitate et trinitate divina, Introductio ad
Theologiam, Theologia christiana. As referências contidas nestas obras
permitem conjecturar que a Theologia christiana foi escrita depois de De
unitate, e provàvelmente entre 1123-1124, e que a Introductio não é mais que
a primeira parte da Theologia condenada no Concílio de Sens. Em continuação,
Abelardo escreveu um Conientario sobre a Epístola aos Romanos e a Ética ou
Scito te ipsum. Posteriores ainda são as Cartas a Heloísa, os Sermões, os
Hinos, os Problemata, a Exposiiio in Exameron. A carta com o título Historia
Calamitatum foi escrita entre 1133 e 1136. Nos últimos anos, passados em
Cluny, Abelardo escreveu Carmen ad Astrolabium e o Dialogus inter indaeum,
philosophum et christianum (1141-1142).

94

§ 206. ABELARDO: O MÉTODO

Abelardo exerceu sobre o desenvolvimento da filosofia medieval uma influência


decisiva. Esta influência deve-se, em primeiro lugar, ao seu fascínio como
mestre. Ele foi, senão o fundador, pelo menos o precursor da Universidade de
Paris. o seu prestígio como professor e a superioridade do seu método
consagraram a celebridade da escola de Paris e prepararam a formação da
Universidade. A obra na qual melhor esclareceu e pôs em prática o seu método
de investigação é o Sic et non. Trata-se de uma compilação de opiniões
(sententiae) de Padres da Igreja, ordenadas segundo os problemas que abordam,
de forma a que apareçam as diversas opiniões como respostas positivas ou
negativas ao problema proposto (daí o título que significa sim e não). O
processo ameaçava lançar o descrédito sobre a unidade da tradição
eclesiástica, fazendo realçar os seus contrastes de forma evidente; mas a
finalidade de Abelardo era a de expor os problemas de forma nítida para
demonstrar a necessidade de resolvê-los. Com este fim, descreve no prólogo
uma série de regras. Começa por distinguir os textos do Velho e do Novo
Testamento e os textos patrísticos. Os primeiros lêem-se com a obrigação de
crer; os outros, com liberdade de juízo. Se se encontra nos primeiros alguma
coisa que pareça absurdo, é preciso supor, não que o autor esteja enganado,
mas que o código é falso ou que o intérprete se equivocou ou então somos nós
que não conseguimos compreender. Mas no que se refere aos outros textos,
muito do que contêm foi escrito mais segundo a opinião do que a verdade.
Quando neles se encontram opiniões diferentes e opostas sobre o mesmo tema, é
preciso ter em conta o fim que o autor tinha em vista, e é preciso distinguir
as épocas em que a coisa foi dita, porque o que se

95

admite numa época é Proibido noutra e o que é prescrito rigorosamente na


maioria das vezes é depois suavizado pela dispensa. Em suma, esta é a regra
fundamental, e muitas controvérsias podem facilmente ser resolvidas se se
tiver em conta que as mesmas palavras têm significados diversos na boca de
diferentes autores.

Há que realizar, portanto, uma investigação completa para resolver os


contrastes entre os textos que têm autoridade em filosofia. E se se
considerar que a disciplina que estuda e prescreve o uso das palavras e o seu
significado é a lógica, vê-se que a lógica terá, na investigação escolástica,
como propõe Abelardo, um lugar predominante. A lógica equivale à razão
humana. A investigação de Abelardo é uma busca racionalista que se exerce
sobre os textos tradicionais para encontrar neles, livremente, a verdade que
contêm. Esta investigação deve ser entendida como uma constante interrogação
(assidua seu frequens interrogatio). Principia na dúvida, porque só a dúvida
promove a investigação e só a investigação conduz à verdade (dubitando enim
ad inquisilionem venimus; inquirendo veritatem percipimus).

Nisto reside, sem dúvida, o motivo de fascínio que a personalidade de


Abelardo exerceu sobre os seus contemporâneos e da eficácia do seu ensino
sobre a escolástica. Abelardo é uma das personalidades que mais sentiu e
viveu as exigências e o valor da investigação. Os resultados especulativos
são para ele menos importantes que a investigação necessária para chegar a
esses resultados. O ter encarnado o espírito da investigação racional numa
época de despertar filosófico, levou-o a ser considerado o fundador do método
escolástico.

Este método, em breve se fixou, depois dele, num esquema que foi seguido
universalmente, o esquema da questio, que consiste em partir de textos que
dão soluções opostas ao mesmo problema

96

para chegar a elucidar, por um caminho puramente lógico, o própria problema.


Este método, que a princípio foi tido como duvidoso e combatido, em breve
prevaleceu em toda a escolástica.

§ 207. ABELARDO: RAZÃO E AUTORIDADE

O predomínio da investigação na especulação de Abelardo confere à razão o


predomínio sobre a autoridade. Abelardo não nega a função da autoridade na
investigação: "Enquanto a razão se mantém oculta, afirma, (Theol. christ.,
111, Migne, col.
1226), deve bastar a autoridade e deve respeitar-se sobre o valor da
autoridade aquele conhecidíssimo princípio, transmitido pelos filósofos: não
se deve contradizer o que parece verdadeiro a todos os homens, ou aos que são
mais, ou aos que são doutos". Só à autoridade nos devemos confiar enquanto se
mantiver oculta a razão (dum ratio latet). Mas a autoridade passa a ser
inútil quando a razão possui meios para encontrar, por si, a verdade. "Todos
sabemos que, naquilo que pode ser discutido pela razão, não é necessário o
juízo da autoridade" (Theol. christ., 111, col, 1224). É certo que a razão
humana não é medida suficiente para compreender as coisas divinas (De unit.
et trin., edic. StólzIe, 27). A propósito da Trindade, por exemplo, Abelardo
diz explicitamente que não pode prometer com este argumento ensinar a verdade
à qual nenhum homem pode chegar, mas propor apenas uma solução verosímil ou
próxima da razão humana e que, ao mesmo tempo, não seja contrária à fé
(Int. ad Theol., H, 2).

Mas isto não implica que a fé não se deva alcançar e defender com a
razão. Se não é preciso discutir, nem sequer sobre o que se deve ou não deve
crer, que nos resta senão prestar fé tanto

97
aos que dizem a verdade como aos que dizem o que é falso? (Ibid., 11, 3). Não
cremos numa coisa porque Deus a tenha dito, mas porque admitimos que Ele a
disse, e assim nos convencemos de que a coisa é verdadeira. Uma fé cega,
prestada com ligeireza, não tem nenhuma estabilidade, é uma fé incauta e
privada de discernimento: em qualquer caso é preciso discutir, pelo menos de
antemão, se é necessário acreditar ou não (Ibid., 11, 3). A última convicção
de Abelardo está expressa na Historia calamitatum (cap. 9). Nela afirma que
escreveu o livro sobre a Unidade e Trindade divina para os seus discípulos
que, no campo teológico, procuravam argumentos humanos e filosóficos e
queriam mais raciocínios do que palavras. É ingénuo pronunciar-se palavras
cujo significado não se entende, uma vez que não se pode crer senão no que se
entende, e é ridículo predicar aos outros aquilo que quem predica ou quem
ouve não consegue apreender. Não se pode crer senão no que se compreende.
Nesta frase se contém o verdadeiro cerne da investigação de Abelardo. A
própria verdade -revelada não é verdade para o homem, se não apelar para a
sua racionalidade, se não o deixa entender e apropriar-se dela.

§ 208. ABELARDO: O UNIVERSAL COMO DISCURSO

Na discussão sobre os universais, a posição de Abelardo é típica e vai


influenciar poderosamente o desenvolvimento posterior do problema. Com
efeito, Abelardo foi o primeiro que baseou a sua

solução não já na verdadeira ou suposta realidade metafísica do conceito, mas


unicamente na sua função, que é a de significar as coisas.

Abelardo parte da definição de universal dada por Aristóteles (De interpr.,


1, 6). "Universal é o

98

que nasceu para ser predicado de muitas coisas". Em virtude desta definição,
Abelardo acentua o carácter lógico e puramente funcional do universal e, por
um lado, nega que possa, por qualquer título, ser considerado como uma
realidade ou res, e por outro, que possa considerar-se como um puro nome. Não
pode ser considerado como realidade porque nenhuma realidade pode ser
predIcada de outra. Rem de re praedicari monstrum dicunt, afirma João de
Salisbúria no Metalogicus (11, 17) referindo-se a Abelardo e aos seus
continuadores. Por outro lado, não pode ser uma pura voz, porque a própria
voz como tal é uma coisa, uma realidade particular que não _ pode ser
predicada de outra. A fórmula de Roscelino: universal est vox, é substituída
por Abelardo pela fórmula universal est sermo: diferentemente de vox,
sermo supõe predicabilidade, referenoia a uma realidade significada, o que
a escolástica posterior chamará intencionalidade.
Este ponto de vista que encontra a sua expressão mais clara nas Glosas a
Boécio, tem o grande mérito de ter clarificado a natureza puramente lógica e
funcional do conceito. Trata-se de uma descoberta que o posterior
desenvolvimento da lógica medieval não irá esquecer. Através dela, Abelardo
pode justificar a realidade objectiva do universal sem ter de recorrer às
hipóstases metafísicas do realismo. É evidente que não existe o universal
fora das coisas individuais. Quando os filósofos afirmam que a espécie é
criada pelo género, não pressupõem com isto que o género preceda às suas
espécies no tempo ou exista antes delas. O género não é de forma alguma
anterior à espécie, e nunca pôde existir um animal que não fosse nem racional
nem irracional: o género não pode existir senão com a espécie, tal como esta
não pode existir senão com aquele. (Int. ad theol., 11, 13). Mas o facto de o
universal não existir na realidade como tal, não significa que não

99

seja nada. As coisas singulares, nas suas propriedades e na sua natureza, são
uniformes ou semelhantes, a~r desta uniformidade ou semelhança não
constituir, por sua vez, uma coisa singular. Todas as coisas separadas, como
Sócrates e Platão, são opostas em número mas convergem nalguma coisa, por
exemplo, no facto de serem homens. E esta convergência ou uniformidade é
real: Abelardo define-a, como um status, que não é nem uma res nem um
nihilum. Quando se diz que todos os homens se aproximam pelo facto de serem
homens (In statu hominis), deve-se entender apenas que todos são homens e que
nisto não diferem em nada. (Philosophische Schriften, ed. Glyer p. 19-20).
Tal é a a tese típica do nominalismo medieval; e a lógica nominalista
integrá-lo mais tarde, com a doutrina da suppositio: mediante a qual se
exprime a função própria do conceito (como -sinal) de estar em lugar, nas
proposições e nos raciocínios em que é utilizado, de um conjunto de objectos
entre os seus similares.

§ 209. ABELARDO: O ACORDO ENTRE A FILOSOFIA E A REVELAÇÃO

O valor que a investigação racional como tal assume aos olhos de Abelardo,
condu-lo naturalmente a reconhecer o valor de todos aqueles que se dedicam ao
mesmo tipo de investigação, mesmo que estejam fora do cristianismo. Abelardo
reconhece assim que a verdade falou também pela própria boca dos filósofos
pagãos, que também poderiam ter reconhecido a natureza trinitária de Deus
(Intr., ad. Theol., 1, 20). A distinção entre filósofos pagãos e cristãos
deixa de ter valor para ele: todos estão unidos pela razão. Tanto a vida como
a doutrina dos filósofos, afirma ele, encarnam o mais alto grau da perfeição
evangélica ou apostólica, e pouco
100

ou nada se afastam da religião cristã (Theol., christ.,


11, 1, col. 1184).

A intenção fundamental de Abelardo nas suas especulações teológicas, é


precisamente a de mostrar o acordo substancial entre a doutrina cristã e a
filosofia pagã. Abelardo dá-se conta, todavia, de estar a forçar, nesta sua
tentativa, o sentido literal das expressões dos filósofos a que se refere,
mas defende-se recordando que os próprios profetas, quando através deles
falava o Espírito Santo, não entendiam, senão em parte, o significado das
suas palavras: as quais muitas vezes são tomadas claras e interpretadas por
outros (Introd. ad theol., 1, 20).

De acordo com estes pressupostos, o tratamento racional do dogma trinitário é


em Abelardo conduzido no sentido de demonstrar o acordo substancial dos
filósofos, em particular de Platão e dos neo-platónicos, com a revelação
cristã. Com efeito, até mesmo os filósofos pagãos, segundo Abelardo,
conheceram a Trindade. E admitiram que a Inteligência divina ou Nous nasceu
de Deus e é coeterna com Ele, e, além disso, consideraram a alma do mundo,
como uma terceira pessoa, que procede de Deus e é a vida e a salvação do
mundo. " Platão, afirma Abelardo, reconheceu explicitamente o Espirito Santo
como a Alma do mundo e como a vida de tudo. Uma vez que na bondade divina
tudo, de certo modo, vive; e todas as coisas estão vivas e nenhuma está morta
em Deus; o que significa que nenhuma é inútil, nem mesmo, os males, que são
dispostos da melhor maneira para bem do conjunto" (Theol., christ., 1, 27, c.
1013). Se Platão afirma que a alma do mundo é em parte indivisível e mutável
e em parte divisível e mutável, enquanto se multiplica nos vários corpos,
isto deve ser entendido no sentido de que o Espírito Santo permanece
indivisível em si mesmo; mas, enquanto multiplica os seus dons, aparece
dividido na sua

101

acção vivificadora. Quando Platão afirma que a

Alma foi colocada por Deus no meio do mundo e que a partir daí se estende
igualmente por todo o globo, o que ele quer afirmar, de forma elegante, é que
a graça de Deus se oferece igualmente a todos, e que nesta casa ou templo que
é seu, o mundo, ele dispõe todas as coisas de modo salutar e justo (Introd.
ad theol., 1, 27). A doutrina Platónica coincide assim de forma substancial,
com a fé na Trindade; e se Platão afirma que a Mente e a Alma do mundo foram
criadas, trata-se de uma expressão imprópria que quer significar a geração
e a providência das duas pessoas, divinas do Pai Ubid. 1, 10).

§ 210. ABELARDO: A TRINDADE DIVINA

Estas analogias guiam Abelardo nas suas interpretações trinitárias. A


distinção das três pessoas é baseada na distinção dos atributos. Com o nome
do Pai indica-se a potência da majestade divina pela qual pode fazer tudo o
que quer. Com o nome

de Filho ou Verbo designa-se a sapiência de Deus, pela qual ele pode conhecer
tudo e de modo algum ser enganado. Com o nome de Espírito Santo exprime-se a
caridade ou benignidade divina, pela qual Deus quer que tudo seja disposto do
melhor modo e dirigido ao melhor fim. Estes três momentos da Trindade
garantem a perfeição divina, uma

vez que não é perfeito em tudo quem é importante em qualquer coisa, nem é
perfeitamente santo quem pode enganar-se em qualquer coisa, nem é
perfeitamente bondoso quem não quer que tudo seja disposto do melhor modo. Os
três atributos de Deus, expressos nas três pessoas da Trindade, pressupõem-se
e reclamam-se uns aos outros. E assim, ainda que a sapiência pertença ao
Filho e a caridade ao Espírito Santo, todavia, tanto o Pai como

102

o Espírito Santo são inteira sapiência; e, do mesmo modo, tanto o Pai como o
Filho são também caridade (Int. ad Theol., 1, 7-10). Em razão desta unidade
dos atributos divinos, as várias pessoas derivam umas das outras. O Pai, que
é a potência, gera em si a sua sapiência, que é o Filho, se bem que a própria
sapiência divina, seja uma potência, isto é: um poder de Deus: o poder de
discernir a forma de evitar qualquer engano ou erro, de modo a que nada pode
subtrair-se ao conhecimento de Deus. O Espírito Santo procede do Pai e do
Filho, enquanto a bondade é própria do Espírito, a forma de produzir os seus
efeitos deriva da potência e da sapiência de Deus: pois se não derivasse da
potência seria privado de eficácia e se não derivasse da sapiência não
conheceria a melhor forma de explicar-se e de produzir os seus efeitos. O
Espírito Santo designa portanto o proceder de Deus de si para as criaturas,
que têm necessidade dos benefícios da graça divina, proceder que é ditado
pelo amor de Deus (1b., 11, 14). O Filho e o Espírito Santo diferem, todavia,
na sua derivação de Deus Pai: o Filho é gerado pelo Pai, e é da mesma
substância do Pai, uma vez que a sapiência é uma determinada potência; o
Espírito Santo não é da mesma substância do Pai e do Filho porque a caridade,
que não é atributo, não é nem potência nem sapiência, ainda que esteja
condicionada na sua eficácia, tanto por uma como por outra. Fala-se,
portanto, de geração do Filho em relação ao Pai, e de processão do Espírito
Santo, tanto em relação ao Pai como ao Filho (1b., 11, 14).

A relação entre as três pessoas divinas e a sua geração ou processão é


ilustrada em Abelardo com uma comparação. A divina Sapiência é um aspecto
determinado da divina Potência do mesmo modo que um selo de bronze é uma
determinada parte do bronze. A divina Sapiência recebe o seu ser

103

da divina Potência tal como O selo de bronze recebe o seu ser do bronze de
que é formado. Para que seja um selo de bronze, é necessário que exista o
bronze; assim a divina Sapiência que é a potência de conhecer, exige
necessariamente que haja a divina Potência, de que é formada. E como o bronze
se chama a substância do selo, assim a divina Potência é a substância da
divina Sapiência.

Nesta similitude, o Espírito Santo é aquele que se serve do selo e aquele que
pressupõe o ser do próprio selo e do bronze que o constitui. Tal como aquele
que ao usar o selo se serve de qualquer coisa mole sobre a qual imprime a
imagem que existe na substância do selo, assim o Espírito Santo, com a
distribuição dos seus dons, reconstitui em nós, a imagem destruída de Deus,
para que de novo sejamos feitos conforme a imagem do Filho de Deus, isto é:
de Cristo. Em suma, tal como o bronze, o selo e o acto de selar são uma só
coisa na sua essência, ainda que se trate de três coisas distintas uma das
outras; assim também o Pai, o Filho, e o Espírito Santo são uma única
essência, mas são distintos uns dos outros nos seus atributos pessoais, de
forma que nenhuma pessoa pode ser substituída por outra. O bronze, como
matéria, não é a forma do selo e reciprocamente. Assim o Pai não é o Filho, e
a Potência divina não é a divina Sapiência; e reciprocamente (Int. ad.
theol., 11, 14).

Estas especulações trinitárias de Abelardo suscitaram a crítica de S.


Bernardo que interpretou os atributos com que Abelardo caracteriza as três
pessoas divinas como se fossem omnipotência, semi. -potência, nenhuma
potência (De erroribus Ab., 3, 8). E na verdade tal coisa é teológicamente
imprópria, uma vez que não assume a substancialidade das pessoas divinas que
são reduzidas, segundo o esquema de Escoto Erígena, a três momentos da vida
divina (modalismo). Por outro lado, a especulação de Abe-

104

Abelardo conduz Heloísa para o

Convento do Paráclito
lardo tem uma intencionalidade mais cosmológica do que teológica. O seu
objectivo é mais o de esclarecer a estrutura e a constituição do mundo e a
relação entre o mundo e Deus, do que propriamente esclarecer a natureza de
Deus. E esta sua intencionalidade cosmológica foi aplicada e utilizada pelos
filósofos posteriores, especialmente os da escola de Chartres.

§ 211. ABELARDO: A UNIDADE DIVINA

No que se refere à natureza de Deus em si própria, Abelardo repete a


especulação negativa de Escoto Erígena. Não é possível definir a essência de
Deus, porque Deus é inexprimível. Deus está fora do número das coisas, porque
não é nenhuma delas. Todas as coisas pertencem ou à categoria da substância
ou a outra categoria. Mas aquilo que não é substância não pode subsistir em
si. Ora bem, Deus é o princípio e fundamento de tudo, portanto não pode
pertence- ao conjunto das coisas que não são substância. Mas tão-pouco pode
ser integrado nas substâncias. Com efeito, o que é característico da
substância é o permanecer numericamente una e idêntica, ainda que possa
receber em si determinações diversas e opostas. Mas Deus não pode receber
nenhuma dessas determinações, porque nele não há nada de acidental e de
mutável. Por isso, mais que substância, deve-se chamar-lhe essência, dado que
nele, o ser e o subsistir são absolutamente -idênticos. Nenhum nome, nenhuma
palavra referida a Deus conserva o significado com a qual são referidas todas
as coisas criadas. A natureza divina apenas pode ser exprimida com parábolas
e metáforas. Podemos distinguir, por exemplo, na substância do homem a vida
animal, a razão, a mortalidade, etc., ainda que a essência do homem permaneça
numericamente una e idêntica. Do mesmo modo pode-

105

mos supor que na divina Substância se podem distinguir atributos diversos,


constitutivos de três pessoas diferentes, permanecendo, no entanto, aquela
substância una e idêntica (Intr., ad theol., il, 12).

Para compreender a unidade das pessoas divinas é útil considerar uma outra
imagem que Abelardo vai buscar à gramática. A gramática distingue três
pessoas: a que fala, aquela a quem se fala e aquela de que se fala; mas
reconhece que estas três pessoas podem ser atribuídas a um mesmo sujeito. Uma
pessoa pode falar de si a si própria; neste caso, referem-se ao mesmo sujeito
todas as três pessoas da gramática. Além disso, a primeira pessoa é o
fundamento das outras, uma vez que não há ninguém que fale, também não há
ninguém a quem se fale e ninguém de que se fale. Em suma, a terceira pessoa
depende das duas precedentes, pois que só entre duas pessoas que falam se
pode falar de uma terceira pessoa. Em tudo isto podemos encontrar a imagem da
unidade divina; ainda que a segunda pessoa, com efeito, pressuponha a
primeira e a terceira as outras duas. E como um e mesmo homem pode ser a
primeira, a segunda e a terceira pessoas gramaticais, sem que estas três
pessoas se confundam ou anulam; assim também em Deus a mesma essência pode
ser as três pessoas, sem que as três pessoas se identifiquem umas com as
outras (lbid., 11, 12).

§ 212. ABELARDO: DEUS E O MUNDO

As relações entre Deus e o mundo são esclarecidas em Abelardo com o


fundamento dos atributos divinos e em primeiro lugar o da omnipotência, que é
o atributo próprio do Pai. A conclusão a que Abelardo chega, a propósito
deste atributo, é de que Deus não pode fazer nem mais nem menos

106

daquilo que faz e por isso a sua acção é necessária. Com efeito, Deus apenas
pode fazer o bem. Deus faz aquilo que quer, mas quer aquilo que é bom.
O princípio da sua acção não é o sic volo, sic iubeo, sit pro ratione
voluntas: Ele quer apenas que aconteça aquilo que é bom que aconteça. (Theol.
christ., V, col. 1323). É claro pois, que, em tudo aquilo que Deus faz ou
deixa de fazer, há uma justa causa... Tudo aquilo que ele faz, deve fazê-lo,
porque se é justo que alguma coisa aconteça, é injusto que essa coisa seja
omitida (Intr., ad theol.,
111, 5). Nem se pode dizer que, se Deus tivesse feito algo de diferente
daquilo que fez, esse algo seria também bom, porque seria feito por ele; uma
vez que, se aquilo que não fez, fosse bom como aquilo que faz, não haveria
fundamento para a sua escolha nem motivo para fazer uma coisa e omitir outra.
Se aquilo que faz é apenas o bem, Deus pode fazer apenas aquilo que faz.
Tinha pois razão Platão ao afirmar que Deus não podia criar um mundo melhor
do que aquele que criou (lb., 111, 5). Em Deus, possibilidade e vontade são
uma e só coisa: é verdade que ele pode tudo o que quer, mas é verdade também
que ele não pode, senão aquilo que quer. Esta doutrina de Abelardo implica a
necessidade da criação do mundo e o optimismo metafísico. O mundo foi
necessariamente querido e criado por Deus. Tudo o que Deus quer, quere-o
necessariamente, nem a sua vontade pode permanecer ineficaz; necessariamente,
pois, Ele leva a seu termo tudo aquilo que quer (Theol., christ., V, col.
1325 e segs.).

A necessidade do mundo não implica a essência da liberdade em Deus. A


liberdade não consiste em escolher indiferentemente o fazer uma coisa ou
outra, mas antes em executar sem coacção, e com plena independência, aquilo
que se decidiu consciente e racionalmente. Esta liberdade pertence também a
107

Deus: pois tudo aquilo que ele faz, fá-lo apenas por sua vontade, e portanto
sem precisar de qualquer coacção (Intr. ad theol., 111, 5).

Deus concedeu ao homem a possibilidade de pecar e de fazer o mal para que, em


confronto com a nossa fraqueza, nos surja na sua glória, uma vez que de forma
alguma Ele pode pecar: e para que ao afastarmo-nos do pecado não atribuamos
isso à nossa natureza, mas à ajuda da sua graça que dispõe para a sua glória
não só o bem como também o mal (Ib., HI, 5).

A necessidade que é própria de Deus reflecte-se nas acções de Deus no mundo.


Deus prevê tudo: e se bem que a sua previsão não seja necessariamente
determinante em relação aos acontecimentos singulares, não pode contudo ser
desmentida e esses acontecimentos devem integrar-se na ordem das suas
previsões. Nesta ordem integra-se também a predeterminação. Deus predestina
os eleitos à salvação, mas mesmo aqueles que ele não predestina e que por
isso estão condenados, integram-se na ordem providencial do mundo. A acção de
Deus não é nunca sem motivo, ainda que o motivo permaneça oculto aos homens.
Mesmo a traição de Judas integra-se na ordem providencial, porque sem a sua
existência não teria sido possível a redenção da humanidade. E, tal como a
traição de Judas, todos os males que podem acontecer ou acontecem, estão
ordenados pela Providência divina para o bem, o têm o seu motivo e o seu
resultado inevitável, mesmo que o homem não possa dar-se conta disso Un Ep.
ad Rom., col. 649-52).

§ 213. ABELARDO: O HOMEM

A alma humana é, segundo Abelardo, uma essência simples e distinta do corpo.


Existe um sentido ao afirmar-se que até as criaturas intelectuais, como

108

a alma ou o anjo, são corpóreas, enquanto estão ,limitadas no espaço; mas


trata-se de um sentido impróprio que deriva de um conceito falar de
corporeidade. A alma está toda presente em todas as partes do corpo e é o
princípio da vida corpórea. Só através da alma o corpo é o que é (Intr. ad
theol., HI, 6). Como natureza espiritual, a alma traz em si a imagem
da Trindade divina. O que na alma é substância, é na Trindade a pessoa do
Pai; o que na alma é virtude e sapiência é na Trindade o Filho, que é a
Virtude e a Sapiência de Deus; aquilo que na alma é a propriedade de
vivificar-se é na Trindade o Espírito Santo, ao qual corresponde a missão de
dar vida ao mundo (1b., 1, 5).
A alma humana é dotada de livre arbítrio. "Por livre arbítrio, afirma
Abelardo, entendem os filósofos o livre juízo da vontade. O arbítrio é, com
efeito, a deliberação ou o juízo da alma, pelo qual alguém se propõe fazer ou
deixar de fazer qualquer coisa. Este juízo é livre quando nenhuma necessidade
de natureza impõe a realização do que se decidiu e permanece em nosso poder
tanto o fazer como o deixar de fazem (lb., 111, 7). Os animais não têm livre
arbítrio porque não têm raciocínio e mesmo nós estamos privados de livre
arbítrio quando queremos aquilo que não está no nosso poder ou quando alguma
coisa acontece sem a nossa decisão. Como capacidade de executar
voluntariamente e sem coacção a acção que se decide a seguir a um juízo
racional, o livre arbítrio pertence quer aos homens quer a Deus e em geral a
todos os que não estão privados na faculdade de querer. Pertence também, e em
grau eminente, aos que não podem pecar. O que não pode peca-r, não pode
certamente afastar-se do bem; mas isso não implica que seja obrigado a fazê-
lo por uma necessidade de coacção. Essa impossibilidade não deve confundir-se
com uma constrição que impeça ou vincule o juízo racional

109

da vontade (1b., 111, 7). Pode dizer-se, assim, que a liberdade de escolha é
mais ampla no âmbito do bem, quando aquele que escolhe está livre da servidão
do pecado (1b., 111, 7).

§ 214. ABELARDO: A ÉTICA

O ponto central da ética de Abelardo é a distinção entre vício e pecado e


entre pecado e má acção. O vício, é uma inclinação natural da alma para o
pecado. Mas se tal inclinação consegue ser combatida e vencida, não só não dá
origem ao pecado, como torna ainda mais meritória a virtude.
O pecado é, pelo contrário, o consentimento dado a essa inclinação e é um
acto de desprezo e de ofensa a Deus. Consiste no não cumprir a vontade de
Deus, no transgredir uma sua proibição. Trata-se de um não-fazer, ou de um
não-omitir; de um não-ser, de uma deficiência, de uma ausência de realidade:
de algo sem substância (Scito te ipsum 3). A acção pecaminosa pode ser
cometida mesmo sem o consentimento da vontade, mesmo sem pecado: como
acontece quando, por defesa. se mata um perseguidor furioso. O mal da alma é
verdadeiramente apenas o pecado, o consentimento dado a uma inclinação
viciosa. A vida humana é uma contínua luta contra o pecado. "Desta forma, nós
estamos sempre empenhados num combate interior para recebermos no outro mundo
a coroa dos vencedores. Mas para que haja batalha é necessário que exista um
inimigo que resista e que não deixe de surgir. Este inimigo é a nossa vontade
pecaminosa, sobre a qual devemos triunfar submetendo-a ao querer de Deus; mas
nunca conseguiremos eliminá-la definitivamente porque devemos ter sempre um
inimigo contra quem combatem (1b.).
Abelardo está na situação de -insistir, com base nestas premissas, sobre a
pura interioridade das valo-

Ho

rações mormis. A acção pecaminosa nada acrescenta ao pecado que é o acto pelo
qual o homem despreza o querer divino. Onde não existe consentimento da
vontade não existe pecado, ainda que a acção seja em si pecaminosa (como no
caso de quem mata coagido), e quando existe consentimento da vontade na
inclinação viciosa, o facto de se seguir a ela uma acção pecaminosa nada
acrescenta à culpa. Deve-se chamar transgressor, não àquele que faz aquilo
que é proibido, mas àquele que apenas consente no que é proibido por Deus: e
assim a proibição deve entender-se como referida não à acção, mas ao
consentimento. "Deus tem em conta não as coisas que se fazem mas o ânimo com
que elas são feitas; e o mérito e o valor do que actua não consiste na acção
mas na intenção" (1b.). Uma mesma acção pode ser boa ou má; por exemplo,
enforcar um homem tanto pode ser um acto de justiça como de malvadez.

Nem sempre o juízo humano pode adequar-se a esta exigência da valoração


humana. Mas isso acontece porque os homens não têm em conta a culpabilidade
interior, a não ser o acto pecaminoso externo, que é efeito da culpa. Apenas
Deus que observa, não as acções, mas o espírito com que são praticadas, pode
avaliar segundo a verdade, o valor das intenções humanas e julgar exactamente
a culpa (1b., 5). O juízo humano afasta-se necessariamente do juízo divino. O
primeiro castiga mais a acção do que a intenção, porque segue mais um
critério de oportunidade do que um dever de justiça e tem em mira, sobretudo,
a utilidade comum; o segundo, pelo contrário, castiga exclusivamente a
intenção e inspira-se na mais perfeita justiça, sem ter em conta as
repercussões sociais da culpa. Mas enquanto o juízo humano se conforma com
necessários critérios de oportunidade, tal coisa não é justificável com o
fundamento da realidade moral

111

do homem. Para esta real-idade não é a acção mas a intenção que conta, e a
acção só é boa quando procede de uma boa intenção. Na verdade, a bondade da
intenção deve ser real, não aparente; é necessário que o homem não se engane
ao crer que o fim para que tende seja da vontade de Deus (1b., 11). Abelardo
procede coerentemente nesta ética da intenção e não se detém perante as
consequências teologicamente perigosas da mesma. Se o pecado está apenas na
intenção, como se justifica o pecado original? Abelardo responde que o pecado
original não é um pecado, mas a pena de um pecado. "Quando se diz que as
crianças nascem com o pecado original e que nós todos, segundo o Apóstolo,
pecámos como Adão, é como se se dissesse que do pecado de Adão derivou a
nossa pena, que é a sentença da nossa condenação" (1b., 14). Igualmente
impróprio é chamar pecado à ,ignorância em que vivem os infiéis em relação à
verdade cristã e as consequências que surgem de tal ignorância. "Não
constitui pecado o ser infiel, ainda que -tal coisa impeça a entrada na vida
eterna àqueles que chegaram ao uso da razão. Para ser-se condenado é
suficiente não acreditar no Evangelho, ignorar a Cristo não se aproximar dos
Sacramentos da Igreja, ainda que isto aconteça não por maldade, mas apenas
por ignorância" (1b., 14). Não se pode ter por culpa o facto de não
acreditarem no Evangelho e em Cristo aqueles que nunca ouviram falar nem dum
nem doutro. Afirmar que se pode pecar por ignorância significa entender o
pecado num sentido lato e impróprio, já que o pecado é verdadeiramente apenas
a ignorância quando é efeito de negligência consciente.

NOTA BIBLIOGRÁFICA § 205. As obras teológicas de Abelardo in P. L.,


178.o. Alguns escritos foram publicados parcialmente Por COUSIN, Ouvrages
inédits d'Abélard, Paris, 1836

112

(Cousin tem uma nova edição das obras já editadas, conjuntamente com
Jourdain, Paris, 1849-1859); outros por GYEER, Abaelards philosophie
Schriften, nei "Beitrage", XX1, 1-4, 1933; e por DAL PRA, P. Abelardo Scritti
filosofici, Milão, 1954.

Outras edições: De unitate et trinitate divina, ed. Stõlzl,e, Friburgo, 1891;


Theologia Summi boni, ed. Ostlender, nei "Beitrage", XXV, 1939; Dialectica,
ed. De Kijk, Utrecht, 1956; Historia calamitatum, ed. Monrain, Paris, 1959.

RÉmuSAT, Abélard, 2 vols. Paris, 1845; OTTAVIANO. P. Abelardo, Roma, 1931;


S1KES, P. Abelard, Oambridge, 1932; GILSON, Heloise et Abélard, Paris, 1938
(Trad. ital., Turim, 1950); LLOYD, P. Abelard: the orthodox Rebel, Londres,
1947; MOORE, He"se and Abelard, Londres, 1952.

§ 206. RoBERT, Les écoles et Venseignement de Ia théologie pendant Ia


première moitW du XIIe siècle, Paris, 1909; GRABMANN, Geschichte de
scholastichen Methode, 11, 199-221).

§ 207. MOORE, Reason in the Theology of. P. Abelard, in "Proceed. Cathol.


Philos. Assoc.", 1937.

§ 208. REINERS, nei "1@eitrãge", VH1, 5, 1910; GEYER, nei "Beitrage", supp1.
1, 1913; ARNOLD, Zur Geschichte der Suppositionstheorie, in " Symposion",
1952; MOODY, Truth and Consequence in Medieval Logic, Amsterdão, 1953.
§ 210, 211. GRUNWALD, nei "Beitrage", VII, 3, 36-40; MCCALLUM, A.Is Christian
Theology, Londres, 1948.

§ 214. DITTRicH, Geschichte der Ethik, 111, 67-74; DAL PRA, in "Riv. Stor.
F*Ilos.", 1948; in "Acme", 1948.

113

VII

A ESCOLA DE CHARTRES

§ 215. O NATURALISMO CHARTRENSE

O -problema dos universais, ao fim das suas primeiras manifestações,


constitui o sinal de um novo interesse pelo homem e em especial pelos seus
poderes cognoscitivos; e o resultado imediato desse interesse é uma mais
extensa autonomia reconhecida a tais poderes. Mas o século XII oferece
também, nalguns caminhos abertos pela filosofia, o exemplo de um novo
interesse pelo mundo da natureza; e também neste caso o resultado desse
interesse é o reconhecimento de uma mais extensa autonomia da natureza em
confronto com o seu próprio criador. Este segundo aspecto da Escolástica do
século XII, constitui o caminho seguido pelos filósofos que ensinaram na
Escola catedral de Chartres, que foi fundada, no fim do século X, por
Fulberto (falecido
1028). Mas juntamente com o interesse naturalístico, a escola de Chartres
cultivou igualmente o interesse pelos estudos literários o gramaticais e pela
lógica; tanto assim que nos oferece a melhor documentação sobro a viragem que
a filosofia escolástica sofre no

115

século XII; uma viragem através da qual o mundo do homem passa a ser
observado e encarado com renovado interesse, ainda que no lugar subordinado
que apesar de tudo mantém perante as forças transcendentes que o dominam.

Os temas da filosofia naturalista, que os filósofos de Chartres preferem, são


muito simples e todos se reconduzem à tentativa de Abelardo de inserir o
Timeu platónico no tronco da teologia cristã. Abelardo tinha identificado a
platónica Alma do mundo com o Espírito Santo. Esta identificação é mantida
pelos filósofos de Chartres, mas agora a identificação passa a ser entre a
Alma do mundo e a Natureza. A natureza passa a ser a força motriz, ordenadora
e vivificadora do mundo; e com estas características ganha uma dignidade e
uma potência autónomas. A natureza é designada força universal (vigor
universalis) que não só faz com que existam todas as coisas individuais como
também ela própria e de forma autónoma. E nas composições literárias que
exprimem imaginosamente e segundo os modelos clássicos estes conceitos, ela
surge personificada e exaltada como a filha de Deus, a genitrix de todas as
coisas, a ordem, o explendor e a harmonia do mundo. Mas o importante é que,
reconhecida à natureza uma tal dignidade, se torna possível reconhecer-lhe
também uma certa autonomia: começa a dar-se conta de que é possível explicar-
se a natureza com a natureza, e os filósofos de Chartres. utilizando as
fontes clássicas e patrísticas (especialmente Cícero), recorrem de boa
vontade às doutrinas epicuristas e estóicas para as suas explicações
cosmológicas. obviamente, a utilização de doutrinas assim heterogéneas -
platonismo, epicurismo, estoicismo, todas filtradas pela retorta da teologia
abelardiana-dá lugar a construções conceptuais heterogéneas e confusas que
têm escasso valor científico e filosófico. Mas a importância destas
tentativas não

116

está nos seus resultados, mas antes nos caminhos filosóficos para que
apontam; caminhos que se dispõem a dar um relevo cada vez maior à natureza e
ao homem, mesmo que a natureza e o homem sejam concebidos, não em oposição ao
transcendente, mas como manifestações do próprio transcendente.

A direcção que encontra na escola de Chartres a mais rica expressão


filosófica tinha sido preparada, desde o século anterior, por um certo
prosseguimento dos conhecimentos científicos devido sobretudo aos contactos
com os árabes. Antes da primeira metade do século XI, no que diz respeito às
ciências naturais e à medicina, a cultura medieval tinha ficado onde a
deixara as obras de Gerberto d'Aurillac. Mas nos princípios daquele século, o
médico Constantino Africano traz para o conhecimento do mundo ocidental, com
numerosas traduções, a ciência e a medicina greco-árabe. Constantino nascera
em Cartago e viajara pelo Oriente e pelo Egipto. Em 1060 deteve-se em Salerno
onde florescia uma grande escola de medicina. Mais tarde torna-se frade no
claustro de Montecassino. Traduz do árabe dois livros de medicina intitulados
Pantegni e Viaticum que foram em seguida atribuídos ao médico ebreu Isaac e
impressos com o seu nome (Lyon, 1515). Em seguida, Constantino traduz obras
médicas do mesmo Isaac e dos grandes médicos gregos Hipócrates e Galeno,
tendo chamado a atenção para a teoria atómica dos mesmos.

A obra de Constantino foi continuada pelo inglês Adelardo de Bath (nascido em


1090) que ensinou durante alguns anos em Laon, na escola de Anselmo, e viajou
pela Itália Meridional pela Espanha e pela Ásia Menor, para regressar, após
sete anos, a Inglaterra e dar a conhecer o que tinha aprendido com os árabes.
Traduz então os Elementos de Euclides e tratados árabes de aritmética e de
astronomia;

117

compõe dois livros dos quais um, Quaestiones naturales, é uma obra de física;
o outro, De codem et diverso, tem a forma de uma carta a um sobrinho o é uma
alegoria na qual a filosofia e a filoscomia disputam o jovem Adelardo,
vangloriando-se cada uma dos seus próprios méritos.

Nas Quaestiones naturales Adelardo explicitamente contrapõe a razão à


autoridade para aquele que tenta indagar o mundo natural. Nesta indagação,
afirma ele, aquilo que é preciso deter o conhecer, é a razão das coisas
(Quaest, nat., 6). Esta forma de agir não afecta, de modo algum, o poder de
Deus; porque Deus tudo fez, mas não fez nada sem razão: e é no sentido de
conhecer essa razão que se deve orientar a ciência humana (1b., 1). Na
investigação dessa mesma razão, Adelardo recorre frequentemente à teoria
atómica que provavelmente, deduzia da obra de Constantino Africano e que
neste período, como veremos em seguida, é frequentemente invocada, se bem que
seja conhecida, mais do que através de Lucrécio, através das advertências dos
escritores patrísticos: Calcídio (in Tim, 279), Ambrogio (in Hexam., 1, 2),
Santo Agostinho (Epi.,
118, 4, 28) e Isidoro (Etim., 13, 2, 1 e segs.). Por outro lado, Adelardo
introduziu pela primeira vez no Ocidente latino a prova aristotélica da
existência de Deus, deduzida do movimento (Quaest, nat., 60). De tudo isto
pode, portanto, deduzir-se que teria conhecido através dos árabes a Física de
Aristóteles, que era ainda inacessível aos filósofos do Ocidente e que ele
cita (1b., 18). Quanto ao problema dos universais, Adelardo faz sua a solução
de Abelardo, mas exprime-a de forma diferente. Os nomes "género", "espécie",
"indivíduo" , são impostos à mesma substância, mas de um ponto de vista
diferente. Assim o nome de género "animal" designa um sujeito dotado de
sensibilidade e de alma; o nome de espécie "homem" designa esse mesmo

118

sujeito mas acrescentando-lhe o raciocínio e a mortalidade; o nome individual


"Sócrates" designa todas as coisas precedentes com mais uma distinção
numérica devida a caracteres acidentais. Adelardo conclui que Aristóteles
tinha razão ao afirmar que os géneros e as espécies existem apenas nas coisas
sensíveis; mas acrescenta que também Platão tinha razão em dizer que eles
existem na sua pureza, enquanto formas sem matéria, na mente divina.

Todos estes temas e motivos são abordados na escola de Chartres cujo primeiro
representante de envergadura foi Bernardo, professor de 1114 a 1119 na Escola
catedral, e de 1119 a 1124, chanceler da Abadia. Dele não possuímos escritos
mas conhecemos a sua doutrina através dos testemunhos de João de Salisbúria
que no seu Metalogicus (IV, 35) lhe chama "o mais perfeito entre os
platónicos do seu século". O que sabemos das suas doutrinas aparece como um
resumo do Timeu platónico visto através de Abelardo. Bernardo identifica os
géneros e as espécies com as ideias platónicas e sustenta que, tal como as
ideias, são eternos. Não são todavia coeternos com Deus no sentido em que são
coeternas entre si as pessoas da Trindade. As ideias, enquanto subsistentes
na mente divina, estão privadas de matéria e não são sujeitas ao movimento:
na matéria estão apenas as imagens dessas formas ideais, impressas por Deus,
imagens a que Bernardo chama formas inatas e que têm o destino das coisas
singulares (1b., 11, 17). Mas Bernardo foi sobretudo (quanto sabemos) um
gramático e um literato, admirador entusiasta dos autores antigos: dizia ele
que nós somos, em relação aos antigos, como anões sobre os ombros de
gigantes: podemos ver mais além apenas porque podemos subir até à sua altura
(1b., RI, 4).

O irmão mais novo de Bernardo, Teodorico, de Chartres, foi professor em


Chartres em 1121; em

119

1140 ensinou em Paris onde João de Salisbúria foi seu aluno e em 1141 foi
chanceler de Chartres e ao mesmo tempo arquidiácono de Dreux. Morreu em 1150.
Teodorico, é autor de um Heptateucon ou manual das sete artes liberais de que
se servia no seu ensino e que é um documento do material de estudo utilizado
nas escolas na primeira metade do século XII; de um comentário ao géneses
Hexameron ou De septem diebus e de um comentário ao De Trínitate de Boécio.
Na especulação de Teodorico é sensível a influência das obras de Escoto
Erígena. Como este, Teodorico distingue quatro causas e que em seguida são
quatro fases do processo de auto-realização de Deus no mundo: a causa
eficiente, que é Deus Pai; a causa formal que é a Sapiência ou o Filho de
Deus, que organiza a matéria; a causa final que é o Espírito Santo que anima
e vivifica a matéria já formada e organizada; e finalmente a causa material
que são os quatro elementos que o próprio Deus criou do nada no princípio.
Como se vê, Teodorico, tal como Abelardo, identifica o Espírito Santo com a
Alma do mundo e na sua obra é frequente a insistência neoplatónica (obtida em
Escoto Erígena) sobre o primado ontológico da Unidade, que é o próprio Deus.
Teodorico insiste também na sua noção de unidade ao considerar Deus, no seu
comentário ao De Trh*ate de Boécio, como a única forma do ser (forma essendi)
de que participam todas as coisas existentes, tal como da única matéria
participam todas as coisas materiais. É provável que esta doutrina não tenha,
para Teodorico, o significado panteístico que à primeira vista pode
apresentar; mas com tal significado podia ser encarada, assim como foi, por
alguns escolásticos, como veremos. É portanto característica de Teodorico
(como de todos os filósofos de Chartres) a tese de que a obra miraculosamente
criadora de Deus se extingue

120

com a produção dos quatro elementos; criados os quatro elementos, a acção


natural da capacidade deles próprios produz o ordenamento do mundo e a
disposição das suas partes: nesta acção tem grande papel o fogo com o seu
poder iluminante e incandescente. Trata-se da velha doutrina estoica,
extraída da tradição neoplatónica.

Aluno de Bernardo foi Guilherme de Conches de quem sabemos pouquíssimo.


Nascido, provavelmente, em 1090, era ainda vivo em 1154 e foi professor de
gramática em Chartres. Escreveu uma Philosophia que é :a sua primeira obra
sistemática, um Dragmaticon, composto entre 1144 e 1149 e que pode
considerar-se a sua obra mais amadurecida. Extractos do Dragmaticon são o De
secunda e o De tertia philosophia. Escreveu também Glosas a Boécio, Glosas ao
Timeu e um tratado de ética, Moralium dognw philosopharum, que é uma recolha
de máximas de moral extraídas de autores pagãos e ordenadas sistemàticamente.
A Guilherme costuma também ser atribuído um Compendium philosophiae em seis
livros que é também atribuído a Hugo de São Victor, mas que é provàvelmente
obra de um compilador anónimo.

Em todos estes escritos podemos encontrar, com pequenas oscilações e


retraimentos, a doutrina típica da escola de Chartres. Nas Glosas ao Timeu
que parecem ser anteriores à Philosophia e que foram publicadas recentemente,
Gui]herme afirma: "A alma do mundo é o vigor natural que permite a umas
coisas terem movimento, a outras o crescimento, a outras o sentir, a outras o
discernir. Quanto a mim julgo que este vigor natural é o Espírito Santo, ou
seja, a divina e benigna concórdia da qual todas as coisas retiram o ser, o
movimento, o crescimento, o sentir, o viver e o discernir". Com mais
incerteza, esta doutrina vem repetida na Philosophia, mas desaparece do
Dragmaticon, talvez

121

por efeito da condenação que, na pessoa de Abelardo, essa mesma doutrina


tinha entretanto sofrido. Mais caracteristicamente, Guilherme insiste na
composição atómica dos quatro elementos. Segundo Guilherme, a á gua, o ar, a
terra e o fogo não são verdadeiramente elementos porque são divisíveis: os
verdadeiros elementos são indivisíveis porque são simplicíssimos. No entanto,
Guilherme chama elementata Ou elementos do mundo à água, ao ar, à terra e ao
fogo e reserva o nome de elementa apenas para os átomos aos quais atribui as
qualidades fundamentais opostas: quente e frio, seco e húmido (Philosophia,
1, 21).

Todos os temas da escola de Chartres encontram uma expressão imaginosa na


obra de Bernardo Silvestre, autor de um poema intitulado De mundi
universitate sive Megacosmus et Microcosmus escrito à volta de 1150 e
dedicado a Teodorico de Chartres. A obra está redigida em verso e em prosa
segundo o exemplo do De consolatione de Boécio e do De nupliis de Marciano
Capella e é uma espécie de cosmogonia inspirada no Timeu de Platão. Bernardo
personifica as entidades teológicas e metafísicas da escola de Chartres: a
Matéria ou Hyle, concebida como absolutamente informe, aparece reconduzida à
ordem e à harmonia do Intelecto ou Noys, pelos trâmites da Natureza ou
Physis; e no cume desta ordem foi colocado o homem, o Microcosmos. A oposição
entre o carácter informe, pavoroso e maligno da Hyle e a ordem racional que a
Ph),sis procura impor, dá colorido dramático à obra. Nela, os próprios
atributos das pessoas da Trindade tomam-se puramente cosmológicos, isto é,
relativos às funções que as pessoas desempenham perante o mundo e
caracterizadas como Potência, Sapiência e Bondade, segundo um esquema que nós
podemos encontrar frequentemente nos mestres de Chartres e que deriva de
Abelardo.

122

§ 216. GILBERTO DE LA PORRÉE

O mais notável representante da escola de Chartres é Gilberto Porretano.


Nascido em Poitiers, foi aluno de Bernardo de Chartres e de Anselmo e Rodolfo
de Laon. Ensinou em Chartres e em Paris com grande sucesso e foi bispo de
Poitiers (1142-1154). Gilberto foi autor de numerosos escritos, quase todos
mantidos inéditos. Os mais notáveis são o Commentario aos opúsculos
teológicos de Boécio e um tratado das últimas seis categorias de Aristóteles
que tem o título De sex principiis,- tem-se duvidado da autenticidade deste
escrito, mas sem razões suficientes. De qualquer modo, trata-se de um escrito
que contém as teses típicas de Gilberto e que em breve se tomou famoso; foi
usado como texto de ensino na Universidade de Paris e comentado por diversos
autores: a última vez pelo humanista Hermolau Bárbaro que o publicou na sua
edição das obras de Aristóteles.

Gilberto define a fé como a "percepção, acompanhada de aprovação, da verdade


de uma coisa" o sustenta que a fé precede a razão no domínio teológico, mas
segue-a no domínio filosófico. As coisas criadas não têm necessidade
verdadeira e própria: uma vez que nelas tudo é variável, mesmo aquilo que em
regra se considera necessário. A necessidade existe apenas nas coisas divinas
e a fé precede a razão. Nós não acreditamos porque sabemos, mas sabemos
porque acreditamos (non cognoscentes credinw sed credentes cognoscimus). A
fé, prescindindo completamente dos princípios da razão, consegue compreender
não só o que a razão humana não pode compreender, mas também aquilo que ela
pode compreender com os próprios princípios. Justamente por isso, a fé
católica é considerada o exórdio não só do conhecimento teológico mas de
qualquer outro; é privada de qualquer incerteza e

123

é o fundamento mais firme e certo mesmo dos conceitos naturais (In Boeth. de
praed. trium pers., in P. L., 64. , 1303). Com base neste pressuposto.
Gilberto defende a estreita união entre a razão e a fé em toda a investigação
filosófica. "Une a fé à razão, afirma ele, para que a fé confira, em primeiro
lugar, autoridade à razão e em seguida a razão confira assentimento à fé"
(Ib., 1310).

Segundo um testemunho de João de Salisbúria (Metal., 11, 17), Gilberto


distinguia o universal in rem do universal ante rem. O universal in re, forma
inata ou espécie, considerava-o inerente às coisas criadas. A forma inata
seria a cópia do exemplar existente na mente divina, tal como a espécie
imanente nos indivíduos é, segundo Platão, a cópia da ideia. O intelecto
humano abstrai o universal das coisas individuais para considerar melhor a
sua natureza e melhor compreender as suas propriedades. O universal não é uma
realidade em si, numericamente una, mas a simples colecção das coisas
singulares, unificadas segundo as suas propriedades comuns. Noutros termos,
Gilberto participa aqui no ponto de vista de Abelardo: o fundamento objectivo
da universalidade do conceito, o fundamento que garante ao conceito a sua
verdade, é a semelhança que as coisas singulares têm entre si, a sua
uniformidade colectiva. O universal tinha já sido definido como colecção de
coisas singulares por Joscelino ou Gauleno no tratado De generibus et
speciebus (§ 203). Mas Gilberto acrescenta aqui uma opinião sua: distingue
dois significados na palavra substância. Num primeiro sentido, mais geral, é
substância o que para subsistir não precisa de qualidades acidentais. Neste
sentido, a substância é subsistência, isto é, essência e exprime o quo est da
coisa. Num segundo sentido, que é o próprio, a palavra substância significa
aquilo que subsiste, a realidade existente ou subsistens, o quod est (In
Boeth., de

124

trin., in P. L., 64. , 1281). No primeiro sentido, os géneros e as espécies,


ou seja, os universais, subsistem enquanto são subsistentiae ou essências
determinadas, que não precisam de acidentes para existirem no modo que lhes é
próprio. Mas no segundo sentido, apenas os indivíduos são substâncias porque
só esses, na realidade, existem. Os indivíduos, portanto, não só subsistem,
subsistunt, mas também existem, substant, porque estão dotados de diferenças
próprias e específicas e constituem os sujeitos reais dos acidentes, enquanto
são as suas causas e princípios. Quando o indivíduo subsistente tem também o
atributo da racionalidade, toma o nome de pessoa (In Boeth. de duab. nat.,
Ib., 1375 sgs.).

Com base na distinção entre subsistência e subsistente, Gilberto faz a


distinção entre forma e matéria. A forma é o que determina uma coisa no seu
ser específico; a matéria é o sujeito determinável da forma. Por isso se pode
chamar também matéria às essências enquanto são os sujeitos dos seus
caracteres e são determinadas ou concriadas por tais caracteres. Existe uma
forma simples que é "o ser do Artífice", isto é, Deus, como existe uma
matéria simples que é a matéria-prima ou informe, a hyle de Platão. Entre
estes dois extremos, estão as realidades compostas ou concretas, que são
matéria e forma, conjuntamente, no sentido referido acima. A sua criação é
uma concriação (concretio): isto é, a união sucessiva, num sujeito
indeterminado mas determinável, de essências ou subsistências que o
determinam. Neste sentido, a função criadora de Deus é uma função formadora e
Deus é a forma originária de tudo (In Boeth, de trin., Ib., 1266). Se se
quisesse exprimir esta doutrina nos termos do que em seguida se chamará o
problema da individuação, será necessário afirmar que, para Gilberto, o
princípio da individuação é a forma. Os seres singulares são determinados e
indi-

125

viduados pela essência de que são investidos o ser, a corporeidade, a


sensibilidade, a inteligência, etc. Dois seres que se distingam apenas
numericamente, por exemplo, dois homens, distinguem-se entre si pelas
propriedades formais que os constituem; e mesmo se tais propriedades lhes
faltassem, distinguir-se-iam pela sua diferença de lugar que é também ela uma
diferença qualitativa ou formal.

Se por um lado Gilberto considera Intimamente unidas a fé e a razão, entende


distinguir nitidamente o domínio das disciplinas singulares e, em primeiro
lugar, o da teologia do da filosofia. Esta distinção não deve ser baseada
numa diversidade de actividade ou de atitude espiritual, mas apenas sobre uma
diversidade de princípios objectivos. Toda a ciência deve partir de
fundamentos próprios, de princípios que são específicos da ciência e
inerentes ao seu objectivo. Gilberto gaba-se de ter feito pela teologia
aquilo que foi feito pela matemática, de ter determinado os conceitos e
princípios fundamentais da ciência teológica (In Boeth. de heMom., Ib.,
1316). Nas disciplinas teológicas, todavia, é preciso servimo-nos de
princípios que são diferentes dos que são adoptados nas considerações das
coisas naturais. E, com efeito, o objecto da teologia é completamente
diferente do objecto das ciências naturais. As coisas naturais são dotadas de
matéria e de movimento, enquanto que Deus é privado de matéria e de
movimento. Por tal motivo não são aplicadas a Deus as categorias e os
conceitos que servem para compreender as coisas naturais. A própria categoria
de substância é indevidamente referida a Deus, porque designa aquilo que
suporta as qualidades acidentais. Em relação a Deus será mais próprio falar
em essência; mas em verdade, nem a sua realidade subsistente, o quod est, nem
a sua subsistência, o quo est, são apreendidas pela razão. De Deus apenas se
pode afirmar que a singularidade da sua essência impedem qual-atribuição.
Deus é portanto inteligível, compreensível (In Boeth. the duab. nat.,

Sobra a distinção entre essência e substância, entra subsistência o


subsistente se baseia a doutrina de Gilberto sobre a Trindade. Gilberto
distingue entre deidade o Deus. A deidade é a única essência divina, da qual
participam as três pessoas diversas do Pai, do Filho e do Espírito Santo. As
três pessoas são três realidades singulares, numericamente distintas; a sua
unidade é a forma comum da deidade, de que todas participam. Em virtude da
forma de deidade cada uma delas é o que é, e cada uma delas é Deus. A fórmula
de Gilberto é a seguinte: "Deus é o Pai, o Filho e o Espírito Santo". A
essência divina que constitui a sua unidade é na verdade real, mesmo nas três
pessoas distintas. Esta doutrina trinitária atraiu sobre si a condenação da
Igreja. Depois do encerramento do Concílio de Sens, dois arquediáconos de
Poitiers foram junto do Papa Eugénio 111 e denunciaram o seu bispo como
criador de novidades teológicas heréticas. Dirigiram-se em seguida a Claraval
e informaram S. Bernardo da questão. O resultado foi que no Concílio de Paris
em 1147 e no de Reiras em 1148, a interpretação trinitária de Gilberto foi
condenada. S. Bernardo combateu a distinção entre deitas e deus; e o seu
secretário Godofredo escreveu contra Gilberto o seu Libellus contra
capitula Gilberti Porretani. A principal acusação de Godofredo contra
Gilberto é a de que a sua doutrina equivale a admitir não já uma trindade,
mas uma quaternidade divina. Por um lado, existiria a forma da deidade, por
outro as três pessoas de Deus. Estas três pessoas seriam distintas umas das
outras nas suas relações, pelas quais uma é o Pai, a outra o

127

Filho e a terceira o Espírito comum e santificante: mas estas relações seriam


estranhas à única essência divina que apareceria como uma quarta realidade,
juntamente com a trindade das pessoas divinas.

Gilberto explicava o dogma da encarnação sustentando que só a pessoa divina,


isto é, Cristo, mas não a natureza divina, ou seja a forma da deidade,
assumiu a natureza humana. Esta doutrina era consequência natural da
distinção entre a deidade e Deus (In Boeth. de duab., Ib., 1938).

A mesma distinção pode ser encontrada na doutrina antropológica de Gilberto.


O ser da alma e o ser do corpo constituem, na sua unidade, a subsistência, o
quo est do homem; apesar de o próprio homem constituir, como um todo, o quod
est, a substância existente como tal. O homem não é nem a alma, nem o corpo,
considerados por si. Com a morte, o homem como tal deixa de existir, mas a
sua parte fundamental, a alma, não perde a sua existência (1b., 1295). Com
efeito, a alma não é privada de substância ou enteléquia, mas antes uma
subsistência real, uma essência subsistente. Todavia, a alma como tal não é
uma pessoa; a personalidade pertence apenas ao homem como um todo.

Gilberto fazia deste modo valer com lógica rigorosa, em todas as partes do
seu sistema, a distinção entre subsistência e subsistente, entre essência e
substância. É evidente que na sua investigação a solução do problema dos
universais havia de influir a de todos os outros problemas. Gilberto é,
sobretudo, um lógico e no discorrer do seu pensamento obedece às exigências
da sua doutrina lógica. E mesmo as suas investigações lógicas exerceram sobre
a escolástica posterior a maior influência. O seu escrito De sex ptincipÚs
baseia-se na pretensa diferença entre as primeiras quatro e as outras seis
restantes categorias aristotélicas. As primeiras quatro

128

(substância, qualidade, quantidade, relação) designariam, além da substância,


o que é absolutamente inerente à substância, e seriam, por conseguinte,
formas inerentes. As últimas seis designariam, por seu lado, modalidades
externas que interviriam para alterar a condição da substância sem, no
entanto, se unirem a ela, e seriam por isso formas assistentes. Precisamente
dessas formas assistentes (acção, paixão, lugar, quando, situação, posse) é
que se ocupa o texto de Gilberto.

§ 217. JOÃO DE SALISBúRIA

João de Salisbúria está ligado à Escola de Chartres não só pelas relações que
teve com alguns mestres daquela escola mas também pelo entusiasmo pelos
estudos humanísticos e pela independência de pensamento que, tal como
aqueles, sempre demonstrou ter. No entanto, as suas doutrinas teológicas e
cosmológicas afastaram-se das que eram defendidas na escola de Chartres: as
quais foram além dos seus interesses porque suportadas por ele para lá dos
limites da capacidade humana.

Nasceu na velha Salisbúria, em Inglaterra, entre


1115 e 1120. Foi para França ainda jovem, à volta de 1136 e aqui permanece
até finais de 1148. A sua educação filosófica divide-se entre Paris, onde
ensinava Abelardo, e Chartres, onde foi discípulo de Guilherme de Conches e
Gilberto de Ia Porréc. Em
1151 regressa a Inglaterra e é nomeado capelão do primaz de Cantuária,
Teobaldo; depois da morte deste, foi secretário do seu sucessor, Tomás
Becket, com o qual travou relações de amizade. Em seguida foi nomeado bispo
de Chartres (1176) e nesta cidade viveu até morrer (1180).

O interesse humanístico de João de Salisbúria é evidente no seu Entheticus


sive de dogmate philosopharum (1155), um poema em dísticos, que é

129

um manual de ensino cuja primeira parte é constituída por uma história da


filosofia greco-romana. Escreve também numerosas Epistolae, uma Historia
pontificalis, de que existe um fragmento, uma Vida de Anselmo de Cantuária e
uma Vida de Tomás Becket. Em 1159, ou seja vinte anos depois do início dos
seus estudos, escreve as suas principais obras: o Policratus, que é a
primeira obra medieval de teoria política, e o Metalogicus que se apresenta
como uma defesa do valor e da utilidade da lógica contra um tal que ele
designa com o nome fictício de Cornifício. Em Cornifício podemos ver, segundo
os intérpretes modernos, a corrente que se opunha aos estudos humanísticos em
proveito da física; ou que propunha uma extensão da pesquisa lógica da
palavra às coisas. Mas, a acreditar nas declarações de João de Salisbúria,
Cornifício era um sofista que escarnecia do saber autêntico e da técnica das
artes para se entregar a exercícios confusionistas e à discussão de questões
como esta: "Se o porco conduzido ao mercado é levado pelo homem ou pela
corda" (Metal., 1, 3).

Toda a doutrina de João de Salisbúria é animada de um espírito autenticamente


crítico: o seu objectivo é o de estabelecer claramente os limites e os
fundamentos das possibilidades cognoscitivas humanas. João de Salisbúria
afirma-se um académico e sustenta que a investigação se deve contentar, a
maior parte das vezes, com o provável: "Como académico, em todas as coisas
que possam ser para o filósofo objecto de dúvida, não juro que é verdadeiro
aquilo que afirmo: no entanto, verdadeiro ou falso, contento-me apenas com a
probabilidade". E ainda: "Prefiro duvidar com os Académicos sobre as coisas
individuais, do que definir temerariamente, com simulação consciente e
perniciosa, o que permanece oculto e ignorado" (Metal., prol.). Esta prudente
posição é justificada por João de Salis-

130
búria com as próprias limitações da ciência humana, às quais se subtraem as
coisas futuras. "Sei com certeza que a pedra ou a seta que lanço às nuvens
deverá cair por terra, porque assim exige a natureza das coisas, todavia, não
sei se elas apenas podem cair no chão e porquê; com efeito, elas poderão cair
ou não. Também a outra alternativa é verdadeira, ainda que não
necessariamente, como é verdadeira aquela que eu sei que acontecerá... Aquilo
que ainda não é, não é ciência, mas apenas opinião" (Policrat., 11, 21).
Daqui deriva que todas as afirmações que implicitamente e explicitamente
digam respeito ao futuro têm um valor provável, não necessário: a sua
probabilidade é baseada na indeterminação do seu objecto e é por isso
impossível de eliminar. Com efeito, deve-se chamar provável àquilo que
acontece frequentissimamente: o que não acontece nunca de outra maneira é
ainda mais provável: e o que se crê que não pode acontecer de outra maneira
adquire o nome de necessário (Metal., 111, 9). Donde se conclui que o
"necessário" segundo João de Salisbúria é limitado à "crença"; enquanto que o
"provável" exprime a uniformidade objectiva dos eventos e baseia-se na
frequência com que acontecem. João de Salisbúria tira todas as consequências
implícitas neste ponto de vista. A dialéctica, como lógica do provável, é o
instrumento indispensável de todas as disciplinas (,Metal., 11, 13). A
pretensão da astronomia divinatória de predizer infalivelmente o futuro é
absurda porque o futuro não é necessariamente determinado e é por isso
imprevisível (Policrat., 11, 19). A infalível presciência que Deus tem das
coisas futuras não implica de forma alguma a sua necessidade (lb.,
11, 21).

No entanto, se o conhecimento humano se mantivesse encerrado no círculo do


provável, isso significaria para João de Salisbúria, um abandono à

131

dúvida radical do cepticismo. Tem de haver um ponto firme qualquer onde


possamos apoiar o edifício das nossas limitadas certezas. Os sentidos, a
razão e a fé fornecem o ponto firme dessa natureza. Afirma João de
Salisbúria: "Parece ser importante aquilo que a autoridade dos sentidos, da
razão o da religião nos persuade a admitir; e a dúvida em torno do ser tem o
carácter de doença, do erro ou do crime. Perguntar se o sol brilha, se a neve
é branca, se o fogo aquece, é próprio do homem privado de sensibilidade.
Perguntar se três é mais que dois, se o todo contém a metade, se quatro é o
dobro de dois, é próprio de quem não tem discernimento ou possui uma
razão ociosa ou completamente doentia. Quem levanta o problema da existência
de Deus, do @@eu poder, da sua sabedoria ou da sua vontade é não apenas
irreligioso como também pérfido e merecedor de uma pena que o castigue"
(Policrat., VII, 7).
Os primeiros princípios da ciência estão entre estas coisas indubitáveis
(1b.); e entre as ciências, a matemática é a única que atinge a necessidade
pelo seu carácter demonstrativo (Metal., 11, 13). E no que se refere à
religião, João de Salisbúria, sustenta que é tão impossível demonstrar a
existência de Deus como negá-la. Reconhece, no entanto, o valor da prova
cosmológica que vai de causa em causa até à causa primeira (Policrat., 111,
8); e sustenta, por outro lado, que a ordem finalista do mundo revela
claramente a sabedoria e a bondade do criador (Metal., IV, 41). Que Deus seja
poderoso, sapiente, bom, venerável e amável é princípio único de toda a
religião, princípio que todos admitem gratuitamente, sem provas, por puro
espírito de religiosidade (Policrat., VIII, 7). Mas outras determinações são
alheias à razão. A própria Trindade é, para a razão humana, um mistério
impenetrável (1b., 11, 26). No entanto, pode-se reconhecer que

132

Deus é o fundamento da ordem do mundo, mas não se pode conceber essa ordem
como um facto inelutável, segundo a concepção dos Estóicos, porque isso não
exclui a mobilidade das coisas e a liberdade da vontade humana (1b., 11, 20).
João de Salisbúria insiste no carácter prático e de devoção da fé religiosa.
Tal como a alma é a vida do corpo, também Deus é a vida da alma. Tal como o
corpo morre se a alma o abandona, também a alma perde a sua verdadeira vida
se Deus a abandona (Entet.,
181). Por isso o destino da alma o a sua felicidade consiste em entregar-se à
acção da graça de Deus (Policrat., 111, 1).

Como se depreende, João de Salisbúria introduziu drásticas limitações à


especulação teológica e cosmológica ou, para melhor dizer, estabeleceu como
linha de princípios, a possibilidade e a eficácia. Debrucemo-nos sobre os
três campos em que a investigação humana pode aplicar-se com uma certa
possibilidade de sucesso: a matemática, a lógica, a política. Destes três
campos, as obras principais de João de Salisbúria tratam dos dois últimos. O
Metalogicus é o documento de interesse que João de Salisbúria escreveu sobre
os problemas lógicos do seu tempo; além disso, é nesta obra que pela primeira
vez se utiliza os livros Tópicos de Aristóteles. No que se refere ao problema
dos universais, João de Salisbúria ao mesmo tempo que dá notícia das soluções
mais importantes oferece-nos importantes informações sobre as escolas lógicas
do tempo. A sua posição pessoal perante este problema é ecléctica mas
inclina-se bastante para a doutrina de Abelardo. Considera os universais como
formas ou qualidades comuns imanentes das coisas, formas que o intelecto
abstrai das próprias coisas. Os universais (géneros e espécies) não são
substâncias que existam como natureza; na -realidade, só as substâncias
singulares existem, substâncias a que Aris-
133

tóteles chamou substâncias primeiras, e que são objecto do conhecimento


sensível. Os géneros e as

espécies são produto da abstracção, figmenta rationis, que a razão cria a fim
de melhor proceder na sua investigação sobre as coisas naturais (Metal., U,
20). No entanto não são privados de verdade objectiva, porque correspondem a
uma conformidade efectiva das coisas singulares entre si: por isso
Aristóteles lhes chamou substâncias segundas, querendo com isto indicar que,
sendo insubsistentes enquanto realidades singulares, são no entanto, algo de
real.

O intelecto humano pode erguer-se até aos universais apenas pela via da
indução, partindo das coisas sensíveis. João de Salisbúria refere-se à
doutrina aristotélica de que evidentemente aceita os resultados: "Os
conceitos comuns são criados pela indução sobre as coisas singulares. Com
efeito, é impossível chegar-se a considerar os universais senão através das
induções que estão na base de todas as nossas noções abstractas. Mas é
impossível induzir aquilo que é desprovido de sensibilidade. Com efeito, os
sentidos são a forma de conhecimento das coisas singulares e não é possível
ter conhecimento das coisas singulares senão através dos universais
conseguidos pela indução; não é possível a indução sem a sensibilidade. Com
efeito, dos sentidos deriva a

memória, da memória frequentemente repetida surge a experiência, e da


experiência os princípios da ciência ou da arte... E assim os sentidos
corpóreos, que são a primeira força e o primeiro exercício da alma, lançam os
fundamentos de todas as artes e formam o conhecimento preexistente, que não
só abro a vida aos primeiros princípios, como também aos géneros" (Metalog.,
IV, 8). Trata-se, como é evidente, das mesmas considerações que encerram os
Segundos Analíticos de Aristóteles, considera-

134

ções cujo significado empirístico é sublinhado por João de Salisbúria.

O Policraticus é o único livro de filosofia política medieval anterior à


descoberta da Política de Aristóteles. As fontes da teoria nele exposta são
Cícero, Séneca e os textos patrísticos e a base da teoria é o conceito
estóico da lei natural como norma universal e perpétua à qual se submetem,
mesmo as coisas. Esta norma é a imagem do querer divino, a custódia da
segurança, a unidade do povo, a regra do dever, o extermínio dos maus, a
punição da violência e de todas as transgressões (Policrat., IV, 2). Nela se
baseia a relação entre o súbdito e o rei; e a diferença entre um príncipe e
um tirano reside no facto de que o primeiro não só transgride a lei como
ainda não se propõe a fazê-la respeitar a valer (1b., IV, 4). Por esta via,
João de Salisbúria vai ao ponto de justificar o tiranicídio. Quanto ao resto,
a sua doutrina, é inspirada nos princípios do teocracismo medieval.

§ 218. ALANO DE LILLE

Na direcção aberta pela escola de Chartres podemos integrar a obra de Alano


de Lille (ab In.yulis, Lille ou Ryssel, na Flandres), chamado o Doctor
Universalis, falecido em Citeaux no ano de
1203 e que foi professor em Paris. Entre as suas obras existe um
Anticlaudiano que é uma espécie de enciclopédia do saber corrente; o De
planctu naturae em verso e prosa, no qual as reminiscências mitológicas, as
alegorias, e os ensinamentos morais se misturam com uma filosofia da natureza
proveniente da escola de Chartres; uma Ars praedicandi que é um manual de
predicação; os Sermones; o Distinctiones dictionum theologicarum que é uma
espécie de léxico das expressões bíblicas; o Contra
135

haereticos e o Regulae de sacra theologia que são as suas obras teológicas.


Recentemente foi atribuída também a Alano a paternidade de um Tractatus de
virtutibus et vitiis e de uma Summa que começa com as palavras Quoniam
homines, ainda não publicada.

A figura de Alano poeta, cosmólogo e teólogo reproduz fielmente o cliché dos


mestres de Chartres dos quais ele deduz, com igual fidelidade, todas as suas
doutrinas. Tal como os professores de Chartres, também ele é devedor de
Abelardo, de quem reproduz, à letra, no seu Tractatus de virtutibus, as
doutrinas morais. A ú nica característica original da obra de Alano é a forma
sistemática que pretendeu dar às suas especulações teológicas, tendo
sobretudo em vista a tarefa a que se havia proposto: a de defender contra
descrentes e heréticos (Maometarios, Judeus, Valdeses) a validade da fé
cristã. Por isso também Alano nos deixou uma clara definição dos limites
entre a razão e a fé. No prólogo do Contra haereticos, é assim que descreve o
objectivo proposto: "Ordenei diligentemente as razões prováveis da nossa fé
às quais um espírito engenhoso e perspicaz dificilmente pode resistir, para
que aqueles que desdenham prestar fé às profecias e ao Evangelho sejam pelo
menos convencidos pela razão humana. No entanto, se estas razões podem
induzir os homens a acreditar, não são suficientes para se conseguir uma fé
plena: não terá mérito aquela fé apoiada única e exclusivamente na razão. A
nossa glória estará em compreender in patria (ou seja, no céu) aquilo que
agora apenas podemos contemplar como num espelho e através de enigmas"
(Contra haeret., prol.).
Começa aqui a distinção entre o domínio da razão e o domínio da fé e que
receberá a sua mais clara formulação em S. Tomás. A pretensão de compreender
a verdade da fé na sua necessi-
136

BERNARDO DE CLARAVAL (Retrato de El Greco)

dade, de demonstrá-la como se fosse verdade de razão, pretensão que surge,


por exemplo em Santo Anselmo, é aqui abandonada. O que é objecto de fé não
pode ser compreendido e por isso não é objecto de ciência. "Nada se pode
conhecer que não se possa compreender, mas nós não apreende mos Deus com o
intelecto, portanto não existe ciência de Deus. Somos, certamente, induzidos
pela razão a supor que existe Deus, mas não o sabemos com certeza,
acreditamos apenas. Isto é a fé, uma presunção que nasce de razões certas,
mas não suficientes para constituírem uma ciência. Como tal, a fé está acima
da opinião, mas abaixo da ciência" (lb., 1, 17). A distinção entre ciência e
fé está aqui feita de forma bastante clara. A fé deve conservar o seu mérito
de conhecimento certo mas não demonstrativamente necessário; diferente
portanto da ciência.

Todavia, Alano tentou organizar cientificamente a teologia precisamente sobre


o modelo da ciência mais rigorosa, a matemática. No escrito intitulado
Regulae ou Maximae theologicae formulou os princípios da teologia, partindo
do pressuposto de que "toda a ciência se baseia nos seus princípios como

nos seus próprios fundamentos", fixando, assim, as regras fundamentais da


ciência teológica, recolhendo e sistematizando os resultados da especulação
teológica. Destas regras, a primeira é a afirmação da unidade de Deus: "a
mónada é aquilo em virtude do qual todo o ente é uno": afirmação que
óbviamente não é mais que o lugar-comum neoplatónico mas que assume um
particular relevo nos escritos de Alano, dada a posição polémica assumida por
estes escritos.

Essa atitude polémica dirige-se em primeiro lugar contra a seita herética dos
Cátaros: cuja doutrina fundamental consistia no reconhecimento de um dualismo
fundamental de princípios: um óptimo e criador da ordem e da perfeição do
mundo, o outro

137

Péssimo e criador da desordem, da luta e do mal. Deste segundo princípio a


Hyde de que falam os poemas chartrenses, informe, caótica e maligna, é uma
boa expressão: no entanto, nesses poemas @i Ufle não tem força para se
contrapor a Deus, é ela própria criada por Deus e submetida à ordem da Alma,
do mundo-Natureza. Contra este dualismo (que implicava também o da condenação
e da salvação, considerados como dois estados não mediáveis entre si, nem
mesmo através dos meios carismáticos da Igreja), a afirmação feita por Alano
da unidade de Deus como mónada primeira e absoluta, ainda que no seu carácter
filosófico já gasto, adquire um valor de novidade polémica. E não é po@ acaso
que Alano utiliza e cita (na obra intitulada Aphorismi de essentia summae
bonitatis Contra haeret., 1, 30, 3 1) o Uber de catísis: o texto de Próculo
que está rigorosamente centrado sobre o conceito de Deus como absoluta
unidade devia parecer a Alano o melhor antídoto contra qualquer concessão
dualista. Com efeito, Alano afirma que a causa primeira, enquanto é simples e
forma absoluta, é absoluta unidade, e, assim, a própria unidade absoluta; e
que referidos a tal unidade, os atributos diversos exprimem sempre a mesma
essência simplicíssima (Reg. teol., 11). Como Abelardo, e muitos dos mestres
de Chartres, Alano está ainda convencido que já os filósofos pagãos concebiam
esta verdade e que, por exemplo, a conheciam Aristóteles e Hermes Trismegista
(Contra haeret., 111, 3; Reg. theol., 3).

§ 219. O PANTEíSMO: AMALRICO DE BENA E DAVID DE DINANT

Algumas das mais importantes e mais debatidas teses da escola de Chartres têm
um franco sabor panteístico. O panteísmo consiste em sustentar que

138

a relação Deus-mundo seja necessária perante o próprio Deus: isto é, o mundo


deriva de Deus como necessidade, quer como manifestação sua, quer como seu
aspecto necessário, de tal modo que sem o mundo, Deus não seria Deus. Esta
tese está óbviamente implícita em todas as especulações teológicas que
definem o ser de Deus ou o das pessoas da Trindade nos termos das suas
relações com o mundo: por exemplo, na tese de que o Espírito Santo é a Alma
do mundo e que a alma do mundo é a própria natureza; ou na tese de que o pró
prio Deus é a forma essendi ou essência de todas as coisas. A última tese é
sem dúvida a mais explicitamente panteísta: entendida no sentido de que Deus
contém a essência (as formas, as ideias, os modelos de todas as coisas) leva-
nos a considerar Deus como a essência das coisas e as coisas, na sua
essência, como elementos necessários da essência divina. Estas conclusões vêm
no entanto bastante esbatidas e atenuadas, por parte dos mestres de Chartres,
com várias observações destinadas a acentuar a diferença entre o ser das
criaturas e o ser de Deus. Mas no período de que nos ocupamos, portanto da
segunda metade do século XII, essas mesmas concepções são ainda apresentadas
em toda a sua crueza panteística por pensadores que não hesitaram em tirar
delas as conclusões mais paradoxais. Temos notícia de dois destes pensadores,
Amalrico de Bena e David de Dinant e sabemos que as suas ideias foram
seguidas por numerosos grupos sobre os quais caíram as condenações
eclesiásticas.

E não se trata, na verdade, de teses que pertençam à esfera das discussões


teoréticas: pela única obra polémica que temos contra a seita de Amalrico, um
escrito anónimo de 1210 e que tem o nome de Contra Amaurianos, sabemos que da
tese da presença de Deus em todos os seres, e portanto em todos os homens
também, os sequazes de Amal-

139

rico derivam a possibilidade para todos os homens de se salvarem mediante o


simples conhecimento dessa presença divina, sem a necessidade de se
socorrerem dos dons carismáticos cuja eficácia era por eles negada: negando
assim todas as funções à administração eclesiástica que é a administradora
desses mesmos dons. Estas características relacionam estreitamente o
panteísmo de Amalrico com as seitas heréticas que floresciam no século XII e
que estavam todas ligadas na luta contra o privilégio, que a Igreja
reivindica pela sua hierarquia, de administrar a salvação. Valdeses, Cátaros,
Amaricianos, sustentam todos que o homem se salva através de uma relação
directa com Deus ou que o próprio Deus o escolha manifestando-se nele ou a
ele: o panteísmo de Amalrico ou de David é antes de mais e sobretudo a
expressão metafísica de uma insurreição contra a hierarquia eclesiástica que,
por seu lado, como é já assente, tinha raízes económico-sociais.

De Amalrico, nascido em Bena (no distrito de Chartres) sabemos apenas que


morreu em Paris, como professor de teologia em 1206 ou 1207. Das notícias
obtidas através de vários cronistas sabe-se que ensinava que Deus é a
essência de todas as criaturas e o ser de tudo e que o criador e a criatura
se identificam. Provavelmente estas teses, que se aproximam das que eram
sustentadas por muitos mestres de Chartres, tinham para Amalrico o
significado mais próximo do que era defendido por Escoto Erígena; com efeito,
ele afirmava que as ideias estão na mente divina, criam e ao mesmo tempo são
criadas e que Deus é o fim de todas as coisas que a ele regressam e na sua
unidade indivisível permanecem e estão (Gerson, Concordia nwtaphysicae cum
logica, in Opera, IV, 825). Mas a intenção de AmaIrico compreende-se melhor
pelas

140

consequências que ele tirava das próprias teses: Deus identifica-se com todas
as coisas, disseminadas como estão no espaço e no tempo, identifica-se também
com o próprio tempo e com o espaço como se identifica com todos os homens que
assim se unificam nele. Desta presença de Deus nos homens, Amalrico extrai a
negação, como já foi dito, da validade dos sacramentos e do magistério
eclesiástico. Todas estas doutrinas foram condenadas no Sínodo de Paris de
1210 e pela obra de Inocêncio III, no IV Concílio de Latrão de 1215.

Do outro representante do panteísmo, David de Dinant (na Bélgica) não sabemos


nada. Atribuem-se-lhe dois textos: De tomis hoc est de divisionibus que
reproduz o título da obra principal de Escoto Erígena e Quaterni ou
Quaternuli, nome por que foram indicados os escritos condenados a serem
queimados (Denifle, Chart., Univers. Paris., 1, 70). Mas provàvelmente este
segundo não é um título mas apenas o nome genérico dos opúsculos de David.
Tomás de Aquino dá-nos a seguinte exposição da doutrina de David: "David
divide a realidade em três partes: corpos, almas e substâncias separadas. Ao
princípio indivisível de que são constituídos os corpos chamou hyle
(matéria), ao princípio indivisível de que são constituídas as almas
chamou noun ou mente; e chamou Deus ao princípio indivisível das
substâncias eternas. David afirmou que estes três pii---ncípios são uma única
e idêntica coisa, concluindo-se assim que todas as coisas são pela sua
essência uma só" (In Sent., 11, d. 17, q. 1, a. 1).

Segundo S. Tomás, a diferença entre a doutrina de Amalrico e a de David é


que, para Amalrico, Deus é essência ou forma de todas as coisas, enquanto que
para David é a matéria. A mesma caracterização da doutrina de David é-nos
dada por Alberto Magno (Sunma Theol., I, tract. IV, q. 20). Como ser
originário, Deus é o ser puramente poten-

141

cial. David, provàvelmente, desenvolveu as implicações positivas da teologia


negativa própria da sua época. Deus está fora de todas as categorias que
constituem o ser em acto; mas, fora das categorias, não há senão o ser em
potência, que é a

primeira condição para a constituição de todas as coisas. David identificou o


ser em potência com Deus e uma vez que o ser em potência é a matéria-prima,
identificou a matéria-prima com Deus.

§ 220. JOAQUIM DE FIORE

As seitas heréticas do século XII tinham entre si de comum a crença numa


iminente e final renovação do mundo que elas designavam como o advento do
reino do Espírito Santo. Sabemos que também os Amauricianos possuíam esta
crença e sustentavam que depois da época do Pai e da do Filho, a época do
Espírito Santo traria consigo a abolição de todas as formas legais e
sacramentais que tinham caracterizado a época precedente (Caesarius, Dialogus
miraculorum, ed. Strange, p. 306). Esta divisão das épocas históricas, para
lá da esperança escatológica em que se baseia, parece ser sugerida pelas
especulações trinitárias que Abelardo tinha iniciado e que floresceram na
escola de Chartres. A ela se encontrava, portanto, ligada a obra do mais
famoso e popular profeta do século XII, o abade Joaquim.

Joaquim de Fiore nasceu em 1145 em Dorfe Ceico, perto de Cozença. A partir de


1191 foi abade do mosteiro por ele fundado em São João de Fiore, Calábria, e
aí morreu em 1202. A lenda apoderou-se deste abade profético, cujos dados
históricos são escassíssimos. Segundo a biografia urdida por um frade de
Seiscentos, Jaime Grego, que obteve informações pelas cartas do antigo
convento de Fiore,

142

mas que certamente modificou e transfigurou, Joaquim de Fiore fez uma


peregrinação à Terra Santa e passou por Constantinopla, tendo-se salvado
milagrosamente de uma epidemia, converteu-se ao ascetismo. Regressado à
pátria, entrou no convento cistercense de Sambucina e passou depois para o de
Corazzo, do qual foi abade. Em 1191 retirou-se para fazer a vida de anacoreta
e fundou então o convento de S. João em Fiore. Teria também de certo modo
participado nos agitados acontecimentos históricos do seu tempo, dirigindo-se
a Nápoles para

ZD ameaçar, pelas suas crueldades, Henrique IV que sitiava a cidade; e teria


obrigado a imperatriz Constança a prostrar-se a seus pés para obter o perdão
das suas culpas.

O abade Joaquim escreveu três grandes obras que mutuamente se completam:


Concordia Novi et Veteris Testamenti, Expositio in Apocalypsim, Psalterim
decem cordarum. Além destas, escreveu também uma obra polémica de teologia
contra Pedro Lombardo De unitate seu essentia Trinitatis, que se perdeu: um
texto contra os judeus, Adversus Judeos; uma exposição sumária da fé
católica, De articulus fidei. Estas últimas obras são inéditas. Foram
editadas recentemente os Tractatus super quattor Evangelia, cuja
autenticidade levanta algumas dúvidas.

O interesse fundamental da obra de Joaquim de Fiore está na sua mensagem


profética. Pela sua visão da história chega a prenunciar uma renovação
iminente: o advento do reino do Espírito Santo. Mas a sua visão da história é
baseada num conceito da Trindade cristã; as suas especulações trinitárias
vinculam-se à sua mensagem profética. Essas especulações apresentam uma certa
afinidade com as de Gilberto Porretano: ainda que não se possa falar de uma
dependência, dada também a diversidade de temperamento espiritual entre o
teólogo Gilberto

143

e o profético abade calabrês. A teologia de J. de Fiore está elaborada com


vista à sua filosofia da história: insiste sobre a distinção e a autonomia
das pessoas divinas, para basear a distinção das três grandes épocas
históricas o para dar o necessário relevo à terceira, que é a futura, a do
reino do Espírito. "Uma vez que também o Espírito em si mesmo é Deus
verdadeiro, tal como o Pai e o Filho, também ele realiza alguma coisa à
imagem e semelhança próprias, tal como aconteceu com o Pai e com o Filho"
(Concordia, IV, 35). O saltério, título de uma das obras de Joaquim de Fiore,
é precisamente a imagem da Trindade, na distinção das Pessoas e na unidade
que as liga. "Um altíssimo lugar ocupa o saltério de dez cordas entre as
obras de Deus que sugerem o mistério da Trindade. Trata-se com efeito de um
instrumento musical unitário. Pode ser dividido em partes porque é feito de
matéria, mas não pode sê-lo sem deixar de ser saltério. Como instrumento é
uno; mas é triangular e está admiravelmente unido nos três lados. A unidade
indivisa vincula os três lados tão estreitamente que parecem um e cada um se
reflecte nos três" (Psalt., fol. 230). A unidade de Deus não deve ser
portanto entendida de forma a que se anule a diversidade das pessoas: porque,
nesses casos, seria impossível compreender a diversidade das obrAs e das
,épocas históricas e deixaria de existir qualquer fundamento para a esperança
numa época de justiça e de salvação (Conc., fol. 8 e segs.).

Ás três pessoas da Trindade correspondem as três grandes épocas da história.


O primeiro dos três estados é o que se desenvolve sob o domínio da lei,
quando o povo do Senhor, ainda um pouco criança, servia sob os elementos
deste mundo, incapaz de alcançar a liberdade do Espírito, destinada a brilhar
quando tivesse surgido aquele que disse: "Quando o Filho vos vier libertar,
sereis verda-

144

deiramente livres". O segundo dos três estados é o da iniciação com o


Evangelho, e que ainda perdura, em liberdade sem dúvida, se o compararmos com
o estado precedente, mas não em liberdade se pensarmos no futuro". "Por isso
disse o Apóstolo (S. Paulo, 1 Cor., XIII, 12) "conhecemos agora apenas parte
e apenas em parte profetizamos: mas quando chegar a perfeição, tudo o
que é parcial será anulado". O terceiro estado iniciar-se-á para o fim do
século, não sob o véu opaco da letra, mas sim em plena liberdade de
espírito... Como a letra do Antigo Testamento em virtude de uma certa
analogia parece pertencer ao Pai, e a letra do Novo Testamento ao Filho,
assim a inteligência espiritual, que procede de um e de outro, pertence ao
Espírito Santo. E como a ordem dos cônjuges, em virtude de uma analogia
evidente, pertence ao Pai e a ordem dos predicadores pertence ao Filho,
também a ordem dos monges-a que estão destinados os grandes tempos finais,
pertence ao Espírito Santo" ( Expositio, fol. 5 e segs.). O terceiro estado
que há-de vir será portanto caracterizado por uma inteligência da palavra
divina, já não literal, mas espiritual: os homens conhecerão verdadeiramente
o seu significado real. Há um evangelho eterno que é a própria palavra de
Deus, sob a letra das expressões evangélicas. Os próprios sacramentos são
símbolos provisórios (mas nem por isso menos necessários) dessa realidade com
a qual, no terceiro estado, o homem entrará directamente em comunicação
(Super quattor evang., p. 8, 6). "0 primeiro estado viveu do conhecimento; o
segundo desenvolve-se no poder da sapiência; o terceiro difundir-se-á na
plenitude da inteligência. No primeiro reinou a servidão; no segundo a
servidão filial; o terceiro dará início à liberdade. O primeiro estado
decorreu na flagelação; o segundo na acção, o

145

terceiro decorrerá na contemplação. O primeiro viveu na atmosfera do temor; o


segundo na da fé; o terceiro viverá na verdade" (Conc., V, 84, 112). No
terceiro estado, não só as almas, mas também os corpos serão transfigurados;
o céu o a terra terão uma nova beleza e a morte e a dor desaparecerão.

NOTA BIBLIOGRÁFICA

§ 215. Sobre a escola de Chartres: CtERVAL, Les écoles de Chartres au moyen


âge, Paris, 1895; GRABMANN, Die Geschirhte d. schol. Methode, 11, 407-476;
PARENT, La doctrine de Ia création dans Ilécole de Chartres, Paris-Otawa,
1938; GREGORY, Anima Mundi. La filosofia di Guglielmo di Conches e Ia scuola
di Chartres, Plorenç.a, 1955; GARIN, Studi sul platonisma mediocvale@,
Florença, 1958.

As obraB de Constantino Africano foram editadas em Basileia, 1536 e 1539. O


prólogo ao livro Pantegni, in P. L., vol. 150.-, 1563-1566. - SIEBECK, in
"Archiv fur Gesch. der Philos.>, 1888, p. 528 e segs.; BAEumKER, ivi, 1892,
p. 557.

De Abelardo: De eodem et diverso, ed. WilIner, nei "Beitrage", IV, 1, 1903; e


Quaestiones naturales, ed. Muller, nei "Beitrage", XXX1, 2, 1934. -
THORNDIKE, A History of Magic, 11, 19-49; BLIEMTZ111EDER, A. V. B., Mõnaco,
1935.

Bernardo: as fontes nas obras de João de Salisbúria in P. L., 199.---GILSON,


Le platonisme de B. d. -C., In. "Revue Néo-scol.", 1923, 5-19.
Teodorico: De sex dierum operibus, in HAUREAU, Notices et extraits, 1893, p.
52-68; eomentãrío ao De trinitate de Boécio em JANSEN, Der Kommentare d.
Marembaldus v. Aras zu Boethius de Trinitate, BresUvia, 1926; Heptateukon,
edição do Prólogo ao cuidado de JEAUNEAU, in "Medieval Studies", 1954, 171-
175.JEAUNEAU, in "Mémoires de Ia societé archéol. d'Eure et Loire", 1954, 1-
10.

Guilherme de Conches: a Philosophia foi impressa com as obras de Beda In P.


L., 90.,, 1127-1178; o Dragmaticon foi Impresso com o título Dialogus de
substantis physicis., Estrasburgo, 1567; ed. Parra, Paris, 1943; Glosas ao
Timeu e Segunda e Terceira Filosofia, parcialmente em COUSIN, Ouvrage8
inédits

146

d'Abélard; outras partes das Glosas a Boécio o ao Timeu, em JOURDAIN, NOtices


et extraits, ece., XX, 2, Paris, 1862, e no escrito de PARENT noutro lado
citado. -FLATTEN, Die Phil. des W. v. C., Coblenza, 1929; OTTAVIANO, Um ramo
inédito da "Philosophia" de G. de C., Nápoles, 1935; PARENT, La doctrine de
Ia création dans 1'école de Chartres, cit.; GREGORY, op. cit.

Bernardo Silvestre: De mundi universitate, ed. Barach-Wrobel, 1nnsbruck,


1876. - GILSON, La cosmogonie de B. d. S., In "Arch. Hist. Doet. de Ia Litt.
m. a.", 1928; THORNDIRE, A History of Magic, 11, 1929.

§ 216. Gilberto de Ia Porrée: as Glosas a Boécio, juntamente com os opúsculos


teolõgicos de Boécio, in P. L., 64.-, 1225-1412; de alguns destes comentários
existem edições recentes: De Hebdomadibus, in "Traditio", 1953; "Contra
Eutychen et Nestorium, in "Arch. Hist. Doctr. de Ia Litt. m. ã.", 1954;
VANNI-ROVIGHI, La filosofia di G. P., in "Misc, dell'Università Catt. di
Milano", 1956.

§ 217. João de Sa.Iisbúria: obras in P. L.@ 199.o: Policratus, ed. Webb,


Oxford, 1909; Metalogicus, ed. Webb, Oxford, 1929; Historia pontificalis, ed.
Poole, Oxford, 1927.-WEBB, J. of S., Londres, 1932; DAL PRA, G. di Salisbury,
Milão, 1951 (com bibl.); HOHENLEUTNER, J. V. S. in der Literatur der letzen
zehn Jahre, in " Hist. Jahrb.", 1958.

§ 218. Alano de Lille: obras in P. L.@ 210.o; Trac- tatus de virtutibus, ao


cuidado de Lottin, in "Medieval Studies", 1950; Suma quoniam homines, ao
cuidado de Glorieux, in "Arch. Hist. Doctr. de Ia Litt. m. ã.",
1954; Anticlaudianus, nova ed. Bossuat, Paris, 1955. -BAUMGARTNER, em
"Beitrage", 11, 4, 1896; PARENT, em "Beitrage", supp1. 111, 1935; VASOLI, Due
studi per Alano di Lilla, in "Riv. Crit. di St. della FiI.", 1961; Le idee
filofiche di Alano di Lilla, nel "De planctu" e neZ "Anticlaudianus", in
"Giorn. Crit. delila ffios. itali.", 1961.

§ 219. Sobre AmaIrico de Bena e David de Dinant: HAUR£AU; Hist. de Ia philos.


schol., 11, 1, p. 83-107; DUHEM, Système du monde, V, 244-260; CAPELLE, A. de
B., Paris, 1932; DAL PRA, AmaIrico de Bena, Milão, 1951, com bibliografia.

§ 220. De Joaquim de Piore, as seguintes ediç.: Concordia Veteris et Novi


Testamenti, Veneza, 1519: Expositio super apocalypsim, Veneza, 1527;
Psalterium

147

de-cem cordarum Veneza 1527; Super quattor Evangelia, Roma, 1930


("Fonti,della Storia D'Italia"). Escritos menores: De articulis fidei, ed.
Buonaiuti, Roma, 1936; Liber contra Lombardum (escola de J. de F.), ed.
Ottaviano, Roma, 1934.-FOURNIER, Êtudes sur J. de F. et ses doctrines, Paris,
1909; BUONAUTI, Gioacchino da Fiore: I tempi-La vita-II messaggio, Roma,
1931; F. RuSso, Bibliografia Gioachimita. Florença, 1954; BLLOOMFIELD, J. of
P., "Traditio", 1957.

148

VIII

O MISTICISMO

§ 221. CARACTERES DO MISTICISMO MEDIEVAL

O renascimento filosófico do século XII é também um renascimento do


misticismo. Mais precisamente, esse renascimento torna possível o
reconhecimento da mística como uma via autónoma de elevação para Deus, uma
via que em qualquer caso é alternativa ou rival da investigação racional.
Esta via não era ainda conhecida da primeira idade da escolástica: basta
pensar nas obras de Escoto Erígena que punha na deificatio o último termo da
investigação racional. Mas vendo bem, essa posição não surgia como
radicalmente distinta da posição racional e muito menos contraposta a ela. As
condições históricas do século XII conduzem, pelo contrário, ao
estabelecimento de tal distinção. Por um lado o número e a importância das
correntes heréticas que florescem neste século, por outro a liberdade
crescente de que a razão faz uso no próprio domínio da especulação teológica,
levam a encarar a via mística como correctivo
149

eficaz que permite reconhecer em Deus e apenas em Deus a iniciativa e o


sustentáculo do esforço do homem na direcção da verdade. Com efeito, é
próprio da mística a tentativa de aproximar-se da Verdade pela própria força
da Verdade; de se unir a Deus mediante a ajuda sobrenatural e directa de Deus
e de deixar a ele apenas a iniciativa da investigação. O esforço do místico é
dirigido unicamente para o fim de se tornar digno de sofrer a iniciativa
divina; já que é Deus que do alto o atrai a si e o ergue até à compreensão
dos seus mistérios. Por isso a via mística consiste numa transumanizt@ção,
vencendo os limites humanos para se abrir à própria vida de Deus e à
beatifica acção da sua graça.

Nos confrontos dos movimentos heréticos que concluíam todos por negar
qualquer função ao aparelho eclesiástico, o misticismo oferecia a tal
aparelho um poderoso instrumento de defesa, porque lhe consentia reivindicar
para si a administração dos poderes carismáticos sem os quais a ascese
mística não seria possível. E nos confrontos da razão, a que faziam apelo as
escolas filosóficas contemporâneas, o misticismo oferecia ao mesmo aparelho
eclesiástico o modo de contrapor ao carácter incerto e até então erróneo dos
resultados a que a razão conduzia, a certeza e a glória do êxito místico que
permitem reunir os poderes sobrenaturais da Igreja. Não é nada de espantar,
portanto, que, na época de que agora nos ocupamos, o misticismo tenha servido
em primeiro lugar de arma polémica contra as aberrações das heresias e as
divagações da dialéctica; isto é , como arma polémica para afirmar o poder da
Igreja e reforçar a ortodoxia doutrinal pela qual esse poder era justificado.

Mas não foi esta a única função do misticismo medieval. Decorrida a fase
polémica ou em concomitância com esta fase, o misticismo coloca-se,

150

com o fundamento de uma mais nítida distinção dos limites entre a razão e a
fé, já não como alternativa rival da investigação racional mas como
complemento e coroamento dessa mesma investigação. É nesta forma que aparece
na escola dos Vitorinos e se conserva na escolástica sucessiva, até ao século
XIV, em que a mística alemã assume de novo a posição anti-racionalista mas
desta vez fora de qualquer preocupação de defesa da Igreja.

§ 222. BERNARDO DE CLARAVAL

Como arma de combate contra todas as formas de heresia religiosa ou


filosófica e como instrumento de reforço do poder eclesiástico assim foi
entendido o misticismo por Bernardo de Garaval, chamado, pela sua eloquência,
o doctor melifluus. Bernardo nasceu em Fontaines, perto de Dijon, em
1091. Aos 21 anos torna-se monge em Citeaux e passados três anos abade do
convento de Claraval, onde morreu em 1153. Durante toda a sua vida foi um
defensor encarniçado da ortodoxia religiosa e da autoridade eclesiástica.
Quando em 1130 foi oposto ao papa Inocêncio 11 o antipapa Anacleto II, a obra
de Bemardo serviu para impedir o cisma e para convencer Anacleto a renunciar
à sua oposição. No concílio de Sens de 1140 pregou contra os erros de
Abelardo, que foram condenados. A segunda Cruzada de 1147 foi obra das suas
predicações. As doutrinas de Gilberto de Ia Porrée, encontraram nele um
opositor violento. Fez igualmente valer, com idêntica força, as armas da sua
polémica contra a seita herética dos Cátaros.

De grande importância histórica são as suas Epistolae. Contra Abelardo


dirigiu dois escritos: Contra quaedam capitula errorum Abelardi e Capitula
haeresum Petri Abelardi. Numerosos são, pois,

151

os escritos místicos, entre os quais: De gradibus humilitatis et superbiae


(composto em 1121); De deligendo Deo (em 1126); De gratia el libero arbitrio
(1127); Sermones in cantica canticorum, De consideratione (1149-1152).

A doutrina de S. Bernardo, nos seus pontos essenciais, não é mais que o plano
estratégico da luta contra as heresias, a favor da autoridade absoluta da
Igreja. Os pontos fundamentais desta doutrina podem ser assim resumidos: 1) a
negação do valor da razão; 2) a negação do valor do homem,
3) a actuação do homem reduz-se à ascese e à elevação mística. Sobre o
primeiro ponto, Bernardo pronuncia-se sem reservas contra a razão e contra a
ciência. O desejo de conhecer surge-lhe como uma <dorpe, curiosidade" (Se. in
Cant., 36, 2). As discussões dos filósofos como "loquacidade cheia de vento"
(Ib., 58, 7). " A minha filosofia mais sublime -proclama ele-é esta: conhecer
Jesus e

a sua crucificação" (lb., 43, 4). Quanto ao segundo ponto, S. Bernardo afirma
sem reservas que a única atitude possível ao homem é a da humildade, da
virtude "pelas quais o homem, conhecendo-se verdadeiramente, sente vergonha
de si próprio" (De gradibus humilitatis, 1, 2). Reconhecer-se a si próprio
como nada sendo é para o homem a condição indispensável para que possa
libertar-se de todos os vínculos corpóreos e identificar inteiramente a

sua vida com o amor por Deus. O amor de que S. Bernardo fala baseia-se no
conceito do De amicitia de Cícero e a linguagem do Cântico dos Cânticos é
entendida por ele substancialmente como o
processo ascético de libertação do corpo e em geral de todos os vínculos
naturais e como pura obediência ou abandono à vontade divina. Os graus
mais altos do amor consistem em amar a Deus por si mesmo e no amar-
se a si próprio por amor de Deus: neste grau, o homem abandona
a sua

152

ALEGORIA DA CABALA

vontade inteiramente ao querer divino (De diligendo Deo, XIII, 36). Com este
ascetismo do amor teológico coincide o processo da ascese mística, cujos
graus são significativamente identificados por S. Bernardo com os graus da
humildade. O primeiro grau da ascese mística é a consideração (consideratio),
que é um intenso pensamento de investigação e uma intenção da alma que
investiga a Verdade criadora.
O segundo grau é a contemplação (contemplatio) que é a intuição corta, uma
apreensão indubitável da verdade (De contemplatione, 11, 2). A primeira
contemplação é a admiração pela majestade divina que exige um coração
purificado do vício e do pecado. O supremo grau da contemplação é o êxtase ou
excessus mentis, pelo qual Deus desce sobre a alma humana e a alma se une a
Deus. "Tal como uma gota de água que cai no vinho se dissolve e assume o
sabor e a cor do vinho; tal como o ferro candente e incandescente se torna
semelhante ao fogo e perde a sua forma própria; tal como o

ar que percorrido pela luz do sol se transforma em claridade luminosa até


parece mais que iluminado, transformado na própria luz; assim nos Santos todo
o afecto humano necessariamente se dissolverá de modo inefável e quase se
transformará na vontade de Deus. Com efeito, de que forma poderá Deus estar
em todas as coisas, se algo de humano permanece no homem? É certo que
permanecerá a substância, mas com outra forma, com outra glória, com outro
poder... Isto significa deificar-se" (De dil. Deo, 11, 28). O processo de
deificação do homem supõe que a alma olvide completamente o corpo. Conseguido
este estádio, nada mais impede que o homem se afaste cada vez mais de si e se
erga para Deus tornando-se semelhante a ele, na medida em que é possível
tornar-se semelhante a Deus. Neste estádio, o homem faz uma só coisa com o
Espírito de Deus (lb., 11, 32; 15, 39).

153

O único problema que S. Bernardo tratou filosoficamente é o da graça e do


livre arbítrio. Distingue três aspectos de liberdade: a liberdade da
necessidade, a liberdade do pecado, a liberdade da miséria. A liberdade da
necessidade é o livre arbítrio, que é próprio da vontade humana; não se perde
nem com o pecado nem com a miséria, e não é maior no justo que no
pecador, nem no anjo que no homem (De grat., 1, 2). O livre arbítrio
constitui a própria essência da liberdade humana. Tudo o que é voluntário é
livre. A vida, os sentidos, o apetite, a memória, o engenho, e todas as
outras actividades humanas estão sujeitas à necessidade, quando não estão
inteiramente submetidas à vontade (1b., 2, 5). A vontade é a faculdade de
escolha: mas esta escolha não se exerce necessariamente entre o bem e o mal;
Deus é livre nas suas acções, mas não se determina no mal. Contra Escoto
Erígena e com Sto. Anselmo, S. Bernardo nega que a liberdade consiste na
escolha entre o bem e o mal. A possibilidade de escolher o mal não e
essencial à liberdade, mas é antes uma imperfeição própria da liberdade
finita, o essencial da liberdade é a ausência de toda a coacção. Ao lado do
livre arbítrio está a liberdade do pecado e a liberdade da miséria. Mas,
apesar do livre arbítrio fazer parte da nossa natureza, a liberdade do pecado
é-nos dada pela graça e a liberdade da miséria ser-nos-á reservada in patria,
isto é, no céu: por isso o livre arbítrio pode ser chamado liberdade de
natureza, a liberdade do pecado liberdade da graça, a liberdade da miséria
liberdade de vida ou de glória (lb., 3, 7.)

Amigo de S. Bernardo foi Guilherme de S. Th,ierry, abade deste mosteiro de


1119 a 1135 e falecido em 1148 ou 1153. Participou na luta contra Abelardo
com um escrito redigido no Inverno de
1138-1139, Disputatio adversus Abelardum e com

154

uma carta na qual pedia a atenção de S. Bernardo para os erros de Abelardo. É


também autor de obras místicas e exegéticas, Meditativae orationes, De
contemplando Deo, De natura et dignitate divini amoris. Nos dois livros De
natura corporis et animi, trata, no primeiro, da física do corpo humano e no
segundo da física da alma. O interesse desta compilação está no facto de
Guilherme procurar a união da psicologia platónico-agustiniana com a da
medicina greco-árabe, que conheceu através de Constantino Africano.

§ 223. ISAAC DE STELLA

O inglês Isaac foi monge em Citeaux, depois, de 1147 a 1169, abade de Stella,
na diocese de Poitiers. A sua obra mais significativa filosoficamente é uma
Epistola ad quendam familiarem suum de anima, escrita à volta de 1162.

lsaac parte de um pressuposto que tira de S. Agostinho e que voltaremos a


encontrar em Descartes: para o homem, o conhecimento mais claro é o de Deus.
Das três realidades, corpo, alma e Deus, o corpo é-nos menos conhecido que a
alma e a alma menos conhecida que Deus. A alma é, de certo modo, a imagem da
divindade como disse Aristóteles, ela é a similitude de todas as coisas; e
assim se transforma em meio entre o corpo e Deus. Cinco são os graus da
actividade cognoscitiva da alma: o sentido corpóreo, a imaginação, a razão, o
intelecto e a inteligência. Os sentidos percebem os corpos, a imaginação
conserva e reproduz as imagens sensíveis, mesmo na ausência dos corpos; a
razão percebe as formas incorpóreas das coisas corpóreas. O processo da razão
é abstracção; e Isaac formula uma teoria da abstracção que será seguida e
desenvolvida por S. Tomás de Aquino.
*/*l
155

"A razão, afirma ele, abstrai dos corpos as formas ou naturezas que no corpo
subsistem, mas abstrai-as não em acto, mas apenas ao considerá-las; o vendo
que em acto subsistem apenas no corpo, percebe no entanto que elas não são o
próprio corpo. Assim a razão percebe o que nem os sentidos nem a imaginação
conseguem perceber, ou seja, na natureza das coisas corpóreas as formas, as
diferenças, os atributos próprios e acidentais; todas as coisas ,incorpóreas
que, não obstante, não existirem fora dos corpos, mas na própria razão" (P.
L., 194.O,
1884). Acima da razão, o intelecto é a força que percebe as formas das coisas
incorpóreas, isto é, dos seres espirituais; e a inteligência. vê, na medida
em que é possível à sua natureza, o sumo ser, isto é, Deus na sua pureza e
incorporeidade. Deste conhecimento supremo da inteligência, o homem recebe a
luz para os conhecimentos inferiores. Aqui Isaac: reproduz a doutrina
agustiniana da iluminação exprimindo-a com os termos de Escoto Erígena: as
verdades que através da inteligência descem de Deus ao homem são teofanias,
manifestações de Deus (1b., 1888).

§ 224. HUGO DE S. VICTOR: RAZÃO E FÉ

S. Bernardo contrapõe a via mística à investigaçao racional. Aquela é


considerada como a via da humanidade e da renúncia a toda a autonomia humana.
No entanto, estas duas vias parecem fundir-se harmoniosamente em Hugo de S.
Victor e concorrem para fazer dele uma das personalidades mais notáveis do
mundo medieval. Nasceu em 1096 em Hartingan na Saxónia e formou-se no
convento de Hamersleben, perto de Halberstadt. A partir de
1115 foi para o convento de S. Victor em Paris e de

156

1133 a 1141, ano da sua morte, foi professor naquele convento.

É, em primeiro lugar, autor de uma introdução à filosofia e à teologia com o


título Eruditionis didascalicae libri VII ou, mais brevemente, Didascalion
cujos três primeiros livros são dedicados às artes íiberais, os três
seguintes à teologia, o último é um texto sobre a meditação. Dos quatro
livros de De anima apenas o quarto lhe pertence, enquanto o segundo pertence
provávelmente a Alquério de Clairvaux. A sua obra maior é o De sacramentis
christianae fidei que parece ter sido escrita entre
1136 e 1141. Esta obra é a primeira summa teológica medieval. O obectivo
declarado da obra é o de fornecer um fundamento à interpretação alegórica dos
mistérios cristãos. Com efeito, Hugo de S. Victor distingue em tais mistérios
a alegoria que é o seu significado fundamental e a história que é o seu
significado literal. Pretendo assim fornecer um guia para se poder ler as
Escrituras com critério seguro e conseguir-se uma reconstrução alegórica que
se subtraia à disparidade de pareceres. Juntamente com estas obras de
investigação escolástica, escreveu também numerosos opúsculos místicos: De
arca Noe mystica, De arca Noe moral!, De arrha animae, De vanitate mundi,
etc.

A atitude de Hugo de S. Victor perante a ciência é decididamente oposta à de


S. Bernardo. Nada há de inútil no saber: "Aprende tudo, afirma, verás que
nada é supérfluo" (Didasc., VI, 3). A própria ciência profana é útil à
ciência sagrada, à qual está subordinada: "Todas as artes naturais servem a
ciência divina o a sapiência inferior, ordenada com rectidão, conduz à
superiom (De sacram., I, prol.
5, 6). Em vez de contrapor entre si a ciência profana e a ciência sagrada, a
fé mística e a investigação racional, Hugo de S. Vietor procura estabelecer
entre elas um equilíbrio harmónico e de as

157

coordenar num único sistema. Desse modo tenta coordenar a via mística com a
investigação racional: "Há dois modos e duas vias através das quais Deus, que
permanece primeiramente oculto no coração do homem, pode ser conhecido e
julgado: a razão humana e a revelação divina. A razão humana empreende de
duas formas a investigação de Deus; em si e nas coisas que estão fora de si.
Do mesmo modo a revelação de Deus actua de duas formas a fim de dissipar a
ignorância e a dúvida do homem: com a iluminação interior e com a doutrina
exteriormente transmitida e confirmada pelos miJagres" (1b., 1, 3, 3). Os
caminhos da razão são dados pela natureza, os da revelação pela graça. Uma e
outra servem-se tanto do interior como do que é exterior ao homem para o
conduzir até Deus. E como se se coordenam entre si, tendo em vista o fim
único do conhecimento de Deus, a investigação racional e a revelação, assim
se coordenam também entre si para o mesmo fim os objectos da investigação
humana. Hugo de S. Victor distingue todos os objectos possíveis em quatro
categorias, determinadas pelas suas relações com a razão humana. "Certas
coisas derivam da razão, outras são conformes com a razão, outras estão acima
da razão, outras ainda estão contra a razão. As coisas que derivam da razão
são necessárias,- as que são conformes à razão, prováveís; as que estão acima
da razão, admiráveis; e as contrárias à razão, impossíveis. As primeiras e as
últimas excluem a fé: as primeiras, derivando da razão, são absolutamente
conhecidas e não podem ser criadas porque se conhecem, as outras não podem
ser criadas porque a razão não pode assentar nelas. Portanto, podem ser
apenas objecto de fé as coisas que são conformes com a razão e as que estão
acima da razão. Nas primeiras, a fé é sustentada pela razão e é aperfeiçoada
pela fé: se a razão não compreende a sua

158

verdade, também não cria obstáculos a que a fé acredite nelas. Nas coisas que
estão acima da razão, a fé não pode ser ajudada pela razão, que não
compreende aquilo em que a fé crê; há nelas, no entanto, qualquer coisa que
exorta a razão a venerar a fé, ainda que não a compreenda" (1b., 1, 3, 30).
O domínio da investigação racional é agora rigorosamente distinto do da fé,
como domínio da necessidade lógica absoluta: a fé não tem lugar no que é
demonstrável ou evidente. Mas, por outro lado, a fé não se opõe à razão
porque o seu objecto seja incrível, mas porque é provável ou admirável, o que
se aproxima da razão ou a transcende, sem no entanto a negar. O princípio de
S. Tomás, o da graça que completa a natureza sem a destruir, encontra aqui
pela primeira vez uma clara formulação. A esta classificação dos objectos do
conhecimento, corresponde a classificação das correspondentes posições
subjectivas. Estas posições são : a negação, a opinião, a fé e a ciência. A
negação, a opinião, e a fé dirigem-se não à coisa, mas ao que se ouve, dizer
da coisa. Apenas na ciência a própria coisa está realmente presente; a
ciência é conhecimento perfeito, porque convalidade e garantida pela presença
própria do seu objecto (1b., I,
10, 2).

Viu-se já como a ciência é também o único conhecimento necessário; e esta


necessidade vem-lhe da lógica que é o seu instrumento indispensável. As
ciências experimentais, como a física, pressupõem as ciências puramente
lógicas, tal com a própria lógica e a matemática; uma vez que a experiência
por si só é falaz e só na pura razão existe e garantia indiscutível da
verdade.

Hugo de S. Victor extrai da obra de Abelardo * teoria aristotélica da


abstracção. A matemática * a física constituem, graças à abstracção, o seu
objecto. A matemática considera distintamente os

159
elementos que nas coisas naturais se encontram confusos entre si; e assim,
ainda que, na realidade, a linha não exista sem a superfície e o volume, a
razão considera, na matemática, a linha em si, prescindindo da superfície e
do volume. Isto, porque a razão frequentemente considera as coisas, não como
elas são, mas como podem ser, isto é: não em si mesmas, mas em referência a
ela própria (Didasc.,
11, 18). Do mesmo modo, a física considera distintos uns dos outros os
elementos que nos corpos do mundo se encontram confundidos, isto é, o fogo, a
terra, a água e o ar; e julga todos os corpos como um produto da composição e
da força de tais elementos (1b., 11, 18). Como muitos representantes da
escola de Chartres, Hugo de S. Victor admite a composição atómica dos
elementos (De sacram., 1,
6, 37) e afirma o princípio da conservaçao da matéria, princípio que apoia na
autoridade de Pérsio (Sat., 111, 84): de nihilo nihil, in nihilum nil posse
reverti (Didasc., 1, 7).

§ 225. HUGO DE S. VICTOR: A TEOLOGIA

Vimos já que tanto a investigação racional como a mística apoiada e baseada


na graça se distinguem consoante partam do interior ou do exterior do homem.
A demonstração racional da existência de Deus, como momento necessário da
investigação filosófica, divide-se também consoante parta da consideração do
homem ou da consideração das coisas exteriores. O espírito humano reconhece-
se a si próprio como uma realidade existente e com este reconhecimento
distingue-se dos corpos e de tudo o que conhece. Mas enquanto se percebe
existente, reconhece também que nem sempre existiu, que o seu ser teve um
princípio e que não é ele pró prio o princípio do seu ser. Por isso é levado
a reco-

160

nhecer uma causa criadora que seja o fundamento da sua existência. E como não
pode pensar que esta causa criadora tenha s-ido por sua vez criada sem se
integrar num processo ad infitzitum deve admitir que tal causa subsiste em si
e que o ser da mesma não tenha princípio, mas seja eternamente real (De
sacram., 1, 3, 6-9). À mesma conclusão se chegará pela consideração das
coisas externas. Todas as coisas que têm nascimento e morte devem ter uma
origem e um criador. Tudo o que é mutável nem sempre existiu e por isso deve
ter tido um princípio. Deste modo as coisas externas confirmam o que a alma
encontra em si; e a natureza revela o seu autor tal como o revela a própria
alma (1b., 1, 3, 10).

Tal como a existência de Deus, também a Trindade pode ser demonstrada através
das duas vias, interna e externa. No homem de palavra interior revela-se na
palavra exterior; assim em Deus a palavra interior, qu,@ é a sua eterna
Sapiência, reveIa-se na palavra externa, que é o mundo criado. No nosso
espírito, a razão, a sabedoria que- nasce da razão, e o amor, que procede de
ambas são uma única realidade-, assim em Deus espírito, sapiência e amor
constituem uma única substância. Mas, enquanto que no nosso espírito a
sabedoria e o amor não têm personalidade porque são puros acidentes ou
afeições do espírito, em Deus a Sapiência, e o Amor são o próprio ser de
Deus, são o que o próprio Deus é, por conseguinte, pessoas. Assim, em Deus há
três pessoas numa só natureza, enquanto que no homem há uma só pessoa, a
qual, com as diversas qualidades da sua vida interior, corresponde à Trindade
Divina, sem no entanto a reproduzir adequadamente (Ib., 1, 3, 25). As coisas
exteriores reproduzem também a divindade. A grandeza do mundo corresponde ao
poder divino, a sua beleza, à sabedoria, o seu finalismo e a sua

161

conformidade às necessidades do homem, à bondade (lb., 1, 3, 28). Deus criou


o mundo não apenas secundum se, mas também propter se. Secundum se, ou seja:
em conformidade consigo próprio, porque não tomou do extenor ou que foi obra
sua; propter se, ou seja: por sua própria causa, porque não recebeu de outro
a causa da sua acção criadora (1b., 1, 2, 3). Hugo de S. Victor distingue, a
propósito da criação, as coisas que são apenas causa, das que são apenas
efeito, e as que são ao mesmo tempo causa e efeito
O que é apenas causa e não é efeito é Deus, como causa suprema. No extremo
oposto está aquilo que é apenas efeito o não é causa, a matéria, de que são
compostas as coisas criadas. Entre estes dois extremos estão e movem-se todas
as outras coisas, que estão entro si numa relação de causa e efeito e assim
vão desde a causa primordial até à matéria. Deus criou em primeiro lugar a
matéria informe; mas tal matéria não era informe a ponto de ser absolutamente
privada de forma, porque o que é privado de forma é privado de existência,
era informe apenas no sentido de que era confusa e mesclada (forma
confusionis), privada de ordem e de disposição (forma dispositionis) que em
seguida teve de Deus (lb., 1, 1, 4).

Em polémica com Abelardo, que tinha afirmado que Deus não pode fazer
coisa diferente daquilo que faz, nem aquilo que faz pode fazê-lo melhor do
que fez, Hugo de S. Victor sustenta que Deus teria também podido criar um
mundo melhor. Com efeito, a razão porque Deus não pôde criar um mundo melhor
pode ser devida ao facto de ao mundo não faltar qualquer possível perfeição
ou ao facto de o mesmo não ser susceptível de urna maior perfeição. Más no
primeiro caso, o mundo seria semelhante ao Criador e assim o Criador seria
coagido aos limites do finito ou então o mundo

162
elevado para além desses limites; e tanto uma hipótese como a outra são
impossíveis. Se se pode afirmar a incapacidade do mundo de assumir uma
perfeição maior, isto é já uma prova de que o mundo não é o melhor nem o mais
perfeito, porque esta incapacidade é, por si, defeito e imperfeição. Na
verdade, apenas Deus é de tal modo perfeito que não pode ser mais perfeito. O
mundo criado não participa destaperfeição absoluta e por isso Deus teria
podido criá-lo ainda melhor do que realmente o criou. Ele não pode fazer
apenas o que é impossível, uma vez que "não poder o impossível não é não
podem Ub., 1, 2, 22).

A criação não é uma acção necessária de Deus, mas uma livre manifestação da
sua bondade. A decisão e a vontade de criar os homens estão desde a
eternidade em Deus, mas a própria criação não é eterna. Deus quis sempre que
o mundo existisse, mas não quis que ele fosse eterno: o querer criador de
Deus é eterno, e o que é criado não é eterno (1, 2, 10). Na criação
participaram não só o poder e a bondade de Deus, como também a sua sabedoria.
A sabedoria divina é ciência, presciência, disposição predestinação,
providência: ciência das coisas existentes, presciência das coisas futuras,
disposições das coisas a fazer, predestinação dos homens para a salvação,
providência daqueles que estão sujeitos ao querer divino. Desde a eternidade
que todas as coisas criadas existiam no conhecimento divino; mas isso não as
torna necessárias. As coisas não chegam necessàriamente ao ser porque foram
pensadas por Deus. Podem também não se tornarem reais e neste caso as ideias
divinas não são causas das coisas. Só a vontade divina pode transformar as
ideias divinas em realidade criada (lb., 2, 16-18).

À vontade divina se referem todas as determinações de valor. Deus não quis


certa coisa apenas porque é bom e justo, mas tudo o que é bom e

163

justo é-o porque Deus o quis. Com efeito, o ser justo é propriedade essencial
do querer divino. "Quando se pergunta porque é que é justo o que é justo é
preciso responder: porque é conforme com a vontade divina, que é justa. E
quando se pergunta porque é que a vontade de Deus é justa, é preciso
responder: não há causa da primeira causa e ela é por si o que é" (1b., 1, 4,
1).

Se a vontade de Deus é o próprio bem, a presença do mal no mundo deve ser


exigida pela bondade conjunta do mundo. Deus fez o bem e permitiu que
houvesse o mal, apesar de não ser o seu autor. E apesar de o mal ser e
continuar a ser como tal, como tal é e continua a ser o bem, e é por bem que
existe o bem e o mal. Com efeito, o bem deriva não apenas do bem, mas também
do mal; através da oposição entre o bem e o mal resulta mais evidente a
beleza e a ordem conjunta do mundo. Por isso é um bem existir o mal e esse é
o motivo pelo qual Deus permitiu que o mal existisse (lbid., 1, 4, 5-6).

§ 226. HUGO DE S. VICTOR: A ANTROPOLOGIA

O homem está no cume do mundo sensível. Segundo a Sagrada Escritura, o homem


foi criado depois de todas as outras coisas, e isto aconteceu porque ele é o
primeiro de todas as criaturas sensíveis e todo o mundo sensível foi criado
para ele. Deus criou o homem para o servir; e criou o mundo para que este
sirva o homem. O homem é um ser finito, precisa da ajuda exterior quer para
se conservar tal como é, quer para chegar a ser o que não é ainda. Foi
colocado no centro do mundo sensível para que dele se sirva como de uma ajuda
necessária à sua conservação. Mas está destinado a

164

servir a Deus e assim alcançar aquela plemitude e felicidade que não possui
ainda. Para ele existe um duplo bem, um bem de necessidade e um bem de
felicidade: o primeiro é-lhe dado pelas coisas do mundo, o segundo pelo
próprio Criador. O primeiro suige criado por causa do homem e para se lhe
tornar útil; o segundo é o fim para que foi criado o homem (De sacrum, 1, 2,
1). Sendo este o lugar do homem no mundo, distinguem-se na própria natureza
do homem duas partes, o corpo e a alma. A alma é, em contraposição com o
corpo, uma substância simples e espiritual. Juntamente com Boécio, Hugo de S.
Victor distingue o intelectível e o inteligível: o intelectível é o que não é
sensível e não é semelhante ao sensível; o inteligível é que, apesar de não
ser sensível, tem relações de semelhança com o sensível. A alma é
intelectível porque não é nem sensível nem semelhante ao sensível; mas é ao
mesmo tempo inteligível porque é dotada de sensibilidade e de imaginação e
pode assim compreender o sensível (Didase., 11, 3, 4). Como tal, por um lado,
está em relação com o sensível e, por outro, em relação com o supra-sensível.
A sua relação com o sensível é baseada na sua sensibilidade, a relação com o
supra-sensível é baseada na inteligência. Entre as faculdades sensíveis e a
inteligência está a razão, que é a faculdade discursiva (De sacrum., 1, 1,
19). Definida com Boécio a pessoa como "uma substância individual de natureza
racional", Hugo atribui a personalidade à alma em si e por si. O corpo não
contribui para formar a pessoa, e apenas se une a ela. A própria alma como
tal, é pessoa (1b., 11, 1, 11). A característica fundamental da alma como
pessoa é a autoconsciência. Nas pegadas de S. Agostinho, Hugo de S. Victor
insiste na necessidade e no valor da consciência da própria existência. "Não
existe sábio que não saiba que existe. E no entanto o homem,

165
se começa a considerar verdadeiramente aquilo que é, compreende que não é
nenhuma das coisas que percebe ou pode perceber em si mesmo. O que em nós é
capaz de razão, ainda que, por assim dizer, esteja confundido com a carne,
distingue-se no entanto da substância da carne e compreende o que é distinto
dela (Didasc., VII, 17).

Este pensador reconhece ao homem a liberdade como faculdade de escolha,


privada de determinações necessitantes. A liberdade é o fundamento da vida
moral do homem que sem ela seria impossível.
* princípio objectivo desta vida é a lei de Deus.
* bem é o que é conforme com esta lei, o mal é a negação daquiilo que a lei
prescreve. Com o bem, o mal tem o seu fundamento na livre vontade, e não vê
positivo nem negativo; é um puro nada (1b., 1, 7, 16).

§ 227. HUGO DE S. VICTOR: o MISTICISMO

A via mística para alcançar a visão directa de Deus tem três momentos
principais: o pensamento, a meditação e a contemplação. O pensamento
(cogitatio) é determinado pela presença na alma de uma coisa em imagem, que
ou provém dos sentidos ou é suscitada pela memória. A meditação (meditatio) é
o contínuo e sagaz exame do pensamento, que se esforça por explicar o que é
obscuro e de penetrar no que está oculto. A contemplação (contemplatio) é a
livre e perspicaz intu-ição da alma que se difunde sobre as coisas
examinadas. A contem- ,plação possui aquilo que a meditação procura: a visão
manifesta e completa. Por seu lado, a contemplação cinde-se na consideração
das criaturas e na contemplação do Criador, que é o seu grau último e
perfeito (De nwd. dicend. et meditand., 8). Este último grau é a contemplação
mística, na qual a

ascese para Deus se identifica com a clausura na

166

própria intimidade espiritual: "Aquele que entra dentro de si e, penetrando


internamente em si próprio, se transcende verdadeiramente sobe até junto de
Deus" (De vanitate mundi, 2).

§ 228. RICARDO DE S. VICTOR: A TEOLOGIA

O terceiro dos grandes místicos desta época é Ricardo de S. Victor. Escocês


de nascimento, cedo se dirigiu a Paris e entrou para o mosteiro de S. Victor.
Aqui se cultivou guiado por S. Hugo e, pela morte deste, sucedeu-lhe no
ensino e no priorado. Morreu em 1173. Ricardo é, como Hugo, escolástico e
místico. Entre as suas obras escolásticas há um tratado em três livros De
trinitate e um texto De verbo incarnato. Entre as obras místicas: De
preparatione ad contemplationem chamado também Beniamin minor; De gratia
contemplationis chamada também Beniamin maior; De statu interioris hominis;
De exterminatione mali.

Ricardo distingue a verdade fundada na experiência, da verdade fundada na


razão e da verdade fundada na fé. O homem conhece as coisas temporais através
da experiência; as coisas eternas em parte com a razão, em parte com a fé. Do
que é eterno, com efeito, nem tudo pode ser conhecido através da razão, há
muito que só pode ser revelado por Deus e tem, por conseguinte, como
pressuposto a fé (De trinit., 1, 1). Todavia, Ricardo não desiste de
prosseguir na sua busca ideal da demonstração apodítica. Na sua obra Sobre a
Trindade declara a sua intenção de acrescentar em apoio da fé razões não só
prováveis, como necessárias, e exprime a confiança de que tais razões não
faltam (1b., 1, 4).

167

Estas razões dizem respeito, em primeiro lugar, à existência de Deus. Tal


como Hugo, ele também prefere partir da experiência para a demonstração de
Deus em homenagem ao princípio (sobre o qual insistirá S. Tomá s) de que
"todo o nosso processo demonstrativo tem início naquilo que conhecemos pela
experiência" (Ibid., 1, 7). A sua argumentação consiste essencialmente em
ascender das coisas finitas, que não têm ser por si, a um princípio que tem o
ser por si e é eterno. Se este princípio não existisse, as coisas que não têm
ser por si não teriam podido recebê-lo do nada e portanto não existiriam. A
existência mutável do ser contingente demonstra a eternidade do ser
necessário (1b., 1, 6).

Da experiência, Ricardo parte também para demonstrar a trindade de Deus. A


experiência demonstra que o raio de sol, ainda que procedendo do sol e tendo
a sua oriaem nele, é no entanto seu contemporâneo. O sol produz por si o raio
e em tempo algum carece dele. Ora se a luz corpórea tem um raio que é seu
contemporâneo, porque razão não terá também a luz espiritual um raio seu
coeterno? Não é admissível que a natureza divina, princípio de toda a
fecundidade, tenha ficado estéril em si mesma e não haja gerado nada, ela que
deu a todas as coisas a possibilidade de gerar. É portanto provável que na
incomutabilidade supraessencial de Deus haja algo que não existe por si
próprio e seja todavia ab aeterno (1b., 1, 9). Esta probabilidade torna-se
certeza se se considerar a perfeição do poder, na beatitude e do amor divino.
Esta perfeição implica a possibilidade de uma comunicação mediante a qual
Deus possa difundir a abundância infinita da sua vida. Uma dualidade de
pessoas torna-se necessária para que Deus não seja privado dessa comunicação,
sem a qual a sua vida seria estéril e solitária (Ibid. HI, 11). Mas uma
dualidade não basta: a comunicação não é perfeita se não

168

se pode difundir além de si, para uma terceira pessoa co-igual. A perfeição
do amor pressupõe que tal possa estender-se a uma tercelra pessoa que seja
igualmente amada e que seja igual em dignidade e em potência. A perfeição do
amor e em geral da vida divina requer portanto a trindade das pessoas
divinas, sem a qual não haveria a inte- ,-,ridade da sua plenitude (1b.,
111, 11). A Trindade divina deve ser constituída por pessoas que tenham os
nossos atributos. A perfeição da divindade ,implica a perfeição da Potência,
a perfeição da Sabedoria, a perfeição do Bem. Assim como é omnipotente uma
delas, assim são as outras; assim como uma delas é infinita, assim são as
outras: assim como uma delas é Deus, assim são Deus também as outras. Mas
existe apenas um só Deus, porque assim como as três pessoas são igualmente
omnipotentes, assim as três são igualmente Deus.
O que significa que as três pessoas tenham uma única e idêntica substância,
ou melhor, que sejam uma única e mesma substância (Ibid., 111, 9). Enquanto
que no homem existe mais que uma substância (alma e corpo) mas uma só pessoa,
em Deus existe uma só substância e várias pessoas. À definição boeciana de
pessoa, aceite já por Hugo como "substância individual de natureza racional",
Ricardo acrescenta a determinação "dotada de existência incomunicável" (Ib.,
IV, 18). A interpretação trinitária de Ricardo constitui na escolástica uma
fórmula fundamental que foi seguida sobretudo pela escola franciscana.

§ 229. RICARDO DE S. VICTOR: A ANTROPOLOGIA MíSTICA

O pressuposto de Ricardo é a unidade e a simplicidade da natureza humana. A


alma é uma essência simples e espiritual que comunica ao corpo vida

169

e sensibilidade: A alma e o espírito não são no homem duas substâncias


diversas, mas constituem uma única essência; o espírito é a faculdade
superior da alma, mas não se distingue substancialmente dela. Tal como os
objectos se dividem nas três classes do sensível, do -inteligível (mundo
espiritual) e do intelectível (Deus) assim se dividem em três faculdades os
poderes da alma; imaginação, razão, inteligência. A função da imaginação é a
de receber e conservar as percepções sensíveis. A razão é a capacidade de
pensamento discursivo, que procede demonstrativamente de uma verdade para
outra. A inteligência são os olhos espirituais que vêem as coisas invisíveis
na sua presença real, como os olhos da carne vêem o que é visível (De
contempl., 111, 9).
Nestas três faculdades se baseia a via mística ao procurar a união com Deus.
O pensamento (cogitatio) baseia-se na imaginação; a meditação (meditatio) na
razão e a contemplação (contemplatio) na inteligência. "0 pensamento vagueia
lentamente por aqui e por ali, sem se preocupar com uma meta. A meditação
tenta esforçadamente prosseguir através de obstáculos e dificuldades na
direcção de um fim. A contemplação circula em voo livre, por onde quer que
expanda o seu ímpeto e com uma extraordinária agilidade.

A contemplação é o último estádio da via mística. Duas são as suas condições


fundamentais. Em primeiro lugar, a pureza de coração, condicionada pela
virtude; em segundo lugar, o conhecimento de si. Ricardo compara a razão e a
vontade do homem às duas mulheres de Jacob, Raquel e Lia. Tal como Jacob se
uniu primeiro a Lia e dela teve sete filhos e sete filhas, e em seguida
desposou Raquel e gerou dela, assim também a vontade humana é primeiro
fecundada pelo espírito de Deus, que gera nela as virtudes; em seguida a
razão humana, desposando a graça divina, gera o conhe-

170

cimento mais alto. As virtudes são portanto os filhos de Lia, mas a vida
mística começa apenas com o conhecimento que a alma tem de si. O último filho
de Jacob e de Raquel, Benjamim, é o símbolo desse conhecimento de si, que é
a verdadeira e própria -introdução à união mística com Deus (De praep. ad
contempl., 67-71). "Aprenda o homem a conhecer o que há nele de invisível,
antes de conhecer o que há de invisível em Deus. Se não te podes conhecer a
ti próprio, como pretendes poder conhecer aquele que está acima de ti?" (lb.,
7).

Seis são os graus fundamentais da contemplação.


O primeiro, in imaginatione et secundum imaginationem, considera o mundo
sensível como tal, relacionando a perfeição e a beleza com a potência,
sabedoria e bondade de Deus. O segundo, in imaginatione et secundum rationem,
considera o mundo sensível nos seus dois princípios e assim nos conduz do
mundo sensível ao mundo inteligível. O terceiro grau, in ratione et secundum
imaginationem, relaciona o sensível com o supra-sensível e assim tem em
consideração as ideias das coisas. O quarto grau in ratione et secundum
rationem considera a alma e os espíritos puros, como sejam os anjos.
O quinto grau, supra rationem et non praeter rationem, dirige-se a Deus na
medida em que ele é cognoscível pela nossa razão. O sexto e últrro grau,
supra rationem et praeter rationem, considera os atributos da divindade que
transcendem em absoluto a razão humana, por exemplo, os que se referem à
Trindade (De contempl., 1, 6).
Os graus de ascese progressiva da alma para a verdade suprema podem
distinguir-se também pela qualidade subjectiva dos seus actos. Alguns deles
implicam, com efeito, o dilatar-se (dilatatio) da mente, outros o levantar-se
(sublevatio) outros a alienar-se (alienatio) da mente de si mesma. O dilatar
da mente consiste em expandir-se e em agudizar

171

as suas capacidades, sem que, no entanto, transcendam os limites humanos. O


elevar-se da mente é o estado em que ela permanece iluminada pela luz divina
e transcende os limites da capacidade humana. Finalmente, o alienar-se da
mente é o abandono da memória de todas as coisas presentes e a transfiguração
num estado em que já não há nada de humano Ub., V, 2). O primeiro destes
graus é devido à actividade humana, o terceiro apenas à graça divina, o
segundo a uma e a outra. No terceiro grau, está o ponto culminante da
contemplação, o êxtase ou excessus mentis. Som invólucro e sem sombras, não
mais per especulum et in enigmate, o homem contempla então a luz da sabedoria
divina. Neste estado não existe já sensibilidade, nem memória das coisas
externas e a própria razão humana se cala. A mente é arrebatada lá de si
própria e todos os limites da razão são superados. Morre Raquel e nasce
Benjamim. A morte de Raquel significa o desaparecimento da razão (De praep.
ad contemp., 73).

A mística de Ricardo é a expressão fundamental e típica do misticismo


medieval. Ricardo viu nitidamente que a via mística conduz à abolição de
todos os limites humanos para colocar o homem face a face com Deus.

NOTA BIBLIOGRÁFTCA

§ 221. GEBRART, L'Italie mystique, Paris, 1890,


8.a ed, 1917; BERNHART, Die philosophische M-.ystik des Mittelalters,
Berlim, 1922; R. OTTO, West-õstliche Mystik, Berlim, 1926; STOLZ, Theologie
der Mystik, Ratisbona, 1936; DANIÉLOU, Platonisme et théologie mystique,
Paris, 1944.

§ 222. As obras de S. Bernardo em P. L., 182.---185.I.Uma edição crítica está


em preparação em Roma. Oeuvre8, escolha e tradução francesa de Davy, 2 vols.,
Paris, 1945.-COULTON, St. B., Cambridge, 1923; MI-

172

TERRE, La doctrine de St. B., Bruxelas, 1932; GILSON, La thélogie mystique de


St. B., Paris, 1934; BAUDRY, St. B., Paris, 1946; ANTONELLI, B. di C.,
Milão, 1953 (com bibli.); DELHAYE, Le problème de Ia conscience morale chez
St. B., Namur, 1957.

As obras de Guilherme de S. Thierry, em P. L.,


180.1, 205-726. Outros textos foram editados através das obras de S.
Bernardo, em P. L., 184.o, 365-436. A carta que acompanha a Disputatio contra
Abelardo, em P. L., 182.-, 531-532. Edições recentes: Meditativae orationes,
ed. Davy, Paris, 1934; Epistola ad fratres de Monte, Dei, ed. Davy, Paris,
1940; Commentario ad Cantico dei cantici, ed. Davy, 1958; De contemplando
Deo, ed. Hourlier, Paris, 1959;-DAVY, Thélogie et mystique de G. de St. T.,
La connaissance de Dieu, Paris, 1954.

§ 223. As obras de Isaac, em P. L., 194.o, 1689-1890.-BERTOLA, La dottrina


psicologica di Isacco di Stella, in. "Riv. @di Fil. NeoscoI.", 1953.

§ 224. As obras de Hugo, em P. L., 175.---177.o. Dois outros escritos de


Hugo: Epitome in philosophiam e De contemplatione et eius speciebus foram
publicados por I-IAuREAu, Hugues de St. Victor, Paris, 1859,
2.1 @ed. com o titulo Les oeuvres de Hugues se St. Victor, Paris, 1886.

Outras edições: Didascalion, ed. Buttimer, Washington, 1939; La contemplation


et ses espèces, ed. Baron, Paris, 1958. - BARKHOLT, Die Ontologie H. s. V.,
Bonn, 1930; KLEINZ, The Theory of Knowledge of H. of St. V., Washington,
1944; BARON, Science et sagesse chez H. de St. V., Paris, 1957.

9 225. Sobre as provas da existência de Deus: GRUNWALD, em "Beitrage", VI, 3,


1907, p. 69-77.

§ 226. Sobre a psicologia: OSTLER em "Beitrãge", vi, 1, 1906.

§ 228. As obras de Ricardo, em P. L., 196. . Outras edições: Les quatre


degrés, ed. Dumeige, Paris,
1955; De trinitate, ed. Ribaillier, Paris, 1958; LibeT exceptionum, ed.
Chatillon, Paris, 1958; Sermons et opuscules inédits, trad. frane., Paris,
1951.-OTTAVIANO, Riceardo di S. Vittore, Roma, 1933; DUMEIGE, R. de St. V.,
Paris, 1952.

173

IX

A SISTEMATIZAÇÃO DA TEOLOGIA

§ 230. SENTENÇAS E SUMAS


A dificuldade de se encontrar os raros e custosos manuscritos tinha
determinado na Idade Média o uso frequente de compêndios e excertos. O
desenvolvimen,to da cultura medieval manifesta-se com a modificação da
natureza destas compilações. A princípio eram constituídas por excertos
tirados de um só autor ou também de vários autores, mas destituídos de
qualquer ordem. Por exemplo, o Sancti Prosperi liber sententiarum ex
Augustino delibatarum é uma compilação de cerca de quatrocentos excertos
quase todos de Santo Agostinho e reunidos sem nenhuma ordem. Os manuscritos
medievais contêm um grande número de excertos ou Sententiae deste gênero. O
mais célebre é o Liber Pancrisis, que remonta ao século XII e contém
sentenças dos Santos Padres e de mestres contemporâneos, como Guilherme de
Champeaux, Anselmo de Laon e outros. Em seguida, os excertos foram agrupados

175

segundo a ordem das Sagradas Escrituras. Os textos eram algumas vezes de um


só doutor, outras vezes de mais. A primeira compilação do gênero é a de
Patério, secretário de S. Gregório, que reúne a explicação dos textos
bíblicos contida na obra do Santo. De mais autores foram extraídos os textos
recolhidos por Beda o Venerável e por Rabano Mauro, que acrescentaram aos
próprios textos comentários pessoais.

Mas havia outras compilações nas quais as sentenças dos Padres eram
reagrupadas segundo uma ordem mais ou menos lógica. Isidoro de Sevilha é o
autor de uma obra deste gênero que intitulou Sententiarum libri tres, e que
em seguida foi citada com o titulo De summo bono. Estas recolhas de textos
que seguiam uma ordem mais ou menos lógica, eram designadas com o nome de
Sententiae.mas, progressivamente, a parte correspondente à elaboração pessoal
na explicação e nos comentários dos excertos era cada vez maior. No entanto,
as recolhas continuaram a manter o nome de Setaentiae, uma vez que o texto
original não era mais que a explicação e o comentário das sentenças
transcritas. Abelardo reformou profundamente este costume literário. A partir
dele as obras que mantiveram o nome de Sententiae passaram a ser compêndios
sistemáticos, completos e racionais, das verdades fundamentais do
Cristianismo.

Para exprimir este novo carácter adoptou-se o termo Summa. Abelardo serve-se
deste termo no prólogo da Introdução à Teologia: "Escrevi uma summa da
erudição sacra como introdução às divinas Escrituras". E Hugo de S. Vietor no
prólogo do 1 Livro do De sacramentis, que é a primeira verdadeira e própria
suma de teologia medieval, diz: "Reuní numa única cadeia (series), esta breve
suma de todas as coisas". No século XII o nome de

176
Summa substitui o de Sententiae e os livros que continham a exposição
sistemática das verdades cristãs chamavam-se Sumas de teologia.

§ 231. PEDRO LOMBARDO

Entro os mais notáveis autores de Sum~e há a salientar Robert Pulleyn, um


inglês que ensinou em Paris e depois em Oxford e morreu em 1150; Roberto de
Melun; que foi aluno em Paris, de Hugo de S. Victor e provà velmente também
de Abolardo, do qual aceitou o principio da dúvida metódica, Simão de
Tournay, que ensinou em Paris entre a segunda metade do século XII e o
principio do século XIII e defendia a fórmula de Anselmo do credo ut
intelligum, contraponda-a ao preceito da filosofia personificada por
Aristóteles: iniellige et credes. Mas a obra do gênero mais significativa,
pela importância que teve como texto fundamental da cultura escolástica, é a
de Pedro Lombardo.

Pedro Lombardo nasceu em Lumollo, perto de Novara; estudou em Bolonha o


depois na escola de S. Victor, em Paris. A partir de ll^ ensina na escola
catedral de Paris; em 1159 torna-se bispo de Paris e morre provávelmente em
1160. Escreveu um Commentario às cartas de S. Paulo e um outro aos Salmos. Os
seus livros Libri quattor sententiarum foram escritos entre 1150 e 1152. Esta
obra é um compêndio sistemático das doutrinas cristãs baseado na autoridade
da Bíblia e dos Padres mas no qual a parte pessoal é relevante. O maior peso
é constituído pela autoridade de Santo Agostinho, mas apirecem também citados
Hilário, Ambrósio, Jerón-imo, Gregório Magno, Cassiodoro, Isidoro, Beda e
Boécio. Dos escritores posteriores é utilizado sobretudo o De sacramentis, de
Hugo de S. Victor. Pela primeira vez, no Ocidente, aparece citado o

177

texto De fide orthodoxa de João Damasceno que é a terceira parte, traduzida


do latim em 1151 por Borgúridio de Pisa, da Fonte do conhecimento.

Mas a obra de Pedro Lombardo manifesta também com evidência a influência de


Abelardo e do método por ele criado no Sic et non. Apesar da sua explícita
afirmação de que em matéria de fé "cré-se nos pescadores e não nos
dialécticos", Pedro Lombardo é um dialéctico que procura fazer valer todo o
peso da razão em apoio à autoridade dos textos citados.

Na própria divisão da obra, Pedro Lombardo segue um critério sistemático. O


conteúdo total da Bíblia é constituído por coisas e signos. A coisa é o que
não pode ser empregado para significar ou simbolizar outra coisa; o signo é,
pelo contrário, o que serve essencialmente para esse fim. Entre os signos,
Pedro Abelardo inclui os Sacramentos, que são símbolos da realidade supra-
sensível. Por sua vez, as coisas distinguem-se, segundo são objecto de gozo
(fruitio) ou objecto de uso. Objecto de gozo é a Trindade divina, objecto de
uso são as coisas criadas. As virtudes são conjuntamente objectos de gozo e
objectos de uso, porque são meios para atingir o fim da beatitude. Das coisas
podemos distinguir os sujeitos que as gozam ou se servem delas.
Consequentemente, Pedro Lombardo distingue a sua obra em duas partes, a
primeira referente às coisas, a segunda referente aos signos. A primeira
parte, diz respeito aos sujeitos e aos objectos da fruição e do uso, isto
é; a Trindade divina, as coisas criadas em geral, os anjos e os homens em
geral e as virtudes. Estes argumentos formam o conteúdo dos primeiros três
livros das Sententiae.
O último livro é dedicado aos signos, isto é, aos Sacramentos.

O homem pode elevar-se ao conhecimento de Deus partindo das coisas criadas.


Tudo o que nós

178

vemos é mutável e tudo o que é mutável deve ter a sua origem numa essência
imutável. O corpo e o espírito estão igualmente sujeitos à mudança: o ser de
que obtêm a sua origem deve ser, por isso, superior a ambos. E uma vez que
todas as coisas corpos e espíritos, têm uma determinada forma e espécie, há
que pensar numa forma originária, ou numa primeira espécie da qual, tanto o
espírito como o corpo, recebam as suas formas ou espécies. Essa primeira
espécie é Deus (Sent. 1, dist 3, n. 3-5).

Os três caracteres fundamentais das coisas: a unidade, a forma e a ordem,


constituem o reflexo da Trindade divina e consentem ao homem a sua elevação
para Ela. Na alma humana a memória, a inteligência e a vontade constituem uma
única substância e também aqui se reflecte a imagem da Trindade divina, que é
mente (mens), conhecimento (notitia) e amor (amor) (lbid., 1, dist. 3, n.o 6
sgs.). No entanto, nenhuma coisa criada pode dar-nos um conhecimento adequado
da Trindade. É preciso distinguir entre as coisas que podemos conhecer antes
de crer e aquelas que para serem conhecidas pressupõem a fé. Entre os
objectos de fé, alguns não podem ser conhecidos e compreendidos, se não
acreditarmos primeiramente neles; outros não podem ser cridos se não forem
primeiramente, compreendidos, e estes últimos são, por via da fé,
compreendidos mais profundamente (1b. 111, dist. 24, 3).

O objectivo fundamental das interpretações teológicas de Pedro Lombardo é a


defesa da omnipotência divina. Contra Abelardo e de acordo com Hugo de S.
Victor (§ 225), Pedro Lombardo nega que Deus não possa criar nada de melhor
do que aquilo que efectivamente criou. Na realidade, se o "melhor" se refere
à actividade criadora de Deus, a afirmação é legítima: mas se se refere ao
objecto dessa actividade, isto é, ao mundo criado, a afirmação é fadsa,
porque leva a pensar que ao mundo

179

não falta qualquer perfeição, e em tal caso o próprio mundo seria semelhante
a Deus: ou então Deus não poderia dar-lhe maior perfeição e assim o mundo
manifestaria uma imperfeição que estaria em contraste com a tese, segundo a
qual, é o melhor dos mundos possíveis (1b., 1, dist. 44, 2-3).

No que diz respeito ao homem, cujas três faculdades reproduzem, como se


disse, a Trindade divina, Pedro Lombardo afirma que a alma é-lhe transmitida
d-irectamente por Deus. É preciso distinguir no homem a sensibilidade, a
razão e a vontade livre. A sensibilidade está ligada a todos os órgãos dos
sentidos, e é receptiva e apetitiva. A razão é a mais alta faculdade
cognoscitiva da natureza humana: dirige-se por um lado ao que é temporal; por
outro ao que é eterno. O livre arbítrio é a faculdade da razão e da vontade
conjuntamente, o por isso o homem ~lhe o bem, se a graça divina o ajuda, ou o
mal, se não existe a graça. Diz,se livre em razão da vontade, que pode
determinar-se por uma

coisa ou por outra; diz-se arbítrio em virtude da razão, da qual representa a


faculdade ou poder de discernir o bem do mal, escolhendo umas vezes um,
outras vezes o outro (lb., 11, dist. 24,5). O livre arbítrio pressupõ e,
portanto, a vontade e a razão e não pode pertencer aos animais que são
privados de razão. A sua essência não está na capacidade de escolher entre o
bem e o mal, mas antes na capacidade de escolher, sem necessidade ou coacção,
o que a razão estabelece. Para o homem o mal é duplo: o pecado e a pena do
pecado. Um e outra são negatividade e privação do bem: o pecado é privação
num sentido activo, porque corrompe o

bem o priva dele o homem; a pena é privação em

sentido passivo porque é um efeito do pecado. Deus não é de forma alguma


causa do mal: prevê infalivelmente o mal, não como obra sua, mas como obra
daqueles que o fazem e suportam. A previsão do

180

mal exclui o beneplácito da sua autoridade, enquanto que a previsão do bem,


que é tudo aquilo que ele directamente opera no mundo, é sempre acompanhada
de tal beneplácito (lb., 1, dist. 38, 4). Condição primeira para que o homem
escolha o bem é a graça divina, que é sempre gratuitamente concedida (gratis
dada), independentemente dos méritos humanos: com efeito, não seria graça se
não fosse gratuitamente dada. Mas, enquanto que a misericórdia divina é
sempre um acto de graça, a reprovação e a severidade de Deus perante o homem
são actos de justiça, determinados por aquilo que o homem mereceu. A
reprovação divina consiste no não querer ser misericordioso, a severidade em
não sê-lo e uma e outra pretendem tornar melhor o homem (1b., dis. 41, 1).

As Setuenças de Pedro Lombardo tomaram-se, em breve, um dos livros


fundamentais da cultura filosófica medieval e foram objecto de numerosos
comentários até ao fim do século XVI.

NOTA BIBLIOGRÁFICA

§ 230. Sobre o desenvolvimento das complicações de Sentenças: RoBERT, Les


écoles et 1'ense@gnement de Ia théol. pendant Ia première moitié du XIIe
sièc@e, Paris, 1909, cap. 6; DE GHELLINCK; Le mouvement thélogique du XIIe
8ièc1e. Rruges-Bruxelas-Paris, 1948 (com bibli.).

§ 231. As obras de Pedro Lombardo, em P. L.,


191.,-192.,. Edição critica das Sentenças, a cargo dos padres franciscanos de
Quaracchi, 1916, 2 V018.-PROTOIS, Pierre Lombard, Paris, 1881; GRABMANN, Die
Gesch. d. 8chol. Methole, 11, 350-407; ERSPENBERGER, em "Beitrãge", 111, 5,
1901.

181

A FILOSOFIA ÁRABE

§ 232. FILOSOFIA áRABE: CARACTERíSTICAS E ORIGENS

Entre as causas que mais eficazmente estimularam a actividade cultural do


Ocidente no século XII, estão as relações com o mundo oriental sobretudo com
os Árabes. Com efeito, o mundo árabe tinha já assimilado, nos séculos
precedentes, a herança da filosofia e da ciência gregas, que ainda
permaneciam em grande parte, ignoradas pela cultura ocidental: esta conhecia
delas apenas o que tinha conseguido filtrar-se através da obra dos autores
latinos e dos Padres da Igreja. Por outro lado, e sobretudo por isso, a
filosofia árabe surgia aos olhos dos pensadores ocidentais como a própria
manifestação da razão e, por isso, como uma força de libertação dos entraves
postos pela tradição. Adelardo de Bath não hesitava em contrapor o que tinha
aprendido " com os mestres árabes, orientado pela razão", ao "cabresto da
autoridade" a que estavam submetidos os que seguiam a tradição (Quaest. nat.,
6). Em terceiro lugar, a filosofia oci-

183

dental tinha, em comum com a filosofia oriental, a própria natureza dos seus
problemas. Também a

filosofia árabe é uma escolástica, isto é, uma ten-

tativa para encontrar uma via de acesso racional à verdade revelada; e a


verdade que se pretende alcançar, a que está contida no Corão, tem muitas
características semelhantes à verdade cristã. Em suma, tal como a filosofia
cristã, a escolástica árabe vive à custa da filosofia grega, especialmente do
neoplatonismo e do aristotelismo.

Tudo isto explica a influência e a profunda penetração que o pensamento árabe


exerceu na escolástica cristã no século XIII e XIV. Todavia, em certos
pontos, as duas escolásticas deviam revelar-se inconciliáveis. A síntese a
que chegaram os maiores representantes da escolástica árabe, Al Farabi,
Avicena e Averróis, surge-nos de acordo com o principio da necessidade. A
necessidade domina o mundo divino e humano; tal é a convicção dos grandes
filósofos árabes. E a isso não se furta o mundo das coisas finitas que é
necessário não por si, mas pela sua dependência de Deus: nem mesmo a vontade
humana, dominada por uma cadeia causal que, através dos acontecimentos do
mundo sublu. nar e dos movimentos da esfera terrestre, tem como motor o Ser
necessário. A escolástica latina, ainda que tenha recebido o aristotelismo
através dos árabes, deverá no entanto tentar subtrai-lo ao princípio da
necessidade e introduzir nele um princípio de contingência quepermitisse
salvar, ao mesmo tempo, a liberdade criadora de Deus e o livre arbítrio do
homem.

A primeira actividade filosófica nasceu entre os Árabes da tentativa de


interpretar certas crenças fundamentais do Corão. Assim a seita dos
Quadáries, afirmava o livre arbítrio do homem perante a vontade divina,
enquanto que a dos Jabaries defendia o fatalismo absoluto. No século 11 da
FIégira

184

(732-832),. expande-se a seita dos Motazeis ou dissidentes, que afirmavam


enèrgicamente os direitos da razão na interpretação da verdade xeligiosa.
Foram eles que divulgaram o Kalam. (ciência da palavra), ou seja, a teologia
racional. A partir do califado de Haroun al-Raschid (785-809), os árabes
começaram a familiarizar-se com a cultura grega. As traduções árabes das
obras de Aristóteles e dos outros autores gregos deveram-se, em geral, a
sábios cristãos sírios ou caldeus, que viviam, em grande número, como médicos
na corte dos Califas. As obras de Aristóteles foram traduzidas em grande
parte das traduções sírias que, desde a época do imperador Justiniano, tinham
começado a difundir no Oriente a cultura grega. Entre as obras que exerceram
mais profunda influência no pensamento árabe conta-se uma Teologia atribuída
a Aristóteles, que é formada por uma centena de passagens tiradas das Eneadis
de Plotino, e o Liber de causis, que é a tradução dos Elementos de teologia
de Próculo. Além destes textos e das obras de Aristóteles, contribuiram para
formar o pensamento árabe, os comentáfios de Alexandre de Afrodísia, os
diálogos de Platão, especialmente a República e o Timeu, e as obras
científicas de Euclides, Ptolomeu e Galeno.

Uma reacção da ortodoxia religiosa contra as novidades introduzidas pelos


filósofos foi desenvolvida pelos Mutakallimun (os que discutem). A afirmação
fundamental dos Mutakallimun é a novidade e discontinuidade do mundo, que
toma necessária a existência de um Deus criador. Adoptam a doutrina atómica
de Dernócrito, que provàvelmente conhecem através da exposição de
Aristóteles. Segundo eles, os átomos não têm nem quantidade nem extensão, e
são criados por Deus sempre que ele quer. As coisas resultam da agregação dos
átomos e as suas qualidades não poderão durar dois

185

instantes, ou seja, dois átomos de tempo, se Deus não interviesse


continuamente na sua criação. Quando Deus deixa de criar, as coisas, as suas
qualidades e os próprios átomos, deixam de existir. A discontinuidade toma
necessária a acção incessante e criadora de Deus o garante a liberdade na
criação. A reforçar esta tese, os Mutakallium negavam a relação de
causalidade entre as coisas. As coisas criadas não têm, entre si, relações de
causa e efeito.
O fogo tende a afastar-se do centro da terra e a produzir calor; mas a razão
não se nega a admitir que o fogo poderá mover-se em direcção ao centro e a
produzir frio, ainda que permaneça fogo. Os nexos causais não têm qualquer
necessidade intxínseca; são estabelecidos únicamente por Deus. Mais que causa
primeira, Deus é causa agente e eficiente e produz directamente todos os
efeitos do mundo criado.

No princípio do século estas doutrinas dos Mutakallium foram retomadas por


uma outra seita, a dos Asharies, assim chamados devido a Abul-Hassan AI-
Ashari (873-935), de Bassora. Os asharies exageram ainda a doutrina da
criação directa por parte de Deus, afirmando que todas as qualidades
acidentais nascem e desaparecem únicamente por um acto de criação da vontade
divina. Assim, por exemplo, quando um homem escreve, Deus cria quatro
acidentes que não estão ligados entre si por nenhum nexo causal: a verdade de
mover a pena, a faculdade de a fazer mover, o movimento da mão, o movimento
da pena.

O movimento filosófico determinado pelas posições destas seitas vem a ser


substituído a seguir pela acção de verdadeiras e próprias personallidades
filosóficas que, em parte, utilizam e continuam as doutrinas das próprias
seitas, e em parte se opõem a elas na tentativa de se manterem ficis à
doutrina dos filósofos gregos e especialmente a Aristóteles.

186

§ 233. AL.XINDI

A,I-,Kindi é o primeiro dos filósofos árabes que se relaciona explicitamente


com a tradição grega. Viveu em Bagdad, e devia ter falecido em 873. Escreveu
um grande número de obras de filosofia, matemática, astronomia, medicina,
política e música. Foi um dos autores que o califa AI-Mamún encarregou de
traduzir as obras de Aristóteles e de outros pensadores gregos. Os Árabes
deram-lhe o título de Filósofo por execelência. Foi autor de numerosos
comentários aristotélicos.

Gerardo de Cremona traduz no século X11 um texto seu com o título Verbum
Jacob Al Kindi de intentione antiquorum in ratione. Um outro texto foi
traduzido com o título De intellectu. A parte do comentário aristotélico de
AI-Kindi que chamou a especial atenção dos escolásticos latinos é a que diz
respeito à doutrina do intelecto. Al-Kindi teve a pretensão de expor as
opiniões de Platão e Aristóteles, mas, na verdade, segue de perto a
interpretação de Alexandre de Afrodísia (§ 111). Enumera quatro intelectos:
"0 primeiro é o que está sempre em acto; o segundo é o que está em potência
na alma; o terceiro é o que na alma passa da potência a realidade efectiva; o
quarto é o intelecto que chamamos demonstrativo: este último, Aristóteles
assimila-o aos sentidos porque os sentidos estão próximos da verdade e em
comunicação com ela". Destes quatro intelectos os três primeiros correspondem
respectivamente ao nous poieticós, ao nous ylikós e ao nous epiktetós de
Alexandre; o quarto é a alma sensitiva. Em AI-Kindi surge pela primeira vez,
de uma forma nítida, o princípio típico do aristotelismo árabe que atribui
directamente ao intelecto de Deus a iniciativa do processo de conhecer do
homem. "A alma, afirma ele, é inteligente em potência: passa a ser
inteligente de modo efec-

187

fivo pela acção do Intelecto primeiro, quando dirige o seu olhar para este.
Quando uma forma inteli-

1 givel se une à alma, esta forma e a inteligência da alma passam a ser uma
só e mesma coisa, que é ao mesmo tempo aquilo que conhece e o que à
conhecido. Mas o Intelecto que está sempre em acto, e que atrai a alma para a
converter em intelecto efectivo, de intelecto potencial que era, não se
identifica com o que é conhecido. Em relação ao Intelecto primeiro, portanto,
o intelecto e o inteligível que a alma co"ece não são a mesma coisa; em
relação à alma, o intelecto que conhece e o inteligível que é conhecido são a
mesma coisa". Está implícita nesta doutrina de AI-Kindi a separação entre o
Intelecto activo, que é o divino, e os outros intelectos, que são próprios do
homem.

§ 234. AL FARABI

AI Farabi, assim chamado por ser natural de Farab e que foi célebre entre os
muçulmanos não apenas como filósofo peripatético, mas também como matemático
o médico, continua a tradição enciclopédica de AI-Kindi. All Farabi ensinou
em Bagdad e morreu em Dezembro do ano de 950. Escreveu uma obra sobre as
ciências, De scientiis, um texto sobre o intelecto, De intelectu, e ainda
outras obras de ética e de política, todas inspiradas no pensamento
aristotélico.

Em AI Farabi, encontra-se pela primeira vez a distinção entre a essência e a


existência e que iria ter uma tão grande Importância na filosofia de S.
Tomás. Averróis faz Temontar esta distinção aos Mutakallimun, que teriam sido
os primeiros a distinguir o ser em possível e necessário e teriam afirmado
que para se pensar num ser possível há que pressupôr a existência de um
agente que o

188

faça passar a acto; e como o mundo no seu todo é possível, é preciso que o
agente do mundo seja um ser necessário (Destr. destruct. Algazelis, 1, 4, 5).
Na realidade, a primeira origem desta distinção está no Liber de causis que,
como já foi dito, é uma das principais fontes de inspiração da especulação
árabe.
O Liber de causis (cap. 9) distingue, nas coisas, a existência e a forma,
ambas procedentes do exterior: a existência do primeiro Ser pela via da
criação; a forma das Inteligências subordinadas pela via das impressões. Mas
no Liber de causis a existência é o substracto receptivo da forma, e, por
isso, a possibilidade da própria forma: funciona como matéria; no pensamento
árabe a relação inverte-se e a essência ou forma será considerada como
matéria ou possib',lidade e a existência como acto.
Segundo AI Farabi, tudo o que existe é ou possível ou necessário. Ao afirmar-
se que uma coisa dotada de existência possível não existe, não se enuncia
nenhum absurdo, uma vez que para receber a existência essa coisa precisa de
uma causa. Uma coisa possível não pode passar ao número das coisas
necessárias, senão através da acção de um ser nocessário. Pelo contrário, se
afirmamos o ser necessário como não existente, fazemos uma suposição absurda,
pois esse ser não tem uma essência distinta da sua própria existência. O ser
necessário é único e nenhum outro além dele possui uma verdadeira substância:
escapa a todas as categorias e a todas as distinções de matéria e de forma.
"É o acto de pensamento na sua pureza, o puro objecto pensado, o puro sujeito
pensante. Nele, as três coisas seguintes são apenas uma: é sábio, sapiente e
vivente. Tem actividade perfeita e perfeita vontade. Goza de uma imensa
felicidade na sua própria substância e é o primeiro amante e o primeiro
amado". (Dieterici, Alfarabis philos. AbhandIungen, p. 93-96).

189

A distinção entre o ser necessário e o ser possível será fundamental para


todo o pensamento árabe e também para a escolástica latina posterior. Do ser
necessário, e precisamente do acto com que o ser necessário se pensa a si
próprio (segundo o esquema de Plotino), nascem, afirma AI Farabi, os vários
intelectos, que se relacionam entre si como a matéria e a forma, a potência e
o acto. Do Ser necessário enquanto se conhece a si próprio, nasce o primeiro
Intelecto, que por sua vez conhece o Ser necessário e a si próprio. E na
medida em que conhece o Ser necessário, produz um segundo intelecto; no
entanto, enquanto se conhece a si próprio, produz o primeiro céu na sua
matéria e na sua forma, que é a alma. Do segundo intelecto dimana, do mesmo
modo, um outro intelecto e um outro céu que se situa abaixo do primeiro. E
assim, de cada intelecto nasce sempre um intelecto o um céu, até se chegar a
um intelecto privado de matéria e que por si não pode originar a formação de
uma nova esfera celeste. Este último intelecto é a causa da existência das
almas humanas e, em colaboração com as esferas celestes, é a causa dos quatro
elementos que compõem o mundo sublunar. Trata-se do intelecto agente, do qual
dependem os outros três intelectos (própriamente humanos): em potência, em
acto e adquirido, cuja distinção AI Farabi retoma de AI Kindi. O princípio
eficiente de todo o conhecimento humano é o Intelecto agente. À alma humana
pertence o intelecto em potência, que pela acção do intelecto activo, se
transforma em intelecto em acto e conhece as formas inteligíveis das coisas,
formas que se identificam com ele. A elaboração destas formas conceptuais,
dirigindo-se a noções mais gerais e mais elevadas é obra do intelecto
adquirido. Deste modo o intelecto adquirido é forma do intelecto em acto,
que, por sua vez, é forma do intelecto em potência (lb., p. 71-72). O total
meranismo do conhecimento vem assim a ser dependente
190

da acção do Intelecto agente. A esta acção AI Farabi faz ligar também a


qualidade mais elevada que o homem pode alcançar, a sapiência e a profecia.
Com efeito, quando o Intelecto agente consegue transportar o intelecto
potencial de um homem ao seu grau mais alto, que é o intelecto adquirido,
então o homem torna-se num sábio-filósofo; mas quando o próprio Intelecto
agente actua, não sobre o Intelecto, mas sobre as faculdades representativas
de um homem, este homem pode transformar-se num profeta, num iluminado, num
vidente e esperar ser chefe na cidade ideal; porque nenhum está em posição de
o dirigir mas ele está em posição de dirigir todos (lb., p. 59). De tal modo
o Intelecto agente é considerado por AI Farabi que o considera um dom da
iluminação divina, fazendo do homem um profeta ou um chefe; e o mecanismo
atribuido ao intelecto é utilizado também para uma explicação racional da
revelação religiosa original.

Mas o Intelecto agente, como se viu, nasce pela reflexão do Ser necessário: e
assim também a sua acção se integra na necessidade própria deste ser. A
necessidade exclui toda a possibilidade de escolha: o conhecimento com que o
Ser necessário produz tudo está necessàriamente conexo com a sua própria
essência e não separa a necessidade (1b., p. 96). A necessidade reflecte-se
portanto em todas as coisas do mundo: a própria vontade humana surge
determinada pela cadeia das causas naturais que tem como origem primordial a
causa absoluta. O Ser necessário.

§ 235. AVICENA: A METAFíSICA

Ibri-Sina, que os escolásticos latinos cognominaram de Avicena, era persa de


origem e nasceu em Afshana (perto de Bokara) em 980. Dotado de inteligência
precoce, aos 17 anos era já famoso como

191

médico e teve a sorte de curar o príncipe de Bokara, que o colmou de favores


e pôs à sua disposição a imensa biblioteca do seu palácio. Mais tarde,
Avicena foi para Sorsan, onde abriu uma escola pública e deu início ao seu
célebre Cânone de medicina. Obrigado a abandonar a cidade em virtude das
desordens que surgiram, dirigiu-se para Hamadan, onde foi designado Visir do
príncipe dessa localidade. A sua actívidade como tal quase o levou à morte, porque as tropas
descontentes com
ele, haviam-no prendido e pedido a sua morte. No entanto, o príncipe salvou-
lhe a vida e manteve-o junto de si como médico. Avicena compõe então várias
partes da sua grande obra sobre A Cura (AI Scifà). Depois da morte do seu
protector, partiu para Ispahan, onde se torna secretário do príncipe, que
acompanhou frequentemente nas suas expedições. Estas viagens contribuiram
para perigar a sua saúde, já de si comprometida por uma vida agitada e
laboriosa: Avicena amava a vida, e dedicava-se de bom grado ao amor e à
bebida. Tendo acompanhado o seu príncipe numa expedição contra Hamadan, caiu
enfermo e morreu naquela cidade em 1307, com a idade de 57 anos. A Wa de
1bn-Sina, escrita pelo seu discípulo Sorsanus foi traduzida para o latim e
imprimida no início de diversas edições das suas obras.

A actividade de Avicena estende-se a todos os campos do saber. O seu Cânone


de medicina foi a obra clássica da medicina medieval. As obras que interessam
à filosofia são o Livro da Cura (AI Scífà) e o Livro da Libertação (AI-
Najah): o primeiro era uma vasta enciclopédia de ciências filosóficas em
dezoito volumes; o segundo, dividido em três partes, era um resumo do
primeiro. As edições latinas das obras de Avicena são traduções de uma ou de
outra parte das suas obras principais. No fim do século XII Gerardo de
Cremona traduz o Cânone de medicina; Domingo Gundisalvo e o judeu Avendeath

192

traduzem a Lógica, uma parte da Física, a Metafisica, o De caelo e muitos dos


escritos científicos. Rápidamente, entre o fim do século X11 o o princípio do
século XIII, o Ocidente cristão vem a conhecer, através destas traduções de
Avicena, quase toda a obra de Aristóteles, de que apenas conhecia a lógica.
Mas com tudo isto, o ocidente latino conhece bem pouco a obra de Avicena. Com
efeito, a sua obra é vastíssima (provàvelmente mais de 250 obras); e o
reconhecimento da sua importância, quer pela filosofia oriental, como pela
ocidental e ainda pela ciência (e especialmente pela biologia e medicina),
levaram os estudiosos modernos a publicar e a traduzir algumas partes
inéditas. Entre estas têm importância para a filosofia: Tratados místicos;
Epístola das definições, Livro de ciência; Livro das directivas e das notas;
Lógica oriental, que é parte de uma grande obra perdida, Juizo imparcial
entre os orientais e os ocidentais. O título desta última obra levou a pensar
num ramo teosófico ou místico da filosofia de Avicena em contraste com as
directrizes filosóficas e racionalistas das obras que conhecemos. Na
realidade não existe qualquer base para uma tal laipótese: que é desmentida,
não só pelos fragmentos das suas obras que temos sobre a lógica, como também
pelo conteúdo do Livro das directivas que pertence aos últimos anos de
Avicena e que não testemunha qualquer mudança sensível nas conclusões da sua
filosofia. As fontes desta filosofia são Aristóteles, Plotino (que Avicena,
contudo, não distingue do primeiro e a que atribui a Theologia, e uma centena
de passagens das Eneadis) e AI Farabi; mas é sobretudo dos Estoicos que se
aproxima o seu conceito do mundo como o domínio de uma força racional que o
orienta com infalível necessidade.
Avicena descreve em termos nitidamente escolásticos o objectivo da filosofia:
o de demonstrar e esclarecer racionalmente a verdade revelada. Os fun-

193

dadores da fé ensinaram e transmitiram a sua doutrina por virtude da


inspiração divina. Os filósofos acrescentaram à doutrina transmitida o
discurso e as considerações demonstrativas. Os fundadores da fé não
distinguiram nem esclareceram o conteúdo das suas doutrinas, definiram apenas
os princípios e os fundamentos: cabe aos filósofos expôr e elucidar
claramente o que está obscuro e oculto (De defin. et quaest., fol. 138, p.
1). Mas se a filosofia vem acrescentar à tradição religiosa as
considerações demonstrativas, por outro lado a tradição religiosa,
representada pelos profetas, estende o domínio da verdade humana para lá
dos limites que a demonstração necessária pode alcançar. Com efeito, é ela
que permite afirmar com certeza a Tealídade das coisas que o intelecto não
pode demonstrar ou apenas pode reconhecer a possibilidade (De divis scient.,
fol. 144, p. 2).

O princípio da especulação de Avícena é, tal como o de AI Farabi, a


necessidade do ser. Todo o ser enquanto tal é necessário. "Se uma coisa não é
necessária em irelação a si própria, afirma Avicena, necessita que seja
possível em relação a si própria e necessária em relação a uma coisa
diferente (Met.,
11, 2, 3). A propriedade essencial do que é possível é precisamente esta: a
de exigir necessàriamente uma outra coisa que a faça existir em acto. O que é
possível perinanece sempre possível em relação a si próprio, mas pode
acontecer sê-lo de modo necessário em virtude de uma coisa diversa (1b., 11,
2, 3).

A existência em acto é portanto necessária.


O possível mantém-se como tal até ter existência em acto: quando recebe a
existência em acto, recebe ao mesmo tempo a necessidade. Isto implica, em
primeiro lugar, que todo o possível exige e ff-eclama o ser necessário como
causa da sua existência actual. E, em segundo lugar, implica que o ser
necessário exista por si, em virtude da sua própria essência;

194

sendo inteligível apenas por essa essência. É um ser simples, sem vínculos,
sem deficiências e sem matéria. No Livro das directívas, Avicena insiste na
superioridade desta prova de Deus extraída da simples consideração do ser:
"Quando consideramos o estado do ser, afirma, o ser é testemunho de si
enquanto ser, e ele mesmo, em razão disso, testemunha tudo o que vem a ter
existência depois dele". (1b., p. 146; trad. franc., P. 371-372).

Se o ser necessário é absolutamente simples, o que é possível e existe apenas


em virtude do ser necessário já não é simples e implica em si dois elementos:
aquele pelo qual é possível em relação a si mesmo, e aquele pelo qual é
necessário em relação a outra coisa. A possibilidade e a necessidade
conjugam-se na formação da sua natureza respectivamente como a matéria e a
forma. Com efeito, Avicena interpreta a distinção aristotélica de matéria e
forma como distinção entre o possível e o necessário: a matéria é
possibilidade, a forma, como existência em acto, é necessidade. O que não é
necessário por si, ner-essáriamente é formado por matéria e por acto, por
isso não é simples. O ser que é necessário por si é, no entanto,
absolutamente simples, mesmo privado de possibilidade ou de matéria (Met.,
11, 1, 3).

Este conceito do ser necessário (necesse esse) é o ponto de referência de


toda a especulação de Avicena. Em primeiro lugar, ele é fundamento da
distinção real entre a essência e a existência que viria a tornair-se um dos
maiores temas especulativos da escolástica cristã no século XIII e
especialmente do tomismo. Com efeito, o ser necessário é o ser que existe por
essência ou cuja essência implica a existência; em consequência, o ser que
não existe em virtude da própria essência existe apenas como efeito do ser
necessário. Esta distinção será o fundamento do princípio da analogicidade do
ser, fundamental para o tomismo. Em segundo lugar, o ser

195

necessário introduz em todos os ramos e formas da existência a sua própria


necessidade. Toda a contingência ou possibilidade real fica excluída uma vez
que o possível não pode passar ao ser sem ser através da acção do necessário;
mas com esta acção toma-se ele próprio necessário na sua existência (ainda
que o não seja na sua essência). Esta eliminação radical da contingência do
ser (implica, além do mais, a necessidade da própria criação divina) é o
ponto fundamental em que a doutrina de Avicena surgia contrastante das
exigências da escolástica cristã, interessada em manter a liberdade da
criação e na

criação. Convém no entanto salientar que, não obstante esta exclusão de todo
o possível da realidade, Avicenaexpõe um conceito do possível bastante mais
preciso e rigoroso do que aquele que tinha sido admitido por Aristóteles.
Avicena distingue, com efeito, dois sentidos do possível. No primeiro sentido
possível é o "não impossível"; neste sentido o que não é possível é
impossível e portanto o próprio necessário é possível. No segundo sentido,
que é o próprio, o possível é uma terceira alternativa ailém do impossível e,
do necessário em tal caso o possível é o que pode ser ou não ser; o nem o
impossível nem o necessário podem dizer-se possíveis (Livre des directives,
p. 34, 35; trad. franc., p. 138-141). óbviamente, neste segundo sentido o
possível subtrai-se a todos os paradoxos a que dava lugar na lógica. de
Aristóteles (§ 85).

A absoluta simplicidade do ser necessário consente em Avicena que seja


entendido como absoluta unidade, e com maior razão com a própria Unidade no
sentido neo-platónico. Avicena, tal como acontecia já com AI Farabi, liga o
conceito platónico do uno ao conceito aristotélico do Acto puro; e ao mesmo
tempo identifica o Uno e o Intelecto, que os neo-platónicos distinguiam.
"Como princípio de toda a

existência, o Uno conhece por si as coisas de que é

196

princípio: sabe que é princípio das coisas cuja existência é perfeita na sua
singularidade (as coisas celestes) e também das coisas que estão sujeitas à
geração e à corrupção. Estas últimas são por ele conhecidas quer atravé s das
suas espécies quer através das respectivas individualizações; mas quando
conhece estes entes mutáveis, não os conhiece a eles e à res- pectiva
mutação, enquanto seres mutáveis, não os conhece com uma inteligê ncia
individual" (1b., VIII, 6).

A derivação de todos os seres do Ser necessário não é uma criação


intencional. Não subsiste uma intenção criadora na Causa primeira: esta
intenção implicaria uma multiplicidade de elementos na natureza do Uno, que
ao invés é siraplicíssimo. Seria necessário que a ciência e a bondade da
Causa primeira a coagissem a ter essa intenção ou que a mesma lhe fosse
sugerida pela consideração de uma utilidade ou de uma vantagem que lhe
poderia advir; e tudo isto é absurdo. Não existe em Deus nem desejo, nem
necessidade, nem intenção: Deus é causa em virtude da sua própria essência.,
e aquilo de que é causa, o mundo, procede necessàriamente da essência divina.
O mundo é assim tão eterno como Deus. A derivação do mundo provemente de Deus
verífica-se (como Ail Farabi havia dito, reproduzindo Plotino) através do
pensamento isto é, através da ciência que Deus tem de si, da auto-reflexão
divina. "A Causa primeira é uma inteligência única, que se conhece a si
própria: daí o conhecer necessáriamente tudo o que de si resulta; sabe que a
existência de todos os seres surge de si, que ela é principio e que não há
nada na sua essência que impeça às coisas de derivarem de si. A sua essência
sabe pois que a sua própria perfeição e a sua própria excelência consistem
nisto: que o bem deriva dela" (lb., IX, 4). Também a Providência, ou seja o
governo do mundo, se exercita do mesmo modo: Deus conhece a ordem,segundo a
qual o bem

197

se distribui no mundo e por este simples conhecimento o próprio bem deriva


d'Ele de tal forma que d'Ele deriva a ordem mais perfeita possível (Ib., W,
6).

Avicena é verdadeiramente o filósofo da necessidade absoluta. Para ele, nada


escapa ao princípio de que todo o ser é necessário: nem mesmo a vontade
humana. As decisões da nossa vontade devem ter uma causa, como tudo o que
passa da simples possibilidade ao ser. Mas a série das causas que o produzem
remonta mais além da própria alma, remonta aos acontecimentos terrestres. Ora
os acon-

os celesLecimentos terrestres são determinados pel tes; portanto a série de


todos os efeitos depende necessàriamente da necessidade da vontade divina.
"Se fosse possível a um homem conhecer, afirma Avicena, todas as coisas que
acontecem no céu e na terra na sua natureza, conheceria todos os
acontecimentos futuros e também o modo como aconteceriam" (Metaf., X, 1).
Donde se deduz a justificação das predicções astrológicas. É claro que o
astrólogo não pode pela simples observação do movimento dos corpos celestes
obter predicções infalíveis, mas isso deve-se à multiplicidade das
circunstânoias de que depende o acontecimento futuro, muitas das quais se
subtraem às suas considerações, não se tratando portanto de falsidade ou
insuficiência da ciência astrológica.

§ 236. AVICENA: A ANTROPOLOGIA

O que distingue os animais dotados de razão daqueles que dela são privados é
o poder de conhecer as formas inteligíveis. Este poder é a alma racional a
que se costuma também chamar intelecto material, ou seja, o intelecto em
potência ou intelecto possível. As formas inteligíveis formam a alma de três
modos distintos. Em primeiro lugar, mediante emanação

198

ou infusão divina, sem qualquer ensinamento ou qualquer aquisição de origem


sensível: é deste modo que ao homem é dado o conhecimento dos primeiros
princípios. Em segundo lugar, por meio do raciocínio discursivo e do
pensamento demonstrativo: deste modo a alma conhece as espécies inteligíveis
que são objecto da consideração lógica. Em terceiro lugar, e através dos
sentidos, com a ajuda de uma capacidade natural e inata. Mediante as espécies
inteligíveis que assim advêm à alma, o intelecto em potência transforma-se em
intelecto em acto, idêntico com as próprias espécies, de tal modo que é ao
mesmo tempo sujeito e objecto de conhecimento (intelligens et intellectum).

A inteligência em potência, a simples substância intelectual, encontra-se


apenas nas crianças, que estão ainda privadas de toda a forma ou espécie
inteligível. Em seguida, sem a ajuda de qualquer ciência ou de qualquer
meditação, obtém-se o conhecimento dos primeiros princípios. Tais princípios
são as verdades imediatamente evidentes, a que se dá o assentimento de forma
imediata como, por exemplo "0 todo é maior que a parte" ou "Dois contrários
não podem simultâneamente pertencer a uma única coisa". Não podem derivar
esses princípios da experiência sensível: não podendo portanto serem
fundamento de um juízo necessário, porque não excluem o juizo contrário
àquele que sugerem. Estes princípios devem ser portanto o produto de uma
imanação divina à qual a alma se encontra unida continuamente ou de forma
interrupta. Uma vez que, em virtude de tal imanação, a alma adquire o
conhecimento dos primeiros princípios, o intelecto está já em acto e a sua
actividade pode enriquecer o património inteligível que lhe foi
subrainistrado pelo alto. Intervém então a actividade discursiva do
intelecto, que procede por composição e divisão, isto é, por análise e
síntese, e este exercício é determinado pelos primeiros princípios que a alma

199

possui. As outras formas inteligíveis ou conhecimentos racionais são


adquiridos pela alma por via de abstracção da experiência sensível. A
abstracção e a

actividade discursiva que compõem e dividem, são pois os dois meios


fundamentais pelos quais a alma humana adquire e enriquece os seus
conhecimentos racionais e constituem o intelecto adquirido. Existe uma via
directa de aquisição, mas é excepcional e

reservada a poucos: "Em alguns homens a vigília prolongada e uma certa união
íntima com o Intelecto universal (isto é, o Intelecto em acto de Deus)
conferiram ao poder da razão uma tal disposição que a alma racional destes
homens deixa de ter necess);dade de qualquer raciocínio discursivo ou do
socorro da reflexão para conhecer e aumentar a sua ciência. A esta disposição
dá-se o nome de santidade e a alma que dela é dotada é uma alma santificada.
Mas esta graça e esta dignidade são apenas concedidas aos profetas e aos
apóstolos, nos quais se encontra a

salvação" (De an., 8, fol., 24).


Mas isto é sem dúvida uma excepção: para os

outros homens a relação imediata com a imanação ou com o ser de que provem é
limitada e não constante porque o corpo o impede. Desta situação Avicena
extraía, platónicamente uma prova de imortalidade da alma: " Quando a alma se
encontrar separada do corpo, a continuidade que une a alma ao Ser que a
aperfeiçoa e do qual depende não será suprimida. A união continua com a
realidade, da qual deriva e da qual depende a sua perfeição, colocando a
coberto de qualquer corrupção, a tal ponto, que ela nunca fica destruida nem
mesmo quando se

afasta ou separa dessa mesma realidade. Por conseguinte a alma permanece


depois da morte sempre imortal, na dependência da substância superior que se
chama Intelecto universal e que os doutores das diferentes religiões designam
por Sapiência de Deus" (De an., 10, fol 34).

200

MAIMõNIDAS

Deste modo, Avicena relaciona a imortalidade, tal como a santidade e a


sabedoria, com a acção do Intelecto divino, isto é, com o Ser necessário. Mas
uma vez que o Ser neccssário é também o bem, a felicidade consiste na
contemplação do ser necessário, ou seja, na ciencia deste ser, que é
proporcionada pela filosofia. Através da filosofia o homem aproxima-se
do Bem supremo que é também a sua origem; e do bem supremo aproximam-se
igualmente todas as coisas criadas, cada uma de acordo com o modo ou via que
lhe são próprios.
O amor de que Avicena fala nos Tratados místicos é portanto, e de harmonia
com as concepções aristotél;cas a tendência das coisas para o bem, para o fim
supremo, tendência que garante a ordem e a perfeição de tudo. No homem e
sobretudo no sábio, este amor é desejo de contemplação do ser necessário.
Avicena insiste em sublinhar a superioridade do sábio sobre os outros homens:
o sábio actwa desinteressadamente com o único objectivo de se

ar)roximar da verdade, enquanto que os outros homens actuam por uma espécie
de troca comercial, renunciando a certos bens nesta vida para terem depois a
recompensa na outra (Livre des directives, p. 199; trad. franc. p. 485-487).
A via mística coincide assim com o conhecimento filosófico e a ambos se opõem
todas as formas populares de culto religioso que no entanto, segundo Avicena,
não devem ser desprezadas pelo sábio (lb. p. 221; trad. franc., p. 524).

§ 237. AL GAZALI
Em oposição ao espírito filosófico de Avicena surge-nos o espírito xeligioso
de AI Gazali, o mais célebre dos teólogos muçulmanos. AI Gazali, chainado
pelos escolásticos latinos Algazel, nasceu em Tous do Khorasan, em 1059.
Ensinou, em primeiro

201

lugar no colégio de Bagdad, depois em Damasco, Jerusalém e Alexandria. Mais


tarde retirou-se para Tous, sua cidade natal, onde se dedicou a vida
contemplativa dos Súfi (místicos) e compõe grande número de escritos com o
objectivo de estabelecer a superioridade do Islamismo sobre todas as outras
religiões e sobre a própria filosofia. O mais célebre destes textos
teológicos, intitula-se, Restauração das ciências religiosas, obra de
teologia e de moral dividida em quatro partes que tratavam das cerimónias
religiosas, das prescrições relativas às diversas circunstâncias da vida, dos
vícios e das virtudes. Tendo abandonado o seu retiro, AI Gazali retoma a
direcção do colégio de Bao,,dad, mas nos últimos tempos da sua vida, regressa
novamente a Tous, onde funda um mosteiro para os Súfi e passa o resto dos
seus dias na contemplação e nas práticas religiosas. Morre em 1111.

Em meados do século XII, Domingo Gundisalvo traduz duas obras de AI Gazali:


As tendências dos filósofos e A destruição dos filósofos. Na primeira, AI
Gazali não faz mais que expor em síntese os resultados da filosofia do seu
tempo, principalmente de AI Farabi e de Avicena. Neste livro, evita fazer
críticas, de qualquer género, e limita-se a fazer um inventápio das doutrinas
destes filósofos. Na segunda obra, pelo contrário, propõe-se apresentar
certos raciocínios que se opõem à argumentação dos filósofos e que pretendem
demonstrar a nulidade destes. No final desta segunda obra, AI Gazali mostra-
se essencialmente negativo. Na parte positiva do seu sistema remete para a
sua obra sobre a Restauração das ciências religiosas.

A única filosofia que AI Gazali toma em consideração, na sua Destruição dos


Filósofos, é a de Avicena. E compreende-se. A doutrina de Avicena é uma
filosofia da necessidade: Deus é o próprio ser necessário, e também o mundo
como

202

realidade em acto é necessário em relação a Deus. AI Gazali, pelo contrário,


ao ligar-se à tradição dos Mutalcallimun, dispõe-se a afirmar enérgicamente a
liberdade da acção divina, pressuposto de toda a atitude religiosa. As suas
críticas devem portanto dirigir-se no sentido de desmantelar as razões dessa
ordem necessária, a que Avicena tinha reduzido tanto Deus como o mundo. Com
efeito, AI Gazali combate, em primeiro lugar, o conceito de necessidade no
próprio ser necessário, isto é, em Deus. Se este ser fosse, como Avicena
afirma, absoluta necessidade, dele não poderia derivar a multiplicidade das
emanações e das coisas criadas. Segundo Avicena, tudo é produto da causa
primei,ra, mediante o simples conhecimento que a mesma tem de si. Mas
conhecendo-se a si própria, conhece também todas as coisas criadas, o que
significa que contém em si essas mesmas coisas e que, portanto, não é assim
tão simples e necessária como se afirma. O mundo foi criado por um-a vontade
eterna que tinha decretado a existência e que tinha atribuído a tal
existência limites definidos no tempo. Segundo Avicena, isso implicaria uma
alteração na vontade divina, alteração que não pode conciliar-se com a sua
necessidade eterna. Mas, para AI Gazali, esta alteração não oferece apoio a
qualquer objecção, uma vez que ele não vê em Deus o ser necessário.

A crítica de AI Gazali à necessidade própria da essência divina, à


necessidade e também à eternidade do mundo, culmina com a crítica ao próprio
conceito de necessidade, expresso no piincípio causal. Não parece que seja
necessário existir entre as coisas que acontecem, isoladamente, uma relação
causal. Causa e efeito são perfeitamente distintos uma do outro e não estão
ligados entre si quanto às respectivas existências. A relação existente
entre o fogo e a combustão de um objecto qualquer, não

203

é determinada pela acção do fogo, mas pela acção directa de Deus. "0 fogo é
algo de inanimado, não pode por si explicar qualquer acção. Porque razão
haveríamos nós de o considerar activo? Os fi-lósofos não têm outra razão para
afirmarem tal, a não ser a da evidência de que ao aproximar-squalquer coisa
do fogo se verifica a combustão. Mas esta evidência apenas se refere ao facto
de que a combustão se dá juntamente com o fogo, e não que ela provenha do
fogo; não exclui portanto que haja outra causa, para além dele" (Destr.
destruct., 1, dub. 3). Esta outra causa, a única verdadeira causa, é Deus.
Mas a acção de Deus é livre e não está ligada a qualquer ordem determinada. A
possibilidade de existência do milagre permanece, deste modo, garantida.

A figura de AI Gazali representa a reacção da teologia muçulmana à filosofia


da necessidade defendida por AI Farabi e por Avicena. A parte positiva da
doutrina de AI Gazali é a que trata da mística: AI Gazali atribui o máximo
valor à prática da religião. Essa a razão porque as suas obras fundamentais
são as de moral-para ele "a ciência é a árvore, mas a prática é o fruto".

§ 238. IBN-BADJA

Ibn-Badja, que os escolásticos latinos cognominaram Avempace é o primeiro


filósofo famoso entre os Árabes de Espanha. Nasceu em Saragoça no final do
século X1; em 1118 encontrava-se em Sevilha. Esteve também em Granada e mais
tarde dirigiu-se a África onde alcançou grande consideração junto da corte
dos Almorá vidas. Morreu relativamente novo em Fez, no ano de 1138. Alguns
autores árabes relatam que ele foi envenenado por médicos que o invejavam.
Avempace escreveu numerosas obras de ciência e de filosofia. Averróis cita

204

dele uma carta Sobre a continuidade do intelecto com o homem, que fazia parte
do seu escrito Sobre a alma e uma Carta de despedida (Epistola expeditionis).
A sua obra principal é o Regime do Sol;tário, hoje perdida mas da qual existe
um resumo elaborado por um filósofo do século XIV, Moisés de Narbona,
incluído no seu comentário à obra de Ibrt-Tofail.

No Regime do Solitário, Avempace propunha-se dar a entender o modo como o


homem pode chegar a identificar-se com o intelecto em acto, mediante o
sucessivo desabrochar das suas faculdades. Avompace considerava o homem
isolado da sociedade, ou seja, livre dos seus vícios, mas participando das
suas virtudes. O objectivo final do solitário é o de conseguir alcançar as
formas inteligíveis isto é, a verdade especulativa; e as acções que
correspondem a este objectivo integram-se no domínio do intelecto. Esse
objectivo é atingi-do, quando o homem consegue ser intelecto adquirido ou
imanado. Este intelecto consiste na consideração das formas inteligíveis em
si, isto é, separadamente da matéria a

que estão ligadas nas coisas terrenas. O intelecto adquirido é o único que
pode conseguir pensar-se a si próprio e desta forma alcançar o seu termo mais
alto, que é a união com o intelecto em acto, ou intelecto separado de Deus.

Na obra de Avempace o problema aristotélico do intelecto passa a ser uma via


de elevação e de purificação humana e deste modo se transforma de problema de
especulação lógica e metafísica em problema religioso.

§ 239. IBN-TOFAIL

Ibn-Tofail ou Abubekr nasceu à volta de 1100 em Uadi-Ash (Guadix), na


Andaluzia, e foi célebre como médico, matemático, filósofo e poeta. Minis-

205

tro o médico da corte dos almorávidas que atraiíu flustres sábios do tempo e,
entre eles, Averróis que foi encarregado pelo rei, a seu conselho, de redigir
uma análise clara exacional de Aristóteles. Abubekr morreu em 1185, em
Marrocos.
Tal como aconteceu com lbn-Badja, também ele levantou o problema de encontrar
a via através da qual o homem possa conseguir unir-se ao mtelecto universal.
Mas a sua originalidade consiste em ter criado sobre este problema um
verdadeiro romance filosófico intitulado O vivente, filho do vigilante (Hajj-
Jaqzân). lbn-Tofail faz nascer o protagonista, sem pai nem mãe, numa ilha
desabitada do Equador. A criança nasce da terra e uma gazela encarregi-se de
alimentá-la. com o seu leite. Os diversos períodos da sua -idade são
assinalados com os progressos sucessivos do seu conhecimento. Partindo do
conhecimento sensível, o protagonista consegue, gradualmente, dar-se conta da
unidade dos vários seres e a conceber as formas inteligíveis, sendo a
primeira a da espécie. Debruçando-se sobre uma concepção do mundo, na sua
fflade, e através dos conceitos de forma e de matéria, Hajj chega ao
conhecimento de um Ser activo que perpetua a existência do mundo e o põe em
movimento. O regresso a este Ser supremo torna-se então o objectivo da sua
vida. Pretende afastar-se dos sentidos e da imaginação e concentrar-se no
pensamento, para poder identificar-se com ele. No grau mais elevado da
contemplação descobre o reflexo de Deus no universo e a proximidade da esfera
celeste. Finalmente, no êxtase, vê a Deus dele dimanando diversas esferas
celestes e descendo sobre diversos seres humanos, alguns puros e piedosos,
outros impuros e condenados.

Para demonstrar o acordo entre a sua doutrina e a crença da religião


islâmica, Ibri-Tofail imagina o seu protagonista encontrando-se, aos
cinquenta

206

anos, com um homem criado na religião e que por uma via diferente consegue
chegar às mesmas conclusões que ele. Os dois juntam-se para criar uma
comunidade religiosa, mas depois, reconhecendo a irrípossibilidade de
comunicar a todos a verdade por eles alcançada, retiram-se de novo para o
isolamento, para viverem uma vida contemplativa.

O romance de Ibn-Tofail exprime uma posição que é comum a todos os filósofos


árabes: a de que a filosofia conduz a um resultado idêntico ao da religião,
mas por uma outra via, que é a da busca individual e da demonstração. Além
disso, a obra de Ibri-Tofail é também como que um resumo das doutrinas
correntes na filosofia árabe sobre o intelecto. O verdadeiro agente do
conhecimento humano é o intelecto universal, a última emanação do Ser
supremo. O @ntelecto humano ou potencial está dominado e dirigido por Aquele.

§ 240. AVERRóIS: VIDA E OBRA


Ibn-Ruslid ou Averróis, o mais célebre dos comentadores árabes de
Aristóteles, nasceu em Córdova em 1126. O avô e o pai eram jurisconsultos e
juízes, e à mesma carreira estava destinado Averróis, que no entanto se
dedicou com grande entusiasmo à medicina, à matemática e à filosofia. Sabemos
já como ele foi apresentado por Ibri-Tofail à corte do rei Yussuf. Este rei
confiou-lhe numerosos cargos políticos que o obrigaram a viajar
frequentemente pela Espanha e por Marrocos. O sucessor de Yussuf, Almansur,
protegeu igualmente Averróis. Mas quando este foi acusado por suspo*,ta de
heresia e, Ial como muitos outros sábios árabes da época, de promover o
estudo da ciência e da filosofia dos gregos, em detrimento da religião

207

muçulmana, Almansur desterrou-o para a cidade de El-isana (Lucena), perto de


Córdova, proíbindo-o dela sair. Averróis teve então de suportar os insultos
dos fanáticos. Ele próprio nos conta que uma vez, indo com o filho à mesquita
para assistir à oração da tarde, a turba o expulsou do lugar sagrado. Mais
tarde, foi enviado para Marrocos e não voltou mais a Espanha. Morreu em 10 de
Dezembro de 1198, com a idade de 73 anos. Por ordem de Almansur, as suas
obras foram todas destruídas e o Ocidente teve delas conhecimento através de
versões hebraicas.

Entre as obras de Averróis podemos destacar, em primeiro lugar, os


Comentários a Aristóteles e que se distinguem em grandes comentários,
comentários médios e paráfrases ou análises. Pelas referências contidas
nestas obras podemos supor que Averróis tenha redigido os comentários médios
primeiro que os grandes e as paráfrases e análises contemporâneamente ou
quase com os comentários médios. Além destes comentários, Averróis escreveu:
1.` A destruição da destruição dos filósofos de Algazali e que é uma
refutação da obra de Algazali; 2. Questões ou dissertações sobre diversas
passagens do Organon de Aristóteles; 3. Dissertações físicas ou pequenos
tratados sobre diversas questões da física de Aristóteles; 4. Duas
dissertações sobre a união do intelecto separado com o homem; 5.O Uma
dissertação sobre o problema de se saber "se é possível que o intelecto
(intelecto material ou hílico) compreenda as formas separadas ou abstractas"-
,
6.O Uma refutação do texto de Avicena Sobre a divisão dos seres; 7.O Um
tratado sobre o acordo da religião com a filosofia; 8. Um tratado sobre o
verdadeiro significado dos dogmas da religião, escrito em Sevilha em 1179.

208

§ 241. AVERRóIS: FILOSOFIA E RELIGIÃO


A intenção declarada de Averróis não é a de construir um sistema próprio, mas
apenas a de esclarecer o significado autêntico da filosofia de Aristóteles,
que para ele é a expressão máxima do pensamento humano. "Aristóteles, afirma
Avicena, é a regra e o exemplo criados pela natureza para demonstrar a máxima
perfeição humana. A doutrina de Aristóteles é a verdade máxima, porque a sua
inteligência reflecte o ponto mais alto do intelecto humano. E bem se pode
afirmar que foi criado e oferecido aos homens pela Divina Providência, para
que os homens pudessem saber tudo o que lhes é dado sabem (De an., 111, 14).
Com tais considerações sobre o valor de Aristóteles e sobre a verdade da sua
doutrina, Averróis evidentemente não pretende ter a presunção de ultrapassar
o seu mestre ou de se afastar do caminho por ele traçado. No entanto, na sua
obra de ilustração e de wmentários aos textos aristotélicos, perpassam os
resultados fundamentais de toda a especulação árabe anterior; ele próprio se
move dentro do clima dessa especulação, que é substancialmente uma
interpretação neoplatonizante do oristotelismo.

Não obstante a suspeita de heresia que sobre ele pesou, Averróis não concebe
a investigação filosófica em desacordo com a tradição religiosa. Em primeiro
lugar, está consciente do valor absoluto dessa mesma investigação. "Na
verdade, afirma, a religião própria dos filósofos consiste em aprofundar o
estudo de tudo o que é, não se poderá render a Deus um culto melhor do que
aquele que consiste em conhecer as suas obras e leva ao conhecimento do
próprio Deus em toda a sua realidade. Esta é, aos olhos de Deus, a acção mais
nobre, enquanto que a acção mais desprezível é a de

209

acusar de erro e de presunção vã aquele que se consagra a esse culto, que é o


mais nobre de todos, o que adora Deus com esta religião, que é a melhor de
todas" (Muiik, Mélanges, p. 456). Por outro lado, no entanto, a investigação
filosófica não pode ser de todos, a religião do filósofo não pode ser a
religíão do vulgo. Tal como certos alimentos são bons para certos animais e
maus para outros, também os processos dos filósofos que são utilíssimos nas
suas investigações são, no entanto, funestos para os não-filósofos. Se os
filósofos viessem demonstrar junto do vulgo as suas dúvidas e as suas
demonstrações, isso poderia dar aso aos incompetentes de levantar ainda mais
dúvidas e argumentos sofísticos e de caírem em erro. Por isso, a religião que
é feita para a maioria, segue e deve seguir outra via, uma via "simples e
narrativa" que ilumine e dirija a acção. Este é o verdadeiro domínio da
razão. À filosofia cabe o mundo da especulação, e à rehgião o mundo da acção.
Quem nega, ou simplesmente duvida, dos princípios enunciados pela tradição
religiosa, tornaria impossível o agir humano, do mesmo modo que tornaria
impossível a ciência aquele que negasse ou duvidasse dos princípios básicos
em que ela se fundamenta (Destr. destruct., disp. 6, fol. 56, 79). AverrÓis
pretende nos seus livros "falar livremente com os autênticos filósofos" e não
opor-se aos ensi-namentos da tradição religiosa.

Não se lhe pode portanto atribuir aquela doutrina da dupla verdade, que os
escolásticos consideraram como pedra angular do seu sistema. Para ele não
existe uma verdade religiosa ao lado de uma verdade filosófica. A verdade é
uma só: o filósofo procura-a através da demonstração necessária, o crente
recebe-a da tradição religiosa (a lei do Corão) numa forma simples e
narrativa, que se adapta à natureza da maior parte dos homens. Mas não existe
um contraste entre as duas vias, nem dua-

210

lismo na verdade. Averróis escreveu, como já dissémos, dois tratados que se


destinavam a demonstrar o acordo que existe entre a verdade religiosa e a
filosófica.

Todos os que são estranhos à especulação devem aproximar-se da forma que a


verdade recebeu por obra da tradição religiosa, para que assim possam ser
iluminados e guiados nas suas acções. Mas para os filósofos, ao invés, a
verdade adquire o aspecto severo da demonstração necessária e passa a ser o
termo de uma investigação que é a melhor e mais elevada de todas as acções
humanas.

§ 242. AVERRóIS: A DOUTRINA DO INTELECTO

A doutrina que os escolásticos latinos recolheram como sendo típica do


averroísmo é a do intelecto. Com ela, Averróis, distingue-se das
interpretações que dominam a filosofia árabe de Al Kindi a Ibrí-Tofail. Para
estes filósofos, o Intelecto agente é a última emanação divina e é por isso
uma

substância separada de toda a matéria e da própria alma humana, pertencendo


ao número das substâncias divinas. Ointelecto potencial ou material (hílico)
é, pelo contrário, para eles, o intelecto prè@prÍamente humano, a parte
racional da alma humana. Este último, passa a acto por obra do primeiro,
tornando-se assim intelecto em acto; por sua vez, o intelecto em acto,
aperfeiçoando-se com o exercício do raciocínio discursivo, transforma-se em
intelecto adquirido (adeptus). A esta doutrina que se encontra exposta e
defendida, com poucas variantes, nos filósofos tratados atrás, Averróis vem
trazer uma modificação substancial: o intelecto material ou hílico não é a
alma humana. E não é pela mesma razão porque não o é o intelecto activo: uma
vez que as formas inteligíveis que são o seu objecto
211

potencial são universais, eternas, indestrutíveis e não o seriam se seguissem


a sorte da alma humana, que é diferente nos diferentes indivíduos; que
algumas vezes pensa e outras não; e que pensa diferentemente em cada
indivíduo. Por esses mesmos motivos também o intelecto adquirido ou
especulativo (adeptus, speculativus) que resulta da acção do intelecto agente
sobre o íntelecto material ou possível é uno em todos os homens e separado da
alma humana. Mas este último pode ter a participação da alma humana na sua
multiplicidade e mutabilidade; e essa participação pode ter a forma de um
hábito, de uma disposição, ou de uma preparação (habitus, dispositio,
preparatio) e que constituem a perfeição da própria alma: uma preparação que
segue os acontecimentos, desde o nascimento à morte, da própria alma, porque
pertence à sua capacidade imaginativa (que é dada ao corpo). O intelecto
especulativo, no entanto, pode ser considerado por um lado como ú nico, por
outro como múltiplo; como eterno ou como gerador corruptível. Em si próprio,
é único e eterno. Como disposição e preparação da alma é múltiplo e submetido
ao nascimento e à morte.

Segundo Averró@s, uma tal solução permite resolver todas as dificuldades que
a doutrina do intelecto provocava nas soluções adoptadas pelos seus
predecessores. "Se o objecto inteligível, afirma Avarróis, fosse
absolutamente único em mim e em ti, aconteceria que, quando eu o conhecesse,
tu também o conhecerias; e outras coisas impossíveis. Por outro lado, se o
objecto inteligível fosse diferente para os diferentes indivíduos,
aconteceria que o mesmo estaria em ti e em mim, único, na sua espécie, duplo
naindividualidade uma vez que haveria um outro objecto fora dele e este outro
por sua vez um outro e assim sucessivamente. Seria ainda impossível neste
caso que o discípulo aprendesse,

212

o mestre, a menos que a ciência que existe no mestre não seja uma
virtude que gera e cria a ciência que existe no discípulo, do mesmo
modo que um fogo gera outro fogo a ele semelhante: o que é impossível.
Mas quando pensamos que o objecto inteligível que está em mim e em
ti é múltiplo para o sujeito para o qual é verdadeiro, isto é, para as formas
da imaginação, e único para o sujeito que é o _;ntelecto existente e
material, tais questões acabam totalmente por desaparecem (Comm. inagiuim De
an., 111, 5). Portanto, segundo Averróis, a virtude cognitiva própria do
homem limita-se à esfera das formas imaginativas, ou seja, das formas
extraídas das imagens sensíveis; uma tal vàrtude é simples preparação do
Intelecto material, ~elhante à preparação da matéria que se dispõe a receber
a obra do artífice (1b., 111, 20).
Deste modo, o processo total do conhecimento iotelectivo, que vai da potência
ao acto, desenrrola-se independente e separadamente da alma humana, que se
limita a reflecti-lo imperfeita e parcialmente. O processo integral é posto
directamente em movimento e mantido pelo intelecto activo. A acção deste é
comparada por Averróis. de acordo com a imagem aristotélica, à do sol
enquanto que o intelecto potencial ou materiaí (hí,lico) é comparado à
capacidade de ver, que existe graças à luz solar; e as formas inteligíveis
(verdades ou conceitos) existentes na alma humana são comparáveis às cores.
Tal como o sol, que flumina, o meio transparente (o ar) e deste modo conduz
ao acto as cores que existem no objecto, o intelecto activo, ao iluminar o
intelecto potencial, faz com que este disponha a alma de forma a que esta
possa abstrair das representações sensíveis os conceitos e as verdades
universais. Por conseguinte, a alma individual não possui mais nada além do
material das representações; mas é ela que abstrai

das referidas representações os conceitos, ao unir-se ao intelecto potencial;


e este une-se a ela quando a ele se une o Intelecto agente.

Desta doutrina resulta toda uma série de consequências paradoxais que


desencadearam uma polémica acalorada por parte da escolástica latina. Em
primeiro lugar, o intelecto material é único em todos os inffivíduos porque é
a disposição que o Intelecto agente comunicou às respectivas almas.
Multiplica-se nos diversos indivíduos como a luz do sol se multiplica ao
distribuir-se sobre os diversos objectos que ilumina. Como S. Tomás explica
(C. gent.,
11, 73), a diversidade dos intelectos humanos é determinada pelo facto de
que, actuando o intelecto material sobra as imagens, que não existem todas em
todos os indivíduos, nem são igualmente distribuídas por todos, as coisas que
um certo homem pensa não são as mesmas que são pensadas por um outro homem.
Em segundo lugar, não pode acontecer que umas vezes o intelecto material
compreenda e outras vezes não, salvo no caso de determinado indivíduo e nunca
no que se refere à espécie humana. Por exemplo, pode acontecer que Sócrates
ou Platão umas vezes compreendam e outras vezes não o conceito de cavalo;
mas, no conjunto da espécie humana, o intelecto compreende sempre este
conceito, a menos que a própria espécie venha a desaparecer, o que é
impossível. Disto resulta que a ciência não pode reproduzir-se nem corromper-
se, porque é eterna. Morre a ciência que existe em Sócrates ou em Platão com
a morte do indivíduo: mas não morre a ciência em si, porque está ligada a uma
disposição universal, essencialmente conexa com toda a espécie humana.

Nesta natureza do intelecto se fundamenta o destino da alma humana. A


felicidade do homem consiste em cultivar e ampliar a disposição que constitui
o intelecto material, a fim de aperfeiçoar
214

e ampliar a capacidade especulativa e conhecer as substâncias separadas e


finalmente o próprio Deus. Averróis retoma, na sua totalidade, a doutrina
aristotélica da superioridade da vida teorética. "0 intelecto prático,
segundo ele, é comum a todos os homens, todos o possuem, uns em maior grau
que outros; mas o imelecto especulativo é uma faculdade divina, que se
encontra apenas nos homens excepcionais" (De an., 111, 10, fol. 494 a). A
ciência é a única via da beatitude humana: uma beatitude que se atinge nesta
vida, através da pura investigação especulativa, uma vez que a vida humana
não continua para além da morte. Com efeito, a única parte da alma humana que
não está ligada ao corpo e não se encontra portanto submetida à reprodução e
à corrupção é precisamente o intelecto material. Mas esse intelecto se como
simples disposição faz parte da alma humana, como realidade substancial
subsiste separadamente e não é mais que o próprio intelecto agente. Na alma
humana mantem-se apenas o intelecto aquisitivo ou especulativo; mas este,
condicionado como está pela parte sensível que lhe fornece as imagens das
quais são abstraídas as formas inteligíveis, está ligado ao corpo, nasce e
morre com ele (1b., 111, 1). Averróis é levado a negar a imortalidade da alma
e a colocar o fim último do homem na bealitude que se pode alcançar nesta
vida mediante a investigação especulativa e a contemplação das realidades
supremas.

§ 243. AVERRóIS: A ETERNIDADE DO MUNDO

Sobre o problema do intelecto e sobre as questões com ele conexas, entre as


quais está a imortalidade humana, Averróis entra em contradição com os
pensadores anteriores e especialmente com

215

Avicena que identificava o intelecto material com o humano e sustentava a


imortalidade própria da natureza e do destino da alma humana. Mas, no que diz
respeito às relações entre Deus e o mundo,

e em especial à criação, Averróis não faz mais que retomar a doutrina dos
seus predecessores. A necessidade do ser, tão enèrgicamente defendida por
Avicena, é também a pedra angular da metafísica de Averróis. É de notar que
tal necessidade não exclui, mas antes exige, a criação: o ser possível em
relação a si mesmo exige o ser necessário que o conduza ao acto e o crie. Mas
esta criação é apenas, como já notou S. Tomás (§ 278), a dependência causal
do ser possível, que é a-penas necessário em relação a outro, desse outro que
é Deus. Exclui assim o início no tempo do ser possível, ou seja do mundo, e
nada tem a ver com a criação tal como é concebida na Bíblia e no Corão. Esta
depende de um acto de vontade do Criador, que dá início no tempo ao mundo e
prescreve ao mesmo limites temporais definidos. Mas contra este conceito,
Averróis Emita-se a repetir as objecções de Avicena. Se Deus criou o mundo do
nada, isso pode significar que ele o tenha criado por um motivo estranho à
sua natureza ou que se tenha verificado na sua natureza uma alteração que de
certo modo o haja determinado à criação. Ora ambas estas alternativas são
impossíveis. Nada existe fora de Deus, excepto o mundo, por isso Deus não
pôde buscar o inóbil da sua criação no exterior. Por outro lado, nenhuma
coisa pode alterar-se a si própria; por conseguânte, a natureza de Deus não
pode também sofrer alteracão. Além disso, se a criação significa uma escolha
áivina, essa escolha deve ser contínua e eterna, a não ser que se verifique
algum obstáculo ou se lhe apresente uma coisa melhor para escolher. Mas não
podemos falar em obstáculos em relação a Deus, nem se pode conceber uma
alternativa melhor na

216

criação do mundo. A escolha de Deus deve ser por isso eterna e contínua e não
se pode falar de um princípio do mundo (Dest. destruct., disp. 1, dub. 1-2).

Averróis aceita a doutrina de AI Farabi e de Avicena, de que o mundo dimana


necessàriamente da ciência de Deus e que esta dimanação não é motivo ou
intenção particular, porque procede da natureza de Deus, na medida em que
este se conhece a si próprio (Ib., disp. 3, dub. 2). Deve por isso afirmar-se
que a acção de Deus na formação e na conservação do mundo não é comparável à
acção de nenhum agente Enito, nem natural nem voluntário, uma vez que Deus
formou o mundo e mantem-no de um modo que não tem paralelo na acção das
coisas o dos homens.

O mesmo deve afirmar-se da acção de Deus ao governar o mundo. Deus dirige o


mundo com a sua ciência, mas a ciência de Deus nada tem a ver com a humana.
Deus apenas se conhece a si próprio; mas ao conhecer-se a si próprio, conhece
tudo. A sua ciência não diz respeito às coisas particulares porque está para
além dos limites das mesmas. Mas o facto de não conhecer as coisas
individuais deste mundo na sua essência individual, não significa um defeito
do conhecimento divino, pois não é um defeito não conhecer de forma
imperfeita aquilo que se conhece de um modo mais completo (Epit. metaf., IV,
p. 138). A providência divina segue a ciência divina. Como Deus não conhece
as coisas indâviduais também não as d-Jrige e governa com a sua acção
providencial. A injustiça e o mal que existem no mundo demonstram clara-mente
que, nem Deus nem as outras substâncias separadas que dimanam dele
directamente e regem as órbitas celestes, governam directamente as
vissicitudes e o destino dos seres singulares (1b., IV, p. 155). Através do
movimento dos corpos celestes Deus regula também os acontecimentos do mundo

217

sublunar. Com efeito, o movimento do sol, ao determinar a sucessão dos dias e


das noites e a alterriância das estações, regula a geração das plantas e dos
animais. Deus rege deste modo todo o mundo segundo uma ordem necessár@a e
infalível. Mas o que é puramente individual ou casual, o que não se integra
na ordem necessária de tudo, escapa à providência, assim como à ciência de
Deus (Ib., IV, p. 152).

A própria vontade humana é determinada, na medida em que as suas deliberações


estão sujeitas à ordem necessária do mundo. Averróis sustenta que as nossas
acções dependem,pelo menos em parte, do nosso livre arbítrio, mas afirma que,
por outro lado, elas não podem furtar-se ao determinismo da ordem cósmica. A
vontade humana é em si um agen!e livre; mas a sua acção manifesta-se no mundo
que é regulado pela ordem necessária e eterna de Deus. A relação da vontade
com as causas externas é determinada pelas leis naturais: por isso o Corão
fala de uma predestinação infalível do homem (Munk, Mélanges, p. 457-458).

A condenação pronunciada em Paris nos anos de


1270 e 1277 contra o averroísmo, referia-se às seguintes proposições: o
intelecto de todos os homens é numèricamente uno e idêntico; o mundo é
eterno; a alma, que é a forma do homem enquanto homem, corrompe-se com a
corrupção do corpo-, Deus não conhece as coisas singulares; o livre arbítrio
é uma potência passiva, não activa, movida necessàriamente pelo objecto
apetecido; a vontade do homem escolhe por necessidade (Denifle, Chart.
Univers. Paris, 1,
486-487). Estas proposições incluem aquilo que aos escolásticos latinos
surgia como típico do averroísmo e em contraste irremediável com o dogma
cristão. Mas o significado do averroísmo não reside apenas nestas
proposições. Apresenta-se também como a ,grande tentativa de reconquistar,
com o regresso a Aristóteles - o filósofo por excelência - a liberdade

218

da investigação filosófica; o de dirigi-Ia no sentido de esclarecer essa


ordem necessária do mundo, cuja contemplação pareceu a Averróis ser o mais
alto dever e a felicidade perfeita do homem.

NOTA BIBLIOGRÁFICA

§ 232. MUNK, Mélanges de philosophie juive et arabel Paris, 1852, 1927;


DIETERECI, Die Philosophie der Arabern in Jahrhundert, 4 vol., Leipsig, 1865-
1870; CARRA DE VAux, Les penseurs de LlIstam, Paris, 1921; M. HORTEN, Die
Philosophie des Islams, Mónaco, 1924; G. QUADRI, La filosofia degli Arabi nel
suo fiore, Florença, 1939, 2 vols. Da Teologia, a tradução Ia-tina feita
sobre a tradução italiana do texto árabe (descoberto em Damasco em 1516, pelo
humanista Francesco Rosso) foi publicada em Roma em 1519. O texto do Liber de
causis, comentado, a partir do século XM por numerosos autores, encontra-se
numa recolha de opúsculos de S. Tomás, Pedro de Auvernia e Egídio Romano,
publicada em Veneza em 1507.

Sobre as escolas teológicas: HORTEN, Die philosophischen Probleine der


spekulativen Theoloqie in Islam, Bonn, 1912; MACDONALD, Development of Muslim
TheoZogu, Jurisprudence and Constitutional Thenry, New York, 1903; GARDET-
ANAWATY, Introduction à Ia thèologie musulmane, Paris, 1948. -Sobre os
Mutakal!Iimun: S. PINES, Beitrãge zur islamichen Atomenlehre, Berlim
1936.

§ 233. Os escritos de AI Kindi foram publicados pela primeira vez por ALBINO
NAGY, Die philosophischen AbhandIungen des AI-Kindi, em (Beitrãge" de
Baeumker, 11, 5, 1897. Um escrito de introducão ao estudo de Aristóteles foi
publicado por GUIDI e WALZER, em "Atti Aec. dei Lincei", 1940, série VI, vol.
VI. Um escrito moral de WALzER e RITTER, V01. VIII.

AI Kindi foi também autor de escritos sobre astronomia, medicina e óptica: De


astrorum indiciis, Veneza,
1507: Liber novem indicum, Veneza, 1509; De rerum gradibus, Argentorati,
1531; De temporum mutationibus
8ive de imbribus, Paris, 1540; De aspectibus, ed. Bjoernbo-Vogl, Leipsig,
1912.

Sobre a doutrina do intelecto: GILSON, Les sources gréco-arabes de


Ilaugustinisme avicénnisant, em "Arch. d'Hist. doctr. et @it. du m. â.",
1930.

219

§ 234. De AI Farabi: De scientiis, De intelectu, Paris, 1638; ed. com trad.


frane. de Gilson, em "Arch. £I,Hist. doetr. et lit. du m. á.", 1929-30;
Philosophische AbhandIungen, texto árabe, ed. Dieteríci, Leiden, 1890; Das
Buch der Ringsteine, cd. Horten, em "Beitrãge", V, 3, 1906; De ortu
scientiarum, ed. B&euml-er, Munster,
1916; ed. com trad. ingl. ed. Harmer, Glasgow, 1934; De arte poetica, com
trad. ing1. ed. Arberry, em "FUvista di Studi Orientali", 1930; De Platonis
philosophia, ed. Rosenthal-Walzer, Londres, 1943; Compendium legum Piatonis,
texto árabe e trad. lat., ao cuidado de Gabrieli, Londres, 1952.
MADICOUR, La place d'Al Farabi dans Fécolé philosophique musulmane, Paris,
1934.

§ 235. De Avicena: a parte do Cânone de medicina traduzida na Idade Mádia, em


Opera Omnia, Veneza,
1495, 1508; Metafísica, trad. alemã, Horten, Lcíp@ig,
1913, 1960; Compendium metaphysicae, ed. Carame, Roma, 1926; De anima, ed.
Rahman, Londres, 1959; Traités mystiques, trad. frane. Mehren, Leiden, 1889-
1899; Logica oriental (Mantigual-masriqiyyah), Cairo,
1910; Epitre des définitions, trad. frane. Goiclwn, Bey- rut-Paris, 1951;
Livre de sciences, trad. frane. Massé, Paris, 1955; Poème de Ia mèdicine,
texto árabe com trad. frane. e lat,, ao cuidado de Jahier e Novreddine,
Paris, 1956. -Bibliografia: SA'TI) NAFICY, Bib. des principaux travaux
européens sur A., Teerão, 1953; PUR-E SINA (A., his life, Works, Thought and
Time) Teerão,
1954; ANAWATI, Chronique avicénnienne, 1951-1960, em "Rev. Thomiste", 1960.

CARRA DE Vxux, A., Paris, 1900; SALIBA, Mudes sur métaphysique d'Avicenna,
Paris, 1926; GoiCHON, La distinction de Vessence et de rexistence d'après Ibn
Sina, Paris, 1937; La phil. dA. et son influence en Europe médiévale, Paris,
1944, 1951; GARDET, La pemée religieuse d'A., Paris, 1951; La connaissance
mystique chez Ibn-Sina, Cairo, 1952; RAHMAN, Avicenna's Psychology, Oxford,
1952; AFNAN, A., His Life and Works, Londres-New York, 1958.

§ 237. De AI-Gazali: As tendências dos filósofos foram publicadas na trad.


lat. com o título Logica et philosophiae, Veneza, 1516. A trad. lat. da
Destructio philosophorum tem sido sempre editada juntainente com a
Destructio, destructionum de Averróis; Tendentiae philosophorum, Leiden,
1888; Destructio philosopharum,

220

Cairo, 1888; Metaphysic. A Medieval Transtation ed. Muckl.e, Toronto, 1933.

ASIN PALACIOS, Algazei: Dogmatica, Moral, Ascética, Saragoça, 1901; CARRA DE


VAux, Gazali, Paris,
1902; OBERMANN, Der philosophie und religiose Subjektivismus Ghazalis, Viena-
Leipsig, 1921; WATT, The Faith and Practice of al-Gazali, Liondres, 1953;
FARID YABRF, La notion de certitude selon Ghazali dans ses origmes
psychologiques et historiques, Paris, 1958.

§ 238. De Avempace: De plantis, Continuatio intellectus cum homine, Epistola


expeditionis, Regime del solitario, textos árabes e= trad. espanhola a cargo
de Asin Palacios em "Al-Andalus", 1940, 1942, 1943.

MUNK, Mélanges, cit. p. 386-410; FARRUKH, Ibn Baajja (Avem pace) and the
Philosophy in the Modern West, Beirute, 1945.

§ 239. De Ibn Tofail: o tratado, cujo títu@o em árabe é Hajj ibn Jaqzân, vem
publicado no original e numa tradução latina de E. Pococke, Oxford, 1671, com
o título: Philosophus autodidactus sive epistola in qua ostenditur quomodo ex
inferiorum contemplatione ad superiorum notitiam mens ascendere possit. O
texto árabe com tradução francesa foi publicado por Gauthier, Argel, 1900, e
teve numerosas traduções em outras línguas.

GAUTI-11ER, Ibn Tofail, Paris, 1909. § 240. De Averróis: a tradução latina


dos seus escritos foi editada pela primeira vez em 1472 e depois editada em
Veneza, várias, dezenas de vezes, juntamente com as obras aristotélicas: a
melhor edição é a de 1552 a qual existe, uma reedição, Froncoforte do Meno,
1962. Commentarium magnum in De anima, ed. Crawford, Cambridge (Mass.), 1953;
Traité dé~f sur l'accord de Ia religion et de Ia philosophie, texto árabe e
trad. frane. de Gauthier, Argel, 1942; trad. alem. Müller, Mónaco, 1875;
trad. ing1. Jamil-ur-Rehman, Baroda, 1921; trad. esp. Alonzo, Madrid 1947; De
generatione et corruptione, ed. Kurland, Cambridge (Mass.),
1958; Parva Naturalia, ed. ShieIds, Cambridge (Mass.),
1949.

RENAN, Averroes et Faverroisme, Paris, 1851, 1869; GAUTHIER, Ibn Roschd,


Paris, 1948; ALLARD, Le rationalisme dAverràes d'après une étude sur Ia
création, Paris, 1955.

221

xI

A FILOSOFIA JUDAICA

§ 244. A CABALA

Como acontece com a filosofia árabe, com a qual tem muitos caracteres em
comum, a filosofia judaica começa a constituir, a partir do século XIII, uma
das componentes fundamentais da escolástica latina. Como acontece com a
filosofia árabe e a filosofia cristã da Idade Média, a filosofia judaica é
uma escolástica que tem em comum com as duas primeiras os problemas
fundamentais (as relações entre a razão e a fé, entre Deus e o mundo, entre o
intelecto e a alma) e empenha-se em resolvê-los com os mesmos dados ou com
dados semelhantes: a filosofia grega e a tradição religiosa judaica. Mais
próximo desta tradição e em polémica com as tentativas mais francamente
filosóficas para encontrar uma justifi- cação racional das crenças
religiosas, encontra-se o misticismo que assume predominantemente a forma da
Cabala.

A Cabala (que significa tradição) é uma doutrina secreta que a principio se


transmitia oralmente e mais tarde foi recolhida num certo número de trata,

223

dos, dois dos quais existem na totalidade ou quase: o Livro da Cri4ção (Sefer
Yetsirá) e"o Livro do Esplendor (Zohar). Trata-se de escritos em cuja
composição entram elementos heterogéneos. Se bem que alguns destes elementos
sejam provàvelmente bastante antigos, o segundo destes escritos, o Zohar, na
forma que chegou até nós, pertence, quase de certeza, à segunda metade do
século XIII. Tal como são, estes textos apresentam uma doutrina emanenhista,
substancialmente semelhante à dos Neopitagóricos e dos Neoplatónicos dos
primeiros séculos. Neles se afirma que Deus é ilimitado (En Sof.), isto é,
inacessível a toda a determinação e a todo o conhecimento. Como tal, é a
negação de to-da a coisa determinada, não é nenhuma coisa, é portanto o não-
ser ou o Nada. A criação do mundo surge mediante a aparição de substâncias
intermédias chamadas Números (Sephiroth) que são, no tempo, os atributos
fundamentais de Deus e as forças através das quais se realiza a criação
divina. A mediação dos Sephiroth serve para garantir a Deus a absoluta
unidade, ainda que a sua acção se expanda na multiplícidade das coisas, e
neste sentido podem ser comparados aos primeiros e mais directos raios do
Esplendor divino. Os Sephi -

roth são dez: I.'- A Coroa; 2.'-A Sabedoria;


3.'-A Inteligência; 4.'-a Graça; 5.'-a Justiça;
6.'-a Beleza; 7.0-o Triunfo; 8.o-a Glória:
9.---o Fundamento; 10.'-a Realeza. A acção destas substâncias produz toda a
realidade do mundo visível, as três primeiras constituem o mundo inteligível,
segundo o esquema da trindade neoplatónica.
O munIo visível e o inteligível têm a sua proveniência comum no amor e tendem
a aproximar-se e a unir-se. O impulso deve provir do mundo inferior que deve
tender para o superior; em resposta a este impulso, o próprio mundo superior
deseja e ama o mundo inferior. Deus não ama senão aqueles que o amam.

224

A alma humana -reproduz as três primeiras substâncias emanadas: em primeiro


lugar está o espírito vital, depois o espírito intelectual, e finalmente a
alma verdadeira e própria, que domina sobre as duas precedentes e é o orgão
da santidade e da virtude superiores.

A Cabala não tem intentos filosóficos e à expressão ceptual prefere a


concepção imaginativa ou alegórica. A posição que pretende suscitar é a do
misticismo, a base doutrinal que pretende defender é a ortodoxia judaica
tradicional. Ainda que tenha extraído os seus conceitos do helenismo e da
própria obra dos filósofos judeus da Idade Média, os defensores ou
expositores que teve nos séculos XIII e XIV entendem fazer dela uma
alternativa às obras dos filósofos e -polemizam com eles. Todavia, no
Renascimento os próprios filósofos iriam buscar à Cabala parte da sua
inspiração e utilizaram-na frequentemente como instrumento de interpretação
dos livros sagrados.

§ 245. ISAQUE ISRAELI

Como já se disse, a filosofia judaica consiste substancialmente num encontro


da tradição judaica com o helenismo; e sob este prima o mais antigo filósofo
judeu da Idade Média é Isaque Ibri Salomão Israeli, que viveu no Egipto entre
845 e 940. As suas obras de medicina foram traduzidas para o latim por
Constantino Africano; os seus escritos filosóficos, Livros das Definições e
Livro de Elementos, foram traduzidos do árabe para o latim, por Gerardo de
Cremona. Isaque não é um filósofo original, mas apenas um compilador que se
serve sobretudo de fontes neoplatónicas, especialmente do Livro de Causas.
Muitos latinos do século X111,

225

entre os quais S. Tomás, foram buscar a Isaque a definição de verdade como


"adequação entre o intelecto e a coisa".

§ 246. SAADJA

O verdadeiro fundador da escolástica hebra-ica é Saadja, que foi célebre


corno filósofo e teólogo, mas também como poeta. Nasceu em Fajjoum, no
Egipto, em 892 e em 928 foi designado dirigente da academia de Sora (perto de
Bagdad) que era então a sede principal do rabinismo. Morreu em Sora em 942. A
mais notável das suas obras é o Livro da Fé e da Ciência que escreveu em
árabe, e em

verso, em 932.

Ao lado da autoridade da escritura e da tradição, Saadja reconhece a da razão


e afirma não apenas o direito, mas também, o dever, de compreendermos a
verdade religiosa para assim a consolidarmos e defendermos dos ataques que
lhe são dirigidos. A razão ensina-nos as mesmas verdades que a revelação, mas
esta é necessária para que o homem possa atingir de modo mais rápido a ver-

dade que a razão, abandonada a si própria, só teria podido alcançar depois de


um longo trabalho. Os pontos sobre que se debruça a especulação de Saadja
são: a unidade de Deus, os seus atributos, a criação, a revelação da lei, a
natureza da alma humana, ete. A propósito de Deus, Saadja afirma que as
categorias aristotélicas lhe são aplicáveis. Defende a criação do nada,
refutando os sistemas contrários a este dogma. Defende também a liberdade
criadora de Deus e reconhece ao homem o livre arbítrio. Verificamos, no
entanto, que no seu pensamento ainda não se faz sentir a influência do
aristoteliismo: isso só vem a acontecer nos filósofos judeus de Espanha e, em
primeiro lugar, em Ibri- -Gebirol.

226

§ 247. IBN-GEBIROL: MATéRIA E FORMA

Salomão Ibn-Gebirol, foi reconhecido por Munk como o autor da Fons Vitae,
aquele que os escolásticos latinos conheceram sob o nome de Avicebron como
sendo árabe. Nasceu em Málaga em 1020 ou 1021, fez a sua educação em Saragoça
e viveu provàvelmente até 1069 ou 1070. Foi célebre como poeta e, segundo uma
tradição lendária, foi morto por um muçulmano que tinha inveja do seu génio.
A figueira sob a qual foi sepultado deu frutos de tal modo extraordinários
que atraiu a atenção do rei sobre o seu proprietário que foi obrigado a
corifessar o crime. A sua obra, A Fonte da Vida, escrita em árabe, foi
traduzida para o Iatim por João Hispano e Domingos Gundisalvo. Está composta
em forma de diálogo entre mestre e aluno e dividida em cinco livros.

A especulação de Ibn-Gebirol é dominada pelos conceitos aristotélicos de


matéria e forma. O princípio de que parte é o da composição hilomórfica
universal; tudo o que existe, é necessàriamente composto de matéria e forma.
Começa por reduzir a uma matéria única as díversas matérias e a uma única
forma as diversas formas existentes. Com este objectivo, começa por reduzir à
unidade a matéria e a forma das coisas sensíveis. Nestas, as várias espécies
de matéria, quer as artificiais, por exemplo, o bronze, quer as naturais (os
quatro elementos), quer as celestes, têm todas a mesma natureza, que é a de
substracto da forma. Por outro lado, todas as formas sensíveis têm em comum a
característica de serem formas corpóreas. Nas coisas sensíveis, portanto,
existe uma só matéria, o corpo, e uma só forma, a forma corpórea ou
corporeitas.

Mas a matéria não é apenas corpo, uma vez que se só torna corpo quando a ela
se junta a forma particular que é a corporéidade; e por outro
227

lado, a forma não é apenas corporeidade porque esta é apenas a determinação


de uma forma mais universal. Uma matéria que seja maas universal que a
matéria corpórca deve ser comum não só aos corpos como também aos espíritos:
é uma matéria que entra na composição quer das substâncias espirituais quer
das corpóreas. As substâncias espirituais não são simples, são também
compostas de matéria e forma. Nos escolásticos latinos, a doutrina de Ibri-
Gebirol aparece tipificada neste princípio da composiçao hilomórfica das
substâncias espirituais.

Se se trata de uma matéria universal, comum também às substâncias


espirituais, então tratar-se-á de uma forma universal comum a todos os seres.
Esta forma universal é o conjunto das nove categorias de Aristóteles, que
constituem precisamente as determinações mais gerais do ser. A matéria
universal é a primeira das categorias aristotélicas, a substância, que
sustenta (sustinet) as outras nove categorias (Fons vitae, 11, 6).

Assim unificadas e universalizadas, a matéria e a forma não subsistem em si,


mas na mente do Criador. Na Sabedoria de Deus, matéria e forma subsistem na
sua distinção. A criação comiste na união, determinada pela vontade divina,
entre a matéria e a forma. Mediante ela, a forma une-se à matéria e
determina-a, comunicando-lhe, pouco a pouco, as suas sucessivas
determinações: as qualidades primárias, a forma mineral, a forma vegetativa,
a forma sensitiva, a forma racional, a forma inteligível. Mas o pressuposto
desta união entre a matéria e a forma, e em que consiste a criação, é a
vontade de Deus.

§ 248. IBN-GEBIROL: A VONTADE

A matéria e a forma têm em comum entre si o desejo de se unirem uma à outra.


A matéria

228

anu a forma e deseja gozar a alegria que experimenta ao unir-se a ela; a


forma deseja realizar-se na matéria para nela produzir a sua acção, segundo o
impulso que lhe é transmitido pelo próprio Criador (Fons vitae, 111, 13). O
amor e a tendência recíproca, que existem entre a matéria e a forma, devem
derivar de uma substância superior de que ambas participam. Esta :substância
espiritual, e más que espiritual, é o Verbo agenie (Verbum agens) ou vontade
de Deus. "No ser, afirma Ibn Gebirol, apenas existern três coisas: a matéria
e a forma, por um lado, a Essência primeira, por outro; e a Vontade que é o
meio entre os dois extreinos". A Vontade cria a matéria e a forma universais
e por conseguinte, todos os seres que resultam da união da matéria e da
forina. A Vontade está ligada à matéria e à forma tal como a alma está ligada
ao corpo: funde-se nelas, penetrando-as completamente (1b., V, 36). Essa é a
virtude da Essência primelira, de Deus, e por conseguinte, a intermediária
entre essa mesma essência o a matéria e a forma.

No entanto, entre a Essência primeira ou Verbo agente, e a matéria, Ibn-


Gebirol admite uma série de formas ou substâncias separadas, inspirando-se
evidentemente no neo-platonismo do Liber de causais. Estas substâncias, de
acordo com a ordem que vai do menos perfeito e menos simples ao mais perfeito
e mais simples, são as seguintes: a natureza, as três almas (vegetativa,
sensitiva e racional), a inteligência. A inteligência compreende todas as
formas e conhece-as. A alma racional compreende as formas inteligíveis e
conhece-as mediante um movimento discursivo que a faz passar sucessivamente
de uma para outra. A alma sensitiva percebe as formas corpóreas e conhece-as.
A alma vegetatíva apodera-se do corpo e faz com que este se mova. A natureza
une as partes do corpo, gera entre elas

229

a atracção ou a repulsa e alterna-as entre si. Estas substâncias intermédias


são menos perfeitas à medida que se afastam da sua forma comum, a vontade
criadora de Deus. A sua crescente imperfeição explica-se com a diminuição do
poder da Vontade criadora, que, sendo infinita em si, é finita na sua acção e
por isso vai enfraquecendo (como um ra;o luminoso que se afasta do centro que
o produz) à medida que vai avançando (lb., IV, 19).

A filosofia de lbn-Gebirol apresenta, no seu conjunto, uma originalidade e


uma força que lhe asseguraram grande influência nos séculos seguintes. A
parte históricamente mais importante da mesma é a afirmação da matéria
universal. Combatida por S. Tomás, esta afirmação virá a ser retomada por
Giordano Bruno que fará dela o pressuposto do seu panteísmo.

§ 249. filosofia judaica: REACÇÃO CONTRA A FILOSOFIA

A reacção da ortodoxia judaica contra a Elosofia é representada por algumas


figuras que têm escasso relevo especulativo. No final do século XI, Baclija
lbn-Pakudia, num texto seu, Deveres dos corações, coloca a moral prática
acima da especulação e representa na tradição hebraica o que Algazel
representa no mundo árabe. Em 1140 o poeta Yehuda Halevi num livro intitulado
Kuzari parte de uni facto histórico: a conversão ao judaísmo de um rei dos
Jazares (séc. VIII), para fazer a
apologia do judaísmo e uma condenação da investigação filosófica. Abraão Ben
David, de Toledo, escreveu em 1161, em árabe, um livro chamado A fé sublime
para demonstrar o acordo entre a teologia liebraica e a filosofia
aristotélica. Mas esta tentativa teve pouca fortuna; e o único que consegue
entre os Judeus alcançar um lugar importante na investigação filosófica é
Maimónidas.

230

§ 250. MAIMóNIDAS: A TEOLOGIA

Moshé lbn Maymon, chamado Maimónidas, nasceu em Córdova a 30 de Março de


1135. Por causa da intolerância dos almohades, a sua família foi obrigada a
abandonar a Espanha e a fixar-se, primeiro em Fez, Marrocos, e depois na
Palestina. Daqui, Moisés passou para o Egipto, instalando-se na velha Cairo.
Ao mesmo tempo que se dedicava ao comércio de pedras preciosas, dava cursos
públicos que lhe granjearam fama como filó sofo e teólogo, mas sobretudo como
médico. O rm,nistro do célebre sultão Saladino, que naquele tempo tinha
estendido o seu -Poder ao Egipto, assegurou-lhe os meios necessários
pararenunciar ao comércio e dedicar-so apenas à ciência, nomeando-se médico
da corte. Ma-imónidas consegue então obter grande celebridade e fortuna, e
pôde, com a ajuda do seu protector, furtar-se às acusações que lhe foram
feitas de haver regressado ao judaísmo depois de ter aceitado, durante a sua
estadia em Espanha quando jovem, a fé muçulmana. Morreu em 13 de Dezembro de
1204.

Maimónidas é autor de numerosos textos médicos e teológicos. Entre estes


últimos tem importância fLUosófica um chamado Oito capítulos. Um seu
Vocabulário da lógica foi traduzido para latim por Sebastião Munster. Mas a
sua obra fundamental é o Guia dos perplexos, na qual procurou levar a cabo a
conciliação entre a Bíblia e a filosofia, a revelação e a razão. A obra está
dirigida àqueles que rejeitam tanto a irreligiosidade como a fé cega e que,
ao encontrarem nos livros sagrados coisas contraditórias ou na aparência
impossíveis, não ousam admiti-Ias para não irem contra a razão, nem rejeitá-
las para não menosprezarem a fé; ficando por isso dominados por uma
perplexidade dolorosa. A estes perplexos se dirige Maimónidas, com o

231

propósito de utilizar todas as armas dialécticas, proporcionadas pela


filosofia árabe e judaica na defesa da fé tradicional.

Vimos já que o resultado substancial da filosofia árabe desde AI Kindi a


Averróis foi a elaboração do princípio da necessidade do ser, princípio que
tem como imediata consequência a eternidade do mundo. É certo que contra esse
mesmo princípio se fez sentir a reacção dos Mutalcalli-mun, dos Asharias e de
Algazel; mas esta reacção, que partia da ortodoxia -religiosa, era estranha à
filosofia e por isso contrária a todas as filosofias. Parecia que a defesa da
novádade do mundo e da criação não podia ser feita a não ser em nome da fé e
com a renúncia de todas as vantagens que a investigação filosófica tinha
trazido à própria compreensão da verdade revelada. A originalidade de
Maimónidas que, no entanto, se apresenta de início como defensor do mundo e
da criação, reside no facto de ele não renunciar ao processo demonstrativo e
aos resultados da filosofia da necessidade. Uma vez que a existência de Deus
e as outras verdades fundamentais não permitem ser demonstradas rigorosamente
a não ser através dos processos dessa mesma filosofia e na base do princípio
que a mesma defende, parece ser de utilizar este princípio para se
estabelecer as verdades fundamentais, para em seguida submeter a uma análise
o referido princípio. "Creio, diz Maimónidas (Guia, 1, 71), que o verdadeiro
modo, o método demonstrativo que elimina a dúvida, consiste em estabelecer a
exigência de Deus, a sua unidade e a sua corporeidade de acordo com o
procedimento dos filósofos, procedimento esse que se baseia na eternidade do
mundo. Não ,porque eu creia na eternidade do mundo ou faça a este propósito
qualquer concessão; mas porque só com este método a demonstração se torna
segura e se obtém uma certeza perfeita sobre estes pontos:

232

que Deus existe, que é uno, que é incorpáreo, sem que isto implique decidir o
que quer que seja quanto ao mundo, se ele é eterno ou se foi criado. Uma vez
resolvidas, com uma verdadeira demonstração, estas três questões graves e
importantes, poderemos voltar em seguida ao problema da novidade do inundo e
para isso deitaremos mão de todos os argumentos possiveis". Noutros termos,
Maimónidas admite a título de hipótese provisória o princípio da necessidade
do ser para poder demonstrar certas verdades fundamentais-, deixando para
depois, num

segundo momento, a discussão do corolário fundamental daquele princípio, a


eternidade do mundo.

Sob esta base, Maimónidas procede à demonstração da existência, de Deus e dos


seus atributos fundamentais, a unidade e a corporcidade: e as suas
demonstrações não fazem mais que seguir de perto o que disse Avicena. Supondo
que alguma coisa existia (e para que qualquer coisa exista. bastam os nossos
sentidos para o demonstrar), existe necessàriamente um Ser necessário. Já que
aquilo que existe, ainda que seja apenas como possível, é necessário em
relação à sua causa; e esta causa é precisamente o Ser necessário (1b., 11,
1). Deus conhece todas as coisas, mesmo as particulares; mas conhece-as com
um único e imutável acto de ciência. A multiplicidade das coisas conhecidas
não implàca a multiplicidade do saber divino, que permanece único porque não
depende das coisas, que por seu lado dependem dele (1b., 111, 20-21).

Estabelecida a existência de Deus, Maimónidas passa a considerar o problema


do mundo. O argumento mais forte adoptado por Avicena a favor da eternidade
do mundo era o seguinte: o mundo, antes de ser criado, era possível; mas toda
a possibilidade implica um substrato material; por conse- ,guinte, antes da
criação subsistia a matéria do mundo. Mas nenhuma matéria existe privada de

233

forma; por conseguinte, antes da criação, subsistiam a matéria e a forma do


mundo, ou seja, o próprio mundo na sua totalidade. A este argumento e a todos
os outros da mesma espécie, Maimónidas opõe que é impossível raciocinar sobre
as condições em que se encontrava quando começava a nascer, uma coisa que
agora está acabada e perfeita. Não podemos recuar do estado em acto de uma
coisa para o seu estado potencial; por conseguinte, todos os argumentos que
se servem desta forma de agir são viciosos e não têm qualquer força
demonstrativa. Se a tese da eternidade do mundo não pode ser demonstrada, a
tese oposta, da criação é, pelo menos, possível. Mas Maimónidas sustenta que,
mais que possível, é certa e dá-nos disso a razão.

Essa razão consiste substancialmente no reconhecimento da liberdade do acto


criador, liberdade que rompe com a necessidade do mundo, da qual derivaria a
sua eternidade. Pela negação da necessidade do ser, Maimónidas pretende
chegar à negação da eternidade do mundo; e consegue chegar à negação da sua
necessidade ao reconhecer em determinado momento do processo criativo uma
liberdade de escolha por parte de Deus, uma decisão contingente, não
rigorosamente determinada pela exigência de garantir a ordem necessária do
todo. De qualquer modo, o mundo teria podido ser diferente do que é; no
entanto ele é aquilo que é devido a uma livre escolha de Deus que exclui a
necessidade absoluta e, por conseguiinte, a eternidade. "Se debaixo da esfera
celeste existe uma tal disparidade de coisas, não obstante a matéria ser uma
só, poderás dizer que essa disparidade se deve à influência das esferas
celestes e às diferentes posições que a matéria assume perante elas, como
ensinou Aristóteles. Mas a diversidade que, existe entre as esferas celestes,
quem poderá determiná4a senão Deus?

234

Se alguém afirmar que ela é produzida pelos intelectos separados isso nada
explicaria: os intelectos não são corpos que possam ocupar uma posição
relativamente à esfora. Porque razão o desejo que atrai cada uma das esferas
para a sua inteligência separada arrastaria uma esfera para leste e outra
para oeste? Por outro lado, qual a razão porque uma esfera seria mais lenta e
outra mais rápida?" (-1b., 11, 19). A única resposta possível a estas
perguntas é, segundo Maimónidas, a contingência do mundo. "Deus determinou
como quis a direcção o a rap@dez do movimento de cada esfera, mas nós
ignoramos o modo como ele realizou o facto, segundo a sua sabedoria". E deste
modo, Maimóffides partindo da hipótese da eternidade para chegar a Deus
mediante uma demonstração necessária, consegue negar a própria hipótese e
inutilizar, no terreno da filosofia, a necessidade do mundo que era o
resultado fundamental da especulação árabe.

§ 251. MAIMóNIDAS: A ANTROPOLOGIA

Tal como a metafísica de Maimónidas é dorninada pela exigência de ressalvar a


liberdade criadora de Deus, ainda que nela não se negue a ordem do mundo nem
se faça da realidade um milagre contínuo, também a antropologia é dominada
pela exigência de ressalvar a liberdade humana, quer no

domínio do conhecimento quer no domínio moral. Vim-os já como a filosofia


árabe tinha constantemente atribuído ao Intelecto agente, separado e divino,
a total iniciativa do conhecer humano. Ma,imónidas, ainda que reproduzindo
nos seus traços fundamentais a doutrina de Avicena sobre o intelecto,
modifica-a no sentido de reservar ao homem e ao seu esforço de
aperfeiçoamento a verdadeira e própria iniciativa do conhecer. A alma
racional do homem

235

é o intelecto hilico, material e potencial, que se encontra no corpo, tal


como as almas das esferas celestes se encontram nos corpos das próprias
esferas. Este intelecto passa a acto e eleva a alma ao conhecimento
verdadeiro e próprio das formas inteligíveis, por acção do Intelecto
agente que não é múltiplo, nem se encontra nos corpos diversos, como a
inteligência hílica, mas único e separado de todos os corpos (1b., 1, 50-52).
Até aqui nada de novo: trata-se da reprodução da doutrina de Avicena. Mas
Maimónidas acrescenta que para o Intelecto poder fazer passar a acto o
intelecto hílico, precisa de encontrar uma matéria preparada para receber a
sua expansão. Conforme a alma racional esteja ou não convenientemente
disposta, assim receberá ou não a influência do Intelecto agente, passará ou
não a acto, e o realizar-se numa ou noutra das alternati,vas não depende do
Intelecto agente, que permanece sempre idêntico, mas apenas no homem,
Maimónidas retira assim ao Intelecto agente a iniciativa de conhecer e
restitui-a ao homem. Consoante o grau de preparação da sua alma racional,
assim recebe o homem mais ou menos a acção do intelecto agente e se ergue
mais ou menos para a perfeição; já que para ele a perfeição consiste em
tornar-se inteligência em acto e em conhecer, de tudo o que existe, aquilo
que lhe é dado conhecer (1b., 111, 27). A maior parte dos homens recebe do
Intelecto agente apenas a luz que chega para alcançar a perfeição individual;
outros recebem uma acção mais abundante, que os estimula a criar obras e a
comunicar aos outros homens a sua própria iluminação. Quem recebe a imanação
do Intelecto agente na alma racional é um sábio que se dedica à especulação.
Quem a recebe não só na alma racional, mas também na capacidade imaginativa,
é um profeta. A profecla representa (como já acontecia em AI Farabi e em
Avicena) a mais elevada

236

perfeição do homem, porque só na alma melhor disposta a influência do


Intelecto agente se expande para lá da razão, na faculdade imaginativa (1b.,
11,
36-37).

Maimónidas, assim como defende a actividade humana no domínio do con-


heoimento, também defende a liberdade humana no domínio da acção. É certo que
a providência divina se estende a todo o futuro e por conseguinte determina
também as acções humanas que irão acontecer. Mas não se pode renunciar a
admitir a liberdade que é o princípio da acção e a condição da
responsabilidade humana. É preciso portanto afirmar que a predeterminação
divina e a liberdade humana são conciliávèis; só a forma como o são é que nos
escapa. A própria providência exerce-se tendo em conta a liberdade, a razão e
os méritos do homem, e não se deve impor ao homem o peso de uma ordem pré-
constituída que lhe tolha a liberdade (1b., 111, 17-18).

Da sua doutrina do intelecto, Maimónidas deriva a da imortalidade. A


imortalidade não é para todos os homens, está reservada aos eleitos, àqueles
a que a Bíblia chama as "almas dos justos" (1b., H, 27;
1, 70). Mas não se trata de uma imortalidade singular. Maimónidas admite o
princípio aristotélico de que a diversidade entre os ind,ivíduos de uma mesma
espécie é devida à matéria. Para as inteligências separadas, este princípio
não vale: estas são distintas únicamente pela razão causal, pela qual uma é
causa e outra efeito. Mas as almas dos homens são distintas entre si apenas
pelos corpos: e uma vez corrompido o corpo, a distinção entre os indivíduos
desaparece, pois apenas fica o puro intelecto (1b., 1, 74). A imortalidade do
homem não é mais que a sua participação na eternidade do Inteler-to separado.
O homem não é verdadeiramente, segundo Maimónidas, imortal como homem, mas

237
apenas, como parte do Intelecto agente; e a medida da sua imorta-lídade é
devida à medida da sua participação nesse intelecto, ou seja, à medida da
sua elevação espiritual.

NOTA BIBLIOGRÃFICA

§ 244. Sobre a filosofia judaica: MUNK, Méianges, cit., p. 461-511; STOCKL,


Geschichte der Phil. des Mittelalters, II, p. 227-305; NEumARK, Geschichte
der judischen Phil. des Mittelalters, Berlim, 1907-1928; HuSIK, A History of
Medieval Jewish Philosophy, New York, 1918; GUTTMANN, Die Philosophie, des
Judentums, Munique, 1933; BERTOLA, La filosofia ebraica, Milão, 1947; ADLER,
Philosophy of Judaism, New York, 1960.

O Livro da Criação foi imprimido em Basileia em


1567, numa recolha com o título de Artis cabbalisticae scriptores; outra ed.
Amesterdão, 1642, reeditada por GoIdschmidt, Francor-f do Meno, 1894. O Livro
do EsvIendor, impresso pela primeira vez em Mântua,
1558-1560, teve depois várias edições com a tradução latina de Amesterdão, de
1670 em diante. Traduções francesas de DE PAULY, Paris, 6 vols. 1905-
1911.FRANK, Système de Ia Eabbale, Paris, 1842; PicK, The Cabala, Londres,
1914; BOSKER, From the World of the Cabbalah, New York, 1954; SEROUYA; La
Kabbale, Paris, 1957.

§ 245. As obras de Isaque com o titulo Opera Omnia, editadas em Lyon em 1515;
esta edição compreende a tradução latina do Livro das Definições e do Livro
dos Elementos; ed. Muckle, in "Archiv. d'Hist. doctr. et litt. du m. â."
1937-38; trad. ing. de Stern, Londres, 1958.

GuTTMANN, Die philosophischen Lehren des Isaac, em "Beitrage", X, 4, 1911.

§ 246. De Saadja: Ouvres complètes, ed. Derenbourg, 6 vols., Paris, 1893-


1896.

GRVNFELD, em "Beitrage", VII, 6, 1909; MALTER, Saadia Gaon, Filadelfia,


1921; VENTURA, La phil. de S. G., Paris, 1934; FREIMANN; Saadia's
BibUography, New York, 1943.

238

§ 247. O Fons Vitae de Ibn-Gebirol foi editado nas partes fundamentais em


árabe e traduzido para francês por MUNK, Mélanges, cit. A tradução latina de
João Hispano e Domingo Gundisalvo, por Ba,eumker, nos seus "Beitrage", 1, 2-
4, 1892-1895.
MUNK, Mélanges, cit., p. 151 e sgs.; GUTTMANN, Die Philosophie des Salomon
von Gebirol, Cottingen, 1889; BERTOLA, Salomon ibn Gebirol (Avicebron),
Pádua, 1953.

§ 249. O livro de Bachja Sobre os deveres dos corações teve idêntica edição
na tradução hebraica; Nápoles, 1490; Leipsig, 1846; Viena, 1854. Com tradução
alemã de STERN, Viena, 1856; tradução alemã de FURRSTENTHAL, 1836.

O livro Alcharari de Gluda Halevi foi publicado com a tradução latina em


Basilei-a em 1660; com tradução alemã em Leipsig, 1841-1853, 2.1 ed., Leipsig,
1869.

O livro de Ben David A fé sublime, na tradução hebraica acompanhada da


tradução alemã, foi publicado por WeiJ, Franefort do Meno, 1852.

§ 250. A tradução latina do Guia dos Perplexos de l@faimõnidas com o título


Dux seu doctor dubitantium seu perplexorum, foi editada em Paris em 1520. O
texto árabe foi publicado com tradução francesa por S. MUNK com o titulo Le
guide des égarés, traité de théologie et de philosophie, 3 vols. Paris, 1856,
1861, 1866; trad. ing. edlãnder, Londres, 1881, 1885; 2.1 ed. New York,
1925.

LEVY, Maimónide, Paris, 1911, reedição em 1931, com bibl.; SÉROUYA,


Maimónide, Paris, 1951; ZEITLING, Maimónides,. New York, 1955.

239

xII

A POLÉMICA CONTRA O ARISTOTELISMO

§ 252. ARISTOTELISMO: AS TRADUÇõES LATINAS

DE ARISTóTELES

O século XIII assinala o florescimento da escolástica. A tentativa de levar a


razão humana à compreensão das verdades reveladas é o seu maior sucesso até
dar lugar à grande síntese feita por S. Tomás. Esse sucesso apresenta-se
condicionado pelo enriquecimento da razão nas suas forças e no seu conteúdo
problemático mediante a obra de Aristóteles que, por intermédio dos árabes,
foi redescoberta pela filosofia ocidental.

Já na primeira metade do século XII, Raimundo, arcebispo de Toledo de 1126 a


1151, havia dirigido uma escola de tradutoires, à qual muito ficou a dever a
escolástica, do século seguinte. João Hispano traduz a Lógica de Avicena;
Domingos Gundlisalvo, arquidiácono de Segóvia, com a ajuda daquele, traduz a
Física, o De coelo et mundo e os primeiros dez livros da Metafisica de
Aristóteles; e, além disso, a Metafísica de Avicena, a Filosofia de AI
Gazali,

241

o escrito Sobre as Ciências de AI Farabi e a Fons Vitae de Algebirol. Um


outro membro da escola de Toledo, Gerardo de Cremona, falecido em 1187;
traduz a Física. O De coelo, o De generatione, e os primeiros livros dos
Meteorológicos, de Ar@stóteles; além do Cânone de Avicena, o Liber de causis

e outros textos.

Miguel Scoto (1180-1235), nascido na Escócia, ou, segundo outros, em Salermo


ou Toledo, famoso como mago ("veramente delle magiche frode seppe il giuo-co"
afirma dele Dante, Inf., XX, 116), e autor de obras de astronornia, e de
alquimia, foi encarre- ,gado pelo imperador Frederico Il de traduzir
Aristóteles. Traduziu a História animalium; e além disso, o comentário de
Averróis ao De coelo e ao De anima e provávelmente a De generatione, Meteore
e Parva naturalia.

Na metade do século XIII, Hermann, o Alemão, bispo de Astorga, traduziu o


comentário médio de Averróis à É tica a Nicómaco e depois à Retórica e à
Poética.

Em 1120 existia em Paris uma tradução da Metafísica de Aristóteles; e em


Pádua descobriu-se uma tradução latina da mesma obra que remonta aos fins do
século XII.

Em 1125, Alfredo Anglico traduz do grego o

De anima, o De somnio e o De respiratione. Entre


1240 e 1250, Roberto Grossatesta (§ 255) traduzia ou mandava traduzir a
Grande Ética e outros opúsculos de Aristóteles.

Guilherme de Moerbeke, nascido em 1215, forneceu a S. Tomás a tradução do


grego de vários textos. Traduziu a Política e a Economia de Aristóteles; os
Comentários de Simplício às Categorias e ao De coelo; os Elementos de
Teologia e outros opúsculos de Proclo. A tradução dos Elmentos permito a S.
Tomás reconhecer neles o original do

242
Liber de causis, já traduzido por Gerardo de Cremona.

Todo este trabalho de tradução revela um interesse profundo pela doutrina de


Aristóteles, na qual
* escolástica do século XIII acabou por descobrir
* expressão mais perfeita da razão humana e, por conseguinte, o melhor
caminho para alcançar a verdade revelada. Mas precisamente pelo facto da obra
de Aristóteles ser a expressão perfeita da razzão com plena autonomia e
independência de qualquer pressuposto da fé, a mesma devia suscitar, e
suscitou com efeito, oposições e desconfiança e à primeira vista i)areceu
inconciliável com o dogma católico. O século XIII apresenta-nos as primeiras
tentativas de aproximação do aristotelismo bem como as reacções contrárias;
virá mais tarde o equilíbrio conseguido com a síntese toraista.

§ 253 polémica comtra o aristotelismo: GUILHERME D'AUVERGNE

O primeiro contacto da escolástica latina com a doutrina de Aristóteles


verificou-se através do aristotelismo, arabe. O conhecimento directo dos
textos aristotélicos é ainda demasiado escasso e inseguro para que se possa
discernir o aristotelismo original dos acréscimos interpretativos dos Árabes;
por outro lado, estes mesmos acréscimos aproximavam o aristotelismo da
mentalidade dos escolásticos e do problema que os preocupava, uma vez que
são, em parte, fruto da tentativa de procurar no aristotelismo uma resposta
para os problemas da fé muçulmana que, em certos pontos essenciais
(existência e espiritualismo de Deus, criação, imortalidade da alma) coincide
com a cristã.

O primeiro entre os escolásticos a tomar posição perante o aristotelismo é


Guilherme d'Auvergne. Nascido em Aurillac, provàvelmente antes de 1180,

243

foi mestre de teologia na Universidade de Paris; e de 1228 até morrer (1249),


bispo de Paris. A sua obra principal é o Magisterium divinale, em sete
partes, sendo de maior importância filosófica o De tritiitate (escrito entre
1223 e 1228), De utúverso e o De aninw (escrito entre 1231 e 1236). O
objectivo de Guilherme é polémico: pretende combater "os erros de Aristóteles
e dos filósofos que o seguem"; mas efectivamente pretende visar sobretudo
Avicena, do qual depende directa e polèmicamente. Depende directamente na
medida em que faz sua a distinção fundamental de Avicena entre o ser
necessário e o ser possível, depende polèmicamente na medida em que
transforma essa distinção numa oposição, que lhe permite defender a não-
necessidade do mundo, e por conseguinte, da criação. Nesta polémica,
Guilherme foi levado naturalmente a utilizar a obra de Maimónidas, que era
dominada pela mesma preocupação fundamental.

Guilherme começa por distinguir uma dupla predicação: uma predicação secundum
essentiam e uma predicação secundum partecipationem. Todo o predicado que se
aplica a uma coisa ou pertence à própria essência da coisa ou permanece
exterior à essência da coisa em que participa. A predicação por participação
supõe a predicação por essência. Se se afirma, por exemplo, que uma coisa é
boa porque participa de uma outra coisa, e que essa outra coisa é boa também
por participação, dá-se início a um processo infinito, que apenas se evi-
,tará quando se chegar a um ser que seja bom por essência (De trin., 1). Ora,
quando se atribui o ser às coisas finitas faz-se uma predicação por
participação, que pressupõe uma predicação por essência: ou seja, supomos um
-ser que é ser por essência e, portanto, impensável como não existente. A
estes dois modos de predicação correspondem assim dois modos fundamentais do
ser: o Ser por

244

essência, que inclui a existência na sua quididade ou substância; e o ser não


por essência cuja quididade ou substância não inclui a existência. O Ser por
essência não tem causa e é simples, porque privado de composição. O ser não
por essência recebe a existência do exterior e precisamente do Ser por
essência e é, por conseguinte, composto sempre pela sua qualidade ou
substância e pela existência que lhe é atribuída do exterior. Estes
conceitos, derivados de Avicena, são esclarecidos por Guilherme com os
próprios termos de Avicena: o Ser por essência é o ser necessário, o ser por
participação é o ser possível ou potencial (De tric., 7).

Mas neste ponto, Guilherme afasta-se de Avicena para se aproximar de


Maimón@idas. Para Avicena não existe oposição entre o ser necessário e o ser
possível; o ser possível é, na realidade necessário por outrem; não pode
conseguir a existência em acto a não ser ao converter-se ipso facto em
necessário. Pelo contrário, Gulilherme contrapõe nitidamente o ser
necessário ao ser possível. "Procederei por outra via e dir-te-ei a razão por
que o ser necessário e o ser possível são contrários entre si. Do mesmo modo
são contrários a necessidade em si e a possibilidade em si, tal como a
antiguidade e a novidade. Com efeito, como a necessidade em si é causa da
eternidade ou antiguidade, assim necessàriamente a possibilidade em si será
causa da novidade ou temporalidade; e uma vez que a necessidade em si não se
encontra no criador, nele se encontra apenas a eternidade ou antiguidade. E
mais: como a necessidade em si não suporta a novidade ou temporalidade no ser
em que se encontra, assim é necessário que a possibilidade em si não suporte
a eternidade no seu próprio sujeito. Por isso é impossível que nenhuma das
coisas criadas seja eterna" (De univ. 1. 2). O primeiro resul-

245

tado desta contraposição entre o ser necessário e o ser possível é, portanto,


a negação da eternidade do mundo e a afirmação da necessidade da criação.
Poss,ibilidade no ser -participado, signifea temporalidade, novidade; por
conseguinte, criação. Guilherme introduz assim pela primeira vez na
escolástica latina, a distinção real entre a essência e a existência das
coisas criadas, que iria tornar-se o cerne da metafísica de S. Tomás. "Uma
vez que o ente possível não é o ente por essência, ele e o seu ser, que não
lhe pertence por essência, são duas realidades distíntas e uma (o ser) surge
da outra (a essência), ainda que não se integre na sua razão ou quididade"
(De trin., 1). As coisas criadas são, portanto, formadas pela essência e pela
existênc;a e essa existência deriva de Deus por participação. O ser das
coisas criadas e o ser de Deus não são idênticos nem diferentes, são
análogos: de certo modo, assemelham-se e correspondem-se entre si, sem que
tenham o mesmo significado (1b., 7). Este princíp;o da analogicidade do ser,
irá ter também uma aplicação sistemática na metafisica de S. Tomás.

A criação supõe que Deus contenha em si os modelos ou exemplares das coisas


criadas: esses modelos não constituem um mundo à parte, como queria Platão;
são a própria Sabedoria ou Verbo, gerado por Deus desde a eternidade (De
univ., 1,
36-37). Deste modo, o platonismo aparece ligado à especulação do
aristotelismo árabe e serve para conciliar este último com a fé cristã. O
Verbo divino confere directamente ao homem os conhecimentos fundamentais ou
primeiros princípios a que Guilherme chama prima intelligibil,;a, primae
impressiones, dignitates et communes animarum conceptiones, etc. Esses
primeiros princípios oferecem-se à alma humana como se fossem inatos ou
inculcados nela de forma natural (De an., V, 15); com

246

efeito, surgem i-ião do exterior mas do interior, e constituem não só as


regras fundamentais da verdade, como também as do recto agir, ou seja, da
honestidade (1b., VII, 6). Através desta fluminação interior, que é um outro
enxerto do agustinismo, Guilherme sustenta que é inúti,1 a acção do intelecto
agente. Se os primeiros princípios são ffirectamente inculcados no homem pela
Sabedoria divina, os outros conhecimentos inteligíveis derivam directamente
da realidade inteligível, sem qualquer força ou potência intermédias. "Entre
os sentidos e as coisas naturais não é necessária nenhuma virtude intermédia
que actue sobre os sentidos de modo tal que faça com que os conhecimentos
sensíveis, que existem em potência nos órgãos dos sentidos, se transformem em
acto. ]Para este efeito bastam os objectos sensíveis que são exteriores à
alma. Para. quê, na verdade, uma potência intermédia e necessária ao
conhecimento intelectual, como se não bastasse ao intelecto, para apreender a
realidade inteligível, a acção dessa mesma realidade? (1b., VII,
4). O intelecto agente é portanto uma ficção inútil.
O iintelecto material, pelo contrário, é a verdadeira e própria essência da
alma; mas não é apenas potência receptiva mas também activa e, por meio dela
e dos objectos inteligíveis, podemos explicar todo o conhecimento intelectual
humano. (1b., V, 6).

Entre os escritos de Guilherme figura uma reelaboração de um tratado Sobre a


imortalidade da alma de Domingos Gundisalvo, arcebispo de Segóvia, conhecido
sobretudo como tradutor (§ 252). O escrito é inteiramente dependente das
fontes árabes, das quais é extraída a prova da imortalidade da alma:
independência da actividade intelectual em relação ao corpo; natureza da alma
como forma, imaterial o aspiração à felicidade pela alma intelectiva; posição
intermédia da alma entre os puros espíritos e a alma das plantas e dos
animais; inde-

247

pendência da alma em relação a qualquer factor destruidor; ausência de um


órgão corpórco da alma intelectiva; relação da alma com a origem da vida.
O escrito, muito pouco original, teve dentro da escolástica uma certa
importância histórica; entre outros, inspiraram-se nele S. Boaventura e
Alberto Magno.

§ 254. ALEXANDRE DE HALES

A entrada do aristotelismo na escolástica latina está de certo modo ligada


com os acontecimentos da Universidade de Paris. Em Fevereiro de 1229, depois
de vários tumultos que tiveram início num dia de Carnaval, a Universidade
ficara deserta e mestre e alunos abandonaram Paris. Em 1231, o papa Gregório
IX reconstitui a Universidade, mas proíbe os professores de utilizarem os
livros de Física de Arístóteles (que haviam sido proibidos por um concílio
provincial em 1210) até que fossem expurgados de qualquer suspeita de erro.
Da comissão para tal constituída fazia parte um mestre da própria
Universidade, Guilherme d'Auxerre, autor de um comentário às sentenças de
Pedro Lombardo e que tinha o título de Summa aurea. Neste comentário, são
poucas e imprecisas as referências a Aristóteles; nele se encontra, todavia,
defendida a distinção entre um duplo ser das coisas criadas: o ser que existe
na criatura e o ser divino, do qual depende a criatura; distinção que parece
reconduzir à que Avicena fazia entre o possível e o necessário. Mas é com
Alexandre de Hales que a escolástica assume uma nítida posição relativamente
ao aristotelismo.

Alexandre nasceu em Hales, no condado de Gloucester, em Inglaterra, entre


1170 e 1180. Estudou em Paris e foi professor de teologia na faculdade das
artes desta cidade. Em 1231, ingressou na ordem franciscana que, através
dele, teve -pela primeira

248

S.BOAVENTURA

vez um representante na escola parisiense. Conta-se que o papa Inocêncio IV,


acabando por conhecer a fama que tinham as suas lições, o encarregou de
compor uma Summa que servisse de regra aos doutores no seu ensino. A obra
apresentada por Alexanúre ao papa foi em seguida submetida ao juizo de 70
teólogos. Estes aprovaram-na e recomendaram-na como livro perfeito para toJos
os mestres de teologia. Rogério Bacon, ao escrever alguns anos mais tarde a
sua Opus minus (1267) negava que fosse Alexandre de Hales o autor da Summa
totiu theologiae: "A partir do momento em que Alexandre entrou para a ordem
dos franciscanos, os frades colocaram-no nas nuvens, conferiram-lhe a máxima
autoridade em todo o gênero de estudos e atribuiram-lhe esta grande Summa que
é carga demasiada para um só cavalo". O que é certo é que a ordem
franciscana, a partir daí, se manteve fiel aos pontos fundamentais do
neopla,tonismo agustiniano exposto na Summa de Alexandre e defendeu-os
enèrgicamente contra o aristotelismo.

No entanto, ela ainda apresenta vasta ressonancia do aristotelismo árabe e


juda@ico e, em primeiro lugar, de lbn Gabirol. Deste, Alexandre aceita o
princípio da composição hilomórfica universal. Todos os seres criados são
formados por matéria e forma; o mesmo acontece com os seres espirituais. A
alma é precisamente a forma do corpo; mas além de ser forma, isto é
actividade, é também passividade ou capacidade de suportar a acção dos
outros seres e esta passividade, que é igualmente pertença da alma
separada do corpo, constitui a matéria da mesma (Sum. 11, q. 61, 1). As
coisas criadas têm, por um lado, a composição de matéria e forma, por
outro, a composição de essência e de existência (quo est e quod est); esta
última pertence também à alma como tal (lb., q. 20, 2).

249

Mas se existe uma matéria das criaturas espirituais, ela não é, como queria
Ibn Gabirol, idêntica à das coisas corpórcas. Não ex@ste uma matéria comum a
ambas; nem sequer existe uma matéria comum entre os corpos celestes e os
sublunares, ainda que a matéria de uns e de outros pertença ao mesmo gênero
(1b., 11, q. 44, 2).

A doutrina aristotélica das quatro causas é adoptada por Alexandre para


delerminar as relações entre Deus e o mundo. Deus é causa formal, é causa
eficiente e causa final das coisas. É causa formal, na meJ,@da em que contém
as ideias, que são os exemplares das coisas do mundo: estas ideias formam um
todo com a essência. É causa eficiente, na medida em que o mundo depende da
sua omnipotência que pode levar a cabo tudo o que não contradiga a sua
essencia e os seus atributos fundamentais. É a@nda causa final na medida em
que é o bem supremo para o qual tendem as coisas, cada uma a seu modo. (Ib.,
q. 21, 1; 11, q. 3, 2;
11, q. 42). Tal como Guilherme d'Auvergne, Alexandre não admite senão um
único modelo do mundo, o próprio Deus. As i@eias estão reunidades na essência
de Deus e só surgem na sua diversidade quando relacionadas com as coisas
múltiplas que dela provêm.

A propósito da questão do intelecto, Alexandre sustenta que não só o


intelecto material, mas também o próprio intelecto agente faz parte da alma
humana. "0 intelecto agente e o intelecto potencial são duas distinções da
alma racional. O àntelecto a-ente é a forma pela qual. a alma é espírito; o
intelecto possível é a matéria da alma, matéria pela qual a alma existe em
potência relativamente às coisas congrioscíveis que contém. Tais coisas
existem na sua parte inferior e surgem sobretudo da alma sensível Ub., 11, q.
69, 3). Também o inte-

250

lecto agente faz parte da alma; mas, apesar de ser a-ente, não conhece em
acto to-das as formas. Recebe do primeiro Agente uma iluminação relativa a um
certo número de forma inteligív&s; mas uma vez iluminado, aperfeiçoa por sua
vez o intelecto em potência (lb., 11, q. 69, 3). Deste modo, a alma humana
apresenta uma tripla distinção: o

intelecto material, que é o acto do homem no seu corpo; o intelecto em


potência, que pertence à alma enquanto separável do corpo; o intelecto em
acto, que lhe pertence porque, de certo modo, está já separada do corpo
(lbid., II, q. 69, 4).

Tais são os pontos sobre os quais a Summa de Alexandre assume uma posição,
frente ao aristotelismo árabe e judaico. Estes pontos implicam a aceitação de
poucos conceitos fundamentais: a distinção real entre essência e existência;
a composição hilomórfica de todas as criaturas; a distinção entre os
intelectos. Mas a Summa é uma obra vastíssima que tem a pretensão de reunir
toda a tradição integral da escolástica latina para assim formar um dique
contra a invasão das novas correntes aristotélicas. Como tal é obra de
escassa ou nenhuma originalidade. De destacar, contudo, a recapitulação que
faz das provas da existência de Deus, que se encontram expostas no primeiro
livro da obra. Aí podemos descobrir a prova de Ricardo de S. Victor que, da
existência de coisas que dependem de outras, deduz a existência do Ser que
apenas depende de si próprio; a prova causal extraída do De fide orthodoxa
(1, 3) de João Damasceno; a prova agustíniana deduzida da verdade que existe
no homem, e que Alexandre vai buscar a Hu_ao de S. Victor; a prova ontológica
de Santo Anselmo; e a prova deduzida da necessidade da essência divina,
tirada do Monologion do próprio Santo Anselmo.

251

§ 255. ROBERTO GROSSETêTE: A TEOLOGIA

A Summa de Alexandre de Hales, além de ser uma assimilação parcial das teses
do aristotelismo, é também uma tentativa de reacção polémica-o que representa
um regresso à posição platónico-agustiniana, tradicional na escolástica. O
regresso ao agustinismo como método para conservar e reformar a tradição
origináda da escolástica é levado a efeito, com o maior vigor, pelo
franciscano Roberto Grossetête. Já Rogério Bacon se havia apercebido deste
aspecto da obra de Roberto. "Monsenhor Roberto, bispo de LincoIn, de santa
memoria, pos completamente de parte os livros de Aristóteles e as vias que
ele -indicou, e tratou os temas aristotélicos valendo-se da sua própria
experiência, de outros autores e de outras ciências. Deste modo conseguiu
escrever sobre os problemas de que se ocupava o estagirita coisas mil vezes
melhores do que aquelas que se podem aprender nas más traduções daquele
filósofo" (Comp. stud. phil.,
8, Opera, ed. Brewer, p. 469). A observação de Bacon não significa que
Roberto ignorasse os livros de Aristóteles. Pelo contrário conhecia-os e
citava-os: mas pretendia no entanto regressar à pura inspiração agustiniana.

Roberto Grossetête (Greathead, Grossum caput) nasceu em 1175 em Stradbrok no


condado de Suffolk, em Inglaterra. Estudou em Oxford e em Paris, e em seguida
tornou-se professor e chanceler da Universidade de Oxford. Em 1235 é nomeado
bispo de LincoIn e morre em 12,53, excomungado pelo papa Inocêncio IV, a quem
nos seus sermões havia acusado de avarento, tirano e vaidoso. Escreveu alguns
Comentarii aos Segundos Analíticos, às Refutações sofísticas e à Física de
Aristóteles; e traduziu do grego para latim a Ética daquele filósofo.

252

Rogério Bacon. tinha-o entre aqueles "que souberam explicar as causas de tudo
com o auxílio da matemática" (Op. maius, ed. Bridges, 1, 108); e, na verdade,
a sua actividade abrange todos os ramos do saber: astronomia, meteorologia,
óptica, física e disciplinas liberais. Os seus escritos respeitantes à
filosofia são: De unica forma omnium, De statu causarum, De poteidia et actu,
De veritate propositionis, De sciência Dei, De ordine emanandi causatorum a
Deo, De libero arbitrio.

Desde o princípio, isto é, desde o próprio conceito de Deus, que Roberto se


baseia na autoridade de Santo Agostinho. "Eis como a autoridade de Santo
Agostinho afirma abertamente: Deus é forma e é forma das criaturas". Da
própria definição de forma se conclui que Deus é forma: uma forma é aquilo
pelo qual uma coisa é o que é. Por exemplo, a humanidade que é a forma do
homem, é aquilo pelo qual o homem é homem. Ora Deus é por si aquilo que é,
porque a divindade, pela qual é Deus, é o próprio Deus. Por conseguinte, Deus
é forma (De forma omtdum, edição Baur, 108).

Mas a afirmação de que Deus é forma das criaturas é típica da filosofia de


Escoto Erígena (§ 180) e deste obteve Amalfico de Bene (§ 219) o seu
panteísmo, considerando Deus como a própria forma das coisas. Pelo contrário,
Roberto dá ao seu princípio um significado que exclui uma @nterpretação
panteísta. "Deus não é forma das criaturas no sentido de ser parte da sua
substância completa e precisamente aquela que ao unir-se com a matéria gera a
coisa singular. Chama-se forma ao modelo que o artesão tem presente para
formar uma obra que imite e se assemelhe ao modelo. Chama-se forma também,
àquilo que se aplica à matéria que se pretende formar, como o selo é forma da
cera e o molde de barro é forma da estátua que nele toma corpo. Finalmente,
forma é

253

também o modelo que o artesão têm no seu espírito, quando apenas considera o
que no seu espírito existe para produzir uma obra que a isso se assemelhe".
(lb., 109). Estes três significados da palavra forma como modelo interior,
modelo exterior e molde da coisa a produzir não são diversos uns dos outros;
a forma é em qualquer caso o exemplar ou modelo: e, tratando-se de Deus, o
exemplar ou modelo da sua obra não pode ser exterior a EleEle próprio, e
precisamente a sua Sabedoria ou o ,seu Verbo, é o exemplar, a causa
eficiente, o agente que confere a forma, e conserva as criaturas na forma que
lhes deu (M., 110). Roberto ilustra a função formadora do Verbo com a
doutrina de Santo Agostinho do Verbo como verdade. As coisas foram criadas
para toda a eternidade pelo Verbo ou Discurso divino; a sua verdade consiste
na sua conformidade com o Discurso que as pronunciou. A conformidade das
coisas com o que foi eternamento enunciado é a rectitudo das próprias coisas,
a norma da sua constituição. A verdade das coisas consiste em serem como
devem ser, em possuirem a plenitude de ser (plenitudo essendi) que é
conforrnidade com o Verbo criador (De verit., ed. Baur,
134-5).

Se o Verbo divino é a própria verdade, o homem não pode atingir a verdade


senão em virtude do próprio Verbo divino. No entanto, Roberto não admite uma
iluminação directa por parte de Deus.
O empirismo aristotélico ganha aqui vantagem sobre o apriorismo agustiniano.
"Tal como os olhos do corpo não podem ver as cores se não receberem a
ilum,@nação da luz do sol, assim também os débeis olhos da alma nada vêem, a
não ser através da luz da suma verdade. No entanto, não podem ver

a suma verdade em si próprio, mas só na medida em que ela se une, ou de


qualquer forma se funde, com as -próprias coisas verdadeiras" (De verit., ed.

254

Baur, 137-138). Condição para conhecer a verdade é, da parte do homem, a


perfeição moral: Só os

puros podem ver a luz divina. Mas também os ámpuros têm, de qualquer forma,
conhecimento da verdade, uma vez que, sem o saberem, vêem as coisas à luz
divina, tal como um homem vê as cores à luz do sol, sem necessidade de olhar
para o sol Qb., 138).

Roberto dedicou um tratado ao problema da liberdade humana, o De libero


arbítrio. Nesta obra examina a relação entre a liberdade humana e a
presciência d,ivinq e exclui a doutrina de Averróis, segundo a qual a
previsão divina apenas diria res-

peito à ordem universal do mundo; não aos acontecimentos singulares.


Contràriamente à definição de Santo Anselmo, que afirma que o "livre arbítrio
é a faculdade de conservar a rectidão da vontade pela própria rectidão",
Roberto afirma a exigência de incluir na definição de liberdade, a

capacidade de a vontade se inclinar ou dirigir para uma coisa ou para outra,


indiferentemente (flexibilitas vel vertibilitas ad utrantque). Com ele, a
liberdade aparece definida como "a própria e natural capacidade da vontade de
se inclinar a querer uma ou outra de duas coisas opostas quando consideradas
em si" (De lib. arb., ed. Baur, 225). Deste niodo definida, a liberdade é o
verdadeiro e próprio arbítrio da indiferença: já não é um conceito moral mas
metafísico: pertence à natureza do homem e

é por isso designada, por Roberto, como capacidade natural e espontânea. Este
conceito deveria permanecer tradicional e típico na corrente platónico-
agustiniana tal como permanecerá típico, na própria corrente, o primado da
vontade afirmado claramente por Roberto (Opera, ed. Baur, 23.1).- "0 ser da
natureza racional é duplo: o querer e o aprender. Mas o ser primeiro e máximo
é o querer, uma vez

255

que é nele e não no apreender que consiste orig;nàriamente e por si a


felicidade."

256. ROBERTO GROSSETÊTE: A FíSICA

A especulação sobre o mundo natural tem na obra de Roberto um importante


lugar. A sua originalidade consiste em ter afirmado um principio que será
defendido por Rogério Bacon e se tomará mais tarde o fundamento da ciência
moderna: o estudo da natureza deve ser baseado na matemática. "A utilidade,
afirma (De luce, ed. Baur, 59), do estudo das linhas, dos ângulos, das
figuras é enorme, uma vez que sem ele é impossível conhecer seja o que for da
filosofia natural. E isto vale de formi absoluta para todo o universo ou para
qualquer das suas partes". Por outro lado, Roberto exprime exactamente a lei
de economia que regula os fenômenos naturais e que será mais tarde
corroborada por Francis Bacon e por Galileu, todas as operações da natureza
se verificam da forma mais determinada, mais ordenada e mais breve que é
possível (lb., 75).

Entre as doutrinas físicas que lhe são próprias, merecem especial relevo as
que dizem respeito aos motores do céu e à luz. Os céus têm dois motores,
segundo ele: a alma que existe em cada céu e o motor que existe
separadamente. Este motor é único
* move-se infinitamente com movimento uniforme
* contínuo: é o próprio Deus. Pelo contrário, as almas são múltiplas, uma
para cada céu, e cada uma se move no seu céu de forma diversa (De motu super-
celestium, ed. Baur, 100). Esta doutrina, que Roberto apresenta como
exposição da que se encontra no X11 Livro da Metafisica de Aristóteles, na
realidade nada tem a ver com esta, uma vez que Aristóteles não falava de
almas ligadas à maté-

256

ria dos céus, mas de motores separados, em tudo semelhantes ao primeiro (§


78).

No que diz respeito ao universo corpóreo, a física de Robeito é


substancialmente uma teoria da luz. Tal como Ibri Gebirol, e ao contrário de
Alexandre de Hales, Roberto admite que todos os corpos tenham uma forma
comum, que se liga à matéria primeira antes de receber as formas particulares
dos vários elementos. Esta pÊrneira forma ou corporeidade é a luz. "A luz,
afirma ele, (De inchoactione formarum, ed. Baur, 51-52), difunde-se em todas
as direcções, de forma que de um ponte, luminoso pode @,er gerada uma esfera
de luz do tamanho que se quiser, a menos que se forme algum obstáculo com
corpos opacos. Por outro lado, a corporeidade é aquilo que tem por
consequência necessária a extensão da matéria nas três dimensões". Roberto
identifica a difusão instantânea da luz nas três dimensões com a
tridimensionalidade do espaço; e por conseguinte, a luz com o espaço. Através
do processo de extensão, de agregação e de desagregação detern-iinado pela
luz, são formadas as treze esferas do mundo, ou seja, as nove esferas
celestes e as quatro esferas terrestres do fogo, do ar, da água e da terra
(Ib., 54). A luz, segundo Roberto, explica todos os fenómenos da natureza.
Ela é o instrumento mediante o qual a alma actua sobre o corpo e é a causa da
beleza do mundo visível.

Roberto Grossetête pode ser considerado o iniciador do movimento que, contra


a influência do aristotelismo, se torna partidário de um decidido regresso ao
platonismo agostiniano. Este movimento será continuado pelos representantes
da ordem franciscana e terá como característica constante, o interesse pelo
mundo natural; o que se torna objecto de uma investigação que não se contenta
com os
257

textos aristotélicos, procedendo também com o raciocínio e com a experiência.

§ 257. JOÃO DE LA ROCHELLE

Foi discípulo de Alexandre de Hales e sucessor deste na cátedra ocupada pedos


franciscanos na Universidade de Paris.

João de Ia Rochelle nascido à volta de 1200 e falecido em 1245, é autor de


uma Summa de anima que apresenta uma interpretação, no sentido agost@iniano,
da teoria de Avicena sobre o intelecto. João de ]a Rochelle identifica o
intelecto agente com Deus. "Segundo Avicena, afirma (De an., 11,
37), a função do intelecto agente é a de iluminar e difundir o fogo da
inteligência nas formas sensíveis existentes na imaginação e, iluminando-as,
abstrair as referidas formas de todas as suas condições materiais, para em
seguida uni-Ias e ordená-las no intelecto possível". Identifica a ac@ão do
intelecto activo, de que fala Avicena, com a acção iluminadora de Deus, de
que fala Santo Agostinho. Deste modo pode afirmar que "a alma humana nada
compreende se não for iluminada pelo princípio de toda a iluminação, Deus
nosso pai" (M., 1,
3). A capacidade que a alma humana possui de abstrair a forma sensível das
imageris do corpo deriva da acção iluminadora de Deus. Este autor utiliza
também a teoria aristotélica da abstracção (que conhece de Avicena) e agrup3.
elementos díspares, ao tentar reconduzir aos princípios tradicionais do
agostinianismo as doutrinas do aristotelismo árabe.

§ 258. VICENTE DE REAUVAIS

Puras compilações, privadas de qualquer elaboração original, são os escritos


do dominicano

258

Vicente de Beauvais, falecido em 1264. Continuador da tradição dos


enciclopedistas medievais, a sua obra apenas se destaca pelo facto de incluir
passagens de autores árabes e judeus, contribuindo assim para a sua difusão
no mundo latino. O seu Speculum maius compreende quatro partes (Speculum
doctrinale, Speculum historiale, Speculum naturale, Speculum morale), das
quais apenas as três primeiras são autênticas.

Foi perceptor do filho de S. Luís, rei de França, e deixou-nos um texto


pedagógico intitulado, Acerca da educação dos filhos dos reis ou dos nobres.

NOTA BIBLIOGRÁFICA

§ 252. Sobre as traduções aristotélicas: A. e C. JOURDAIN, Recherches


critiques sur 1'áge et 1'origine des traductions dAristote, 2.a ed., Paris,
1843; DUHEM, Systême du monde, III, Paris, 1915, p. 179 e segs.; GRABMANN,
Forschungen über die lat. Aristoteles-Ubersetzungen d. XIII Jahrh., em
"Beitrage", XVII, 5-6,
1916; MUCKLE, Greek Works Translated directly into Latin before 1350, in
"Medieval Studies", 1943.

§ 253. De Guilherme d'Auvergne, as Opere foram editadas: Nürnberg, 1946;


Venetiis, 1591; e em edição mais completa; Aureliae, 1674.

VALOlS, Guillaume dAuvergne, Paris, 1880; MuRÉAu, Histoire de Ia phil. scal.,


11, 1, Paris, 1880, p. 142-170, DUHEM, Système du monde, II, p. 249-
260, V. p. 261-283; MASNovo, Da Guglielmo d'-4uvergne a S. Tommaso
d'Aquino, 2 vols., Milão, 1930; GILSON,M La notion d'existence chez
G. d'A., in "Arch. d'Hist. doetri. et lit. du m. â.", 1946.

§ 254. De Guilherme de Auxerre, a Summa aurea foi editada em Paris,


1500 e 1518, e em Veneza, 1951, GRUNWALD, em "Beitrage", VI, 3, 1907,
87-911; MINGES, in "Theolog. Quartaschrift", 1915, 508-529; OTTAVIANO, G.
d'Auxerre, Roma, 1929 (com bibl.).

Da Summa de Alexandre de Hales fizeram-se as seguintes edições: Venetiis,


1475; Norimbergae, 1482; Papiae, 1489; Norimbergae, 1502; Lugduni, 1515;
Vene-

259

tiis, 1576; Coloniae, 16622; edição critica ao cuidado dos franciscanos de


Quaracchi, Quaracchi, 1924-1948.

HA~Au, Histoire de Ia phil. médiév., 11, 1,


130-141; GUTMANN, Die Scholastik des 13 Jahrhundert in ihrer Beziehungen zum
Judentum, 1902, p. 32-46; WITTMANN; Die SteWng des M. Thomar von Aquin zu
Avenceprol, 1900, p. 20 e segs.; HERSCHER, A Bibliography of A. of Hales, in.
"Fran. Stud.".,
1945-6.

§ 255. De Roberto, Grossetête: Os seus escritos tiveram uma primeira edição


em Veneza, 1514; e uma nova edição critica ao cuidado de BuAR em "Beitrage"
de Baeumker, vol. IX, 1912. Para a indicação dos textos não compreendidos
nesta recolha, ver o volume de BAUR e UEBERWEG-GEYER, p. 358-359. PRANTL,
Gesch. der Logik, IU, p. 85-89; STEVENSON, Robert Grossatesta, Londres, 1899;
BAUR, Intr. à citada edição; DUHEM, Système du monde, V, p. 341358; ALEssio,
Studi e richerche di LincoIn (Grossatesta), in "Rivista Crit. di Stor. deTIa
Fil.", 1957; Storia e teoria nel pensiero scientifico di Roberto Grossatesta,
na mesma revista, 1957.

§ 257. De João de Ia Rochelle, a Summa de Anima, foi editada em Prato, 1882.


HAURÉAU, HiSt. de Ia phil. scol., 11, 1, 192-213; MANSER, in "Jahrb. für
philos. und spek. Theol.", 1912, 290-324; in. "R-evue Thomiste", 1911, 89-92;
MINGES, in "Archivum Franciscanum Historicum", 1913, 597-622; in "Philos.
Jahrb.@>,
1914, 461-77; in "Franzisk. Studien", 1916, 365-378; FABRO, in. "Divus
Thomas", 1938.

§ 258. De Vicente de Beauvais o Speculum maius teve várias edições: Venetils,


1484, 1494, 1591; Duaci, 1624; GRUNWALD, em "Beitrage", VI, 3, 112 e segs.;
DUHEM, Êtudes sur Léonard de Vinci; 11, Paris, 1909,
318 e segs.; ID., Système du monde, M, 346-348.

260
XIII

S. BOAVENTURA

§ 259. S. BOAVENTURA: O REGRESSO A SANTO AGOSTINHO

O regresso a Santo Agostinho, que na Summa de Alexandre de Hales e


principalmente na obra de Roberto Grossetête se apresenta como a reacção da
escolástica latina contra o progresso do aristotelismo, encontra em S.
Boaventura a sua máxiima expressão teológica e mística. Contra o assalto de
uma filosofia que à primeira vista parece -impossibilitar a resolução do
problema escolástico, dado que conduz a investigação filosófica a conclusões
inconciliáveis com a fé, a escolástica concentra-se sobre si própria, retorna
às origens e procura alcançar uma nova vitalidade a partir da doutrina
agostiniana, a qual, apesar de ter permanecido sempre como a sua principal
fonte de inspiração, havia perdido a sua autenticidade e força original ao
longo de vários séculos de laboriosas e incertas elaborações. Santo Agostinho
regressa. A primeira consequência paradoxal do aparecimento de Aristóteles no
horizonte filosófico do século XIII consistiu na revivescência das teses
fundamentais do bispo de

261

Hipona, como que redescobertas na sua enorme capacidade de persuação. Frente


a estas teorias, o aristotelismo aparece à escolástica latina como uma força
estranha, possível de ser utilizada dentro de certos limites, mas à qual
devemos fazer o menor número possível de concessões. Os doutores escolásticos
vão adquirindo uma maior familiaridade com essa mesma força, à medida que o
seu conh,.cimento da obra de Aristóteles se vai tornando mais amplo e mais
prociso; mas aquela estranheza permanecerá até ao aparecimento das obras de
Alberto Magno e de S. Tomás, e tudo o que os doutores aproveitarão da obra
aristotélica não passará de simples sugestões ou doutr3nas particulares, que
procurarão integrar o melhor possível no corpo das doutrinas tradicionais.

Esta é a atitude de S. Boaventura frente ao aristotelismo. A sua palavra de


ordem, tal como a de Alexandre de Hales e Roberto Grossetête, é o regresso a
Santo Agostinho. O conhecimento da obra de Aristótoles permite-lhe aproveitar
elementos e sugestões a inserir no tronco de uma filosofia que elo
explicitamente reconhece e deseja como tradicional. "Não pretendo, diz ele
(In Sent., 11, pról.), combater as novas opiniões, mas conservar aquelas que
são comuns e aprovadas. E ninguém pense que eu queira ser o fundador de um
novo sistema". Nenhum novo sistema: S. Boaventura só quer voltar a percorrer
os caminhos já desvendados, voltar a tecer a trama ininterrupta do pensamento
cristão, que vai de Santo Agostinho ao seu mestre Alexandre. As novas
doutrinas, tal como as aristotélicas, parecem-lhe estar tão afastadas
daqueles caminhos batidos e seguros que nem sequer se propõe combatê-las.
Para ele, Aristóteles é um filósofo, não o filósofo: é um autor cujas
afirmações podem ser ocasionalmente utilizadas, não é a própria encarnação
darazão humana.

262

§ 260. S. BOAVENTURA: VIDA E OBRA

Giovanni Fidanza, chamado Boaventura na ordem franciscana, nasceu em


Bagnoregio (Viterbo), em
1221. Conta uma lenda que, tendo-o S. Francisco curado ainda em criança de
uma doença mortal, desde logo a mãe fizera o voto de o consagrar à ordem
franciscana. Ao certo, sabemos que desde novo ingressou nessa ordem, aos 17
(ou 23) anos. Não é contudo verdade que tenha sido aluno, em Paris, de
Alexandre de Hales. Nos fins de 1253 ou princípios de 1254 foi nomeado mestre
regente da Universidade de Paris. No ano seguinte, devido à luta travada
pelos mestres seculares dessa Universidade, dirigidos por Guilherme de Santo
Amor, foram excluídos do ensino parisiense todos os representantes das ordens
mendicantes (franciscanos e dominicanos). S. Boaventura, assim como o seu
am,igo S. Tomás, continuou a luta através das suas obras, e um ano mais
tarde o papa Alexandre IV decidiu a disputa a favor das ordens mendicantes.
S. Boaventura foi reintegrado na Universidade, provàvelmente ainda em 1256;
a sua nomeação oficial em Outubbro de 1257 coincide com a de S. Tomás, o qual
foi então nomeado mestre pela primeira vez. Mas já desde Fevereiro de 1257
que desempenhava o cargo de geral da ordem franciscana, a qual foi por ele
completamente reorganizada. Em
1273 foi nomeado arcebispo de Albano e cardeal. Faleceu durante o Concílio de
Lião, em 1274.

As obras de S. Boaventura ocupam dez volumes na edição dos padres


franciscanos de Quaracchi. A sua obra fundamental é o Comentário às Sentenças
de Pedro Lombardo, em quatro livros, escrito a partir de 1248, durante o seu
ensino em Paris. A sua obra mística mais -importante é o 1t1nerarium mentis
in Deuni escrito no Outono de 1259. Outras obras importantes são: De scientia
Christi, Qitaes-

263

tiones disputatae, Breviloquiuni, Collationes in Hexaênzeron. Escreveu ainda


mu,itos comentários exegéticos a livros da Bíblia, numerosos opúsculos
místicos, sermões e escritos relativos à sua actividade na ordem franciscana.
Nos opúsculos místicos, S. Boaventura inspira-se em S. Bernardo, Hugo de S.
Vítor e Ricardo de S. Vítor. Quer dizer, enquanto que na sua obra teológica
procurava, remontando a Santo Agostinho, retomar toda a tradição escolástica,
na sua obra mística recolhia paralelamente a tradição mística medieval.

§ 261. S. BOAVENTURA: FÉ E CIÊNCIA

S. Boaventura declara prèviamente a superioridade da fé sobre a ciência.


Tratando do problema de se ser maior a certeza da fé do que a da ciência,
distingue uma certeza relativa às verdades da fé e uma outra relativa à s
verdades da razão. No que respeita às verdades da fé, é mais certa a fé do
que a ciência. Mesmo que um filósofo chegue a demonstrar uma verdade de fé,
por exemplo, que Deus é criador, nunca poderá alcançar mediante a sua ciência
a certeza que o verdadeiro fiel recebe da verdadeira fé. No que se refere às
outras verdades, a fé possui uma certeza de adesão maior do que a da ciência
uma certeza do, especulação maior do que a da fé. A adesão relaciona-se com o
afecto, a especulação com o puro intelecto. A ciência elimina a dúvida, como
se nota claramente no conhecimento dos axiomas e dos primeiros princípios mas
a fé faz com que o crente adira à verdade de tal forma que nem os argumentos,
nem os tormentos, nem as lisonjas o conseguirão afastar dela. Seria louco o
geórnetra que enfrentasse a morte pela sua certeza dum dado teorema; mas o
crente enfrenta e deve enfrentar a morte pela sua fé (In

264

Sent., 111, dist. 23, a. 1, q. 4). A certeza científica é assim reduzida a um


puro facto intelectual, simples indubitabilidade teorética, que não exige um
compromisso pessoal; enquanto que a certeza da fé é exaltada como acto de
afecto e adesão, isto é, como um compromisso efectivo da pessoa.

Fé e ciência, fé e opinião, podem todavia coexistir em relação à mesma


verdade. Se por opinião se não entende o consentimento dado a uma alternativa
por temor da outra, mas sim o consentimento sugerido por razões prováveis,
desde logo verificamos que muitos fiéis têm, para apoiar aquilo que crêem,
muitas razões prováveis: pelo que, neste caso, a opinião não só não exclui a
fé, como ainda a ajuda e a serve. Por outro lado, a fé não
exclui a ciência em relação à mesma verdade e não a exclui porque tem
uma certeza superior. Pode demonstrar-se com razões necessárias que
Deus existe e que é uno; porém, dilucidar essa mesma essência
d-ivina e essa mesma unidade de Deus e ver como essa unidade não exclui a
pluralidade das pessoas, isso só poderá conseguir-se através da fé.

Por conseguinte, a ciência não torna inútil a iluminação da fé, antes a exige
e a torna necessária. Os filósofos que conseguiram conhecer muitas verdades
acerca de Deus, acabaram, por falta de fé, por incorrer em erro ou por
desconhecer muitas outras Un Sent., 111, dist. 24, a. q. 3). Portanto, nunca
a ciência poderá deixar de valer-se da f4 A fé é a adesão integral do
homem à verdade, pela qual o homem vive da verdade e a verdade vive no homem.

§ 262. S. BOAVENTURA: O CONHECIMENTO

Na teoria do conhecimento, apresenta S. Boaventura a primeira e a mais


notável concessão ao aristotelismo. À pergunta de se todo o conheci-

265

mento deriva dos sentidos, ele responde que não: tem de adraitir que a alma
conhece Deus, se conhece a si mesma e a tudo o que há em si sem o auxílio dos
sentidos externos (In Sent., 11, dist. 39, a. 1, q. 2). Mas por outro lado
tem também de admitir que alma não pode fornecer por si só todo o
conhecimento. O material desse conhecimento deve provir necessàriamente do
exterior, através dos sentidos, já que é constituído por semelhanças das
coisas, abstraídas das imagens sensoriais (De scientia Christi, q. 4). Diz S.
Boaventura: "As espécies e as semelhanças das coisas adquirem-se mediante os
sentidos, como diz explicitamente o filósofo (isto é, Aristóteles) em muitas
passagens; e também o ensina * experiência. Com efeito ninguém poderia
conhecer * que é o todo ou a parte, ou o pai ou a mãe, se não recebe a
espécie de um dos sentidos externos" (lt-i Sent., 11, dist. 39, a. 1, q. s).
Se entendemos por espécie as semelhanças das coisas, que são como que
retratos das próprias coisas, teremos de dizer que a alma foi criada
vazia de toda a esp&e, e que Aristóteles tinha razão ao afirmar que ela é
uma tábula rasa (In Sent., 1, dist. 17, a. q. 4).

Porém, a alina recebe sómente dos sentidos o material do conhecimento:


a espécie, isto é, os conceitos, os termos objectivos de que parte o
conhecimento. Mas o conhecimento está condic@onado na sua constituicão, no
seu funcionamento, e portanto no SCLI valor de verdade, por princípios que
são independentes dos sentidos e, portanto, inatos, porque são infundidos
directamente por Deus. S. Boaventura regressa aqui completamente à tese
clássica do a-ustinianismo. É dada à alma humana um lumen directivum, uma
directio naturalis, da qual ela obtém a certeza do conhecimento. E esta luz
directiva, esta direcção que é impressa naturalmente nela e a dirige, vem-lhe
directamente de Deus. Uma linfluên-

266

cia indirecta da razão eterna não bastaria para garantir a verdade ao


conhecimento. S. Boaventura refere-se expressamente às palavras de S.
Agostinho "o qual, com toda a clareza e razão, demonstra que a mente, para
conhecer com certeza, tem de ser regulada por normas imutáve@s e eternas, não
através da sua própria disposição (habitus), mas directamente por essas
normas, que estão acima dela, na Verdade eterna" (De scientia Christi, q. 4).
O nosso intelecto está pois unido com a própria Verdade eterna. "Para que
haja conhecimento certo requere-se necessàriamente uma Razão eterna
reguladora e motriz, uma Razão que não permaneça isolada na sua clareza, mas
se una com a razão criada e seja intuída pelo homem segundo as possibilidades
da sua condição terrena" (De scientia Christi, q. 4).

O Itinerário oferece-nos a análise das condições a priori do conhecimento


humano. O mundo externo, ou macrocosmos, penetra na alma, ou microscosmos,
através dos sentidos, produzindo no homem a apreensão, o prazer e o juizo. As
coisas externas entram na alma não em si, isto é, na sua substância, mas
sómente na sua senzelhança. A semelhança, ou espécie não é po,i@s a
substância da coisa, mas únicamente uma sua imagem: S. Boaventura está aqui
afastado do princípio aristotélico segundo o qual a alma aprende a própria
forina substancial da coisa. A proporção entre o objecto percebido e o
sentido perceptor determina o prazer. À apreensão e ao prazer segue-se o
juízo que explicita um e outro e, portanto, purifica e abstrai a espécie
sensível, levando-a dos sentidos até ao intelecto. O juizo é a faculdade
intermédia da razão, através da qual a espécie se purifica das condições
materiais de tempo e lugar e é elaborada conforme as exigências do intelecto
(Itín., 2). Mas o acto do juízo supõe já a iluminação divina. O juizo é um

267

acto da razão que abstrai do lugar, do tempo e do movimento; mas o que está
fora do tempo, do lugar e do movimento é eterno, é portanto Deus ou um
elemento divino. No juizo, a razão vale-se pois de uma regra infalível, que é
o próprio Deus como verdade, segundo as palavras de Santo Agostinho (Ib., 2).

A espécie, abstraída das coisas sensíveis pelo juízo, constitui o ponto de


partida e o objecto da actividade intelectual. Esta actividade desdobra-se em
três momentos: a percepção dos termos, das proposições e das ilacções. O
intelecto compreende o significado dos termos quando compreende, por
intermédio da definição, aquilo que é cada um deles. Mas a definição dum
termo faz-se recorrendo a um termo superior ou mais extenso; e remontando
assim a termos cada vez mais extensos, chega-se a termos supremos o
generalíssimos, ignorando os quais se não podern entender nem definir os
termos inferiores. O termo mais extenso, condição de qualquer outra
definição, é o de ser. O ser pode ser parcial ou total; imperfeito ou
perfeito, em potência ou em acto; mas dado que, tal como afirma Averróis (De
an., 111, 25), a negação ou privação só pode conceber-se relativamente à
afirmação, o
nosso intelecto não poderá entender o ser reduzido, imperfeito ou potencial
das coisas criadas se não for em referência ao Ser puríssimo, actualíssimo e
completíssimo, no qual residem na sua maior pureza as razões de todas as
coisas. Tal como a apreensão dos -termos também os outros dois actos do
intelecto pressupõem a revelação directa de Deus ao ,intelecto do homem. Com
efeito, a nossa mente, que é mutável, não poderia compreender a verdade
imutável das proposições, se não fosse iluminada por uma luz imutável; nem
poderia, sem essa luz, formular ilacções, nas quais a conclusão se segue

268

necessàriamente das premissas. "A necessidade de tal ilacção, diz S.


Boaventura, não deriva da existência material da coisa, dado que ela é
contingente, nem da existência da coisa na alma, porque seria uma ficção se
não se encontrasse também na realidade. Deriva pois do modelo que existe na
arte eterna de Deus (ab exemplaritate in arte aeterna) porque as coisas têm
entre si as relações que a arte criadora divina estabelece entre os seus
modelos". Daqui conclui S. Boaventura, uma vez mais com Santo Agostinho, que
"o nosso intelecto está unido à própria verdade eterna e nada de verdadeiro
pode compreender com certeza senão mediante o ensinamento daquela". E
chega às mesmas conclusões ao considerar a actividade do intelecto prático: o

conselho, que consiste em procurar o que seja melhor e que, portanto, supõe a
noção do óptimo, ou seja, o sumo bem, que é Deus; o juízo, que versa sobre os
objectos do conselho e supõe um critério ou

lei que é o próprio Deus; o desejo, que tende para a felicidade, a qual
consiste na posição do fim último, isto é , do Sumo Bem, e que portanto
depende dele (Itin., 3).

A doutrina do conhecimento de S. Boaventura mostra da forma mais clara os


traços característicos do seu procedimento. Permanecendo fiel aos pontos
essenciais do apriorismo teológico de Santo Agostinho, aceita a tese
empirista de Aristóteles, limitando-a ao material do conhecimento; prescinde,
porém, completamente das posições que o problema do conhecimento havia
recebido de Aristóteles e

dos seus intérpretes muçulmanos. Um ponto isolado do sistema aristotélico,


ponto julgado carente de consequências, é tudo quanto ele utiliza da obra de
Aristóteles. Este procedimento encontra-se ainda noutros aspectos da sua
doutrina.

269
§ 263. S. BOAVENTURA: METAFíSICA E TEOLOGIA

A relação intrínseca que o intelecto humano tem com Deus não implica que lhe
seja dado conhecer Deus directamente e em si. "É preciso dizer que, tal como
cada causa brilha no seu efeito e a sabedoria do artífice se manUesta na sua
obra, assim também Deus, que é artífice e causa da criatura, se conhece
através da criatura. E para isso existe uma dupla razão: uma de conveniência
e outra de indigência. De conveniência: porque não podendo Deus, como luz
supremamente espiritual, ser conhecido pelo intelecto na sua espiritualidade,
a alma, para o poder conhecer, necessita como que de uma luz material, isto
é, da criatura" (In Sent., 1, dist.
3, a. 1, q. 2). Dever-se-ia esperar, dada esta nova concessão ao empirismo,
que S. Boaventura seguisse, na demonstração da existência de Deus, a via a
posteriori, escolhida e seguida por S. Tomás, e que por isso recusasse o
argumento de Santo Anselmo. Na realidade não foi assim: S. Boaventura
reproduz e defende o argumento ontológico: "A verdade do ser divino, diz ele,
é tal que não pode pensar-se com consentimento [isto é, crer efectivamente]
que ele não exista, a não ser por ignorância daquilo que significa o nome de
Deus" (1b., 1, dist. 8, a. 1, q. 2). O argumento de Santo Anselmo move-se no
âmbito da especulação agustiniana e dificilmente pode ser negado por quem,
como S. Boaventura, considera que a mente humana, para entender e julgar,
deve estar unida a Deus. Não se pode pôr Deus como pressuposto e condição do
conhecimento de todas as coisas particulares, sem admitir que a sua realidade
é certa e demonstrável independentemente dessas coisas, portanto a priori. Se
o conhecimento das coisas é condicionado pelo conhecimento de Deus, e não
inversamente, só através da relação directa com Deus é que o intelecto pode

270

entender e julgar as coisas. Que o homem se eleve das coisas até Deus é uma
possibilidade condicionada pela relação do homem com Deus: não pode, pois,
condicioná-lo. O argumento ontológico reentra na lógica da posição
agustiniana da relação entre o homem e Deus: tal como S. Boaventura,
considerá-lo-ão válido todos os que se novam no âmbito do pensamento
agustiniano.

Deus, como causa criadora das coisas, é também o seu modelo. A ideia ou o
modelo das coisas na mente divina identifica-se com a essência divina, e mul-
tiplica-se só em referência às coisas criadas, mas não no próprio Deus (lb.,
1, dist. 35, a. 1, q. 2-3). Na sua omnipotência infin-ita, Deus é a causa de
todas as coisas, que ele criou do nada. A criação não implica nenhum
problema insolúvel, é um ponto sobre o qual coincidem plenamente a fé a a
razão, quer no que se refere à dependência causal do mundo em relação a Deus,
quer no que se refere ao início do mundo no tempo. Que o mundo tenha sido
criado do nada resulta evidente de que sendo Deus, pela sua omnipotência, o
agente mais nobre e mais perfeito, a sua acção é portanto radical, e
determina todo o ser da coisa produzida, não sendo condicionada por nada de
estranho (1b., 11, dist.
1, a. q. 1). Mas é impossível, segundo S. Boaventura, afirmar ao mesmo tempo
que o mundo foi criado e é eterno. É impossível que seja eterno aquilo que
chegue a ser depois de não-ser; e é este o caso do mundo, enquanto criado a
partir do nada. Além disso, a duração infinita do mundo implicaria infinitas
revoluções celestes. Mas aquilo que é infinito não pode ser ordenado; no
infinito não existe um primeiro, portanto, não existe ordem. Mas é impossível
que haja revoluções celestes que não sejam ordenadas. Além disso a eternidade
do inundo suporia a existência simultânea de infinitas almas humanas, o que é
impossível. Poder-se-ia

271

negar este último argumento admitindo uma palingenesia, uma real unidade das
almas dos homens: mas isto não só é contrário à fé cristã como também é
declarado falso pela filosofia (1b., 11, dist. 1, a. 1, q. 2). A criação como
início do mundo no tempo é pois uma verdade necessária. S. Boaventura assume
aqui, como dotadas de valor demonstrativo as razões aduzidas por MaÀmónidas
(§ 250) e procede sem a mínima hesitação. A sua atitude está neste ponto em
franco contraste com a prudente cautela com que o próprio Maimónidas (e mais
tarde S. Tomás) considera a questão, declarando impossível a sua solução
demonstrativa.

S. Boaventura aceita do aristotelismo hebraic-,) (Avicebrão) o princípio da


composição hilomórfica universal. Matéria, diz ele, deve ser atribuída não só
aos seres corporais, mas também aos espirituais. Com efeito, o ser
espiritual, enquanto criado, não é absolutamente simples; mas sim composto
por potênc@a e acto. Ora potência e acto são convertíveis com matéria e
forma: deve pois ser também atribuído aos seres espirituais o conjunto de
matéria e forma. A matéria espiritual não está sujeitta, como a das coisas
corpóreas, à privação e à corrupção; está privada de todas as determinações
corporais (lb., 11, dist. 3, a. 1, q. 1; dist. 17, a. 1, q. 2). É pura
potência e constitui, com a matéria corpórea, uma única matéria homogénea,
como único é o ouro de que são feitos diversos objectos (lb.,
11, dist. 3, 1, a. 1, q. 3). Esta doutrina, que já Alexandre de Hales tinha
defendido, torna-se com S. Boaventura, num dos pontos básicos do
agustinianismo franciscano.

Todos os seres são pois compostos por matéria e forma. A forma é a essência
que restringue e define a matéria a um determinado ser. Mas esta essência é
sempre universal, porque tem em si a capacidade de se realizar numa
multiplicidade de

272

indivíduos. Qual é pois o princípio de individuação que determina e


individualiza a forma universal? É evidente que tal princípio não pode ser
externo à constituição do indivíduo, mas deve coincidir com os seus princí
pios constitutivos. E como tais princípios são precisamente a matéria e a
forma, a individuação derivará da união e da acção recíproca (cominunicalio)
entre a matéria e a forma. E é, com efeito, pela unidade de matéria e forma
que o inJivíduo, é constituído, o qual é um hoc aliquid no qual o hoc é
constituído pela matéria, o aliquid pela forma (1b., 111, dist. 10, a. 1, q.
3). Esta solução contrasta com a tradição aristotélica que põe na matéria o
princípio da individuação, e também ela se tornará uma doutrina comum do novo
agustinianismo.

Este novo agustinianismo tomará também de S. Boaventura o conceito de matéria


como potência. quer passiva quer activa, capaz de determinar por si mesma a
emergência das formas. A potência activa da matéria é a razão seminal. A
noção de razão seminal (logos spermatikós) que passara dos Estóicos aos
Neoplatónicos, foi retomada nestes últimos por Santo Agostinho, do qual a
retomou S. Boaventura. "A razão seminal é.a potência activa radicada na
matéria; e esta potência activa é a

essência da forma, porque dela se gera a forma mediante o procedimento da


natureza, que nada produz do nada" (lb., 11, dist. 18, a. 1, q. 3).

§ 264. S. BOAVENTURA: A FíSICA DA LUZ

Tal como Roberto Grossetête, S. Boaventura elabora uma doutrina física, que é
uma teoria da luz. A luz não é um corpo, mas a forma de todos os

273

corpos. Se fosse um corpo, dado que é próprio dela multiplicar-se por si


mesma, seria necessário admitir que fosse possível a um corpo multiplicar-se
sem adjunção de matéria, o que é impossível. A luz é a forma substancial de
qualquer corpo natural. Todos os corpos dela participam em maior ou menor
quantidade, e conforme a sua participação, assim é maior ou menor a sua
dignidade ou valor na hierarquia dos seres. A luz é o princípio da formação
geral dos próprios corpos; a sua especial é devida à adição de outras formas,
elementares ou mixtas (In Sent., 11, dist. 13, a. 2, q. 1-2).
Isto implica que na constituição dum corpo podem entrar várias formas, que
coexistem no próprio corpo. A forma comum da luz, efectivamente, coexiste em
cada com a forma própria desse mesmo corpo (1b., 11, dist. 13, a. 2, q. 2). O
princípio da pluralidade das formas substanciais constituirá um outro ponto
básico da metafísica do agustinjanismo.

§ 265. S. BOAVENTURA: A ANTROPOLOGIA

"Deus criou o homem de duas naturezas màximamente d-istintas entre si,


conjugando-as numa única pessoa" (Brevil., 11, 10). A alma e o corpo entram
pois, ao mesmo nível e na mesma meJida, na constituição da unidade na
natureza e da pessoa humana, embora estando tão distantes uma da outra. No
que se refere à alma, S. Boaventura prefere a definição platónica que faz
dela o motor do próprio corpo, à aristotélica, que a considera como
enteléquia ou forma perfeita do corpo (1b., 11, 9). Mas dado que a alma é não
só uma forma natural, mas também uma substância, e uma substância espiritual
é separável do corpo, segue-se que ela é, por natureza, incorruptível e
imortal. O seu nascimento não é devido à acção duma forma natural, mas à
criação

274

directa de Deus. O seu destino é alcançar a beatitude em Deus, pelo que pode
ser definida como uma "forma beatificável" (Ib., 11, 9).

S. Boaventura preocupa-se com o garantir ao homem, no campo do conhecimento,


a capacidade de iniciativa, e, no campo prático, a liberdade. Contra a
identificação do Intelecto agente com Deus, sustentada por Alexandre de Hales
e João de Ia Rochelle, afirma a oportunidade de reconhecer o poder activo que
Deus concedeu à alma humana. "Se bem que esta solução, diz ele (Opera, ed.
Quaracchi, 11, 568 b) afirme a verdade e esteja de acordo com a fé católica,
não é, todavia, oportuna (a,d propositum): já que à nossa alma foi dada a
possibilidade de outros actos; e Deus, embora sendo o agente principal nas
acções de qualquer criatura, deu, todavia, a alguns dos seres uma força
activa, que os conduz às acções que lhe são próprias". Ainda que falando como
Aristóteles do intelecto possível e do intelecto agente, S. Boaventura
considera-os como duas partes da alma, dois aspectos do intelecto humano.

No domínio prático o homem é livre, porque deve merecer a beatitude e não há


mérito sem liberdade. A liberdade pertence à natureza da vontade e de nenhum
modo lhe pode ser arrebatada, ainda que se torne miserável pela culpa e
escrava do pecado. A liberdade não é um instinto natural, mas supõe a
deliberação e o arbítrio. A sua essência consiste na possibilidade da
escolha, a qual é sempre escolha de indiferença, pois supõe que a vontade
possa, em cada caso, decidir-se por uma ou por outra de duas alternativas
opostas. Mas dado que esta indiferença pressupõe uma deliberação prel-iminar,
à qual se junta a decisão da vontade, o livre arbítrio é simultâncamente uma
faculdade da razão e da vontade (Brevil., 11, 9).

275

A livro escolha do homem é guiada e iluminada pela sindérese 1. S. Boaventura


aceita de Aristóteles a distinção entre, intelecto especulativo e intelecto
prático; mas, ainda com Aristóteles, nega que se trate de dois intelectos
diferentes. "0 intelecto especulativo torna-se prático quando se une à
vontade e à acção, determinando-as e dirigindo-as" (In Sent., II, dist. 24,
p. 1, a. 2, q. 1). Na realidade o intelecto prático e o intelecto
especulativo são a mesma faculdade: o primeiro é sómente a extensão do
segundo ao domínio da acção (1b., II, dist. 39, a. 1, q. 1). Aquilo que a
ciência é para o intelecto especulativo, é a consciência para o intelecto
prático. "A ciência é a perfeição do nosso intelecto enquanto especu-lativo,
a consciência é a disposição (habitus) que aperfeiçoa o nosso intelecto
enquanto prático". Mas como a actividade do intelecto especulativo pressupõe,
segundo v-imos, a iluminação directa pela parte de Deus, assim também é
pressuposta a mesma iluminação pela actividade do intelecto prático. "No
momento da criação da alma, o intelecto recebe uma luz que é para ele um
critério natural de juízo (naturale iudicatorium) que dirige o próprio
intelecto no conhecer: também da mesma forma o afecto tem em si um peso
(pondus) natural que o dirige no desejam (lb., 11, dist., 39, a. 2, q. 2).
Este peso natural que faz mover o intelecto prático em direcção ao bem é

1 O conceito de si~rese aparece pela primeira vez em S. Jerónimo (Comm. in


Ezechiele, in P. L., 25.o, cãI. 22) como a "faísca da consciência, que não se
extinguiu ne peito de Adão depois de ter sido expulso do Paraiso". Encontra-
se noutros Padres (Basílio, Gregório o Grande) e nos Vitorinos. Porém só em
S. Boaventura e em Alberto o Magno (§ 271) se torna urna faculdade natural do
juizo, que atrai o homem para o bem e lhe dá o remorso do mal.

276

a disposição nele determina pela acção iluminadora de Deus; a sindérese. "A


sindérese, diz S. Boaventura (Ib., 11, dist. 39, a. 2, q. 1) é a faísca da
consciência: a consciência não pode mover, incitar, estimular, senão mediante
a síndérese, que é como que o seu estímulo e o seu fogo animador. Tal como a
razão não pode mover senão mediante a vontade, assim também a consciência não
pode mover senão mediante a sindérese". O remorso não é produzido pela
consciência, mas sim pela disposição que regula a consciência, por aquela
faísca que é a sindérese (1b., 11, dist. 39, a. 1, q. 1).
No Itinerário, a sindérese é denominada "o ápice da mente" e consiste no
último grau da elevação até Deus, aquele que imediatamente precede o rapto
final.

§ 266. S. BOAVENTURA: A ASCESE MíSTICA

O misticismo de S. Boaventura inspira--se no dos Vitorinos, entroncando


também na corrente agustiniana chefiada por aqueles. O Solilóquio, diálogo
entre o homem e a sua alma, insipra-se em Hugo de S. Vítor; o Itinerário da
mente para Deus, que é a obra-prima mística de S. Boaventura, inspira-se em
Ricardo de S. Vítor. Tal como Hugo de S. Vítor, distingue S. Boaventura três
olhos ou faculdades da mente humana: o que esitá voltado para as coisas
exteriores e que é a sensibilidade; o que está voltado para si próprio e que
é o espírito, o que está voltado para cima de si próprio e que é a mente.
Cada uma destas faculdades pode ver Deus per speculum, isto é, através da
imagem de Deus reflectida nos entes criados, ou in speculo, isto é, na marca
ou traço que o ser e a bondade de Deus deixam nas próprias coisas. Cada
faculdade se desdobra deste modo e ficam assim determ-inadas sds potências da
alma pelas quais se -passa

277

das coisas ínfimas às supremas, das exteriores às interiores, das temporais


às eternas. Estas seis potências, em cuja enumeração S. Boaventura segue
Isaac de Stella (§ 223), são as seguintes: o sentido, * imaginação a razão,
o intelecto, a inteligência, * o ápice da mente ou faísca da sindérese.

A estas seis potências da alma correspondem seis graus da ascese para Deus. O
primeiro consiste na consideração das coisas na sua ordem e na sua beleza e
em todos os atributos que permitem remontar à sua origem divina. O segundo
consiste na consideração das coisas não em si próprias, mas na alma humana
que delas apreende as espécies que purifica, abstraindo-as das condições,
sensíveis, com
* faculdade do juízo. No terceiro grau contempla-se
* imagem de Deus reflectida nos poderes naturais da alma: a memória, o
intelecto e a vontade. No quarto grau contempla-se Deus na alma iluminada e
aperfeiçoada pelas três virtudes teologais. No quinto grau contempla-se Deus
directamente no seu primeiro atributo que é o ser. No sexto grau contempla-se
Deus na sua máxima potência que é o bem, pelo qual Deus se difunde e se
articula na Trindade. Com este sexto grau termina a investigação mística, mas
não a ascese mística. À alma que já percorreu os seis graus da investigação "
resta únicamente transcender e superar não só o mundo sensível, mas também a
si própria". Neste ponto, necessita abandonar todas as operações intelectuais
e projectar em Deus todo o afecto. "Pois que aqui nada pode a natureza, e bem
pouco a actividade humana, pouca importância se deve dar-se à investigação, à
eloquência, às palavras, ao estudo, à criatura, e muito à piedade, à alegria
interior, ao dom divino, ao Espírito Santo, isto é, à essência criadora, Pai,
Filho e Espírito Santo" (Itin., 7). Esta condição de êxtase (excessus mentis)
é descrita por S. Boaventura com as palavras do Pseudo-Dio-

278

nísio (De myst. theol., 1, 1) e é definida como um estado de douta


ignorância, na qual a escuridão dos poderes cognosciltivos humanos se
transfornia em luz sobrenatural. "0 nosso espírito é arrebatado acima de si
mesmo, na escuridão e no êxtase, por uma espécie de dou-ta ignorância"
(Brevil., V, 6). O êxtase não é portanto um estado intelectual, mas sim um
estado vital: é a união viva do homem com o criador, união pela qual o homem
pode participar na vida de Deus e conhecer a essência.

NOTA BIBLIOGRÃFICA

§ 260. Os dados biográficos do texto estão conforme as investigações de


PELSTER, Literargeschichtlíche Problem im Anschluss an die
Bonaventuraausgabe, in "Zeitschrift für kotholische Theologie", Innsbruck,
1924, vol. 48, p. 500-532, Das obras de S. Botaventura há a edição feita
pelos padres de Quaracchi, 10 volumes e um de indices, Quaracchi, 1882-1902.
Outras edições: Breviloquium, Itinerarium mentis in Deum, De reductio,n,e
artium ad theologiam, Quaracchi, 1911; Collationes in Hexaêmeron, ed.
Delorme, Quaracchi, 1934; Opera teologica selecta, Quaracchi, 1934-1949;
Questions dispputées, De caritate, De novisimis, ed. Glorieux, Paris, 1950.

GILSON, La phil. de St. B., Paris, 1924, 1953 3 (COM bibl.); STEFANINI, Il
problema religioso in PTatone e S. Bonaventura, Turim, 1934; BRETON, St. B.,
Paris,
1943; LAzZARINI, S. Bonaventura, filosofo e mistico del cristianesimo, Milão,
1946 (com bibl.).

§ 261. Acerca das relações entre fé e ciência: ZIESCHE, Die h1. B. Lehre von
der logisch-psychologischen analys-, des Glaubensaktes, Breslau, 1908.

§ 262. Sobre a doutrina do conhecimento: LuycKx, in "Beitrãge", XXM, 3-4,


1922; DADY, The Theory of KnowIedge of St. B., Washington, 1939.

§ 263. Sobr-@ -a teologia e a metafisica: DANIELS, in "Beitrãge", VII, 1-2,


1909, p. 38-40, 132-156; RoSENMOLLEE, in "Beitrãge", XXV, 3-4, 1925; BISSEN,
Llexemplarisme divin seion St. B., Paris, 1931; ROBERT, Hy@-morphisme et
devenir chez St. B., MontreaL, 1936;

279

TAVARD, Transi~ and Permanence. The Nature of Theology According to St. B.,
Saint Bonaventure (New York), 1954.

§ 2644. Sobre a filosofia da luz: BAEumKER, Wítelo, in "Beitrãgc", 111, 2,


1908, p. 394-407.

§ 265. Sobre a antr~ogia: LUTZ, in "Beitráge", VI, 4-5, 1909; 0- DONNFL, The
Psychology of St. B. and St. Thom" Aquinas, Washingtm, 1937.

§ 266. Sobre o misticism<>: GRONEWALD, Fra"iskanische Mystik, Mónaco, 1931;


PRENTicE, The Psychology of Love According to St. B., Saint Bonaventura (New
York), 1951, 19572

280

íND1CE

TERCEIRA PARTE

FILOSOFIA ESCOLÃSTICA

I-AS ORIGENS DA ES0OI@ÃST1CA ... 9

§ 173. Carácter da Escolástica ... ... 9 § 174. O renascimento carolíngio


... ... 17 § 175. Henrique e Remigio de Auxerre 21

Nota bibliográfica ... ... ... ... 23

II - JOÃO ESCOTO ERIGENA ... ... ... 27

§ 176. A personalidade histórica ... ... 27 § 177. Vida e Obra


... ... ... ... ... 28 § 178. Fé e Razão ... ... ...
... ... 3!p § 179. As quatro naturezas ... ... ... 32 §
180. A primeira natureza: Deus ... 34 § 181. A segunda
natureza: o Verbo ... 36 § 182. A terceira natureza: o Mundo
... 37 § 183. O conhecimento humano ... ... 40 §
184. Divindade do homem ... ... ... 41 § 185. O mal e a
liberdade humana ... 44 § 186. A lógica ... ... ... ...
... ... 46
Nota bibliográfica ... ... ... ... 48

281

DIALr@,

§ 187. § 188.

ANSEI,

§ 189. § 190. § 191. § 192. § 193. § 194. § 195. § 196. § 197. § 198. § 199.

CTICOS E ANTIDIAL1,=ICOS

Gerberto ... ... ... ... ... ...

49

49
51

55

57

57
58
60
61
65
67
68
70
73
74
76

78

V_A DIS

SAIS

§ 200.
§ 201. § 202. § 203.

VI - ABE

§204. §205. §206. §207. §208. §209.

§210. §211.

CUSSÃO SOBRE OS UNIVER- ... ... ... ... ... 81

o problema e o seu significado @@ 4.f_; ... ... 81

Dialécticos e antidialécticos ...

Nota bibliográfica ... ... ... ...

MO DE AOSTA ... ... ... ...

A figura histórica ... ... ... Vida e Obra ... ... ... ... ...

s - ... ... ... ... r-?-scelino ... ... ... ...


85

Guilherme de Champe-aux ... ... 88 o tratado "de Generibus et


speelebus" ... ... ... ... ... ... 89

Nota bibliográfica ... ... ... ... 90

LRDO ... ... ... ... ... ... --- 91

r e e Razão ... ... ... ... ...

A existência de Deus ... ... ...

A essência de Deus ... ... ...

A Criação ... ... ... ... ...

A figura histõrica ... ... ... ... 91 -ida e Escritos ... ... ...
... 92

... ... 95
A Trindade ... ... ... ... ...

o o ... ... ... Razão e Autoridade ... ... ... 97


O universal como discurso ... ... 98
O acordo entre a filosofia e a

1. X ... 100

A Liberdade ... ... ... ... ...

Presciência e predestinação ... o ai . ... ... ...

A Alma ... ... ... ... ... ...

r~ aç o ... ... ... ... A Trindade Divina ... ... ... 102 A
Unidade Divina ... ... ... 105

283

Not- biblio ráfica

... ... ... ...

282

§ 212. §213. §214.

VII-A ESC

§215. §216. §217. §218. §219.

§220.

viu -o MIS

§ 221.

§ 222.

Deus e o mundo ... ... ... ...

106
108
110
112

115

115
123
129
135

138
142
146

149

149
151

§ 223. § 224. § 225. § 226.

§ 227. § 228. § 229.

IX - A SIS

§ 230. § 231.

X-A FIL

§ 232. § 233.

Isaac de Stella ... ... ... ...

155
156
160

164
166
167

169
172

175
175
177
181

183

183
187

O homem ... ... ... ... ...

Hugo de S. Victor* Razão e Fé

Hugo de S. Victor: A Teologia Hugo de S. Victor: A Antropoloma


... ... ...

A Êtica ... ... ... ... ... ...

Nota bibIioLyráfica ... ... ... ...

OLA DE CHARTRES ... ... ...

O naturalismo chartrense ... ... Gilberto de ia Porrêe, ... ... ... T-5- A.
Salisbúria

Hugo de S. Victor: O Misticismo Ricardo de S. Victúr: A Teologia Ricardo de


S. Victor- A Antro-

olo-ia Mistica

Nota bibliogrãfica ... ... ... ...

... ... ... ... Alano de Lille ... ... ... ...

TEMATIZAÇÃO DA TEOLOGIA

Sentenças e sumas ... ... ...

T->.A,- T-1-1-

O Panteismo: AmaIrico de Bena e Davi-d de Dinant ... ... ... Joaauim de


Flore ... ... ... ...

Nota biblio--%fica .. ...

TICIS O ... ... ... ... ... ...

... ... ... ...

Nota biblio@ráfica . ... ...

OSOFIA ÁRABE ... ... ... ...

Caracteres do misticismo medieval ... ... ... ... ... ...

Caracíceristicas e origens ... ... Al-Kindi ... ... ... ... ... ...

Bernardo de CJáraval ... ... ...

284

285

§234. AI Farabi ... ... ... ... ... 188 §235. Avicena: a
Metafisica ... ... 191 §236. Avicena: a Antropologia
... ... 198 §237. AI Gazali. ... ... ... ... ... 201 §238.
Ibn-Badja ... ... ... ... ... 204 §239. Ibn-Tofail ...
... ... ... ... 205 §240. Averróis: Vida e Obra ... ...
207 §241. Averróis: FiIosofia e Religião ... 209 §242. Averróis:
a Doutrina do Intelecto 211 §243. Averróis: a Eternidade do
Mundo 215

Nota bibliográfica ... ... ... ... 219

XI -A FILOSOFIA JUDAICA ... ... ... 223

§244. A cabala ... ... ... ... ... ... 223 §24,5. Isaque Israeli
... ... ... ... 225 §246. Saadja ... ... ... ... ...
... 226 §247. Ibn-Gebiroil: Matéria e Forma ... 227 §248. Ibn-
Gebirol: a Vontade ... ... 228 §249. Reacção contra a Filosofia
... 230 §250. Maimónidas: a Teologia ... ... 231
§251. Maimõnidas: a Antropologia ... 235

Nota bibliográfica ... ... ... ... 238


286

XH --A POLI=CA CONTRA O ARISTOTELISMO ... ... ... ... ... ... ...
... 2@

§ 252. As traduções latinas de Aristó-

teles ... ... ... ... ... ... ... 24 § 253. Guilherme d'Auvergne
... ... ... 2@ § 254. Alexandre de Hales ... ... ...
2@ § 255. Roberto Grossetê te: A Teologia 2,1 § 256. Roberto
Grossetête: A Física ... 2,1 § 257. João de ia Rochelle
... ... ... 2,1

258. Vicente de Beauvaís ... ... ... 2!

Nota bibliográfica ... ... ... ... 2!

XIIII S. BOAVENTURA ... ... ... ... ,- 21

§ 259. O regresso a Santo Agostinho ... 21 § 260. Vida e Obra


... ... ... ... ... 21 § 261. Fé e Ciéncia ... ... ... ...
... 21 § 262. O conhecimento ... ... ... ... 2 § 263.
Metafisica e Teologia ... ... ... 2 § 264. A física da luz
... ... ... ... 2 § 265. A antropologia ... ... ... ...
2 § 266. A ascese mística ... ... ... ... 2

Nota bibliográfica ... ... ... ... 2

287

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