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SUMARIO PORUMA ETDADAPASSIVOADE NTRODUDAO AINIORIA DOC ‘OCASO DE LUIS ARAGONES. XTERM OS DIREITOS CASO OA CADENA INTERESUDONIA TV OSANASOA HSIORIA HSTORIA DOS ANAS DETEBAS A INDIA: ESFINGE ETANTRAS (REEDS EROMANOS ‘SODONIA: O08 UDEUS A INGUSIGAO GU, SEXDE GENERG:POLTICAS ANAS. ‘ATWO, PASSWO, HETERO, HOMO, VERSATL. ‘A OQIVERSAO EM BCHIAPELD CU. ‘UMEXPERIMENTO SOCIOLOGICO: A ESTATISTICA DO BEARIAWW ‘SOMOS UM DONUT: TOPOLOGIA, col IDE ANUS IS AN OPEN SCAR: A PERFORMANCE DE WARBEAR PAAZERES ANAIS FIST, DILDOS, PENI, GARCERES. GENEALOOIA D9 DILDO ‘LEATHERS, URSO E MASCULINIDADE DE ARGERES E CUS. (GU, SEXOE GENE POLTIOAS Aka, Apristata:diz-se do homem que, tendo sido batizado em sua dimensio ‘anal decide renunciar a ela para sempre, O cu, o anus, o reto é um drgio sexual? A medicina nos diré que nao, que é uma parte do aparelho digestivo que nfo tem nenhuma fangio reprodutora, logo, no é um érgio se- xual. E, como dizem a Igreja Catélica e os grupos homofs- bicos, seu uso erdtico é uma perversdo, jé que néo tem uma fangéo ceprodutora. Bem, por essa mesma logica, como assi- nala Freud, a boca, como é outra parte do aparelho digestivo (precisamente o extremo em relacdo ao anus) tampouco de- veri’ ser usada no jogo erdtico: seu uso sexual, 0 beijo, éen- ‘to também uma perversio. Na realidade, como sabemos, 0 cu sempre foi usado como érgdo sexual para o sexo e &ai que © sistema dominante de sexo e género comeca a estremecer. A l6gica tradicional heterocentrada, com seu binarismo nis (homem) - vagina (mulher), como modelo do “natural ‘normal, o harmonioso, 0 que deve ser, vem abaixo quando entra em jogo um érgio que é comum a todos os sexos, € asco, Rail Ings represon sexual em Valencia Historia de lot sodomitas . POUITICAS ARS | 85, ‘que nio esté, portanto, marcado pelo género-masculino ou feminino™. um lugar estranhamente vazio das marcas de género. 0 binarismo sexual e 0 mito da cépula heterossexual-reprodu- tiva nio podem operar nesse lugar do anal, que desafia sua légica e 08 coloca em diivida, Inclusive questiona outro bi- narisino, o que divide os seres humanos em heterossexuais e homossexuais. E ainda que, como vimos, uma tradi¢ao mile- nar identifique continuamente a sodomia com a penetragio centre homens, a realidade é que também homens e mulheres se penetram analmente em todas as combinagdes possiveis, com o que, na pritica, se desmorona essa divisio. E se o que define um homossexual jé néo ¢ mais a penetragéo anal, 0 ‘que o define? Deixamos essa pergunta absurda a curiosidade miédica-sexoldgica, Para nés, 0 que importa é precisamente a incoeréncia dessas definigdes. O que a hist6ria do sexo nos ensinow é que ele ¢ algo mui tomaledvel, dictl, variével; discursos médicos recortarn par- tes do corpo de diferentes maneiras sexuais de acordo com a época, contextos, discursos, lugares. A méo pode ser um 6érgio sexual em um século e nao ser em outro. O clitéris faz saa aparigao em dado momento da histéria da medicine, no século XVI, mas sua percepsao como érgéo sexual e sua fun- ¢do muda no século XIX. Até o século XVIII existia a teoria do sexo tinico, ou seja, somente existia um sexo, o masculino, e tudo que tinha a mulber era igual do homem, que era 0 pro- {6tipo, mas invaginado. O trabalho de Thomas Laqueur sobre Para um desenvolvimento mate aprofundedo desta questi, ver Preciedo, 3. Terror anal, om Hocquengher 3 | reuoce 4 construgio social do sexo é fundamental para entender as condiges culturais e soctais disso que chamamos sexo” Mas 0 que queremos assinalar aqui é que, nas genealogias sobre o sexo € 0 género, nao hé nenhuma referéncia & impor- tancia do anal, & sua fungdo reguladora sobre 0 normal € 0 patol6gico, nem sobre sua relacio chave com a masculinida- de e a feminilidade. Os discursos em torno do sexo anal con- figuram importantes valores ¢ determinam préticas muito coneretas: desde queimar seus praticantes na fogueira (como vimos no capitulo anterior), até enforcé-los ou fuzilé-los (na atualidade, em oito paises, a pritica do sexo anal entre homens é condenada a pena de morte: Afeganistio, Ardbia Saudita, Emirados Arabes Unidos, Ira, Mauriténia, Nigéria, Sudo ¢ Iémen; em alguns estados dos EUA, 0 sexo anal con sentido de miituo acordo entre adultos é um delito). Oitenta e cinco paises perseguem a homossexualidade. A condenam com prisio, flagelacdo, internamento psiquidtrico ou campos de trabatho. E, em todos esses casos, o detonante, 0 indicador, a prova fisica do delito, é a pritica do sexo anal, Nao estamos falando somente de agressOes verbais ou discriminatérias, estamos falando do assassinato de milh6es de pessoas no de- correr da histéria, e no momento atual. ‘Muitos povos nao sabiam que havia uma relacio direta entre 0 coito e a reproducéo. Do mesmo modo, 0 cu, 0 nus, {oj algo sexual em muitos momentos, mas a priori é uma se~ xualidade que nao é de “homens” nem de ‘mulheres’, nfo é masculina nem feminina, nio ¢ reprodutiva, néo é genital. De fato, nem sequer necessita de um pénis; as pessoas se pe- netram com dildos, mios, dedos, pés, objetos, linguas. Se 0 5 Tomas Laqueur, La Conitraccn dl exo ewerpo y gnro dead los greg hasta Freud POLTIAS ANAS | 67 cu provoca emogées erdticas, sextiais e de prazer sem ser re- conhecido como érgéo sexual, entéo, o que é a sexualidade? Até onde chege, como defini-la, como capturé-la, como re- corti-Ie, conceitué-la? O que é exatamente o genital? O sexo anal desmantela essas perguntas. Inclusive, se chamamos sexo anal... onde esté aqui o sexo? Em que parte exatamente? Em Marqués de Sede encontramos um dos poucos elo- sios que existem na histéria do pensamento e da literatura sobre o sexo anal. Seu livro A Filosofia na alcova é um cutrioso texto onde se misturam numerosas cenas de sexo anal com reflexdes sobre o desejo, a sexualidade, as relac6es humanas € a politica. Nesta obra, Sade chega inclusive a questionar 0 modelo cléssico da copulagdo pénis-vagina, ¢ vai dizer que © lugar natural do penis para a penetracio é o anus. Um dos rotagonistas, Dolmancé, afirma o seguinte: A natureza, meu caro cavaleiro, se perscrutares com cuidado suas eis, jamais indicou outro & nossa homenagem que nao fosse 0 olho do traseiro; ela permite 0 resto, mas ordena este. Ah, por Deus! Senio tivessea intengdo de que fodéssemos cus, teria ajus- tado tio proporcionalmente seu oriffcio 20s nossos membros? Seu orificio nio ¢ redondo como eles? (SADE, 2003, p. 93)", Sade, também, vai insistir que, dentro do ato de sodomia, © passivo é quem desfruta de um maiot prazer sexual. Talvez, pela primeira vez na historia da literatura, encontramos uma valorizagao positiva do lugar receptor na penetracdo anal Sade vai desenvolver no seu livro diversos argumentos onde faz, uma leitura politica do sexo anal: considera que € uma Marques de Sade, La losofia en el tocar, p. 99. le. fSlosoia no Alova Tred. Contador Borge, Sto Paul 3 | PeLocy prética que libera a mulher da pesada carga da procriacio, dado que esse pritica nfo & reprodutiva, Outro caso bem diferente de referéncia ao sexo anal en- contramos em seu uso come forma de chegar virgem ao ma- triménio. Em alguns pafses, o sexo anal entre homem e mu- Iher € denominado sexo & irlandesa porque, a0 que parece, era uma pritica habitual para evitar a perda da virgindade. © mesmo se diz dos ciganos embora, na realidade, pode ser que se trate mais de um rumor racista do que de algo com- provado, Em todo caso, o que nos interessa dessas expressies € 0 reconhecimento do sexo anal como uma forma de des- locamento do sexo vaginal a partir da supervalorizagio da virgindade que realizou historicamente a Igreja Catélica. De fato, parece que a Igreja sempre quis tapar todos os buracos porque foi a maior repressora da sodomia durante séculos. Inclusive hoje em dia seu ensinamento cotidiano contra.os gays, Iésbicas e transexuais, nos recorda esse triste passado. Bm 30 de junho de 2005, o grupo ultradireitista Foro de {a Familia, com 0 apoio do PP e da Igreja Catélica, convo- cou uma manifestagio em Madri contra o direito ao matri- ménio para homossexuais. A manifestacéo néo passou para 4 histéria por causa da presenga de numerosos bispos (que jamais haviam participado de nenhum de tipo de manifesta- so), mas por uma declaragéo de uma senhora que assistia & manifestacio e que foi entrevistada pela COPE. Suas palavras foram transmitidas ao vivo pela COPE, e dep Jariante contetido, difundiram-se em numerosas rédios e em foruns da internet até se converter em uma joia da histéria da reflexio sobre o sexo anal. Fste € 0 contetido da famosa entrevista: PouiicAS ANAS 69 REPORTER: Uma mae de familia se aproximou com alguns de seus filhos. Aqui temos suas duas criangas a0 lado. Margarita, boa tarde, MARGARITA: Boa tarde. REPORTER: Feliz de estar aqui apoiando a manifestagaa. MARGARITA: Igualmente; olha, sim, estou feliz, porque sou _miie e esposa, ¢ tenho oito fos. E penso que essa lei me agri- de pessoalmente como mae, porque se uma mulher nao se sen te protegida pelas leis civis ¢ pelo seu marido, dificilmente vat querer ter filhos. E quero falar outra coisa. Estudel neurociéncia quando fazia psicologia, ent2o ali nos falavam de que quando ‘08 animais tém lesionada uma glindula que se chama amfdalas, comesamn a apresentar comportamentos tais como os dos ho- mossexuais: copular pelo anus, onde o anus a0 receber esses... esses espermas no podem nunce gerar, porque esto com cocé. Entio eu nio creio que isso seja interessante para sociedade er nenhum aspecto..* Contra a crenga comum de que o Anus ou 0 reto ou o intes- tino no pode ser fecundado, nos inteiramos, gracas a Marga- rita, de que na realidade sio as “fezes” que impede que um jovem fique grévido, Por causa de Margarita e da COPE, po demos recordar uma das associacSes que mais se utiliza para desprestigiar 0 sexo al: saa possivel proximidade com as feces. A parte impedir a fecundagio masculina (Margatita di- xf), as fezes so utilizadas frequentemente como argumento contra 0 uso prazeroso do cu, Na realidade, do mesmo modo que alguém pode lavar a vagina ou o pénis antes de transar, 0 cu também se limpa, © fato de que homens e mulheres mijern 70 | Peace pela mesma zona das drgdos genitais nao faz. com que recha- ccemos 0 sexo como algo asqueroso ou anti-higiénico. Mas a direita de sempre nao € 0 tnico que tem proble- mas com 0 anal. As diferentes esquerdas tampouco escapam 20 panico anal, ¢ em muitas de suas manifestagSes ¢ habitual escutar todo tipo de mensagens e iconografies onde @ pene- tracio passiva é sindnimo do pior, da humilhagao, do abjeto, E tipica a imagem do trabalhador de quatro com as calgas abaixadas sendo penetrado pelo patréo, ¢ outras muitas pia- dase cartazes onde 0 “man” mete no cudo “bor: Temos uma interessante reflexio sobre isso na introdugio do livro O exo do mal é heterossexual: ‘Com oragées como “com este governo s6 tomamos no cu” es tariamos situando-nos dentro de um grande paradoxo politico: segundo os manifestantes, o governo de Aznar nao s6 institu: cionalizava 0 prazer anal como semelhante praver era central para a execusio de sua politica neoliberal Enquanto que n6s erguiamos nossos cus contra o militarismo € 0 capitaismo (*Brazer anal contra © capital”). Foram frases ‘como "Aznar, filho da puta” que fizeram com gue uma associa fo de trabalhadoras do sexo reagisse e comparecesse is con- centragdes segurando um cartaz.no gual declaravam que Aznar no era filho delas. Dentre os slogans de manifestagdes contra 4 guerra, viamos duas pessoas fantasiadas de Bush e Aznar, ou de Bin Laden ¢ Sadam Hussein, Blair a leitora pode compor a representagio seguindo qualquer tipo de combinagao puetil ‘com esses cinco elementos ~ simolando que estavam trepan- do, que um comia 0 cu do outro, etc, Longe de proclamar uma mariconizagio do mando como ato perfeito para acabar com ¢ guerra ("Vadias sim, Guerras nao!”), néo somente reiteravam a apelacgéo a un slogan homoerotizado (neste caso, a guerra), se olricas nna (71 guindo os preceitos da heterossexualidade obrigatéria, mas que: também qualificavam as préticas homoersticas como abjetas™. ‘A tradicional homofobia dos comunistas ¢ dos socialistas geralmente é corroborada com uma itula abertura ao mundo anal, quando nao com uma verdadeira obsessio pelo escirnio ‘contra este, Tampouco a retérica de macheza dos movimen- tos independentes costuma considerar a grande contradigao que existe entre querer um Estado independente e leva consi- 0, por sua ver, o pior de suas instituigdes e de sua repressio 4 sexual (por fim terei “minha” polfcia, meus tribunais, meu minha homofobia e meu machismo; mas os cus bas- os, catalies, corsos, continuario tio fechados quanto os cus espanhis). Nao existe um debate sobre o papel que teria 0. feminismo ¢ as politicas contra a homofobia, a lesbofobia ¢ a transfobia nessa nova sociedade (socialista, comunis dependente); isso fica sempre para o final da agenda, é “su- perestrutura”; algo “meramente cultural’, ndo tio importen- te quanto o novo Estado, ov como as questées econdinicas. Como explica Judith Butler: Por que um movimento interessado em criticar€ transformar os ‘modos nos quais a sexualidade € regulada socialmente nao pode ser entendido como central para o funcionamento da economia politica? Na realidade, sustentar que essa critica ¢ transforma. sho sio uma questio central para 0 projeto do materialismo passou a ser a questio decisiva colocada por feministas socia- listas e pessoas interessadas na confluéncia do marxismo com a décadas de 1970¢ 1980, ¢ foi claramenteiniciada por Engels e Marx, quando insistiam que o ‘modo de producic tinha que incluir formas de associagao social (.) De fato, mut- © Grape de abetho Quees, Sle dal mal es heterozexuah, 18. Tet peLocU tos dos debates ferninistas daquele periodo trataram ndo so de caracterizar a familia como uma parte do modo de producio, tnas também de demonstrar como a produ mesma do géne- ro deveria ser entendida como parte da “produgio dos préprios seres humanos conforme as regras que produzia a familia hete~ rossexual normativa"™ © que estamos afirmando neste livro € precisamente iss0, ‘que 0 género também se produz por meio da regulagao do ‘cu e que, de fato, 0 acesso 20 “humano” também tem rela io com essa questo, na medida em que o sexo anal pode acarretar nada mais nada menos que a morte em oito paises do mundo, € a prisio em mais de oitenta. Se isso ndo € um. dispositivo que decide sobre a humanidade das pessoas, que nos deem outro exemplo melhor. ‘Quando decidimos que neste livro queremos mostrar 0 que se produz a0 redor da questéo do cu, estamos dizendo que essas linhas que o controlam, o vigiam, o estigmatizam ‘ou. 0 promovem, conformam uma politica. O cu éum espago politico. £ um lugar onde se articula discursos, préticas, vigi- olhares, exploragées, proibicdes, escdrt sassinatos, enfermidades. Chamamos de politica precisamen- te essa rede de intervengbes e relagdes. Porque para entender ‘as causas ¢ as condigdes da homofobia, do machismo ¢ da discriminacdo em geral temos que entender como se relacio- rna o anal com o sexo, com o género, com a masculinidade, com as relagdes sociais. Coloquemos um exemplo muito chamativo: em fevereito de 2009, um tribunal popular de Vigo absolveu Jacobo Pine!- 10 de dois delitos de assassinato. O autor, que reconheceu 15 jot Boer “eens ylo mere ue New Lift Revlew rosh, 2000. POLI ANAS | 73, ter dado 57 punhaladas em dois jovens em uma casa da Rua Oporto, foi absolvido dos dois delitos de assassinato que re- queriam as respectivas acusagdes; 0 jiri considerou que 0 as- sassino acabou com a vida das vitimas em “legitima defesa” ¢ por “medo insuperivel” de ser estuprado, Aqui entra em jogo © fantasme do sexo anal, ¢ a justificativa social deste estranho “panico’, um panico que nao se compreende facilmente ja que ‘© mesmo acusado havia aceitado de bom grado ir até a casa dos jovens depois de conhecé-los em um bar gey. Nem as proves do julgamento, nem os depoimentos dos peri- tos da policia cientifica, nem a contfissio do proprio acusado, ter dado 57 p sai uma noite, foram suficientes para que um jurado popular ccondenasse por assassinato Jacobo Pifleiro pelo crime da rua Oporto, Sua recente absolvigio causou assombro em Vigo, onde © tribunal do jiri da sessio 5+, da audié cconhecer, na sexta-feira passada, 0 veredito da defesa dos deli- tos do assassinato e roubo, condenando o acusado por incéndio. Jadas em dois jovens com quem éncia provincial deu a por nossos males, Acreditamos que seria conveniente inver- BL Pats, 29 de feveero de 2009 Em setembro de 2010, repetu-e 0 jlgxmento lacabo Piero fi declare calpad ds anos de piso. “O jr tambérn consideron po agiu nem em logins defes, nem afetado por drogae ou pelo de "um medo insuperivel- os meies de defesa que pedia para que o acustdofosse absolvida. A este respe ro gu, eeguade 0 informe f chave pare o vedio de calpablidade -, as vitimas néo puderam aactlo @ estar indefesns plas graves feridas que tina” El Foro de Vign 24 de t= cero 2010, = pesa 74 | peuoes ter essa légica, e mostrar que se trata de um regime mui complexo, que se constréi dia a dia; um regime cuja elal ago participamos todos em maior ou menor medida. Que- remos recordar que todas essas risadinhas contra 0 passtvo, clusive dentro do ambiente gay, todas essas piadas de bichas que dio o cu, todas essas expresses negativas contra 0 sexo anal, toda essa perseguigao 4s criangas bichas com a amea- ga da penetracdo, tudo isso faz parte desse regime de terror ‘que chamamos regime heterocentrado, uin regime que impée lel e sua violencia, que vai do machismo & misoginia, do pressuposto de que somos todos heterossexuais, ¢ de que s6 cexister dois sexos; de que ninguém deve sair dos seus papéis de genero; do ddio e da perseguigao is sapat6es, a0s trans « as bichas; um regime que respira e cresce dia a dia, partindo dos piilpitos das igrejas ¢ das mesquitas, das escolas, dos tri- das familias, das rédios, das televisdes € da imprensa. Como vimos, a repressio do anal tem um papel chave na idade contemporénea, e acteditamos e falta um debate sério e amplo sobre isso. & preciso deixar m claro que essa questio faz parte de um entrelacamen- de édio e de violéncia, Quando Jacobo Pi ro. da essas 57 punhaladas em dois jovens gays, temos que desentranhar que existe por tris deste medo “insuperdvel” ¢ sua relagio popular Ihe absolve, temos popular” no povo, temos muito 'Nosso querido amigo Paco Vidarte publicou um magnifi- ro poucos meses antes de morter. O livro se chama Etica bicha, ¢ € um texto fundamental para compreender como se POUT As aS 175; articulam hoje em dia as diversas lutas sociais ¢ pol relagéo as minorias sexuais. ‘Uma étiea bicha deveria ser decididamente anal: uma Analética Lu}. Nao € 0 mesmo o que 0 poder entende pelo cu de uma bicha, e 0 que uma bicha entende o que é 0 seu cu, Para o po- der, somos cus fodidos, cus sem eu, sem poss cessidade nem aptidéo para levar iniciativas Cu, para eles, pata thes dar. Cus que reclamam servigos piblicos para no cagarem nas calcadas: esté bem, vamos Ihe dat, néo legal que nos encham tudo de merda. Cus despolitizados, Pois bem, o meu cu ¢ coletivizado, 0 que no € 0 mesmo que ser ‘meu cu, Tenho am cu solidério, o que néo é igual a ter que busca prazer egoistamente, Tenho um cu entregue, que no 0 mesmo que um cu vampiro. Teno um cu comprometido, incapa de trepar com rabos andnimos, direitistas, debikitados, imigrantes: tanto faz. Ou, a0 menos, essa 6a ética a que aspira, sua analética. Jé sabemos ao que nos conduziu a ética racional, a tica com o cérebro; uma puta ética feita com 0 cu nos res ta menos prejucicial, mais imediata, mais franca, mais carnal ‘mais vira-lata, mais animal, mais apegada as necessidades bési cas das pessoas que andam com 0 cu ao ar... Me fascina pen- sar em um movimento LGTBQ que colocasse em prética uma politica do buraco negro: ebsorver tudo, apoderar-se de tudo, chupar tudo sem dar nada em troca. Sobretudo, néo dar nada de ‘nés mesmas, nio deixar que escape nada para fora, nem sequer lum parte minima dos nossos eflivios essenciais. Nao dar nada a0 sistema e thes roubar tudo 0 que cair nas proximidades do nosso orificio negro ™ Como se pode ver, esse texto de Paco foi o principal ins- pirador do nosso livro, e por isso dedicamos 0 ivro a ele. En- Paco Vidar i 1 pp. 88-49, 78 |rewocu (ve outras tantas questdes, Paco desenvolve uma inovadora proposta politica e ética do anal. Mas nao de uma analidade passiva nem envergonhada, mas uma ativa, vinculada a uma relagdo de negacio frente ao poder. Néo the dar nada, ¢ ab- soryer tudo, Paco abre a possibilidade de uma nova bicha, sapata ou trans onde nao existe intercdmbio, nem ogo, nem negociagao, Na verdade, o que esté propondo é um giro histérico, a possibilidade de uma analidade ativa, de um cu ativo, de um cu que seleciona, escolhe, decide, capaz de ctiar sua prépria ética, nfo uma ética universal e que, além isso, ndo facilita a0 poder nenhum saber. A ciéncia, a antropologia, a medicina, a psicandlise, a sociologia, a imprensa, todos querem saber dxs bichas, dxs sapates, dxs trans, dais minorias sexuais. Pedem-nos que fa- lemos; que confessemos; que negociemos; que nos explique- mos; que digamos como somos e 0 que queremos. A ética anal de Paco vai negar tudo isso. Acabou-se 0 dilogo eo in- forme. Porque as condigdes deste saber vém manipuladas de anteméo, porque as condigdes do didlogo sto manipaléveis, partem de um desequilibrio de poder, de quem tem o poder para escrever sobre as nossas vidas, coisificar-nos, classificar- nos, documentar-nos, converter-nos em objeto. Esse contex- to homofbico e machista jé esta prescrito de antemio, por isso ndo temos que cair no jogo: nfo responder, nado pedir nada, nao dizer nada, Somente ser um buraco negro: itica Logo, dando voltas ao buraco negro, me velo & mente a neces- sidade de personalizar essa politica, fazé-Ia nossa, dar-The umas ‘caracteristicas indiscutiveis de identidade. E do buraco negro passei ao olho do cu. Novamente o cu me oferecia a reflexio como portador de valores insondaveis, inexplorados, a maioria ainda por descobrir, estando como esto, ali na frente, ou atrés, OUTIAS ANAS {77 absclutamente expostos ¢ acessiveis. O eterno erro de pensar ‘com 0 cérebro ¢ nio pensar com o cu. De fazer politicas cere- ‘brais e ndo politicas anais, Outra ver-a analética cruzava o mew caminho, Fazer do cu. 0 nosso instrumento politico, aconsigna = fundamental de outra militancia LGTBQ, desenhar uma politi- caanal muito bisica: tudo para dentro, reecber tudo, deixar que 3 tudo penetre e para fora somente soltar merda e peidos, eta é ‘nossa contribuigdo escatolégica ao sistema. Haverd quem veja nisso uma tipica politica de uma passividade fundamentalist, No me parece mal. Mas, opor esta politica & politica falo ta de sempre néo creio que seje uma coisa raim. O esfincter € perfeitamente capaz de se converter em sujeito politico, se fe- char e abrir-se, se dilatar ou contrait-se; como dizem os heteros inconscientes necessitados de uma penetracio: que nfo passe nem o bigode de um camaro. O cu sempre fol objeto de viols- ‘lo, de vexaglo, de estigmatizacio. De desejo. Uma passividad mais passiva que toda passividade. Mero receptor. Orgio p travel, traseiro, vulnerdvel, pouco vigiado, cuja tinica atividade ‘politica, sua tinica iniciativa prépria reconhecida era colocar-se ante a parede como estratégia defensiva. Sempre houve uma po- Iitica anal, Nao estou a inventé-Je agora. O que estou inventando éuma politica anal diferente. Que ndo vai na defensive, que nio seja meramente receptiva, que no seja vergonhosa: meta-me tudo o que eu quero que entre pelo meu cu e depots fique com meus dejetos e cheire meus peidos, Sinceramente, eu no vejo outira maneira de me relacionar com o sistema. E me dei conta de que hd muito tempo fago isso sem estar consciente disso. E ‘que hi muita gente que anda nas proximidades™. No final dos anos 80, o poeta € ensaista bicha argentino Néstor Perlongher também havia assinalado esta relagdo en- Paco Viderte, fica matic, yp. 85-89. 70 | PeLOGL ire o poder e a analidade. No seu essustador artigo: Matarn ‘uma bicha, lemos o seguinte: Para dizer de forma ripida, estas forgas convergem no anus; todo um problema de analidade. A privatizacdo do anus se diria seguindo O anti-Edipo, & um passo essencial para instaurar 0 poder da cabeca (logo-ego-céntrico) sobre o corpo: “s6 0 espl- sito €capar de cagar’: Com o bloqueto e a permanente obsessio da limpeza (toque de algodio) do esfincter, a flatuléncia orgini- a, jé etérea, sublima-se, Se uma sociedade masculina ¢ ~ como queria o Freud de Psicologia das Massas ~ libidinalmente ho- mossexvel, « contengio do fluxo (barro azul) que ameaca rom- per as méscaras sociais dependers, em boa parte, do vigor dos pedacos. Ir A merda ow em merda parece o méximo pperigo, 0 escandalo sem io chegar a tempo até a privada desencadeia, no El Fiord de Osvaldo Lamborghini. a violéncia do Louco Autoritério; Bataille, por sua vez, via na incontinén- ia das tripas o retomno orginico da animalidade). Controlar 0 esfincter marca, entfo, algo como um “ponto de subjetivacia’: centraltdade do tnus na construgdo do sujeitado continente® © Anus é uma grande metéfora de controle dos sistemas sociais. Podemos definir um sistema como uma estri pal6gica (0 espacial) com um dispostiv termodtinamico tum sistema aberto, necessita de intercimbios de energia, in- formacio, populacio, forca, matéria. Tente fechar uma cidade ¢ ela morreré. Tente fechar 0 cu de uma pessoa e ela morterd, Esse controle chega até nossos corpos, obriga-nos a ajus- tarmos alguns papéis de géneros e sexuais, como atuar, trepar, Texto complete em itpdwwrieratra ryPecongh fan hl POUTIRS as 178 trabalhar, vestr, viver. Inclusive chega a regular nossos esfine- teres: s6 deve ser um espaco de saida, nunca de entrada. Ao menos como valor ptiblico, Como jé colocamos, na realidade, existe uma variedade enorme de penetragdes anais, O pornd, por exemplo, é uma méquina de produgéo de imagens e uma tecnologia de género; no cinema pornd, tanto hetero como gay, aparecem penetragées anais continnamente, é quase um requi- sito indispensdvel. Existe nisso uma esquizofrenia que explica ‘omal-estar do anal: todo mundo fantasia com ele, deseja-o, ex-

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