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TESOURA E COLA Crianga, tenho uma tesoura, pequena tesoura de pontas arredondadas, para evitar que me machuque; as criangas sdo muito desastradas até que atinjanra idade da razio, quando aprendem o alfabeto. Com minha tesoura nas maos, recorto papel, tecido, nao importa o que, talvez. minhas roupas. As vezes, se sou bem comportado, oferecem-me um jogo de imagens para recortar. Sio grandes folhas reunidas em um livreto, e sobre cada uma delas estdo dispostos, em desordem, barcos, aviGes, carros, animais, homens, mulheres e criangas. Tudo 0 que é necessério para reproduzir o mundo. Nao sei ler as instrugdes, mas tenho-as no sangue, a paixdo do recorte, da selecdo e da combinacdo. Meu gesto desejaria ser minucioso; ponho-me a seguir o contorno das figuras, um trago negro em volta do corpo. Mas 0 recorte ¢ de todos os jogos aquele que mais me deixa nervoso: serro 08 punhos, bato o pé, rolo pelo chao. Sapateio de raiva quando as coisas me opdem resisténcia, quando se recusam a submeter-se 4 minha vontade, rebeldes que sio a se deixarem representar em meu recorte, em meu modelo de universo, Ultrapasso sempre de alguns milimetros 0 limite, corto as pontas de papel que se dobram sobre os ombros ou que deslizam pelas fendas do corpo, a fim de que a roupa se mantenha sobre a silhueta de papelio nu. Fico louco. Mas como poderia conseguir, se somente minha mie dispée, para seus trabalhos de costura, de longas tesouras pontiagudas que me permitiriam esquadriar, sem mutilar as finas lingiietas? E preciso consertar os estragos, colar novamente as extremidades que faltam. Mas nao tenho sequer fita adesiva. Invejo esses dois grandes privilégios das pessoas adultas, a verdadeira tesoura, pontiaguda, e a verdadeira cola, que cola tudo, até 0 ferro, Sou fascinado como o iiltimo indio Ishi pelos atributos que definiam, para ele, o homem branco: 0 fésforo e a cola.’ Quanto a mim, tenho somente um pequeno pote de onde me vem 0 odor de xarope de cevada, uma espatula leve para espalhar a pasta que tem a cor, a consisténcia, o cheiro ¢0 gosto dessa sobremesa servida nos restaurantes chineses de Paris, sob a denominagao apécrifa de “delicia das has” Colar novamente no recupera jamais a autenticidade: descubro o defeito que conheco, nag consigo me impedir de vé-lo, 6a ele. Mas me acostumo ouco a pouco com o mais ou menos; subverto a regra, desfiguro o mundo: uma roupa feminina sobre um corpo ‘masculino, e vice-versa. Compondo monstros, acabo por accitar a fatalidade do fracasso e da imperfeigdo. Nada se tia. Eu parodio 0 jogo recortando novos elementos em papel comum que vou pintando sem levar em conta bom senso, Isso nao se parece mais com coisa alguma; nao me reconhe¢o, a mim, Mas eu amo essa “coisa alguma’. 10 Recorte e colagem so 0 modelo do jogo infantil, uma forma um pouco mais elaborada que a brincadeira com © carretel, em cuja alternancia de presenca e de auséncia Freud via a origem do signo; uma forma primitiva do jogo da porrinha— papel, tesoura, calhau —e mais poderosa se nada, no fundo, resiste A minha cola. Construo um mundo a minha imagem, um mundo onde me pertengo, e é um mundo de papel. Imagino que, quando bem velho — se eu ficar bem velho —, reencontrarei o puro prazer do recorte: voltarei a infancia. Todas as manhas, receberei ojornal, que recortarei linha por linha, em longas tiras de papel que colarei umas as ‘outras e enrolarei como uma fita de maquina de escrever. ‘Meu dia estard cheio: nao lerei mais, ndo escreverei mais, no saberei mais nem escrever nem ler, mas estarei ligado ainda ao papel, & tesoura e & cola, Recorte e colagem sio as experiéncias fundamentais com o papel, das quais a leitura e a escrita nao so sendo formas derivadas, transitérias, efémeras. Entre a infancia € a senilidade, que terei feito? Terei aprendido a ler ea escrever. Leio e escrevo. Nao paro de ler e escrever. E por qué? Nao seria pela tinica razao inconfessével de que, no ‘momento, nao posso me dedicar inteiramente ao jogo de papel que satisfaria 0 meu desejo? A leitura ea escrita sio substitutos desse jogo. Sinto saudade dos livros antigos, do tempo em que era preciso abri-los previamente com 0 corta-papel: “A dobra virgem do livro, além disso, pronta para um sacrificio que fez sangrar 0 corte vermelho dos ‘tomos antigos; a introducdo de uma arma, ou corta-papel, para estabelecer a tomada de posse.” Gosto do segundo tempo da escrita, quando recorto, junto recomponho, Antes ler, depois escrever: momentos de puro prazer n preservado, Sera que eu nao preferiria recortar as paginas € colé-tas num outro lugar, em desordem, misturando de qualquer jeito? Seré que o sentido do que leio, do que escrevo tem uma real importancia para mim? Ou ndo seria antes uma outra coisa que procuro e que me é as vezes, proporcionada por acaso, por estas atividades: a alegria da bricolagem, o prazer nostilgico do jogo de crianca? E por isso que se deve conservar a lembranca dessa pritica original do papel, anterior & linguagem, mas que 0 acesso & linguagem nao suprime de todo, para seguir seu traco sempre presente, na leitura, na escrita, no texto, cuja definicao menos restritiva (a que eu adoto) seria: 0 texto & a pratica do papel. Dois dentre os grandes escritores deste século comprovariam essa definicao: Joyce e Proust. primeiro apresentava a tesoura e a cola, scissors and paste, como objetos emblematicos da escrita:*o segundo, pregando aqui e ali seus pedagos de papel, comparava de bom grado seu trabalho ao do costureiro que constréi um vestido, mais do que ao do arquiteto ou do construtor de catedrais. E no texto, como pratica complexa do papel, a citagio realiza, de maneira privilegiada, uma sobrevivéncia ‘que satisfaz 4 minha paixao pelo gesto arcaico do recortar- colar. 2 ABLACAO Quando cito, extraio, mutilo, desenraizo, Ha um objeto primeiro, colocado diante de mim, um texto que li, que leio; € 0 curso de minha leitura se interrompe numa frase. Volto atrés: re-leio. A frase relida torna-se formula auténoma dentro do texto. A releitura a desliga do que lhe € anterior edo que lhe ¢ posterior. O fragmento escolhido converte-se ele mesmo em texto, nao mais fragmento de texto, membro de frase ou de discurso, mas trecho escolhido, membro amputado; ainda néo o enxerto, mas jé érgio recortado e posto em reserva. Porque minha leitura néo é monétona nem unificadora; ela faz explodir o texto, desmonta-o, dispersa-o. E por isso que, mesmo quando nao sublinho alguma frase nem a transcrevo na minha caderneta, minha leitura j4 procede de um ato de citagéo que desagrega 0 texto e 0 destaca do context, ‘Nao seria isso simplesmente reconhecer que, em um livro, ha algumas frases que leio e outras que nio leio, variando a proporgdo entre as duas, segundo os livros, segundo os dias? Mas as frases que leio, aquelas que me 13 prendem e que afixo no meu mostrudrio, com certeza eu ascito. Quintiliano valia-se disso para explicar as vantagens da leitura sobre a audigao: “A leitura é livre e nao é obrigada a acompanhar o orador. Pode-se voltar a cada instante sobre (0 proprios passos, seja para examinar uma passagem mais atentamente, seja para melhor memoriz4-la™ Voltar sobre (8 proprios passos, memorizar (repetere, para Quintiliano), &decompor o texto, alterar sua organiza¢ao. E Quintiliano, para aproximar esse gesto necessério da leitura a ser apreendida, recorre a uma outra metéfora, diferente da cirdrgica, mas ainda uma metéfora corporal ou organica, no mais a do texto como corpo a retalhar, masa do leitor como o agente da manducacao que antecede toda digestao, toda assimilacio: Assim como se mastiga por muito tempo os alimentos, para digeri-los mais facilmente, da mesma maneirao que lemos,longe de entrar totalmente cru em nosso espirito, rio deve ser transmitido & meméria e & imitagao senao depois de ter sido mastigado e triturado.* A leitura repousa em uma operagio inicial de depredacéo e de apropriacdo de um objeto que o prepara para a Iembranca e para a imitacao, ou seja, para a citagao. (Repeticéo, meméria, imitagao: uma constelagio semantica ‘em que conviria delimitar o lugar da citago.) Mas o teor dessa operagao preliminar nao pode set avaliado senso através de metaforas. Quintiliano nao se recusava a isso: ‘sua Instituigdo Oratéria & cheia de imagens que traduzem. ao vivo o gestual sutil do discurso. A aproximagio metaférica, de certo modo impressionista, marca (como “ uma fotografia aérea) os campos de uma investigacdo ulterior e menos superficial (a fotografia aérea servirs para estabelecer um mapa geogrifico, para promover pesquisas geoldgicas ou geotérmicas) }é um discurso imediatamente metalingtiistico desconheceria, sem esperanca de volta, os fatos de linguagem mais ténues que a retdrica antiga —uma arte, isto é, uma ciéncia e uma técnica, mas também uma prética — deveria explicar. Somente uma anidlise fenomenolégica do nosso préprio exercicio da linguagem descobre e retém esses fatos mais finos, apega-se a eles € deseja interpreté-tos. Algumas séries metaféricas atravessardo, portanto, essas paginas, séries dispares e as vezes divergentes: uma cirdrgica, outra financeira ou econdmica, porque a citacio de em circulagao um objeto, e esse objeto tem um valor. Uma outra metifora ainda, da costura, falard de corte, de ‘montagem, de alinhavo e de chuleio. E ainda todas estas: topogrifica, estratégica, militar, teolégica, anatémica, que nio tém outra ambicio senio a de fazer aflorar hipoteses, tracar um itinerario para uma série de questdes a se aprofundar ao longo do trabalho. E os desvios légico, lingiistico, hist6rico, psicolégico nao serao, também, ‘menos metaféricos que os outros. Ora, o que sio elas, essas metaforas heuristicas que, do ‘mesmo modo, nao levardo a lugar nenhum (pelo menos a paisagem tera sido descrita)? Evidentemente: citacoes. ‘Todas seriam justificaveis como tais por referencias aos Essais (Ensaios), de Montaigne. Da mesma forma, toda citagdo € ainda —em si mesma ou por acréscimo? — uma metéfora. Toda definicio da metéfora conviria também a citagao; a de Fontanier, por exemplo: “Apresentar uma {dia sob o signo de uma outra idéia mais surpreendente 15 ou mais conhecida, que, aliés, nao se liga & primeira por nenhum outro lago a ndo ser o de uma certa conformidade ou analogia”* 16

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