Você está na página 1de 40
SS ONS Ra a Ce Diversidade Sexual na Educagdo: problematizagoes sobre a homofobia nas escolas ] eee dL Coiznere ty ‘A Colegio Educagao para Todos, langada pelo Ministétio da Educagao e pela UNESCO em 2004, 6 um espago para divulgagao de textos, docurnen- tos, relatérios de pesquisas e eventos, estudos de pesquisadores/as, académicosias © educadoresias nacionais ¢ interacionais, que tem por finalidade aprofundar 0 debate em torno da busca da educagao para todos. ‘A partir desse debate, espera-se promover a in- terlocugao, a informagao ¢ a formagao de gestores, educadores e demais pessoas interessadas no cam- po da educagao continuada, assim como reatirma o ideal de incluir sociaimente o grande numero de jor vvens @ adultos, excluidos dos processos de apren- dizagem formal, no Brasil e no mundo. Para a Secretaria de Educacéo Continuada, Alfa- botizacdo © Diversidade (Secad), érga0 responsavel, no Ambito do Ministério da Educagao, pela Colecao, a educacao no pode se separar, nos debates, de questées como desenvolvimento sociaimente justo © ecologicamente sustentavel; género, identidade de género @ orientago sexual; escola e protecao a criangas @ adolescentes; satide © prevengao; diver- sidade étnico-racial; polticas afirmativas para afrode- scendentes e populagées indigenas; educacao para as populagdes do campo; qualticagao profissional ¢ mundo do trabalho; democracia, direitos humanos, justica, tolerdncia e paz mundial, Na mesma diregao, a compreenséo e 0 respeito pelo diferente e pela di: versidade sao dimensées fundamentais do proceso educativo. Este volume, 0 n? 32 da Colegdo, propée uma série consistente ¢ articulada de reflexes sobre a produgao e a reprodugéo da homofobia na educagao, especialmente no contexto da escola e nos espagos ligados a ela. Rigotosa e minuciosamente examinada a partir dos instrumentos fornecidos pelas ciéncias socials humanas, a homotobia (compreendidas também a lesbofobia, a transfobia e a bifobia) evidencia-se como um grave problema social cujo enfrentamento 1ndo pode ser mais adiado. ‘0 espago escolar aparece aqui como uma poder- sa instancia de reprodugao das logicas homofbbicas. Ali, a homofobia & consentida e ensinada, produzindo efeitos devastadores na formacao de todas as pes- soas. ‘A homofobia compromete a inclusdo educacional @ a qualidade do ensino, Incide na relagéo docente- estudante. Produz desinteresse pela escola, dificuta a aprendizagem e conduz @ evasao e ao abandono escolar. Afeta a definicdo das carreras profission- ais e dficuta a insergéo no mercado de trabalho. VEG, oe “Cy. O Dos." ~ OS ‘DA pyr Diversidade Sexual na Educacao: problematizacdes sobre a homofobia nas escolas Organizador: Rogério Diniz Junqueira Brasilia, 2009 Edig6es MEC/Unesco Representacao no Brasil === I sas, Quadra 5, Bloco H, Lote 6, f i { Ed. CNPq/IBICT/Unesco, 9° andar 7070-914 = Brasilia, DF ~ Brasil Tel.: (65 61) 2106-3500 Fax: (55 61) 3822-4261 Site: www unesco.org br E-mail: grupoeditorial @ unesco.org.br Organizagso das Nagoes Unidas ra a Educagao, a Ciencia e a Cultura Ministério da Educagao Secretaria de Educacao Continuada, Alfabetizagao e Diversidade (Secad/MEC) Esplanada dos Ministérios, BI. L, 2° andar 70097-900 - Brasilia - DF Tel: (55 61) 2022-9217 Fax: (55 61) 2022-9020 s 4. 2 2 es) S 2s ‘Dio pyre Diversidade Sexual na Educacao: problematizacdes sobre a homofobia nas escolas Organizador: Rogério Diniz Junqueira Brasilia, 2009 © 2009. Secretaria de Educacao Continuada, Alfabetizagao e Diversidade (Secad/MEC) e Organizagao das Nagées Unidas para a Educagao, a Ciéncia ¢ a Cultura (UNESCO) Conselho Editorial ‘Adama Ouane Alberto Melo Célio da Cunha Dalila Shepard Osmar Favero Ricardo Henriques Coordenagao Editorial: Maria Adelaide Santana Chamusca Revisao: Maria Lucia de Resende Barreto Viana : Publisher Brasil Secad/MEC Tiragem: 8.000 Edigdo Eletrénica Dados Internacionals de Catalogagao na Publicagao (CIP) Diversidade Sexual na Educagao: problematizagbes sobre a homofobia nas escolas / Rogério Diniz Junquelra (organizador). ~ Brasilia : Ministério da Educagdo, Secretaria de Educacao Continuada, Alabetizacao © Diversidade, UNESCO, 2009, ISBN 978-85-60731-34-3 . 458. (Colegio Educagao para Todos, vol. 32) 1, Educagao — Sexualidade, 2, Homossexualidade, 3,Homofobia, 4, Direitos Humanos. §, Diversidade Sexual. | Rogério Diniz Junqueira. CDU: 37.015.3:613.885 Os autores sao responséveis pela escolha e a apresentacao dos fatos contidos neste livro, bem como pelas opinides nele expressas, que no sAo necessariamente as da UNESCO e do Ministério da Educagao, nem comprometem a Organizagao @ 0 Ministério. As indicacdes de nomes e a apresentacao do material ao longo deste livro nao implicam a manifestagao de qualquer opiniao por parte da UNESCO e do Ministério da Educago a respeito da condigao juridica de qualquer pais, territério, cidade, regiao ou de suas autoridades, tampouco a delimitagao de suas fronteiras ou limites. A sociedade brasileira vive profundas transformagées que nao podem ser ignoradas por nenhuma instituigao democratica. Cresce no pais a percep- 0 da importancia da educagao como instrumento necessario para enfrentar situagdes de preconceitos e discriminagao e garantir oportunidades efetivas de participagao de todos nos diferentes espagos sociais. A escola brasileira vem sendo chamada a contribuir de maneira mais eficaz no enfrentamento do que impede ou dificulta a participagao social e politica e que, ao mesmo tempo, contribui para a reprodugao de ldgicas perversas de opressdo e incre- mento das desigualdades. N&o por acaso, em nossas escolas, temos assistido ao crescente inte- resse em favor de agées mais abrangentes no enfrentamento da violéncia, do preconceito e de disctiminagao contra lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais. Cada vez mais a homofobia 6 percebida como um grave pro- blema social, e a escola é considerada um espago decisivo para contribuir na construgao de uma consciéncia critica e no desenvolvimento de praticas pautadas pelo respeito a diversidade e aos direitos humanos. Reside ai a importancia de se promoverem ages que fornegam a pro- fissionais da educagao diretrizes, orientagdes pedagdgicas e instrumentos para consolidarmos uma cultura de respeito a diversidade de orientacao sexual e de identidade de género. Para isso, resulta igualmente indispensdvel estimular a produgao e a difusdo de estudos e pesquisas nestas areas Este livro, que rene parcela significativa dos/as maiores especialistas brasileiros/as no tema, foi produzido pelo Ministério da Edueagao para discu- tir, especificamente, educagao e homofobia. Com ele, o Ministério nao apenas avanga no ambito do Programa Brasil Sem Homofobia, seus artigos, escritos com rigor e linguagem acessivel, contribuem para a ampliagao e o aprofunda- mento desse debate e também para uma melhor compreensdo da homofobia, seus efeitos e suas relagdes com outros tipos de discriminagao. Além disso, ao fornecer subsidios para a formulagao de politicas publicas na area da educagao e do reconhecimento da diversidade, torna-se leitura indispensavel para profissionais da educagéo, gestores, estudiosos/as, estudantes, agentes dos movimentos sociais e todos aqueles e aquelas interessados/as na cons- trugdo de um modelo de sociedade democratica Agradecemos a todos/as os/as autores/as, assim como ao organizador des- te livro, a cess&o ao Ministério da Educagao, sem énus de qualquer natureza, dos direitos de reprodugdo para disseminagao em meio eletrénico e distribuigao gra- tuita as bibliotecas pUblicas de universidades e demais instituigdes que lidam com Educagao e Direitos Humanos Secretaria de Educacao Continuada, Alfabetizagao ¢ Diversidade do Ministério da Educagao Liberdade, essa palavra que 0 sonho humano alimenta que nao ha ninguém que explique e ninguém que nao entenda! Cecilia Meireles Romanceiro da Inconfidéncia Introdugao Homofobia nas Escola: Rogério Diniz Junqueira im problema de todos Homofobia na Perspectiva dos Direitos Humanos e no Contexto dos Estudos sobre Preconceito e Discriminacao Roger Raupp Rios .. Heteronormatividade e Homofobia Guacira Lopes Louro .. Teorias sobre a Génese da Homossexualidade: ideologia, preconceito e fraude Alipio de Sousa Filho .. Equivocos e Armadilhas na Articulag¢ao entre Diversidade Sexual e Politicas de Inclusao Escolar Fernando Seffner Construgao de Comportamentos Homofébicos no Cotidiano da Educagao Infantil Jane Felipe, Alexandre Toaldo Bello A Escola e @s Filh@s de Lésbicas e Gays: reflexées sobre conjugalidade e parentalidade no Brasil Luiz Mello, Miriam Grossi, Anna Paula Uziel .... .. 159 Ambientalizagao de Professores e Professoras Homossexuais no Espago Escolar Paula Regina Costa Ribeiro, Guiomar Freitas Soares, Felipe Bruno Martins Fernandes ... Corpo, Violéncia e Educacaéo: uma abordagem de género Dagmar E. Estermann Meyer Cenas de Exclusées Anunciadas: travestis, transexuais, transgéneros e a escola brasileira Wiliam Siqueira Peres ... 235 Sexualidade, Deficiéncia e Género: reflexdes sobre padrées definidores de normalidade Ana Claudia Bortolozzi Maia ...... Direitos Humanos, Direitos Sexuais e Pedagogia Queer: o que essas abordagens tém a dizer a Educagao Sexual? Jimena Furlani ...........08 As “Diferengas” na Literatura Infantil e Juvenil nas Escolas: para entendé-las e aceita-las Lucia Facco ... Orientagao Sexual nas Escolas Puiblicas de Sao Paulo Antonio Carlos Egypto .. Por uma Nova Invisibilidade Denilson Lopes ... Educa¢ao e Homofobia: o reconhecimento da diversidade sexual para além do multiculturalismo liberal Rogério Diniz Junqueira . Sobre autores e autoras . Cenas de Exclus6es Anunciadas: travestis, transexuais, transgéneros ¢ a escola brasileira | wisam siqueica Peres* * 4 dez anos, quando coordenei uma capacitagio contratada pela Pre~ feitura de Londrina sobre sexualidades, preconceitos ¢ formagio de equipe, em fungao da criago de um Centro de Referéncia em DST/ HIV/Aids, conheci diversas pessoas provindas de distintos lugares existenciais que dialogavam entre si, mesclando profissionais da érea da satide ¢ usuarios dos servigos de satide que se inseriam nos movimentos sociais da cidade. Nessa época, jé era professor de Psicologia na Unesp/Assis, e minhas pesquisas orientavam-se pela anélise institucional francesa, para a qual toda forma de grupali- dade se mostrava como interesse de estudo. Ao final da capacitagio, fui procurado por um dos participantes que me indagou sobre a possibilidade de fazer uma oficina de prevencio do HIV/Aids com um outro grupo de pessoas, a saber: de travestis A proposta era tentadora ¢ surgia como um desafio, representado pela possi- bilidade de entrar em contato com modos muito singulares de composigio grupal ¢ que, 20 mesmo tempo, me fascinava, por se tratar de uma realidade muito distante da minha. No primeiro encontro, me deparei com oito travestis, com idades que Graduado em Psicologia pela Universidade Estadual Paulista Jalio de Mesquita Filho (1985), Especialista ‘em Psicologia Clinica (1987) e Mestre em Psicologia (2000) pela mesma universidade. Doutor em Satide Coletiva pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2005). Professor assistente da Universidade Es- tadual Paulista Julio de Mesquita Filho, campus de Assis. “* Agradeco ao professor Fernando Silva Teixeira Filho pela leitura prévia deste artigo. variavam de 25 a 39 anos, sendo cinco brancas ¢ trés negras, algumas com experi- éncias de prostituigao na Europa ¢ outras restritas a0 universo de batalha local. Apesar de a proposta inicial da oficina se ater as questées de prevengao do HIV/Aids, as conversas foram se enredando por temas outros da existéncia de cada uma delas, que traziam questdes relacionadas as suas relagdes com a familia, com a vi rinhanga, com a escola, com os servigos de satide, com a seguranga publica, mas também sobre suas fantasias, desejos, sonhos e projetos de vida, sobre as expectati- vas de serem respeitadas ¢ beneficiadas pelo acesso a bens e servigos de qualidade que seriam de direito a todo cidadéo comum. Esse primeiro encontro serviu como “start” para uma série de outros, que acontecem até os dias de hoje. Eles foram estabelecendo novos campos de interesses ¢ de estudos em minha vida profissional, assi m como a construgio de novos modos de relagées que se incorporaram a minha vida, inserindo-me na comunidade de tra~ vestis ¢ transexuais brasileiras. Modos de relagdes marcados por vinculos de respeito ¢ admiragio, fortalecedores de amizades muito especiais, desencadeadoras de muitas reflexdes que foram clarificando ¢ modificando meus proprios valores, produzindo ao contrario da atra¢ao, um fascinio intenso que me levou a concordar com Denil- son Lopes (2002), que se tivesse uma alma, ela seria travesti. Ele pergunta: “E eu nao sou um travesti também?”. Vou tomar esta questo como um disparador de algumas reflexes que desejo wer sobre o universo existencial d: s travestis, transexuais ¢ transgéneros (as TT's) no decorrer deste texto. De modo bastante répido, defino as travestis como pessoas que se identificam com a imagem ¢ o estilo feminino, apropriando-se de indumen- tatias ¢ adereos de sua estética, realizando com freqiiéncia a transformasio de seus corpos, quer por meio da ingestio de horménios, quer através da aplicagio de silicone industrial e das cirurgias de corregio estética e de proteses. As transexuais sio pessoas com demandas de cirurgias de mudanga de sexo ¢ de identidade civil, demandas que nio encontramos ni as transgéneros sio pessoas que se caracterizam esteticamente por orientacio do género oposto, nao se mantendo o tempo todo nesta caracterizag4o, como o fazem. as travestis ¢ as transexuais. Como exemplos destas ultimas podemos elencar as/os transformistas, as drags queens, os drag kings etc. s reivindicagdes emancipatérias das travestis. J Gosto muito da assertiva proposta pelo filésofo Gilles Deleuze de que so mos constituidos por multiplicidades, logo, a nossa constituigdo enquanto sujeito se processa por meio de miltiplos devires, multiplas possibilidades gracas as quais podemos expressar muitas formas de discursos ¢ corporalidades, variando tempo- ralmente em cada espago sécio-histérico, cultural e politico pelo qual transitamos. 236 Neste sentido, em nés habitariam diversas possibilidades de vir a ser, de modo que a pergunta sobre se uma pessoa “€” isso ou aquilo (homossexual/heterossexual) perde a sua fungio e importancia ao ser substituido pela dimensio do “estar sendo”. A dimensio da multiplicidade mostra que em cada situagao relacional nos ex- pressamos de formas diferentes, variando de grupo para grupo, de pessoa para pessoa, marcando a necessidade de uma ampliagio de nossos universos de referéncias para que possamos ser mais respeitosos com as expressées das diferengas. Isto exige um trabalho pessoal de aproximacio e didlogos com pessoas, valores ¢ espagos que dife- rem de nés mesmos, de modo a diminuir as nossas ignorincias ¢ a produzir novos “modos de existencializacao” em que a vida possa ser tomada como valor maior. Sendo assim, de maneira mais aberta, vou tentar nos aproximar um pouco mais do universo das travestis, transexuais ¢ transgéneros, através do mapeamento das cenas vividas e expressadas por essas pessoas em seus cotidianos existenciais, de forma a de- marcar alguns processos de estigmatizag4o ¢ os modos de subjetivacao. Processos de estigmatizacio sto aqueles em que as pessoas, a0 romperem com os modelos previa~ mente dados pela normatizagio, ficam marcadas negativamente, depreciadas a ponto de serem desprovidas de dircitos a ter direitos, aproximando-se daquilo que Judith Butler (2003) vern nomeando como corpos abjetos. Esses processos podem ser vistos através dos encontros diversos que mantemos cotidianamente com o universo de tra~ vestis, transexuais ¢ transgéneros. Os processos de estigmatizacao vividos por travestis ¢ transexuais denotam toda a organizacio de suas subjetividades, construidas a0 longo das relagdes que estabelecem com os outros, com o mundo e consigo mesmas. Neste sentido, quando falamos de subjetividade, estamos nos referindo as maneiras com que as pessoas sio colocadas 4 disposigao do campo social. Ou seja, dependendo da forma como sio concebidas as priticas relacionais (com seus valo- res, sentidos ¢ discursos), teremos a construgio de determinados modos de existir no mundo, estabelecidos em decorréncia do que Felix Guattari e Suely Rolnik (1986) denominam processos de subjetivagao, concebendo os mesmos como construidos nos registros do social, do politico ¢ do cultural. Assim, ao nascer,! 0 ser humano cai em uma rede de saber-poder que deter minam os modelos existenciais, em sta maioria marcados por modos capitalistas, cristéos, patriarcalistas ¢ heterossexistas, em uma perspectiva de dobragem binéria, premiando os normatizados com respeito ¢ oportunidades, ¢ castigando as diferen- gas com desprezos ¢ obstéculos, Esses processos de subjetivagio (BAREMBLITT, 1992; GUATTARI e ROLNIK, 1986) podem ser entendidos como de duas ordens: normatizadores e/ou singularizadores. 1” Mesmo antes de nascer os corpos jd so carregados de significados, tornam-se alvos de atengéo, contro- le, expectativas e investimentos sociais. 237 Os modos de subjetivasio normatizadores seriam responsiveis pela manu- tengio da ordem estabelecida, da moral vigente e do status quo, enquanto os modos de subjetivacao singularizadores se mostrariam como linhas de fuga, como contra~ poderes ou resisténcias em face do poder (no sentido foucaultiano), que facilitam a expressio da diferenga, da singularidade e dos processos desejantes, entendidos aqui na forma proposta por Gilles Deleuze ¢ Felix Guattari (1995), que propéem o dese- jo como uma “usina de produgao de real social”. Nesta perspectiva, dependendo do modo de subjetivacao (normatizador e/ou singularizador) em aso, teremos pessoas normatizadas ou mais resistentes aos processos de norma zai. No caso da populagao travesti, conforme observagses etnogrificas realizadas por nés, assim como por outros autores, iremos encontrar um mix de subjetivacio em que ora as travestis se mostram extremamente revolucionarias e criativas, ora se mostram normatizadas, reproduzindo modelos familiaristas, burgueses, patriarca- listas ¢ heterossexistas, expressando desejos ¢ discursos de submissio ¢ passividade diante da figura masculina — pai, cliente, marido. Esses modos existenciais sio produzidos através das relagdes que o sujcito vai estabelecendo com a familia, com a comunidade, com a escola, com os servigos de satide, com a seguranga publica, nas relacdes amorosas e afetivas, sexuais e/ou de ami- des, nas relagdes de trabalho ¢ voluntariado etc, Por conseguinte, vivenciam todo uum processo de subjetivagio que tentara sempre normatizé-lo por meio de discursos cristalizados por valores moralistas, legalistas e conservadores. Quando da expresso da homossexualidade, e mais especificamente da tra~ vestilidade ou transexualidade, ainda na infincia ¢ depois na adolescéncia, 0 que temos percebido nos relatos ouvidos ¢ nas observagdes etnogrificas realizadas sio histérias de discriminagio, violéncia ¢ exclusio, muitas vezes seguidas de morte € que tém inicio dentro da propria familia, Comega ai o proceso de estigmatizagao que se desenvolveré como ondas, propagando-se da familia para a comunidade, da comunidade para a escola, para os servicos de satide e demais espacos ¢ contextos de relages com que essas pessoas venham a interagir (PERES, 2005a). Nos processos de estigmatizacio, é paulatinamente estabelecido todo um sis tema de depreciagio ¢ desvalorizagio que leva a pessoa a se inferiorizar, perder a auto-estima e aceitar toda a imposigao dos estigmas, em decorréncia da introjecio de valores como verdades absolutas ¢ de modos de ver que justificariam a sua des- qualificagao ¢ exclusto como algo natural, justo ¢ inevitavel (id., 2004). A partir dessa subjetivagio de assujeitamento, as pessoas vio se tornando cada vez mais vulnerdveis diante da vida, perdendo a forsa do questionamento da critica, Ficam a mercé de qualquer forma de desrespeito, de abandono ¢ descaso 238 dos outros, das familias, das escolas, dos curriculos, enfim, das politicas piblicas que possam promover a inclusio e o direito a ter direitos, logo, de exercer a cidadania. Promovendo culturas de resisténcias Para refletir sobre os processos de estigmatizacao, os apontamentos feitos por Richard Parker e Peter Aggleton (2001) sobre a relago dos estigmas com a producao das relagdes de poder que promovem desigualdades sociais nos permitem problema- tizar os modos de estigmatizacao, tomando como objeto titil de analise a questio do poder. Poder que ¢ experimentado em todas as instincias da vida social, econémica politica e que, na visio de Michel Foucault (1985), deve ser entendido [...] como a multiplicidade de correlagées de forgas imanentes a0 dominio onde se exercem ¢ constitutivas de sua organizagio; o jogo que, através de lutas ¢ afrontamentos incessantes, as transforma, reforsa, inverte; os apoios que tais correlagées de forsa encontram uumas nas outras, formando cadeias ou sistemas ou, a0 contritio, as defasagens ¢ contradigées que as isolam entre si; enfim, as estratégias em que se originam e cujo esboso geral ou cristalizasao institucional toma corpo nos aparelhos estatais, na formulagio da lei, nas hegemonias sociais (FOUCAULT, 1985: 88-89), Nesta perspectiva, todas as relagdes estabelecidas sao relacdes de poder e, como tal, trazem em seu bojo um contrapoder, ow seja, uma resisténcia. E nessa diregdo que Foucault (1985: 91) afirma “que la onde ha poder ha resisténcia e, no entanto ou melhor, por isso mesmo, esta nunca se encontra em posicao de exterio~ ridade em relacao ao poder”. Para este autor, as correlagées de poder [...] nfo podem existir sendo em fungio de uma multiplicidade de pontos de resisténcia que representam, nas relagées de poder, o papel de advers a preensio, Esses pontos de resisténcia esto presentes em toda a rede de poder. Portanto, nio existe, com respeito a0 poder, um lugar da grande recusa ~ alma da revolta, foco de todas as rebe- lises, lei pura do revolucionério. Mas sim resisténcias, no plural, que sao casos tinicos: possiveis, necessarias, improvaveis, espon- tineas, selvagens, solitirias, planejadas, arrastadas, violentas, irre- 0, de alvo, de apoio, de saligncia que permite 239 conciliéveis, prontas ao compromisso, interessadas ou fadadas 20 sacrificio; por definigao, no podem existir a no ser no campo estratégico das relagdes de poder (FOUCAULT, 1985: 91) Este modo de anilise do poder e das resisténcias pode ser tomado como fer~ ramenta para problematizagao das cenas de estigmatizagio vividas pelas travestis ¢ transcxuais brasileiras ¢ do modo como respondem politicamente ¢ constrocm estra~ tégias de luta e resisténcia para a defesa de seus direitos e a construgio da cidadania. ‘As informagées que temos recebido a respeito da organizasio social e politica das travestis brasileiras tem revelado intenso trabalho estratégico de enfrentamento aos estigmas ¢ as discriminagées, por meio de projetos financiados por érgios go- vernamentais (Ministérios da Satide, Justica, Educagio, Cultura ¢ Secretaria Espe- cial de Direitos Humanos) ¢ agéncias internacionais, que tém promovido oficinas de profissionalizagao, de formagio politica, de gerenciamento de projetos que, entre outros, tém proporcionado acesso a informagées importantes para a emancipacdo psicossocial de uma comunidade sistematicamente tao discriminada e excluida de quase todos os espagos sociais. Alem dos projetos sociais desenvolvidos, as travestis brasileiras criaram em 1993 0 I Encontro Nacional de Travestis ¢ Liberados que Trabalham com Aids (Entlaids), organizado pelo Grupo Astral (Associagio de Travestis ¢ Liberados do Rio de Janeiro), para poderem trocar experiéncias e definir estratégias na defesa dos direitos humanos e promogio da satide e da cidadania. Deste entio, nos encontros nacionais sio definidas as ages estratégicas a serem desenvolvidas nacionalmente e, a partir de 2002, com o surgimento da Antra (Ar- ticulago Nacional das Travestis, Transexuais e Transgéneros), além das aprovacdes nos encontros nacionais, as agdes passam a ser validadas pela articulagao nacional em reunides anuais em que se fazem os encaminhamentos politicos mais importantes. Em decorréncia de todos os encontros nacionais de travestis, no ano de 2003 o Entlaids realizou a sua décima edigdo em Porto Alegre, ¢ elaborou um documento que ficou conhecido como a Carta de Porto Alegre. A Carta reunia as principais rei vindicagdes da comunidade de travestis, transexuais ¢ transgéneros brasileiras ¢ foi en- caminhada a Presidéncia da Republica, a todos os érgios ministeriais, a Organi Mundial da Satide, as Comissées de Direitos Humanos, a Organizagio das Nagies Unidas, 1 Comunidade Européia e a Organizacao Pan-americana de Saiide. Foi pu- blicada no livro Construindo a igualdade: a historia da prostituigdo de travestis em Porto Alegre, organizado por Alexandre Béer et al. (2003: 167-168), nos termos que segue: zagio 240 1. Recomendam a claboragio de seminrios regionais com apoio de secretarias locais para discusses de temas especificos para a populacéo transgénero, como: transgéneros ¢ prostitui- do; transgéneros ¢ redugdo de danos; transgéneros ¢ mercado de trabalho; direitos humanos ¢ cidadania; 2, Recomendam que, através de decreto-lei federal sejam incluidas nos curriculos escolares a homossexualidade e suas especificidades; 3, Recomendam a participasio de outros érgios (ministeriais) como: Ministério do ‘Trabalho, Ministério da Educagio e Cul- tura, Ministério da Ago Social, Ministérios das Cidades ¢ ou- tros, na elaborasao de projetos e politicas especificas ¢ ages afirmativas, trabalhando na transversalidade das ages para a populagao transgénero; 4, Recomendam que seja feito lobby entre as ONGs que traba~ Tham com transgéneros para a regulamentagio da prostituigio; 5. Recomendam que sejam criadas campanhas especificas pelo Ministério da Satide para a populasao transgénero, sendo as mesmas acompanhadas de perto pelos grupos especificos; 6. Recomendam aos gestores de satide, educasio, trabalho e se- guranga publica, oficinas de sensibilizacdo ¢ treinamentos para todos os seus profissionais relativas a questio de género, tendo em vista que isso vai ao encontro as diretrizes do SUS; 7. Tendo em vista os avangos cientificos na érea de vacinas anti HIV, recomendamos que as ONGs que desenvolvem atividades com transgéneros incluam na sua agenda esse tema para discus~ sio, para maior participagio com outras ONGs e 0 Ministério da Satide; 8. [Solicitam] que a expressio “liberados” seja retirada da no- menclatura do evento a fim de dar maior visibilidade 20 movi- mento das transgéneros; 9, Recomendam 20 Ministério da Satide que o Entlaids [mante- nha] seu formato de evento anual para um maior fortalecimento do movimento transgénero, posteriormente colocado em votasao ¢ transformado em [bianual] segundo deliberasio de assembléia; 10. Exigem das Embaixadas, Ministério das Relagdes Exte riores, Consulados e representantes do pais no exterios, maior 244 apoio a populacao transgénero em outros paises, no que tange a questao de género; 11, Recomendam que os casos de dentincias de violéneia, dis~ criminagao, crimes, ou mesmo violasao dos direitos como cida- dio, sejam levados a todas as instincias de governo e a érgios de seguranga, para que sejam tomadas as providéncias cabiveis; 12. Recomendam que seja fomentada uma rede de informacio para o fortalecimento do movimento; 13. Encaminham para que seja emitida pelos érgios competen- tes carta de recomendagio para 2 fazem atendimentos pelo SUS, a fim de se criarem projetos ou cotas para atendimento as transgéneros, no que diz respeito a colocasao de proteses de silicone, promovendo a redusao de da- nos pelo uso indevido, bem como reparagio facial pela distrofia causada pelos anti-retrovirais; clinicas ¢ os hospitais que 14, Recomendam as associagées de travestis para se filiarem aos Féruns de ONGs Aids e de Direitos Humanos, as Comissées de Direitos Humanos, 20s Conselhos Municipais e Estaduais de Saiide, a fim de participar ativamente nas discussdes e maior controle social no que tange as aplicagdes dos fundos de satide; 15. Recomendam & Secretaria Nacional de Direitos Humanos que crie mecanismos de dentincia para combater a violagio dos direitos humanos das travestis, como o DDH; 16. Propdem ao Legislativo a abertura da discuss de cotas para transgéneros nas universidades ¢ nos concursos piblicos; para criagdo 17. As transexuais vém requerer ao Ministério da Sade inclu- sfo, junto 20 programa do SUS, de atendimento para as tra~ vestis ¢ as transexuais nos estados, possibilitando aos hospitais universitérios ou de base a realizarem acompanhamento tera- péutico na questdo da cirurgia de transgenitalizagao a ser feita por uma equipe composta por médicos urologistas, cirurgides € psiquiatras, psicdlogos, assistentes sociais, que acompanhario antes ¢ apés a cirurgia, incluindo também um endocrinologis- ta para a medigao de acetato de ciproterona e estrogénio, [de modo] conjugado e gratuito (BOER, 2003).? 2 Naquela época, o termo transgénero (do inglés, transgender) chegava ao movimento nacional de travestis, 242 No centro dos modos de subjetivagao brasileira deparamos com movimentos de organizagao social ¢ politica das travestis ¢ transexuais brasileiras, que passam a reivindicar direitos a ter direitos, participando das tomadas de decisdes reivindi- cando respeito ¢ didlogo para com as diferengas. Esses processos de participagio ¢ organizagio social e politica, que chamamos de promogio da cidadania, podem ser entendidos através do que Foucault (2003) denominou de encontros com 0 poder. Foucault apropria-se da tcoria das forgas nicteschiana para conceber uma teoria sobre 0 poder que nao se centraria em algo ou alguém, mas se efetuaria por todas as relagdes humanas, amparadas por dispositivos de saberes e priticas que, por sua vez, se orientariam pelas idéias de norma, disciplina e controle; trata-se do surgimento de um biopoder: um poder que deixa de produzir morte para centrar~ se na defesa da vida, A trilogia formada por norma, disciplina ¢ controle promove uma biotecnologia de controle dos corpos e de regulaao das populagées, estabele- cendo uma subjetivasao de normatizacao, que administrara a manutengao da ordem estabelecida, com scus valores, sentidos ¢ discursos, ¢ excluiré ¢ puniré qualquer expressio da existéncia que se contraponha aos modelos dados, Por sorte, como bem aponta Foucault (1985), todo poder traz em seu bojo um contra-poder, ou seja, toda imposigao feita pelo poder ter4, no sentido contrario, uma resisténcia, Seguindo os passos de Foucault de que o poder se da em todas as relagées, ¢ tomando os processos de estigmatizagio como relagdes sociais ¢ de poder, é im- portante observar que a organizacéo social ¢ politica das travestis brasileiras vem ganhando visibilidade no cenério nacional, mostrando-se madura ¢ pertinente em suas reivindicacées, construindo uma nova configurasao de luta que eu gostaria de chamar de culturas de resisténcia: [...] exiadas por atores que se encontram em posisao/condis0 desvalorizada ¢/ou estigmatizada pela légica da dominagio, construindo, assim, trincheiras de resisténcia ¢ sobrevivéncia com base em prineipios diferentes dos que permeiam as instituiges da sociedade, ou mesmo, opostos a estes iiltimos. (CASTELLS, 1999: 24). A partir da clarificagao das estratégias, consolidadas nos encontros ¢ nas ca pacitagdes dirigidas 4 populagdo de travestis, transexuais ¢ transgéneros, ages de re- sisténcia sio formadas nas mais diversas localidades brasileiras, permitindo que elas Gitansexuais, sendo usado de manoira a congregar Wavestis © Vanseruais. Nos anos seguintes, dado 0 processo de construgdo de especiticidades identitérias, passou-se a distinguir o termo transgénero de travesti e de transexual 243 se organizem e reivindiquem melhores condigées de vida, desconstruindo estigmas € preconceitos e promovendo a construgao da cidadania. Na promogao da cultura da resisténcia, podemos perceber estratégias de em- poderamento pessoal, social ¢ politico que levam as travestis ¢ as transexuais a esta~ belecerem um encontro com o poder. © que as arranca da noite em que clas teriam podido, ¢ talvex, sempre devido permanecer, é 0 ENCONTRO COM O PO- DER: sem esse choque, nenhuma palavra, sem dvida, estaria mais ali para lembrar seu fugidio trajeto. © poder que espreita- va essas vidas, que as perseguiu, que prestou atengio, ainda que por um instante, em suas queixas ¢ em seu pequeno tumulto, ¢ gue as marcou com suas garras, foi ele que suscitou as poucas palavras que disso nos restam; seja por se ter querido dirigir a ele para denuncias, queixar-se, solicitar, suplicar, seja por ele ter querido intervir ¢ tenha, em poucas palavras, julgado e decidido. ‘Todas essas vidas destinadas a passar por baixo de qualquer dis- curso ¢ a desaparecer sem nunca terem sido faladas s6 puderam deixar rastros — breves, incisivos, com freqiiéncia enigmiticos —a partir do momento de seu contato instantaneo com 0 pode (FOUCAULT, 2003: 207-208, grifo do autor). A construgao de uma cultura de resisténcia e o encontro com o poder, vivencia~ dos pelas travestis brasileiras, mostram-se como conseqiiéncia da organizagao social ¢ politica dessa comunidade, que cada vez mais tem participado de conselhos munici- pais, estaduais ¢ federais, levando as reivindicagdes de suas companheiras e propondo saidas para o enfrentamento dos estigmas e das discriminag6es tao intensamente vivi- dos por milhares de travestis ¢ transexuais em todo o territério nacional. Com essas reflexdes preliminares pretendo contribuir para a desconstrusio dos estigmas e dos preconceitos experimentados por essa comunidade e incentivar a promogio de espasos de discusses e agendas de pesquisas ¢ estudos que possam colaborar para a promosao da satide, dos dircitos humanos ¢ da construgio da cida~ dania enquanto direito de participagio social politica nas tomadas de decisoes da sociedade como um todo. Como podemos perceber, existem diversos problemas presentes no cotidiano das travestis, das transexuais ¢ das transgéneros, 0 que caracteriza uma complexida- de que solicita espacos especificos e privilegiados para dialogar com temiticas dife- 244 renciadas ¢, assim, problematizar em profundidade as questées sociais, econdmicas, politicas e culturais, sexuais e de géneros que estao presentes no cenario contempo- raneo, Uma complexidade que requer problematizagdes com outras categorias poli- ticas de anilise, entre elas, classes sociais, ragas ¢ etnias, géneros, orientagio sexual, relagées inter-geracionais etc. Diante de tal complexidade, de forma bastante rapida, propomos um recorte sobre as relagdes possiveis entre essa comunidade e 0 campo da educagio. Escola: a vontade de saber are da vi A partir da exclusao fami inhanga, as relagdes estabelecidas en- tre travestis, transexuais e transgéneros ¢ a escola também se mostram bastante prejudicadas. A escola apresenta muita dificuldade no trato da orientagao sexual ¢ de identidade de géncro, mostrando-sc muitas vezes insogura e perdida diante das cenas que ndo estao presentes em seus manuais. Neste sentido, reifica os modelos sociais de excluséo por meio de agées de violéncia (discriminagio e expulsio) ou de descaso, fazendo de conta que nada esta acontecendo (nao escuta as dentincias da dor da discriminagao). Apesar da presenga de muito preconceito e discriminagao nas escolas, seja por classe social, raga e etnia, géneros, orientacao sexual etc., é possivel localizar em algumas delas ensaios de superagio dese quadro, Isto, muitas vezes por iniciativa de alguns professores ou diretores mais sensibilizados que, de alguma maneira, tém promovido 0 respeito, a sol iso das dife- rengas ¢ 0 respeito & sua expressio. Porém, no espago escolar, ainda ouvimos muitas histérias de desrespeito ¢ homofobia, mais especificamente de transfobia (medo, nojo ¢ vergonha de se relacionar com travestis, transexuais ¢ transgéneros) lariedade e a inclusio, através da valoriz E importante lembrar que quando uma travesti chega 4 escola, ela ja viveu al- guns transtornos na esfera familiar e comunitaria, apresentando uma base emocional fragilizada que a impede de encontrar forsas para enfrentar os processos de estigma- tizagio e a discriminagao que a prépria escola, com seus alunos, professores, funcion’- tios e dirigentes, exerce, dada a desinformagio a respeito do convivio com a diferenga e suas singularidades. A intensidade da discriminagao ¢ do destespeito aos quais as travestis sio expostas nas escolas em que desejam estudar leva, na maioria das vezes, a reagdes de agressividade e revolta, ocasionando o abandono dos estudos ou a expulsio da escola, o que conseqiientemente contribui para a marginalizagao, pois bem sabe- mos da importincia dada aos estudos e 4 profissionalizagao em nossa sociedade. 245 Em minhas escutas ¢ observagées etnogrificas tem sido freqiiente ouvir his- tOrias de travestis que reclamam por nao terem conseguido estudar, néo poderem fazer uma faculdade e exercerem uma profissio que Ihes garanta a sobrevivéncia, sem terem que recorrer a prostituigdo. Em suas falas é freqiiente ouvir reclamagées por precisarem se prostituir por nio conseguirem empregos ou oportunidades de renda, sobrando-Ihes apenas a rua como possibilidade de ganhos financeiros Porém, gostaria de clarificar que embora algumas travestis afirmem gostar de se prostituir, a maioria delas nao se sente a vontade em ocupar esse lugar no mundo, reclamando da auséncia de oportunidades de estudos e empregos, o que nos leva a desmistificar a crenga segundo a qual travestis, transexuais e transgéneros seriam sinénimos de prostituiso; outrossim, nos faz perceber que sio empurradas para os espagos de batalha em conseqiiéncia da violéncia estrutural (PERES, 2005b). Essas ocorréncias da estigmatizacio e da discriminagio, vividas por travestis, transexuais € transgéneros no ambiente escolar prejudicam a prépria socializagao dessas pessoas, que passam a ter um universo existencial bastante restrito. No gueto, elas ficam imersas em um contexto de opressio e marginalizagio que solicita a sua adequasio a uma realidade bastante singular: 0 universo travesti, de uma comple- xidade de valores e significados proprios, marcados como expressio de vida infame (FOUCAULT, 2003). Vejamos algumas cenas vividas que nos foram relatadas em diversas ocasises ¢ localidades diferentes: Lilith, uma travesti negra, pobre, candombleira, portadora do virus HIV, aos 42 anos nos fala de um episédio ocorrido ainda em sua infincia, quando cursava a quarta série priméria. Lilith ainda nao era travesti ¢ se portava como menino, mas devido aos seus trejeitos femininos sempre era molestada ¢ agredida pelos outros meninos que a humilhavam constantemente. Um dia, apés o sinal de retorno do recreio, Lilith diri- giu-se ao banheiro (deixava para ir por ultimo para evitar molestagdes) ¢ foi atacada por nove meninos que a obrigaram a fazer sexo oral ¢ anal com todos do grupo. Apés a experiéncia da “curra’, ficou algum tempo caida no chao, chorando, até ser encontrada pela servente da escola, que a levou até a diretoria, onde fez a queixa ¢ a demincia dos meninos que a haviam violentado. Apés a dentincia, a di- retora chamou os meninos envolvidos ¢ constatou que entre eles estavam seu filho ¢ um sobrinho que, em prantos, negavam a participagio no episédio. Apés alguns dias, a diretora da escola convocou Lilith e seus familiares para promulgar a sua expulsio por “atentado violento ao pudor”. Como conseqiiéncia de negociasao entre 246 os familiares ¢ a diretora, foi feita a transferéncia de Lilith para uma escola parti- cular, mesmo sabendo das condigées de pobreza em que vivia sua familia e © quio dificil seria arcar com os custos de uma escola particular. Lilith diz ser uma pessoa revoltada ¢ indignada com a experiéncia vivida na escola ¢ que, muitas vezes, pensou em abandonar os estudos. Constantemente fugia da escola devido as molestagdes e as agressdes dos outros meninos ou ainda por piadas emitidas pelos prdprios funcionarios da escola. Porém, quando desco- berta era obrigada por sua mae a retornar A escola, mesmo com todas as justifica tivas que tinha para nfo voltar. Nessa situagio, vemos a passagem do lugar de vitima para o de ré de Lilith. Nela, a propria diretora se furta da obrigagao de realizar maiores investigagdes, abre mio da lisura ¢, comodamente, acata as justificativas de seu filho, de seu sobrinho ¢ demais cimplices, protegendo-os da versio apresentada por uma crianga pobre, negra ¢ homossexual — vista como uma ameaga a ordem estabelecida capaz de ferir a imagem da moral e dos bons costumes. Em uma outra situagao, temos o depoimento de Lara, uma travesti de 38 anos, costureira e dangarina de boate, vivendo ha doze anos com seu companheiro, que relembra e nos fala de sua rela¢ao com a escola: [...] isso, eu devia ter uns oito anos de idade. Eu estava na se~ gunda série e comecei a perceber que os outros meninos tinham comportamentos e falavam de coisas que eu nao entendia muito bem. Sempre preferia ficar com as meninas durante o recreio ¢, muitas vezes, a diretora vinha falar que eu tinha que ficar do lado dos meninos. E cu nfo entendia o porqué de ela vir sempre me falar disso, Tinha um menino que sempre se aproximava de mim, era maior do que eu ¢ mais velho também, porque ele ja estava na quarta série. No recreio, ele vinha me chamar para ver figurinhas, mas sempre me puxava para o findo da escola, onde quase ninguém ia. Havia um servente que cuidava sempre dava uma risadinha ¢ fazia de conta que nada estava acontecendo. Ai, uma ver, ele me levou li no fundo e nio tinha mas ninguém. Ai, ele foi pegando na minha mao e falando que eu tinha que pegar no pénis dele, e que se eu nao pegasse ele ia contar para todo mundo que cu era mulherzinha, Eu nao en- tendia o que ele falava porque eu era uma crianga muito pura ¢ fiquei meio paralisada, Ai ele tirou o pénis para fora e disse: “eu vou comer o seu cul”, Eu sai correndo, assustada e sem sa- 247 ber o que fazer, Fui até o banheiro ¢ me tranquei 14, chorando muito. Eu tomei um pinico e um pavor naquela referéncia que me traumatizou por muito tempo. Tanto que sé vim a ter um contato sexual com outra pessoa quando ja estava com 18 anos, quando ia comegar um curso de italiano, na rua do Catete, em uma escola estadual que aceitava pessoas da comunidade, Fiz, minha inscrisio e comecei 0 curso de italiano. Estava muito feliz. porque eu sou descendente de italianos e tinha a chance de E ja pensou eu poder ir morar na Ita Seria um luxo! Mas, como se diz, alegria de pobre dura pouco. Logo na segunda semana, quando cheguei na escola, uma fun. cionaria que estava na porta disse que eu deveria esperar ali na entrada que a diretora queria falar comigo. Fiquei ali por meia hora e s6 depois a funciondria me levou até a diretora, que es- tava no computador e nem me olhou na cara, dizendo: “Entio vocé resolveu se sentir gente? Com a vida que vocé leva, vocé acha que pode freqiientar lugares de gente de bem? Mas vocé é muito atrevido mesmo, vocé quer desmoralizar a minha escola? Vocé quer sujar nome da escola? Saia imediatamente daqui ou terei que chamar a policial” ter cidadania italiana Lara nos relata que ficou imobilizada, com dificuldades até mesmo para ca~ minhar. Saiu e foi para a casa de uma amiga (também travesti) ¢ 14 teve uma crise de choro intensa, pensando obstinadamente em se suicidar. Caiu em uma tristeza profunda que a levou a uma crise de depressio. Foi hospitalizada e 1a ficou durante alguns meses. A experiéncia da humilhacio, proporcionada por uma diretora de uma escola publica que agiu como se a instituigio fosse um espaco privado dela, do qual poderiam fazer parte somente pessoas que ela prdpria, fincada no mais puro preconceito, definia como “gente de bem’, seria certamente marcante até mesmo para a mais centrada das pessoas. De fato, Lara informa que essa cena ¢ as palavras ditas pela diretora de vez em quando ainda voltam sua mente e que de 1é para cA sente dificuldade em estar entre pessoas desconhecidas, assim como de entrar em certos lugares e de voltar a estudar. Na andlise de Lara: “Para mim, depois da experiéncia do colégio, a vida acabou e eu passei a nao acreditar mais nas pessoas, eu fiquei arrasada!”. Essa experiéncia teria contribufdo para 0 encaminhamento de Lara para a prostituigao © as drogas, pois como ela mesma nos relata: “Se eu nao ficar colocada, nao tenho coragem para abordar os clientes”. 248 Diz o ditado que “quem bate nao lembra, mas quem apanha nunca esque- ce”. Isto também vale para as experiéncias vividas de discriminagao e exclusio que se tornam marcas de estigmatizagao tao profundas que podem persistir por toda a vida de uma pessoa. Avescola, que deveria ser um lugar de inclusio ¢ respeito da diversidade, mui- tas vezes perde a sua fungio e passa a desempenhar outras. Torna-se escola-policia, escola-igreja, escola-tribunal, orientadas por tecnologias sofisticadas de poder cen- tradas na disciplina dos corpos ¢ na regulagao dos prazeres. Distanciam-se, assim, de uma das fungées da educagio: tornar as pessoas preparadas para 0 convivio com as diferencas por meio da produgio de sentimentos e atitudes de fraternidade, so- lidariedade e igualdade de direitos, valorizando 0 coletivo ¢ garantindo 0 acesso informago, sem o que é impossivel as pessoas a construgao de suas cidadanias, Fa- zendo uso de slogan do movimento nacional de travestis, transexuais ¢ transgéncros, vale recordar que: “Cidadania ndo tem roupa certa!” Uma outra cena é descrita por Brunete, 23 anos, travesti profissional do sexo. Quando indagada sobre suas lembrangas a respeito de sua ligagio com a escola, relata que sempre teve boas relages com colegas ¢ professores, pois era uma alu- na exemplar. Tirava 10 em todas as disciplinas e era admirada pelos professores ¢ referéncia para os colegas, que, diante das dificuldades com as matérias, sempre recorriam ao “geninho”, Brunete tem consciéneia do quanto suas notas ajudaram a maqniar a sua homossexualidade, mesmo porque, nos informa, era bem afeminada, 86 se reunia com as meninas, embora algumas vez s jogasse voleibol com os meni- nos. Além das boas notas, era uma aluna envolvida nas atividades extracurriculares, quando era convidada para participar de pegas de teatro, de shows ¢ outras festivi- dades realizadas quando da comemoragio de alguma data especial. Mas, relembra Brunete, houve um momento em que ela vivenciou uma si- tuagao que Ihe marcou bastante. Quando estava na quarta série, alguns meninos comegaram a chami-la de “cu de veludo”, em referéncia a um personagem do filme “Navalha na Carne”, que tinha sido exibido na televisio. Confessa ter ficado muito chateada, mas, como era uma crianga muito alegre ¢ sociével, logo relevow o inci- dente e deu continuidade as suas relagoes. Ainda nesse perfodo, conta Brunete: [...] como eu gostava muito de dancar, de interpretar, de re- bolar, minha professora de Educasio Artistica, que cra muito minha amiga, me convidou para participar de um show que ela estava organizando em comemoragio ao Dia das Mies. Ai, ela falou que eu deveria interpretar uma miisica do Ney Matogros- 249 so ¢ que deveria dancar igual a ele, que ali na escola sé eu tinha condigses de fazer um nimero tio dificil. Ensaiei a mtisica e a coreografia, ¢ a professora falava que eu deveria rebolar mais, sendo as pessoas nao iam me aplaudir. No dia da apresentagio, passei o maior ridiculo, pois na hora do meu niimero as pes- soas comegaram a dar risadas ¢ a me apontar como uma coisa ridicula. professora dando muita risada de mim. Foi um choque muito forte, porque eu percebi que a professora tinha feito de propé- sito para me expor e me ridicularizar; mas eu fiz aquilo como arti: Fiquei meio confusa e, ao olhar para os bastidores, vi a a, me dediquei muito nos ensaios, mas as pessoas tiveram esse intuito de me expor com uma conota¢io pejorativa, de de- boche da homossexualidade. No meio de tantos alunos, por que eu fui a escolhida? Porque ja tinha um buchicho a meu respeito € se aproveitaram disso, A experiéncia de Brunete nos mostra alguns tragos das pessoas em quererem desqualificar, ridicularizar e debochar da expressio da homossexualidade em um am- biente hostil ¢ preconceituoso que protege o agressor, impede o exercicio critico de ampliagao do universo de referéncia dos individuos e dificulta que eles possam crescer enquanto seres humanos, tornando-se agentes de cultura da paz ¢ da inclusio. Situa~ ges como essas vividas por Brunete denunciam o despreparo de muitas pessoas que se dizem educadoras e constroem discursos bem distantes de suas praticas. Com Alice, 34 anos, travesti negra, agente de satide, a experiéncia de discri- minasio na escola que consegue lembrar foi a tentativa de uma diretora de expulsé- la quando tinha 13 anos ¢ comegava a se travestir. Além de se travestir, Alice havia arrumado um namorado e andava pelo patio do colégio de maos dadas no recreio € a0 término das aulas. Apés algumas repreensées da diretora ¢ sem resultados, ela resolveu convocar seu pai para que cle tomasse providéncias diante do comporta~ mento de seu filho, Assim nos relata Alice: No principio, eu tinha medo do meu pai e da minha mae, mas me trancava no meu quarto, e com a mesada que meu pai me dava, eu comprava algumas coisas, umas roupas, maquiagens, ¢ ali eu me montava [...] demorou para que eu saisse na rua, montada, No comeso, eu levava algumas roupas ¢ maquiagem me montava no banheiro ¢ saia no patio do colégio, um escindalo!!! Eu adorava, me sentia! Meu pai nao sabia que eu me montava na escola, s6 0 pessoal da escola. Ai, a diretora 250 chamou meu pai e me pés na frente dele e contou tudo. Meu pai ficou calado e eu desesperada, porque nao sabia qual ia ser a reagao dele. Aj, cle olhou para mim, olhou para a diretora ¢ perguntou: “E 0 que é que a senhora quer que eu faga? Que eu espanque, que eu mate? A senhora vai me desculpar, mas ele é meu filho ¢ eu tenho que amar ele do jeito que ele for”. Le- vantou, pegou o chapéu e saiu sem olhar para tris. Fiquei mais apavorada ainda, fui para casa e me enfiei no meu quarto. A noite, ele foi ao meu quarto, bateu na porta, entrou e me dew um presente e perguntou se ett sabia o que eu estava fazendo. Disse que sabia, e me deu sua bén caixa do presente e tive a maior surpresa da minha vida: uma calcinha de renda, vermelha, linda! jo e saiu do quarto. Abri a Esta situagio nos mostra que um outro olhar ¢ uma outra relago sio pos siveis diante da expressio das homossexualidades ¢ também das travestilidades. E mais ainda: mostra-nos um pai que soube se sobrepor ao preconceito de uma diretora regida por praticas discriminatérias orientadas apenas por referenciais pscudo-moralistas ¢ conservadores. Quanto mais enrijecidos ¢ cristalizados forem os valores norteadores dos pro~ gramas de ensino, quanto mais reguladoras forem as atividades formadoras, mais reificagio de desigualdades, discriminagao ¢ exclusio social sera estabelecida Ainda a respeito da relagao das travestis ¢ das transexuais com a escola, diz Bianca: [...] ah, na escola a gente ouvia piadinhas, mas eu néo sou mui- to de agiientar piadas e ja pergunto: “O que que é, hem? O que ta acontecendo?” Ja dou um show e, assim, a gente vive, né? As veres, a gente tem que baixar o nivel porque as chacotas sio exageradas. O pior é que muitas vezes as piadinhas sao feitas pelos proprios professores, que incentivam os guris a abusarem da situagio. Imagina que uma professora que eu tive na quinta série chegou a falar em sala de aula que eu tinha uma doenga muito grave € que as pessoas que ficavam perto de mim pode- iam virar travesti. Depois disso, minha vida virou um inferno e tive que abandonar a escola. Até hoje, com 32 anos, as vezes penso em voltar a estudar, mas ja foi o tempo, né? Agora s6 me 251 De modo complementar, Luciana, transexual ga resta rezar pela protegio divina, porque das pessoas a gente nio pode esperar muito no. ficha de 28 anos, ao ser inda- gada sobre suas lembrangas da escola relata: Da escola, eu lembro das torturas, Torturas que estavam pre~ sentes nos olhares € nos risos que iam desde a servente € a me~ rendeira, pasando pelos professores ¢ a diretora, até os colegas, de sala e de recreio. Mas © pior mesmo era um guri da minha idade que me perseguia o tempo todo, que me falava grosserias: “Seu viado, vé se cria jeito de homem, seu safado, quando a gen- te te pegar vocé vai ver $6, vocé vai aprender a virar homem, vai aprender a parar de ficar com essa maozinha se requebrando” Quando eu via aquele guri, eu entrava em pinico e pensava: “Meu Deus, la vem aquele Hitler de novo?”. Enquanto ficava nas ameagas eu agiientava, mas pior foi quando, ao sair da escola, eu levei uma chuva de pedradas que me machucaram muito ¢ tive que fazer varios curativos. Mesmo assim, eu ainda agiientei muito até terminar a oitava série. Depois disso, nunca mais quis saber de escola, Como podemos perceber, os processos de estigmatizacio ¢ de violéncias em relagio as expressdes travestis, transexuais ¢ transgéneros sio muito freqiientes no espaco escolar, ¢ as cenas apresentadas apenas ilustram algumas ocorréncias que se multiplicam por todo o territério nacional. As auséncias de flexibilidade diante das diferengas da parte dos profissionais da educacio mostram 0 quanto as pessoas podem estar presas a padrdes ¢ a modelos de verdades que revelam a presenga do que Gilles Deleuze (1992) chamava de mi- cro-fascismos em nés, expressos por meio do dedo em tiste, do tom de voz alterado, das expresses faciais depreciativas. Essas situagdes aproximam-se das anélises feitas por Helio Silva (1993: 16) quando aponta 252 Assim como no caso dos meninos de rua [...] 0 problema nao a travesti. A questio é quem as mata, espanca e desdenha. Talvez possamos estabelecer uma linha de comunicasio entre © risinho no canto direito da boca do intelectual macho (ou do gay respeitivel) com a bala que fere o seio esquerdo da travesti O risinho cria na verdade a ambiéncia que neutraliza a decisto de apertar o gatilho. Os diversos relatos evidenciam um mundo de terror ¢ de violéncia em que as pessoas que escolhem romper com os padrdes morais ¢ estéticos, na busca de sua felicidade so submetidas as atrocidades dos preconceitos de outras viciadas em identidades pré-fixadas, crendo-se donas de uma verdade fundada em modelos estabelecidos a priori dos modos existenciais. E interessante observar que o preconceito ¢ a discriminagao nao se restrin- gem apenas as pessoas diretamente estigmatizadas, mas também atingem aquelas que fazem parte de seu convivio, Vejamos uma cena sobre isso. Pérola, uma travesti nordestina, diferenciada por ter tido a oportunidade de freqiientar uma universida- dee por manter relagdes afetivas cordiais com seus familiares primadrios, mora com uma itm divorciada e dois sobrinhos: uma menina de 11 anos e um menino de 8. Apesar de sua estética feminina, Pérola é chamada pelos familiares no masculino ¢ tratada pelo nome de batismo. Um dia, 0 sobrinho pediu a Pérola para levé-lo até a escola. Ao ali chegarem, o menino quis ser acompanhado até a sala de aula. Quando chegaram, 0 garoto chamou a professora e disse: “Eu nao disse que meu tio tinha cabeldo ¢ peitdo?”, Dias antes, a professora havia solicitado a seus alunos e alunas que desenhassem suas familias. O menino, entio, desenhou trés figuras femininas ¢ uma masculina. Identificou a figura masculina como ele e as outras trés figuras femininas como a mie, a irma ¢ 0 “Tio Julio”, caracterizado com cabelos longos, seios fartos e indumentaria feminina. Este episédio revela quio cristalizadas se encontram as referéncias que as pessoas tém acerca dos géneros. Revela ainda como uma possivel alteras%o nos pa~ drdes de masculinidades e de feminilidades produz resisténcias ¢ nio-aceitagio das diferengas. Ao ver o desenho do menino, a professora havia feito comentirios de- preciativos: disse que cle estaria “louco”, atestando 0 seu erro ¢ sentenciando-o a uma penalidade, Antes mesmo de procurar saber ¢ entender a situagao a partir da qual 0 aluno se orientava para produzir o desenho, emitiu juizos de valor, julgou seu trabalho ¢ reiterou normas socialmente impostas ¢ modelos preestabelecidos. Acredito que esses “incidentes” possam ser tomados como dispositivos para dia- logar e problematizar sobre as diferengas ¢ promover uma aproximagao das pessoas com tematicas ¢ modos de existencializacio distantes dos seus universos particulares. Penso que o didlogo sobre as expresses das diferengas seja uma das atribuigies da es- cola, ¢ assim possa ela contribuir com uma formagio voltada para a cidadania e a paz. 253 Meu corpo, meu tesouro: construgées de corpos e géneros Quando nos aproximamos do universo travesti, encontramos uma singularidade propria dos estilos de vida criados por essas pessoas. Trata-se de um universo que, além de ter linguagens especificas, impée regras de aceitabilidade, tais como a transformagio do corpo e a reprodusao de modelo previamente dado da maneira de ser uma travesti Os ensinamentos sio passados de forma oral ¢ corporal: informagées como: hormo- nizar-se, “bombar silicone”, conseguir roupas, sapatos, acessérios ¢ maquiagens, enfim, io estética ¢ corporal. Também in- encontrar os produtos certos para sua transforma formacdes de como sobreviver, conseguir clientes para poder pagar as contas, por nfo ter emprego para suprir suas necessidades mais bisicas de sobrevivéncia. se na imagem feminina, Essa ima~ gem, porém, em nenhum momento é tomada como acabada ¢ absoluta, sempre A construgio do corpo da travesti espelha variando, se processando, uma feminilidade em construgo permanente que vai se transformando por meio das formas corporais, cada vez mais remodeladas pela in gestio de horménios ¢ aplicagéo de silicone, mas também pela depilagio, maquia- gens c adocao de mancirismos. A maioria das travestis nos fala de sua passagem de “homosexual” para “tra- vesti” a partir de uma forte identificagio com a imagem daquela travesti que é vista nas esquinas dos pontos de batalha ou fazendo shows pela televisio. Ao verem a figura da travesti, na rua ou na televisio, é como se uma onda de encantamento se apoderasse delas, levando-as a desejar urgentemente se transformar para serem iguais 20 modelo dado, Josefina Fernandez (2004) fala de trés modelos de referén- cias de identificagéo com a figura feminina considerados pelas travestis de Buenos Aires: a Vedete, a Prostituta, a Mae. A imagem da vedete reflete o glamour, a beleza e o brilho que toda traves- ti busca quando se apresenta em shows e performances teatrais; a imagem da puta transmite a sensualidade, a sedugao ¢ a luxtiria da femme fatale; ¢ a figura da mie reve- la a afetividade, a tolerancia ¢ 0 amor que nao cobra nada por isso, que sempre se dis~ ponibiliza afetivamente. Interessante lembrar aqui que muitas travestis ¢ transexuais que batalham como profissionais do sexo as vezes atendem a homens que nao querem sexo, mas pagam pelo programa para conversar sobre a vida ¢ seus problemas. Nos meus registros também tenho percebido, segundo esses modelos, as mes~ mas referéncias de identificaso por parte das travestis brasileiras. Tais referéncias se manifestam jé nas escolhas para si mesmas de nomes de mulher: o da propria mie, 254 ou de uma artista do cinema ou da televisio, ou outro adaptado ou inteiramente inventado, mas igualmente glamouroso. Essas constatagdes também sfo feitas por Marcos Benedetti (2000: 95), que observa ainda: E ainda na infincia também que o primeiro contato com ou: tras travestis acontece, seja através da televisdo ou mesmo nas ruas das grandes cidades onde estas personagens ha tempo deixaram de ser obscuras € pouco visiveis, A primeira visto ou contato com outra travesti é sempre relembrada com muito entusiasmo ¢ emogio © é marcada necessariamente por um processo de auto-identificasao. Nessa nova interagéo existencial, a aspirante a travesti vai percebendo um universo social completamente diverso do que havia conhecido até entio, marcado por valores ¢ significados diferentes, novas formas de comunicacio e linguagem que trazem a criagio de um novo corpo, uma nova sexualidade, um novo género, logo, de novas formas de existir no mundo. Os géneros em chamas Podemos perceber a construgio de relagées diferenciadas pelas travestis tanto nas relagSes com as pessoas, como nas relagdes que estabelecein com seus corpos © com scus géneros. A esse respeito uma travesti nos fala: “Quando cu faco ativo, eu penso e sinto como um homem, quando eu fago passiva, eu penso e sinto como uma mulher”. Neste tipo de discurso apresentado pela travesti, em momento algum se ca~ teriza uma dicotomia entre 0 feminine ¢ 0 masculino, mas 0 convivio do mas~ culino ¢ do feminino no mesmo corpo. Isto por si s6 nos leva a questionar a res- peito das classificagdes de géneros tradicionais, que dicotomizam radicalmente os comportamentos, estabelecendo reducionismos sobre o que seria masculino ¢ 0 que seria feminino. A esse respeito muitas travestis e/ou transexuais comentam orgu- Ihosamente sobre cenas em que passaram despercebidas, ao serem tratadas como uma mulher; ou ainda, sobre mulheres que sio confundidas como travestis, prin- cipalmente aquelas que usam maquiagens fortes ¢ roupas insinuantes. Sobre isso, Rebeca, que sempre usou roupas femininas discretas (saia longa blusa sem decote), comenta uma cena vivida em uma cafeteria de um acroporto: ra 255 [...] eu estava tomando café em uma cafeteria do aeroporto © havia dois rapazes préximos, quando passou uma mulher superperua, cabelo armado, supermaquiada, cheia de colares ¢ pulseiras, ¢ um dos rapazes comentou que a mulher seria uma travesti Neste momento, me virei par os rapazes e disse: ~ Meu amor, travesti sou eu, ela é mulher! Quando a prépria mulher ouviu ¢ disse: — E isso mesmo, e eu adoraria ser uma travesti! Esta cena mostra 0 quanto as classificages de géneros tém sido borradas nos tiltimos anos e, a0 mesmo tempo, evidencia a percepsao freqiiente das pessoas que tém como referéncia a beleza ¢ o glamour de uma travesti bem montada, quando cst batalhando ou em situagio social ¢ de festa, deixando claro que nada sabem da realidade das travestis nas outras horas do dia, quando sao discrimina- das e desprezadas pela sociedade. Estas constatagdes nos levam a concordar com Marcos Benedetti (2002: 148), para quem: [...] 0 género das travestis se pauta pelo feminino. Um femini- no tipicamente travesti, ou seja, sempre negociado, reconstru- ido, ressignificado, fluido, Um feminino que se quer evidente, mas também confuso e borrado, as vezes apenas esbogado [..] ® o feminino travesti, Diante disso, © contato com a realidade das travestis aponta ¢ afirma que tanto os géneros quanto os corpos e as sexualidades s6 podem ser entendidos como construgdes sociais e histéricas marcadas pela cultura, com seus sentidos e significa- ges pertinentes, com seus processos de subjetivagao. ‘Também nessa area nossas definigdes, crengas, convengdes, identidades sexu- ais e de género e nossos comportamentos, em ver, de realidades naturais, so reali- dades sociais produzidas historicamente por meio de relagdes de saber-poder e de dispositivos sociais, econémicos ¢ culturais (FOUCAULT, 1985) Percebé-lo nos possibilita abrir novas discussées a respeito de como podemos contribuir para o debate sobre as relagdes humanas, as produces de subjetividades ea educasio, de modo a ampliar o respeito em face das diferengas e 0 convivio com clas, distanciando-nos das leituras essencialistas sobre os sexos, 08 géneros, as identidades, a fim de dialogarmos com miltiplos saberes. 256 Apontamentos sobre a produgéo da subjetividade de travestis, transexuais e transgéneros Creio que, com base no que vim até aqui considerando, em vez de propor uma conclusio, sera mais oportuno fazer alguns apontamentos relativos as intimeras questdes que atravessam o universo existencial da populacao de travestis, transexuais ¢ transgéneros (TT's) para reflexio ¢ debate. ‘ulos ainda encon- Um primeiro apontamento possivel diz respeito aos obsti trados nos modos de produgao do pensar e do sentir contemporaneos, marcados intensamente pela filosofia platénica, que impde um modelo tinico de verdade, a partir do qual poderia ser reproduzida a “boa cépia”. Deriva dai o estabelecimento de binaridades que apenas contribuem para a cristalizagio de identidades que se fecham em si mesmas ¢ no permitem questionamentos ¢/ow abertura para outras possibilidades de cxisténcia. Encontramos aqui as oposigdes binarias (fixas ¢ polari- zadas) entre 0 masculino ¢ 0 feminino, a heterossexualidade ¢ a homossexualidade, 0 certo eo errado, 0 normal e 0 patol6gico, 0 pecado e a virtude. Binarismos estes que enfraquecem a vida e fazem dela uma normatizacao opaca e cristalizada A rigidez ¢ a intensidade com que as binaridades atuam fazem com que as pessoas se fixem em padrées inquestionaveis de verdade ¢ se viciem em identidades reificadas. Diante da expressio de desejos ¢ de realizagao de praticas que nao se adequam as normas rigidamente estabelecidas, essas pessoas podem entrar em uma zona de turbuléncia e de nonsense,'Trata-se do estabelecimento de confusio mental em que os modelos dados nao correspondem as necessidades pessoais e singulares de seus atores, forjando vidas (freqiientemente dentro do armério), contraditérias diante das aspiragics, sujeitas a sofrimento ¢ promotoras de infelicidade, Um pro- cesso particularmente cruel, sobretudo em relagao as pessoas consideradas diferen- tes, mas que nao poupa ninguém. Talvez, uma saida possivel esteja na flexibilizagao dos saberes ¢ dos poderes que nos atravessam o tempo todo, de modo a dirigir nossa atengio para o diferente, © efémero, o infame ¢ a produzir mais inclusao ¢ solidariedade. Para além da se- xologia, € preciso que tomemos as sexualidades diferentemente de estruturas, per- sonalismos ¢ energias, para toma-las como fluxos de desejos ¢ de prazeres, sempre intempestivos e singulares. Como diz Gilles Deleuze (1998) em seu livro Didlogos, a sexualidade s6 pode ser pensada como um fluxo entre outros, que entra em cone- xdo com outros fluxos, metamorfoseando-se de acordo com as conexdes possiveis a partir de uma perspectiva rizomitica infinita.> 3 Deleuze e Guattari (1995) afirmam que o rizoma se mostra “oposto a uma estrutura, que se define por lum conjunto de pontos @ posigoes, por correlagses bindrias entre pontos e relagdes univocas entre estas 257 Essa flexibilizagio diz respeito a um longo processo de abertura e respeito para com as diferengas, de didlogo e aceitagéo dos modos de existir no mundo que nao se coadunam com nossas crengas, valores ¢ temores, assim como com o reperté- tio adquirido sobre tudo aquilo que passamos um dia a acreditar como verdadeiro absoluto. Se nao conseguimos aceitar o diferente, precisamos criar dispositivos para que possamos vir a respeita-lo. Uma chamada importante — ¢ que serve de revisio de toda a discussio sobre essas temiticas — remete a problematizacao das novas identidades sexuais ¢ de géneros com que nos deparamos na atualidade ¢ solicita uma cartografia das forsas que en- gendram novos modos de relagdes. Estas forsas forjam a produsao de novas ciividas que, por sua vez, enunciam novas questées. Assim, cada vez, mais podemos perceber 0 grande arco-iris de sexualidades que se multiplica e se expressa na diversidade sexual, estabelecendo novas conexées ¢ possibilidades de encontros afetivos, amorosos, sexuais, financeiros, marginais. Encontros que expressam modos de vida que ora nos fascinam ora nos amedrontam, porque, de certa forma, nos colocam em contato com dimensées em nés nunca percebidas até entao, Nesse momento entramos em uma zona de indi- ferenciagio em que nos tornamos confusos, inseguros e preconceituosos. Nem sempre sabemos 0 que fazer diante do outro que coloca em cheque os nossos valores e a nossas referéncias, deixando-nos inseguros acerca de nés mesmos e de nossas certezas. Um segundo apontamento diz respeito ao principio de universalizagio, que homogeneiza travestis, transexuais ¢ transgéneros como se fossem todas iguais, sem distingdo, produzindo generalizacao estercotipante. Quando nos referitmos as travestilidades, as transexualidades e as transgere- ridades, deveremos sempre fazer referéncias no plural, ou seja, ndo podemos tomar uum modo de ser ¢ transformé-lo numa matriz reprodutiva, de modo fabril, em que todas as TT'Ts seriam vistas como cépias de uma tinica matriz. Por isso, a importancia de falarmos no plural e, na medida do possivel, mapear, cartografar as posigGes o rizoma & fello somente de Iinhas:linhas de segmentaridade, de estvallicacdo, como dimensoes, mas também linha de fuga ou de desterntorializagao como dimensdo maxima segundo a qual, co segui-a, a multpicidade se metamorioseia, mudando de natureza. Nao so deve confundi ais linhas ou lineamen- tos com linhagens de tipo arborescente, que sao somente ligagoes localizaveis entre pontos e posigoes. Oposto a arvore, o rizoma nao é objeto de reprodugao: nem reprodugéo externa arvore-imagem, nem reproducao interna como a estrutura-érvore. O rizoma 6 uma antigeneaiogia. E uma meméria cura ou uma antimeméria. O rizoma procede por variagao, expansao, conquista, caplura, picada. Oposto ao grafismo, ao desenho ou & fotografia, oposto aos decalques, o rizoma refere-se a um rapa que deve ser produzid, Construido, sempre desmontavel, conectavel, reversivel, mocificdvel, com miltias entradas e saidas, com suas linhas de fuga. Sao 08 decalques que devem ser referidos aos mapas © Nao 0 inverso. Contra os sistemas centrados (e mesmo policentrados), de comunicagao hierérquica e ligagées preestabelecidas, 0 rizoma 6 m sistema a-centrado nao-hierarquico e nao-signiicante, sem General, sem meméria organiza da ou autémato central, unicamente definido por uma circulagao de estados. O que esta em questao no rizoma 6 uma relacao com a sexvalidade, mas também com 6 animal, com 0 vegotal, com 0 mundo, com a politica, com o livo, com as coisas da natureza ¢ do arifico, relagao totalmente diferente da relacao arborescente: todo tipo de devires” (DELEUZE © GUATTARI, 1995: 22-33). 258 diversas linhas ¢ os tragos que compéem modos especificos ¢ singulares (ao mesmo tempo plurais) de ser.* O uso das identidades sexuais ¢ de géneros no plural propée, entre outras coi- sas, que existem muitos modos de ser TTTs no mundo, e que ganham mais especifici dades quando correlacionados com outras categorias de andlise histérica: classe social, raga/etnia, géneros, orientaco sexual, relag6es intergeracionais, estética fisica etc. Dito isso, gostaria de pontuar um terceiro apontamento: o da violéncia estru- tural sobre a comunidade TT Ts. A insergao de uma pessoa em um contexto social pressupde que ela deva incorporar ou lidar com modos de ser, agir ¢ ver relativos a valores, representagées, imagens, signos, significados ete. Logo, implica processos de subjetivagio marcada- mente organizados pela matriz. heterosexual (processos de subjetivacao heterosse- xista — heteronormativa), com modelos rigidos dos géneros, organizados através de relagées de saberes ¢ poderes centrados no patriarcalismo e na heterossexualidade compulsoria. A ordem esté dada: todos deverio ter claro 0 que é ser homem e ser mulher, todos deverio ser heterossexuais, constituir familia, ter filhos, netos... E se por esta razio estiver para morrer de tédio ou angiistia, a ordem é a de buscar as razées disso naqueles que descumprem as normas. Os processos de normatiza¢ao pretendem constituir identidades fixas e rigidas centradas nas premissas da heteronormatividade. Com isso, as pessoas que sentem de- sejo ¢ amam pessoas do mesmo sexo passam a ter enormes dificuldades para conseguir tranqitilidade e clareza, indispensaveis para uma formagio e uma socializagio menos atormentadas ¢ uma homossociabilidade mais serena ¢ saudavel. A partir do momen- to em que uma crianga ou um/a adolescente percebe que tem desejos ¢ vontades que diferem das de seus colegas de mesmo género, tende a retrair-se ¢ a distanciar-se do mundo, dando inicio a interiorizagio de uma homofobia que poderd ter como ma companheira durante toda a sua vida. A esse respeito, Marina Castafieda afirma: ‘A homofobia interiorizada nao tem fim: ela ressurge, sobre di- ferentes formas, ao longo do ciclo vital. Complica a percepgio que o homossexual tem de si mesmo e dos outros; colore to- das as suas relagdes interpessoais assim como 0 seu projeto de vida ¢ sua visio de mundo. Constitui provavelmente a diferenca subjetiva mais importante entre homossexuais e heterossexuais. 4 Ademais, aprendemos com Foucault que ninguém pode ser tomado como modelo para comparagéio com ‘cutra pessoa. E preciso problematizar a respeito dos componentes de subjetivagdo que constituem osse modo de ser, ou ainda, para continuar na cumplicidade com Foucault, que componentes contribuem para a construgao de uma estiistica da existéncia, 259 A palavra “homofobia” significa medo ou rejeigdo da homosse- xualidade. Esse medo pode parecer instintivo, como 0 medo do fogo, mas nao o é, Constitui mais um fendmeno cultural que esta longe de ser universal, ¢ que reveste diferentes formas ¢ significagdes segundo o contexto (CASTANEDA, 1999:71) A produgio de homofobia est presente tanto nos heterossexuais quanto nos homossexuais ¢, por conseguinte, entre as travestis, as transexuais ¢ as transgéneros. E é entre estas uiltimas que uma variagao da homofobia, no caso, a transfobia, pode exercer seus mais profundos efeitos, em seus processos intricados de construgio identitarios e de subjetivagio. Impedida de poder ser 0 que é, necesita de espacos de escuta e de clarificasao de suas dividas. Como nao consegue interlocugio com a familia e nem com a escola, acaba tendo que descobrir sozinha. Se tiver a sorte de ter um amigo de mesma per- tenga, poderd dividir sua dor ¢ falar de seus desejos, amores, prazeres ¢ paixdes. Tem-se ai a eclosio de um longo proceso de estigmatizacio, discriminagio ¢ exclusio que ganhara picos de intensidades de acordo com a qualificasao e status de sua visibilidade. Assim, uma TTT rica sera menos discriminada do que uma TTT pobre; uma TTT branca menos que uma TTT negra; uma TTT “mais discreta/educada”, menos que uma TTT “mais barraqueira”; uma transexual “educada e feminina”, menos que uma transexual “perua’; uma travesti jovem, menos que uma travesti idosa, Além desses componentes, uma outra perspectiva da violéncia estrutural nos remeteria 4 confusao em face das referéncias de género. Afinal, as referéncias sobre 05 significados e os valores atribuidos as categorias de masculino e feminino sempre foram marcadas por fortes influéncias essencialistas que os associavam 4s caracteris- ticas sexuais, limitados a uma perspectiva bioldgica, centrada na fisiologia do “apa~ relho reprodutor” (ou seja, “destinado” para a reprodugio ¢ nao para a sexualidade e © prazer) ¢ na filosofia moral. Seguindo a logica essencialista, sio claboradas justifi- cativas para as formas de produgao ¢ de reprodugao de desigualdades entre homens e mulheres, que normatizam suas relagées, vistas como naturais e universais. Seja na esfera do senso comum, seja na esfera do discurso cientifico, a distingao sexual tem servido para analisar ¢ justificar as desigualdades sociais. No cenario contemporaneo, as referéncias disponiveis sobre géneros come- gam a perder seus sentidos, tendo seus contornos borrados ¢ seus significados des~ manchados, Os géneros estio em chamas. Uma confutsio nos cédigos de inteligi- bilidade comeca a ser estabelecida ¢ a levar muitas pessoas a questionarem: o que é ser homem? O que é ser mulher? 260 O dispositive dos géneros, em interface com o das sexualidades, atuaria no cen- tx0 das subjetividades humanas, administrando a percepgao, a cogniso ¢ as sensagdes presentes nas relagées dos sujeitos com o mundo, com os outros ¢ consigos mesmos. Muitas sao as questdes que atravessam a estilistica existencial das TTTs, de modo que, de forma mais efusiva, gostaria de resgatar, para encerrar, algumas temé- ticas que considero mais urgentes: 1. Uma critica aos modos de produgao do pensar e do sentir que se organizam a partir da referéncia binaria. E preciso romper com essa perspectiva dualista para tomarmos o ser humano como um ser da multiplicidade, no qual as homosse- xualidades ¢ os géneros nao seriam mais tidos como opositores as heterossexu- alidades ¢ aos padrdes identitirios, mas como complementares ¢ processuais; 2. Uma critica a idéia de universalidade ¢ de verdades absolutas. Quando falamos em TTTs precisamos aponta-las em suas singularidades, ou seja, tomé-las como pluralidades processuais em que cada pessoa traz, suas espe- cificidades. As marcas disparadas pelos processos de estigmatizagio decor rentes da heteronormatividade sobre as TTTs solicitam interfaces com as categorias de classes, ragas/etnias, géneros ¢ orientag&es sexuais; 3. As problematizagées a respeito das TT'Ts demandam urgentemente a cria- sao de agendas que incluam em suas pautas a criagdo de estratégias de en- frentamento especifico as travestifobias, as transfobias, aos crimes de ddio; 4, O cenitio contemporineo necessita de revisio dos paradigmas sobre as fami- lias nucleares e monogimicas, para incluir em suas referéncias a contemplago de novos arranjos familiares que expressam os desejos de conjugalidades, por meio da efetivaso da PCR — Parceria Civil Registrada, do reconhecimento da homoparentalidade ¢ da adogio de criangas por casais homossexuais; 5. Considerando que a inflexio de género presente nos diciondrios de lingua portuguesa associa travesti ao artigo masculino ¢ tendo em vista a reivindi- cago politica de respeito 4 sua identidade de género, acredito que o uso de tratamento para as TT'TS no feminino pode ser um efetivo avango para a construgio do respeito as diferencas; 6. As cartografias existenciais das TTTs evidenciam experiéncias de estigma- tizagdo, violéncias, exclusdes e mortes que por si mesmas solicitam urgén cias na criagao de politicas publicas que garantam o direito fundamental & singularidade, o direito de ir e vir, o direito a dignidade humana na expres so do exercicio da cidadania plena ¢ participativa, no qual a escola ¢ seus culos tém importante responsabilidade social. currik 261 Diante do panorama contemporaneo, torna-se urgente a incluso de debates € reflexdes a respeito das novas identidades sexuais e de géneros. E preciso criar es- pagos de respeito e convivio pacifico entre os atores que compoem as redes de ensi- no € socializago. Ao mesmo tempo, € necessario que as escolas constituam espagos de escuta e sejam dotadas de diretrizes curriculares e projetos politico-pedagégicos que promovam e garantam um enfrentamento efetivo da homofobia/travestifobia/ transfobia e dos processos de estigmatizagao. Referéncias BAREMBLIT, Gregorio. Compéndio de andlise institucional e outras correntes. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1992. BENEDETTI, Marcos. Tada feita: 0 corpo e o género das travestis. [Mestrado em Antropologia Social]. Porto Alegre: UFRGS, 2000. A calgada das mascaras. In: GOLIN, Célio, WEILER, Luis Gustavo (Orgs.). Homossexualidades: cultura e politica. Porto Alegre: Nuances, 2002. BOER, Alexandre et al. (Orgs). Construindo a igualdade: a historia da prostituigao de travestis em Porto Alegre. Porto Alegre: Igualdade, 2003. BUTLER, Judith. Problemas de género: feminismo e subversio da identidade. Rio de Janeiro. Civilizagao Brasileira, 2003. CASTANEDA, Marina. Comprendre Uhomosexualité: des clés, des conseils pour les homosexuels, leurs familes, leurs therapeutes. Paris: Robert Laffond, 1999. CASTELLS, Manoel. O poder da identidade. Sao Paulo: Paz e Terra, 1999. DELEU: , Gilles. Conversagées. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. Introdugéo: Rizoma. In: . Mil platés: capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1995. DELEUZE, Gilles; PARNET, Claire. Didlogos. S40 Paulo: Escuta, 1998 262 FERNANDEZ, Josefina. Cuerpos desobedientes: travestismo ¢ identidad de géncro. Buenos Aires: Edhasa, 2004. FOUCAULT, Michel. Histéria da sexualidade, 1: A vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1985. . A vida dos homens infames. In: . Ditos e Escritos IV: estratégia, poder-saber. Rio de Janeiro: Forense Universitaria, 2003 GUATTARI, Felix; ROLNIK, Suely. Micropolitica: cartografias do desejo. Petrépolis: Vozes, 1986. LOPES. Denilson. O homem gue amava rapazes ¢ outros ensaios. Rio de Janeiro: Acroplano, 2002. LOURO, Guacira Lopes. O corpo educado: pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Auténtica, 1999. PARKER, Richard. Abaixo do Equador: culturas do desejo, homossexualidade masculina ¢ comunidade gay no Brasil. Rio de Janeiro: Record, 2002. PARKER, Richard; AGGLETON, Peter. Estigma, discriminagao e Aids. Rio de Janeiro: Abia, 2001. PERES, Wiliam Siqueira. Processos de estigmatizacao ¢ estratégias de resisténcia: violéncia, exclusio e sofrimento psiquico. In: PARKER, Richard G. et al. (Orgs.). Homossexualidade: produgao cultural, cidadania e saiide. Rio de Janeiro: Abia, 2004. . Subjetividade das travestis brasileiras: da vulnerabilidade dos estigmas & construgao da cidadania. [Doutorado em Saide Coletiva]. Rio de Janeiro: IMS/ Uerj, 2005a. . Travestis brasileiras: construindo identidades cidadas. In: GROSSI, Mirian et al. (Orgs.). Movimentos sociais, educagao e sexualidades. Rio de Janeiro: Garamond, 2005b. SCOTT, Joan. Género: uma categoria titil de andlise histérica. Educagao ¢ Realidade, Porto Alegre, v. 16, n. 2, 1995. SILVA, Hélio. Travesti: a invengao do feminino. Rio de Janeiro: Iser/Relume- Duara, 1993. VANCE, Carole, A Antropologia redescobre a sexualidade: um comentirio tedrico. Physis: Revista de Saitde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 5, n. 1, 1995. 263

Você também pode gostar