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298 ENsAIO | ESSAY A insustentavel leveza do trabalho em saude: excessos e invisibilidade no trabalho da enfermagem em oncologia ‘The unbearable lightness of health work: overdemand and invisibility on nursing work in oncology Maria Liana Gesteira Fonseca?, Marilane de Castlho Sé® RESUMO Este artigo aborda a producio do cuidado, focalizando particularmente 0 tra- balho da enfermagem. Trata-se de uma pesquisa teérica, apoiada na psicodinémica do trabalho, utilizando-se, para ilustragao, de fragmentos de material oriundo de pesquisa em uma enfermaria oncolégica. Conclui-se que o trabalho em saiide possui uma dimen- sio intangivel ~ caracterizada pela inteligéncia criadora e sensibilidade do trabalhador ~ que ¢ definitiva para a qualidade do cuidado e nao pode ser mensurado por indicadores formais. Exigindo simultaneamente intensidade e leveza, o trabalho em saiide necesita ser sustentado, 0 que aponta para a importincia da gestiio em sua fungio de sustentagao material e psiquica do trabalho em saiide. PALAVRAS-CHAVE Assisténcia & sade; Cuidados de enfermagem; Assisténcia hospitalar, Gestio em saiide. ABSTRACT This article discusses the production of care, focusing particularly on nursing work. ‘This i a theoretical study, based upon work psychodynamics, using, for illustration, empiric ma- terial from a research in an oncology sickroom. We conclude that health work has an intangible dimension - characterized by the workers’ creative intelligence and sensitivity — which is defini- tive for health care quality and can not be measured by formal indicators, Requiring both stren- «sth and lightness, health work needs to be sustained, pointing to the importance of management {for providing material and psychic support for health work, KEYWORDS Delivery of health care; Nursing care; Hospital care; Health management. sins Nacional do (hrc ie) = de Janet (Ses. Ienfomcatensonty (oct eas Nana Janae (Rd), Bast rrorlresensa cna ir SADDEDUMATE | RODE:ANEHO,Y 39.8 ESPECIAL,» 298406 E2208 Ament end os en saddens ini tab do enmagen mgs Introdugao Este artigo aborda as especificidades do tra- balho em satide e seus desafios para a gestio do trabalho nesse ambito, Considerando os aspectos relacionais e intersubjetivos que silo centrais neste tipo de trabalho scan, "Pm: MERHy, 202; CAMPOS, 200; AYES, 200654 005 2009) € que atravessam as organizagdes de saiide, abordou-se o trabalho em sade e a produgao do euidado especialmente em sua dimensio de ‘saber-fazer discreto’ sounte or, assim como 0 conceito de ‘contamina ‘¢80 do tempo fora do trabalho’ saxTos, 2000, para ilustrar a complexa trama que pode estar presente no vineulo dos trabalhadores de satide com seu oficio, Focalizou-se parti- cularmente o trabalho da enfermagem. “Apresentam-se entio aqui resultados de uma pesquisa teérica, apoiada sobretudo na psicodindmiea do trabalho cxouRs, 182, 1993, 2004, 20084 20124, 2018, utlizando-se, em cariterilustrativo, de fragmentos de material empirico oriundo de uma pesquisa de campo ocorrida entre setembro de 2012 e junho de 2013, compreendendo entrevistas com tra- balhadores de enfermagem de uma enfer- maria oncolégica e observagio participante ‘FONSECA, 201), Para este artigo, recortou-se a temiética do vinculo dos trabalhadores com seu trabalho e a chamada ‘contaminago do tempo fora do trabalho’. O trabalho em satide e suas dimensées intangiveis trabalho em saiide guarda especificidades que tornam seu gerenciamento mais com- plexo néo sé por se tratar de um trabalho que se dé entre sujeitos, portanto apresentando ‘um cariter relacional central, mas também, principalmente, por significar intervir sobre 1 vida, os corpos e as paixées de sujeitos que se colocam no momento desse encon- fro como pacientes ¢ ustarios do sistema de satide (A, 2005:ScRAine 193, E necessério compreender os desafios ou exigéncias que esse trabalho, por sua prépria especificidade, impde aos traba- Ihadores, bem como os impasses colocados pelo atual contexto de grandes mudangas na satide piblica e no gerenciamento dos servigos de satide, especialmente dos hos- pitais, absortos na légica dos resultados, indicadores e ntimeros ~ estes cobrados por instincias superiores aos préprios servigos de saiide e por vezes incorpora- dos pela légica gerencialista dos gestores. A necessidade de metas, ntimeros ¢ indi cadores é justificavel e justificada, tendo em vista as necessidades dos usuérios do Sistema Unieo de Satide (SUS) e 0 impera- tivo de se garantir universalidade e equi- dade no acesso aos servigos de saiide, com qualidade e eficiéncia no uso dos recursos piiblicos. No entanto, no setor de side, especialmente em areas mais especificas, como a oncologia, por exemplo, as de- mandas crescem exponencialmente e nem sempre as condigdes de trabalho e de re- ‘cursos humanos so condizentes com tais cobrangas. Além disso, é importante consi- derar ~ 0 que sera visto no presente artigo = que 0 trabalho em satide possui uma dimensdo intangivel que é muito maior € muito mais definitiva para a qualidade do cuidado produzido do que aquilo que do trabalho pode ser mensurado ou apreendi- do por indicadores formais. Por isso, & preciso observar mais de perto e buscar compreender 0 trabalho real (oEs0uRs, 20084, 20124) dos operadores do cuidado, interrogando sobre sua distin- cia e possive’ contradicées com relagio as prescrigées, metas, aos indicadores e & dinamica organizacional, O que esse tipo de trabalho demanda de seus trabalhado- res? O que é visivel e 0 que ¢ invisivel no trabalho de satide? Esse trabalho seria ple- namente passivel de captura e mensuragio pelos métodos disponiveis de gestio que se tem hoje? Como se expressa o vinculo centre trabalhador e organizagao/trabalho? 298 300 savoe eure Que elementos condicionam tal vinculo ¢ quais 0s efeitos deste para a qualidade do cuidado em sade? Para comegar, & preciso que se tome 0 conceito de trabalho. Para tanto, seré usada 8 concepgio da psicodinamica do trabalho, desenvolvida por Christophe Dejours, que, baseada na ergonomia da atividade © em autores como Guérin, Laville, Daniellou, Duraffourg, Kerguelen, distingue o trabalho prescrito do trabalho real, afirmando que ha sempre uma diferenga entre aquilo que € solicitado pela organizaglo formal do tra- balho e aquilo que de fato trabalhadores © trabalhadoras realizam em seu cotidiano, de acordo com os eventos, com as variabilida- des e as diversas necessidades emergentes, que demandam que a lacuna entre trabalho prescrito e trabalho real seja preenchida {0210085 2004 2009, 20128, 2018). ‘Tal lacuna é preenchida por aquilo que os sujeitos que trabalham acrescentam de si as prescrigdes, Segundo Dejours: © que ainda aparece para o clinico como a caracteristica maior do ‘trabalhar’, & que, ‘mesmo que o trabalho seja bem concebido, a organizac3o do trabalho seja rigorasa, as Instrugbes e os procedimentos sejam claros, 4 impossivel atingir a qualidade se as pres crigbes forem respeitadas escrupulosamen te [..]. 0 caminho a ser percorride entre 0 prescrito e 0 real deve ser, a cada momento, inventado ou descoberto pelo sujelto que trabalha. ‘Assim, para o clinico, 0 trabalho se define como sendo aquilo que o sujelto deve acrescentar ds prescricées para poder atingir ‘os abjetivos que Ihe s80 designados’. otiours, 2004, 28 [grifo das autores}, © hiato gerado entre a organizagio pres crita do trabalho ea organizagio real solici- ta —a todo momento ~ da parte daquele que opera o trabalho uma atividade de concep- ‘40 coe0URS, 2006 € mesmo de interpretacio do mundo & sua volta cA, 2005. Sendo assim, 6 trabalho em saiide é também, como todo trabalho, um trabalho de eriagao, de concep- G40, de produgio de saber e de uso de capa- cidades e saberes ticitos. ‘i justamente no hiato entre estes dois polos, o trabalho prescritoe trabalho real - hiato este geralmente invisivel para os atuais, ‘métodos de gestio -, que se encontram boa parte das produgées subjetivas daquele que trabalha: sua inteligéncia criadora, seu prazer e seu softimento. No caso dios trabalhos em satide, devido 4 sua natureza eminentemente relacional ‘uc, 202: $A, 2005, 2009) € a0 préprio objeto do trabalho, a vida, que é sempre dinamica € prenhe de variabilidades ~ 0 trabalhador esté sempre acrescentando de si is preseri- Bes, sempre ajustando as regras gerais, aos casos particulares ¢ sempre lidando com situagdes singulares certo, 20m, MaRsicua 2009 No easo de trabathos em sade, como 0 da enfermagem, por exemplo, cujo aprendiza- do e trabalho prescrito se concentram prin- cipalmente na execugio de procedimentos técnicos, a diferenga entre 0 prescrito ¢ 0 real fica ainda maior, na medida em que & preciso, além de aplicar as téenicas, lidar com um outro, em situagio de extrema fragilidade, que se coloca & sua frente na qualidade de paciente e que esta trazendo situagdes dinicas e geralmente viscerais, plenas das mais intensas emog6es, ligadas 4 vida, morte, as dificuldades sociais. No entanto, a dimensio relacional desse tipo de trabalho nem sempre ganha seu peso seja na formagio, no planejamento ou nos métodos de avaliagao do trabalho. Dejours coms) usa a metifora do iceberg para defini o trabalho: aquilo que esté acima da dgua e, portanto, é visivel & apenas uma pequena parte do trabalho, 0 trabalho pres- crito; 0 que esté abaixo e que consiste em sua parte mais volumosa e invisivel, principal- mente para os métodos de gestio e avaliagio, Eo trabalho real, om suas variabilidades, im- previstos e com tudo aquilo queotrabalhador acrescenta desi para transformara prescrigio em algo concreto, em trabalho rea Os trabalhos de cuidado os desafios do reconhecimento ‘Tomando os trabalhos de cuidado como aqueles em que esta invisibilidade fica ainda mais acentuada, na medida em que hé algo que Ihe & fundamental e que escapa a visibi lidade ~ aquilo que Defours cots e Pascale Molinier chamaram de savoir faire disereto”, o saber fazer discreto -, tem-se um proble- rma no que tange aos métodos de avaliagao: quilo que o trabalho tem de essencial ¢ invi- sivel, nio mensuravele imprescritivel. Como trabalho invisivel, é imaterial e dificil de ser capturado por métodos de gestio eavaliagio, ainda que adquira extrema importancia para a qualidade do cuidado. Molinier com destaca cinco dimenses dos trabalhos de cuidado: como ‘savoir- Jaire discreto’, tal como afirmado acima; como gentleness, no sentido de se ante- cipar as necessidades do outro sem Ihe retirar seu estatuto de dignidade, como “trabalho sujo”, no sentido de um trabalho com “os humores do corpo e as patolo- ssias da alma” cnounir, 2072,» 249, com tudo aquilo que nao se quer ter contato; como “trabalho inestimavel” Mounts, 202, #36), no sentido de no ser passivel de mensu- rago e, finalmente, como ‘narrativa ética’, no sentido de fazer aquilo que deve ser feito, nfo como bondade ou caridade, mas como imperative ético. Tais dimensoes no sio passiveis de ser plenamente ava- lindas, visto que dificilmente podem ser capturadas por mensuragdes, a0 mesmo tempo, sio essenciais ao cuidado. 'Na pesquisa empreendida entre setembro de 2012 e junho de 2013 com uma equipe de enfermagem de uma enfermaria em um hos- pital de oncologia no Rio de Janeiro coNseca 201, dentre virios relatos de exercicio do cuidado, destacou-se este, que condensa as ddimensdes enunciadas por Molinier, quando uma técnica de enfermagem conta como faz aa higiene intima dos pacientes, como limpa seus exerementos: Porque eu sei que aguele paciente ndo é aque- le, aquele.. do sfo aqueles excrementos. Que tudo cquile é uma coisa natural. Que esté em ‘mim. Entdo, eu sempre me colaco, procuro me colocar no lugar daquele paciente. Como eu gosteria de ser manipulada se eu estivesse na- ‘quela situacdo? (..] Entdo, eu procuro manipu- lor com meu toque. No hora da higlenizacdo, de lidar com essaseliminacdes, esses excrementos @ tal de uma forma mois natural possivel [..J. A gente registro 0s adores, a gente registra, nfo tem como ndo registrar. Mas eu procuro ser 0 mais natural possivel. E isso eu jf observel que faz diferenca, (Técnica de enfermagem). Este tipo de exercicio do cuidado & de dificil avaliagio para os métodos que con- sideram apenas as _mensuragies. Sendo de dificil avaliagio, é também de dificil reconhecimento, a nfo ser em espagos in- formais entre pares ou entre usuarios tra- balhadores. No entanto, é justamente uma dindmica intersubjetiva, a dinimica do re- conhecimento, que & capaz de proporci nar a passagem do sofrimento ao prazer no trabalho (oeouRs, 20088, 207,202, A teoria da psicodinamica do trabalho parte do principio que 0 sujeito, em sua relago com o trabalhar, espera contribuir para a organizacio do trabalho, tal como a técnica de enfermagem acima procura contribuir e néo ser uma mera executora, A isso, Dejours chama de ‘direito 4 con- tribuigio’. A esta contribuigao dada pelo tcabalhador organizagio real do tra- balho & esperada uma retribuigio que fandamentalmente de natureza simbélica {0£s0URS, 200803: 0 reconhecimento. ‘Essa retribuiglo simbdlica confere sentido A experigncia e & contribuigo do trabalha- dor. A mesma técnica de enfermagem acima citada complementa: “Quando a gente faz de uma forma mais natura, 0 paciente percebe” Este efeito no paciente lhe propicia alguma sratificagio, uma retribuigio pelo esforco empreendido na tarefa. Esforgo nfo apenas de executi-la, mas de realizé-la de modo 301 302 FOMECAMLG:SKM sensivel em relagio is necessidades do pa- ciente, de realizar a tarefa a seu modo, empre- gando seus saberes, sua ‘inteligéncia pratica’. # dessa dinimica intersubjetiva, fina e aquase impalpavel, de contrbuir para a or- ganizagio do trabalho e sentir oefeito dessa contribuigao, por meio da percepgio de wm paciente, de um colega ou de um superior, que depende a mobilizagao subjetiva para o trabalho. Segundo Dejours oot, essa mo- Bilizacio est sempre presente em todos 03 trabathadores, desde que nko seja desmobi Taada por ua onganizagio do trabalho que frustreo‘diteto de contribu’. falta de lar reconhecimento da. contribu dos trabalhadores para a organizagio do trabalho se configuraria como obsticulo & emergéncia da mobilizagio subjetiva e, por- tanto, ao vinculo com o trabalho, Invisibilidade do trabalho e exigéncias da gestiio Considerando que boa parte dos trabalhos em satide so de cuidado e que estes, por sua vez, possuem caracteristicas que os tornam pouco visiveis, se no totalmente invisiveis para os ‘métodos de gestio ¢, consequentemente, ndo passiveis de apreensio direta ou mensuragio, esti-se diante do problema da relagio dos tra- balhadores de satide com suas organizagbes ¢ (0s muitos métodos de gestio que vém sendo ‘mplantados na atualidade, em uma perspec- tiva que Gaulejac veio a chamar de “quanto- frenia aguda” cause, 200760. Embora Gaulejac no se refira especi- ficamente ao setor saiide e, ainda que re- conhecendo que © setor piiblico possui particularidades, se comparado as tendén- cas gerenciais dominantes no setor privado, pode-se fazer uma reflexio acerca de tais questdes no trabalho em satide hoje no SUS, no Brasil. O contexto de implantagio de novos modelos gerenciais nos servigos puibli- cos de satide, sem enfrentamento da situago de insuficiéneia de recursos humanos e, por vezes, acompanhado de enxugamento dos quadros de pessoal, pode impor lin portantes paraa qualidade do euidado e para as proprias geréncias intermedisrias, no que tange a0 exercicio de uso de mecanismos necessarios para dar condigdes dignas aos sujeitos que trabalham. O exercicio do cuidado descrito acima pela técnica de enfermagem é mais do que aexecu- ‘cdo de uma higiene intima: ela contribui para organizagao do trabalho e percebe o senti- mento do paciente, retornando-Ihe como algo que Ihe gratifica e que opera a passagem da execugio para a contribuigio, construindo € reconstruindo o vinculo com o trabalho e © trabalhar. O ato de executar um procedi- mento passa a ser, para aquela téenica, no cexemplo da ‘execugo da higiene intima’, uma atividade em que & possivel acrescentar de si ao trabalho prescrito, transformar um ato ue, apesar de inicialmente penoso (limpar os ‘exerementos de um paciente), passa a The dar algum prazer, pelas sutilezas da resposta do paciente 20 seu cuidado, No entanto, nem sempre & operadores do cuidado dispor desse tempo, A demanda incessante por produtividade atravessa as mais altas esferas das hierar- ‘quias no campo da saiide piiblica e desce em cascata, demandando de diretores, geren- tes e, como consequéncia, trabalhadores do cuidado, nimeros, indicadores, metas que nem sempre tém contrapartida no mimero de trabalhadores e nas condigdes de trabalho. Nii se faz gestio sem metas e indicadores, & verdade, Estes elementos so fundamer tais. No campo da satide pablica, eles s30 necessarios para garantir acesso, equidade e formulacao de politicas. Todavia, a questio que se coloca ¢ que, cada vez mais, eles vém tomando o lugar da interago humana e das informagées qualitativas sobre os proces- sos de trabalho, que também devem ter seu lugar nos processos de gestfo, assim como espacos de visibilidade justamente para uma dimensio do trabalho que fica 8 sombea: sua dimensao invisivel e ndo mensurivel. Na pesquisa citada constcs 201%, foi detee- tado um certo grau de desmobilizagao para © trabalho a partir do relacionamento dos trabalhadores com a gestio. A mobilizagio, nesse caso, provinha tio somente da relagio desses trabalhadores com os pacientes. ‘A. desmobilizagio, expressa em falas, ‘como “Néo falo mais nada”; “Nao me ma- nifesto mais", “Nao dou mais opinido”, era oriunda principalmente de um sentimento de invisibilidade do esforco empreendido na tarefa de prover o cuidado para pacientes fem condigdes nfo favoriveis a0 exercicio do euidado no tempo que consideram ad quado, Disse um téenico de enfermagem: “E ‘muito paciente com edncer para pouco leito e ‘ito lite pra pouco profissional” Uma enfermeira afirmou que “quase errou uma quimioterapia” e acrescentou: “Quem diz que consegue assobiar e chupar cana estd mentindo”. Na mesma diregio, outra enfermeira afirmou: “Eu ndo sou um polvo. Nao poss. Eu falo. Eu ndo posso fazer trés, como... Vai ficar uma porcariada tudo”, apontando para 1 contradigio entre qualidade do trabalho € metas e indicadores incompativeis com a quantidade de trabalhadores disponiveis Entre esses trabalhadores, havia um res- sentimento pela desvalorizagio, por parte da gestio, da dimensio humana, paralelamente 4 idealizagio da tecnologia e da técnica que atravessa as organizagées de saide, principal- ‘mente as de alta complexidade: “O ser humano tem que usar a teenologia, entendeu? Elesesque- ‘eeram que para utilizar a tecnologia precisa do uumano." (Técnica na entrevista coletva) Essa_mesma jimensdo humana que, no trabalho em oncologia, demandava desses trabalhadores a lida cotidiana com a vida e ‘a morte em suas faces mais intensas também provocava a chamada “contaminagio do ‘tempo fora do trabalho” «antos,2001 55, isto 6,0 levar para a casa a preocupacio com os pacientes e com as questdes da enfermaria, Expresses, tais como, “da porta para {fora (do hospital) e “da porta para dentro”, procurando produzir no discurso uma sepa- ago ficticia entre essas duas esferas, eram frequentes durante as entrevistas e obser- vvag6es realizadas na pesquisa aqui citada PoNsecA, 2019, Assim, enquanto “deixar as coisas do lado de fora" significava para eles tentar ser profssional ¢ ndo trazer as ques: {6s de casa para o trabalho; ‘nd levar coisas ‘pra casa” significava tentar resistir em levar as tristezas do trabalho para 0 Ambito do- ‘méstico. Enquanto para alguns trabalhadores essa inluéneia reefproca era evident, outros passaram a se interrogar a respeito dessa se- paragio, & medida que iam refletindo mais profundamente. Ao longo de uma entrevista individual, um téenieo falou: “Eu ndo levo ‘problemas para casa, eu acho que eu nd levo.. quer dizer agora jéfiquei na diivida até”. Para outros trabalhadores, essa influéncia era evi- dente. Uma enfermeira confessou que quase bateu o carro ao sair de um plantio, tomada pelos eventos vivides na enfermaria. Uma técnica de enfermagem falou a respeito do falecimento de uma joven: ‘AJoana {nome ficticio}, quando morreu, ela es- tava com meu craché ne mo, segurando minha ‘md, Eu estou folando séro! Ela morreu, ela me chameva...17 anos! Ea queria que eu fcasse do lado dela tempo todo, Eelapra mim: Fico!’ Eu, ‘na minha cabeca: ‘Ser que eu vou junto, depois dela? Ela estd me chamando para euir com el Que na cabega da gente é unas casos assim. ‘As vezes morre te chamando. Ela me chamava 0 tempo todo. El feava: Maria, Maria’ [nome ficticio] e me chamande. A técnica foi para casa escutando a voz da jovem. Dejours aorza) adverte que 0 trabalho io se esgota no espago geogréfico onde se di ‘otrabalhar, mas colonizaasubjetividade, Nos ‘rabalhos em saiide ¢, de forma mais intensa, no trabalho em oncologia, ha uma intensi- dade de vivéncias que penetram a vida dos sujeitos, homens e mulheres, que trabalham de forma mais punjente. Néo foram poucos (0s relatos a respeito dessa ‘contaminagio do odo enon on oes 303 304 sagoe omate | HO DE MNEHO V9. tempo fora do trabalho’. Apesar disso, tais trabalhadores, que possuem vineulo de 40 horas semanais, so convocados a dispender 100% dessa carga horiria na atencio direta ao paciente, lidando com essa intesidade de cexperiéncias em tempo integral Os desafios de gerir (sustentar) um trabalho de insustentavel leveza Pelo exposto até aqui, pode-se afirmar que a produgdo do cuidado em satide se constitui essencialmente nfo apenas como um traba: tho intangivel, com muitas dimensées invi- siveis, mas também, igualmente, como um trabalho que exige dos trabalhadores, daque- les que cuidam, um elevado esforgo psiqui- 0 (no caso da enfermagem, na maioria das vezes, também grande esforgo fisico) para sustentar a necesséria sensibilidade e leveza, na interago com os sujeitose suas demandas de cuidado, em situagdes em geral atraves das por muito sofrimento, Assim, trata-se de uum trabalho que, embora exigindo leveza, muitas vezes quase que insustentivel. Por isso a alusio que fizemos no titulo deste artigo ao romance de Milan Kundera, No entanto, diferentemente dos prota- gonistas do romance, para os quais a leveza na relagio com 0 outro se traduzia pela fra- gilidade dos vinculos, pela dificuldade de responsabilizagao,o trabalho em satide, aqui particularmente abordado através do traba- Iho da enfermagem, é exercido pela maioria dos profissionais como um trabalho de ‘extrema intensidade de vinculos com os pa cientes. Desse modo, para que passa ser bem cexercido, precisa igualmente ser sustentado, aqui destaca-se a importincia da gestio em sua fungo de sustentagdo material e psiqui- cado trabalho em saiide. 0 paradoxo apontado por um dos téci cos de enfermagem, quando afirma haver alta demanda de atendimento para poucos leitos e muitos letos para poucos profissio- nais, configura-se como um drama cotidiano no gerenciamento do trabalho em oncologia ‘no SUS, No &mbito da assiténcia oncoldgica, ainda & intensa mobilizacio psiquica que fem geral caracteriza a maioria das situa- Bes deste tipo de euidado, a demanda ver crescendo exponencialmente, em oposigio uma insuficiéncia de recursos humanos disponiveis. Por outro lado, a0 invés de processos € dispositivos de gestio que pro- movam suporte aos trabalhadores para 0 enfrentamento de tais desafos, predominam presses por metas cada vez mais altas, in- dicadores e ‘exceléncia’. Excel cessériamente pautada nas condigées reais de producio do cuidado, mas na naquilo que Soboll e Horst 201 chamaram de ‘ideologia daexceléncia’ Baseados em Christophe Dejours, esses autores afirmam que a ideologia de ‘excelén- cir, sistema de pensamento hegeménico no contexto atual de trabalho, que prima pelo ‘mito da autossuperacio e por resultados sempre superiores, subsidiando a crescente produtividade nas organizagées,jé pressupie algo nao partilhivel, visto que, para ser ‘exce- lente’, é preciso que alguém esteja aquém: 0 termo exceléncia, por sua vez, refere-se a algo que, de antemo, ndo é partlhavel. Assw mir uma conduta de exceléncia significa no partihar esse objetivo com seus semelhantes. A exceléncia nao € compartihade, Para que um seja excelente & necessério outro que fi- ue aquém. A busca de exceléncia tem como fundamento o individualismo rompe com 0s lagos de cooperacso e de reconhecimento, eessencials para construco da identidade e da satide do trabalhador.(S0H01; HORST, 200, 8.225, Quando se trata de trabalho em satide e, especialmente, de trabalhos de cuidado, a ideologia da exceléncia pode ser particular- ‘mente nefasta, na medida em que tende ano considerar (porque nfio consegue avaliar) suas dimensdes invisiveis e néo palpaveis. Arun esd tabla ar near misao tbaodoefemogom enna Centrada prioritariamente em metas € in- dicadores, imputa a responsabilidade sobre trabalhadores individualmente e no &capaz, de reconhecer a importincia da gestio no apenas para a garantia das condigées mate- riais e tecnoldgicas para a realizagio do tra- Dalho em satide, mas também na promogtio de espagos de sustentagao subjetiva/inter- subjetiva deste trabalho. Assim, [.] para além dos necessirios esforcos de reorganizac30 e melhoria das condicées & dos processos de trabalho ~ e também, ob- viamente, de maior eficiéncia no uso dos recursos @ efetividades das acées - & ne~ cessério,[..] buscar, propor e/ou fortalecer dispositivos e processos de gestdo e organi- a¢80 do trabalho que favorecam a gestores Referéncias AYRES, 4. RO Culdado, os modos de ser (4) humano ‘eas prtieas de sue, Sake e Sociedade, v.13, 9.39 16-29, ee, 2004. [BRITO, 1A Erpologia com perspectiva de anise: asafie do trabalhador eo tabalho em sade. Ins “MINAYO: GOMES, C: MACHADO, 3.M. HL; PENA, 6.1. Org). Sade do rabthadorna sociedad rasa ‘ontempordnea, Rio de Jane: Batra Fieruz, 200, ‘CAMPOS, 6. 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Desenvolver capacidade de reconhecimento das dimensdes intangi- veis do trabalho em satide e capacidade de escuta (e de resposta ou encaminhamento) do sofrimento (nao s6 dos pacientes, mas também dos trabalhadores/gestores) ¢ das demandas por sentido que atravessam a Entre sofrimento ereapropiagioosencido do teabalho, In: LANCMAN,S; SZNELZAR, 1 (Or) Chistophe Dejours: da psicopatologi psicodinémica do Trabalho, Rio de Janeiro: BA. Fer, Brass, DE a, Parle 18, 20086, Softimento eprazer no trabalho: A bordagem pela pscopatolgia do trabalho. Ins LANCMAN, 5; SZNELZAR,L (Ox). Chistophe Dour: da pico- patolagia A psicodinsmica do Trabalho. Rio de Jansro: Bd. Fiocru, rasa, D-Rd,Parlelo 18, 2008. Inteligdncia prviea e sabedoriapritics: duas {imensdes desconhecidas do Trabalho Real. In: LANCMAN, S; SZNELZAR, LI (Org). Chistophe ejours: da psicopatologia psieoindiiea do ta- Dalho, Rede Janeiro: Ea, Pocrus, Brasilia, DEA, Paralelo 18, 2008. __Subjetividade trabalho ayo. 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