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DESENVOLVIMENTO SUSTENTAVEL OU SOCIEDADES SUSTENTAVEIS da critica dos modelos aos novos paradigmas Desenvolvimento sustentado & hoje um termo utilizado ad nauseam sobretudo nos discursos governa- mentais e nos preambulos de projetos de investimentos a seremfinanciados por instituigbes financeiras bi e multilaterais. Um némero crescente de seminarios 520 realizados no Brasil com 0 objetivo de esclarecer esse conceito e, {requentemente, de listar “experincias” e projetos que possam ser rotulados de sustentaveis. Além disso, as vésperas da Eco 92, alguns setores, sobretudo os governamentais e empresariais, insistem em demonstrar junto opiniéo pdblica internacional os esforgos aqui Antonio Carlos S.Diegues The concept of “sustainable develop- ment” calls tor an examination of the content of development itself, par- ticularly at a moment in history when ‘advanced western industrial society cannot maintain itself over the long term with standards ofproduction ang consumption based on the wasteful use of nonrenewable energy sources, ‘on the deterioration of the environ” ‘ment, on the social and politcal dis- ‘entranchisementof social groups, and ‘on the exploitation of the Third World's labor and natural resources, The assessment and criticism of de- velopment models, as well as the analysis and citicism of “sustainable development, ‘needs to take into ac- count a wide range of considerations bearing on the relationship between ‘man and nature and also on the rela tions betwen man and man. The fun: damental question is: How are we t0 build more just societies, both aco. logically and socially? se fosse uma palavra magica ou um fetiche. Uma anélise mais aprotundada revela uma falta de consenso, n&o somente quanto ao adjetivo "sustentavel’, comotambem quanto ao desgastado conceito de desenvolvimento’ A nosso ver & necessério hoje se discutir nao somente o agjetivo, mas também 0 proprio conteudo do desenvolvimento. Essa discusséo € valida, sobretudo num momento histérico em que parece se dissolver abipolatidade dos tipos de sociedade capitalista © socialista, Por outro lado, ha uma consciéncia crescente de que 0 modelo de sociedade in- dustrial avangada do Ocidente nko realizados para se atingir odesenvolvimento sustentavel. Esse termo transita pelos mais diversas circulos e grupos sociais, desde as organizagdes nao-governamentals até as de pesquisa, com notavel e estranho consenso, como 07 da EaalgS? Coa rene de Arose Usa no ran da USP 4s Pesguire = Co podera se manter a longo prazo com os padrées de Produgao e consumo baseados no esbanjamento de enorgia néo-renovavel, na degradagao ambiental, na marginalizagao social e politica de importantes grupos sociais (0s migrantes, por exemplo),na expoliagao da mao-de-obra @ dos recursos naturals dos paises do Terceiro Mundo e no crescente fosso entre 0 Norte eo Sul(1). Além disso, espalha-se pelo mundo a trustragao de que para a grande maioria dos paises do Terceiro Mundo a Jltima década tol perdida para o “desenvolvimento”, e de que talvez os préximos decénios também 0 sejam. Nesse contexto, ganna sentido a idéia de que nao existe um Unico paradigma de sociedade do bem-estar (@ocidental) a ser atingido por vias do “desenvolvimento © do progresso linear. Hé necessidade de se pensar em varios tipos de sociedades sustentaveis, ancoradas em modos particulares, hist6ricos culturais de relagoes comos varios ecossistemas existentes nabiostera edos seres humanos entre si. Esse novo paradigma a ser desenvolvido se baseia, antes de tudo, no reconhecimento da existéncla de uma grande diversidade ecoldgica, biolégica e cultural entre os povos que nem a homogeneizagao sociocultural imposta pelo mercado capitalista mundial, nem os processos de implantagéo do “socialismo real” conseguiram destruir. Talvez a implosao recente de grandes impérios eo ressurgimento das identidades étnico-culturais sejam os primelros sintomas da necessidade urgente de se procurar novos paradigmas de “sociedades sustentavels’ Desenvolvimento e progresso © conceito de “progresso” herdado do positivismo esta na base dos enfoques tradicionais de “desenvolvimento” existentes no mundo modeino. A idéia implicita ¢ de que as sociedades podem progredir indefinidamente para niveis cada vez mais elevados de riqueza material. Sunkel e Paz(2) rastreiam esse concelto até na obra de Adam Smith, no século XVIII, onde a riqueza material aparece como indicador do potencial produtivo das nagbes. A sociedade é concebida como unidades econdmicas que seguem processos mecanicistas, cujas leis se podem conhecer cientiticamente(3). A essa idéia se agrega a nogao de evolugao, como transformagao gradual e constante, pela qual o progresso de uma nagao ganha um caréter quase natural. © conceito de progresso, essencial para se entenderos modelos classicos de desenvolvimento, tem I WOIA EL, LES HECTOR. A. Ootorem gids 6 slaw nova orem nec! apne gad Sowsnogsia i Eeigine Paton lope Masco Une Savings dehy Siglo. 1970 ® iien, amblonie y Dearota en Latinoamericn. Aptos de Ecologia. Uugial CFE, 1908 (e) NISBET. Hit Ge Progreso aiceons esi 1980 fs canoso. & iy Bependencis om Aerie Latina Fane. G' Et dersrolla dal subdesasrolo, Monthly Review, 1867 So Paulo em Perspectiva, 6(1-2):22-28, janelro/junho 1992 como base a crengana raz&o, no conhecimento técnico- cientitico como instrumento essencial para se conhecer anatureza e coloca-laa servigo do homem, na convicgao de que acivilizagao ocidental é superior as demais, entre outras razdes pelo dominio sobre a natureza, na acaitagao do valor de crescimento econdmico e no avango tecnolégico (4). Segundo os modelos classicos, esse “crescimento econémico” tem como mola propulsora a “industria- lizagao". Nessa conceltuacao os palses industrializados sdo paises desenvolvidos, em oposigao aqueles que tm sua economia baseada na agricultura. O processo de desenvolvimento teria por objetivo colocarestes Ultimos no mesmo patamar dos primeiros. Mais do que simplesmente conseguir os mesmos nivels de produgao de bens © servicos, de bem-estar, os paises nao- desenvolvidos deveriam desenvolver uma ética, um conjunto de valores compativeis com 0 objetivo da acumulagao de capital, além de contarem com classes socials imbuldas da ideologia da industrializacao. Segundo Sunkel e Paz (5), 0s atuais onfoques sobro 0 desenvolvimento podem ser reduzidos a tres: + Desenvolvimento como crescimento. Nesse enfoqu o desenvolvimento se equipara a niveis de produgao e consumo material medidos por indicadores como produto nacional brut, renda per capita. Outras variaveis importantes, como a eqiidade social e a distribuigao dos frutos do crescimento econdmico nao sao contempladas por esse modelo. + Desenvolvimento como etapas. O desenvolvimento & constituide por uma série sucessiva de etapas histéricas que os paises nao-desenvolvidos devem atravessar, para passar de uma sociedade tradicional para uma moderna e, finalmente, para a de consumo de massa. O elemento desencadeador dessas etapas seria a industrializagao. + Desenvolvimento como processos de mudancas estruturais. Nessa perspectiva o desenvolvimento nao & considerado como um processo mecanico, mas implica mudangas sociais e pollticas estruturals. Esse ‘enfoque teve uma grande contribuigao de sociblogos @ economistas latino-americanos, que por sua vez criaram 0 modelo de andlise centro-periférica, O desenvolvimento e 0 subdesenvolvimento sao faces da mesma moeda, e criados pelos mesmos processes que aumentam os niveis de produgao e qualidade de vida nos paises centrais ¢ mantém os demais atrasados. Nessa linha fol também proposta a teoria da dependéncia(S) que aponta interesses opostos entre os paises do centro e da periferia. Os paises capitalistas periféricos teriam um tipo especitico de 23 capitalismo criado e recriado na relacao comos paises centrais, © que caracteriza a totalidade desses modelos 6 a crenga na industrializag&o como motor do desen- volvimento para se atingir os niveis de bem-estar alcangades pelos paises ricos. Até meados da década de 60 os custos ambientais em termos de uso intensivo de recursos naturais, da degradagao da natureza, eram considerados normais @ necessérios no processo de “desenvolvimento”. Anatureza, emtodos esses modelos, era considerada como um elemento imutavel, fonte inesgotavel de matéria-prima, e n&o como um sistema vivo com processos e fungoes préprias A crise dos modelos desenvolvimentistas e de crescimento econémico Ocrescimento econdmico recente de alguns paises se beneficiou de um periodo extremamente favordvel do apés-guerra que, g'0ss0 modo, perdurou até o final da década de 60. O consumo de massas, baseado num modelo de uso extensivo de energia barata, imperava nos Estados Unidos, Europa Ocidental © Japao cujas empresas multinacionals Ja se tinham espalhado por uma grande parte dos paises nao-desenvolvides. Em todos os casos estava subjacente uma estratégia de dominacao ideolégica, econémica e politica, baseadana eficiéncia da economia de mercado sobre as demais formas de organizagao social nao-capitalistas. Na verdade a ideologia do crescimento econémico © 0 produtivismo esta subjacente aos modelos dos paises industrializados, tanto das economias de mercado, quanto daquelas guiadas pelo planejamento centralizado ou pelo socialismo real. Os paises (até pouco tempo) socialistas, principalmente a Unido Sovistica, na ansia de atingir niveis de produgao e consumo dos paises capitalistas, mesmo antes da “perestréica” ja haviam comegade a importar tecnologia e know how do Ocidente, repetindo os mesmos impactos negativos sobre o meio ambiente. A salinizagao do Lago Aral, Chernobyl, etc. s&o somente as manifestacbes conhecidas e mais TY OELEAGE, J Eco-marsem erique of polis! economy. In Nature, Sociliom n 2.9.31, 1909 (©) ROSZAK, T "PersonPanet.A Paladin Book, Londres, Graneds, 1981 YIM. The vod and he gens lal perapectvas on ecology Monthly Review, 42{9), outro, 1800. (8) BCOKCIIN Towards an Ecologies! Sociey. Blak Rove Sock Monreal (WO) HURTUBIA. J. Ezalepiy desarallo perspective da pansamario essingee ln SUNKEL Ov GIGLO.N Estos de Deserllay Medio Ambiente om America Leline Maxie, Fondo de Cutuia Esovomes, 1860, (01) MEADOWS. Diet at The Limite to Growth Nova York, Universe Books 372 24 gritantes do modelo produtivista importado. Como afirma Deleage (7), 0 controle estatal dos meios de produto no oferece garantia contra o desperdicio de recursos gerado pela anarquia do modo de produgaé capitalista Na medida em que os paises socialistas se inseremcada vez mais no universo do mercado docapitalismo mundial, as contradig6es semelhantes aquelas do modo capitalista de producao tendem a aumentar. Surpreendentemente, as primeiras reagbes contra a Sociedade da abundéncia nao vieram necessariamente das sociedades nao-desenvolvidas, mas de camadas de classe média das sociedades industrializadas. importante nessa perspectiva foi a reacao dos movimentos “marginais" como odos hippies, das mulheres, da contra- cultura, das minorias raciais, de maio de 68, etc.(8) Indmeros intelectuais, de varias correntes teéricas, ‘comecaram a indicar os limites ecoldgicos e sociais das chamadas sociedades da afluéncia. Bookchin(9), em 1964, j@ analisava a degradagao ambiental como sendo intimamente ligada ao crescimento do capitalismo, endo a fatores naturals. A partir dessa época, em’ varios cfrculos académicos aumenta a preocupacdo com as relagdes homem-natureza nas sociedades chamadas “modernas’. Desenvolvem-se novas disciplinas, como a ecologia cultural @ a ecologia humana, além dos aportes importantes dos antropélogos marxistas ao tema(10), © maior golpe, no entanto, a nog&o de progresso linear © continuado, realizado & base de energia e matérias-primas baratas extorquidas dos paises do Terceiro Mundo, sobreveio com as crises sucessivas do petroleo a partir de 1973. A necessidade de racionar 0 petréleo, sobretudo 0 usado para o aquecimento das casas e para o transporte nos paises ricos, alertou essas populagdes para uma realidade nova: os recursos naturais renovaveis e principalmente os nao-renovavels sao bens finitos @ precisam ser usados de forma comedida. Essa situagao, no entanto, j4 havia sido anunciada na primeira edigao do livro classico do Clube de Roma, Limites a0 Crescimento (11). Esse importante relatério apresentava um panorama sombrio para a humanidade, pois, segundo ele, o crescimento da populagao, do consumo e do uso dos recursos naturais era exponencial ao passo que estes ltimos eram finitos ¢ limitados. Através de modelos e Projetos complexos, 0 Clube de Roma anunciava o ‘esgotamento proximo das principais reservas de mi- nérios, uma explosdo demogratica nas décadas se- guintes e também um aumento exponencial da poluigo e degradagao dos ecossistemas naturais, que implicaria a diminuigao da qualidade de vida principalmente entre 05 paises industrializados. A proposta final, no entanto, tinha um carater nitidamente neomalthusiano, em que a variével a ser controlada prioriteriamente era o crescimento demografico nos paises do Terceiro Mundo. Propunham também um madelo de crescimento global em equilibrio, no qual, na maioria dos casos, o cres- cimento econémico deveria ser reduzido a zero. 0 Clube de Roma também alertava contra o falso otimismo, baseado na crenga de que a tecnologia moderna poderia resolver tudo. O modelo intraduz variavels importantes, como o respeito & capacidade de carga da biosferae a necessidade de um sistema mundial sustentavel (12) Trés meses depois da publicagéo do relatério do Clube de Roma, realiza-se a Conferéncia das Nagbes Unidas sobre o Melo Ambiente e em Estocolmo, onde pela primeira vez se debatem temas centrais relativos ao crescimento econdmico, desenvolvimento e protegao ambiental. E verdade que 0s paises industrializados estavam mais interessados em controlar 0 aspecto negativo da industrializagao, a degradagao ambiental, Houve temores por parte dos palses subdesenvolvidos, entre os quais 0 Brasil, de que a proposta de controle dos efeitos do crescimento econdmico significasse uma arma contra o chamado “desenvolvimento” dos paises mais pobres. Ja na Conferéncia de Founex, em 1971, ficou estabelecido que os problemas ambientais dos paises pobres eram basicamente diferentes daqueles dos paises ricos. Para os primeiros, a raiz desses problemas estaria na pobreza, na falta de desenvolvimento, mas alertava-se também que um répido crescimento econémico néo significaria necessariamente que os problemas ambientais desapareceriam, Arevisao dos conceltos desenvolvimentistas alcangou seu ponto mais alto em meados da década de 70, com os trabalnos da Fundagao Bariloche e da Cepal. Propoem- se modelos alternativos de desenvolvimento e estilos de desenvolvimento diferentes, tanto dos paises industrializados como aqueles perseguidos pelos paises Tia MEADOWS, op ot (09) GUDWNAS, €ap ex (08) WOLFE, Desarato nigane,concapsions, citer, agentes, opciones Gar 112.1973, Eon. America Latina 9 Pinto, & 1 nreducsion La inlraccion rte ice os soy ot oa alia Sgt XX nestles de deraralloy mesic bite er la Amica Latina Fondo de Cultura Econamea. Lectura Wevico. 96/1) 1800 (07) SACHS. 17973) Peplacion tional Deve. Agen (18) VICN, PRUMA, WF ‘So Paulo em Perspectiva, 6(1-2):22-28, janelro/junho 1992 subdesenvolvides. Segundo Gudynas (13), a partir dessas reflexes varios autores (Wolfe(14); Pinto, (15) ‘Sunkel, (15) coincidem nos seguintes pontos sobre um estilo alternativo-de desenvolvimento: + deve-se renunciar & crenga de um crescimento ‘econémico exponencial ilimitado; + n&o se pode falar em desenvolvimento sustentado apoiado na exportagao maciga dos recursos naturais locals; + oritmo crescente da degradagao ambiental nao pode ser mantido; a qualidade de vida deve ser o objetivo fundamental de qualquer desenvolvimento; + 2 {6 indiscriminada no progresso através da ciéncia & tecnologia n&o pode ser mantida; + no 6 possivel se manteremos altos niveis de consumo dos pafses industrializados e das elites dos paises do Terceiro Mundo. Eeses estilos alternativos de desenvolvimento, que salientavam a importancia da conservagao do meio ambiente ganharam adjetivagées, particulares como ecodesenvalvimento, desenvolvimento sustentavel, desenvolvimento alternativo, etc. © “ecodesenvolvimento” foi, a0 que parece, introduzide por M. Strong no inicio da década de 70, como alternativa para a dicotomia “economia-ecologia” Ele fol apresentado como estratégia de desenvolvimento negadora de um crescimento econémico que implicasse na degradagao dos recursos naturais. Propondo uma nova ética de desenvolvimento, sublinhava anecessidade de se utilizar os recursos naturais de cada ecossistema de maneira parcimoniosa pelas populagdes locais. 0 objetivo desse proceso era melhorar a qualidade de vida dossas populagdes © a satistagao de suas necessidades basicas, por meio de tecnologias social ¢ ecologicamente adequadas, restritivas do uso de combustivel féssil, @ minimizadoras de impactos ambientais. Essa estratégia de desenvolvimento propunha também uma descentralizagao nas tomadas de decisées e a solidariedade com as geracoes futuras (17), A proposta do desenvolvimento sustentado ‘Ao contrario do ecodesenvalvimento, que sobreviveu em um periodo relativamente curto, 0 conceito de desenvolvimento sustentado, criado no mesmo periodo, ganhou notorledade possivelmente por ter sido adotado ‘em importantes documentos como a Estratégia Mundial para a Conservagao(18), 0 informe Nosso Futuro 25 Comum(19), da Comisséo Brundtland (ONU, 1987). Cuidar da Terra (UINC, WWF @ PNUMA, 1981) @ 0 Informe da Comissao de Desenvolvimento @ Meio Ambiente da América Latina e Caribe (1991) A delinigao mais conhecida 6 0 da Gomissao Brundtland (Nosso Futuro Comum, 1987) segundo a qual © desenvolvimento sustentado aquele que satistaz as Necessidades do presente sem comprometer a possibilidade das geragdes tuturas satistazeremas suas. No capitulo dois do referido relatorio afirma-se que o desenvolvimento sustentado se baseia em dois conceitos chaves: @ prioridade na satistagao das necessidades das camadas mais pobres da populacao, as limitagbes que o estado atual da tecnologia e da organizagao social impoe sobre o meio ambiente. Além disso, o introduz um elemento nove: parte do principio que os modelos atuais de desenvolvimento tanto dos paises do Norte quanto do Sul s&o inviavais, pois ambos seguem padrées de crescimento econdmico nao-sustentaveis a longo prazo. Além disso, ao menos ‘emteoria, introduz uma dimensao ética e politica, ausente em algumas propostas anteriores: o desenvolvimento 6 um processo de mudanga social, que implica transformagées das relages econdmicas e socials. Uma via de desenvolvimento que é sustentavel somente em termos “naturais" (manejo dos recursos naturais, etc.) poderia, teoricamente, ser conseguida em regimes autoritarios. Dai a necessidade de se prestar atengao em problemas cruciais como a democratizagao do acesso 08 recursos naturais pelos varios setores da populacko e@ na distribuigéo dos custos e beneficios do desenvolvimento. Além disso, o relatério Nosso Futuro Comum propée uma nova concepeao da economia no que se refere a custos e beneticios, levando em conta as, varidveis ambientais, © entatiza a importancia da participagao politica, recomendando um equillorio entre © uso dos recursos @ 0 crascimento demogrético, Entre as principais estratégias se incluem a necessidade de se relangar 0 crescimento nos paises pobres, a demudar a qualidade desse crescimento para se tomar em conta o decréscimo do estoque de recursos naturais de cada pais e ade aumentar @ resisténcia do desenvolvimento a crises. Um dos esteios do conceito de desenvolvimento sustentado é a sua base ecolégica. A conservagae dos ecossistemas e dos recursos naturais 6 condigao basica para o desenvolvimento sustentado. Em outro artigo(20) 19) WGED_ Out Common Future, Oxlord Univarsty Press, 1087 2) DEUES ast Devenir nusonac,geenaratogesansai 26 J foram desenvolvidos ‘extensivamente os aspectos ecolégicos do desenvolvimento sustentado. Segundo a Estratégia Mundial para a Conservagao (UICN, 1980), para que essa conservagao se realize s4o necessérias algumas condigdes basicas, além de outras de oarater social, cultural e politico. A primeira ’é a de que o desenvolvimento sustentado deve prever amanutengao dos processos ecoldgicos fundamentais dos quais depende a sobrevivencia humana, tais como a fotossintese, os ciclos hidroldgices ¢ a reciclagem dos nutrientes. A perturbago em alto grau desses processos colocaria em risco a vida humana. Isso, alids, j& vem ‘ocorrendo em maior ou menor grau em todas as areas do planeta, traduzindo-se em desertiticagae crescente, efeito estufa, mudangas climaticas, Inundagoes @ tragilidade crescente de algumas regies a cataclismas naturais. ‘A outra condigao € a preservacao das diversidades genéticas e biolégicas entendidas como 0 numero de espécies vegetals e animais que hoje compoem a vida. Essa diversidade esta sendo ameacada principalmente pela agao humana, na forma de poluigao e degradacao ambiental, de devastagao florestal, de homogeneizacao dabase genética. A diminuigao do nimero de espécies, principalmente cereals e plantas domésticas, pela selegao attiticial de espécies de maior rendimento, tem aumentado © tisco de ataques de pragas @ exigido o seu combate por biocidas, com 0s perigos amplamente conhecidos. Documentos recentes(21), t8m enfatizado a relagao entre a manutengao da diversidade biolégica e a diversidade cultural. Estudos 18m demonstrado que as populagbes tradicionaisde coletores, pescadores e etnias Incigenas sao grandes responsdveis pela manutengao da diversidade biolégica da qual dependem para sua sobrevivencia, Paradoxalmente, dentre os mecanismos propostos para a manutencao da diversidade bioldgica, ‘cestabelacimento de Areas protegidas (parques, reservas ecolégicas, etc.) tem sido um dos tatores de redugao dessa diversidade cultural. Isso 6 devido, em grande parte, & concepgao de parques e reservas ecoldgicas importada dos paises industrializados que criaramessas areas fundamentalmente por razbes de preservacao da beleza cénica, para fins de turismo, recreagao, etc. (exemplo sao 0s parques dos Estados Unidos), Segundo essa concepgao, 05 parques tém de ser espagos desabitados por populagdes humanas que, no processo de sua criagao, tém de ser transteridas das areas a serem preservadas. Nocaso dos paises emdesenvolvimento, no entanto, frequentemente esses ecossistemas naturais foram conservados, em grande parte por populagées tradicionais que possuem fortes vinculos culturais com esses ambienies. Esses habitanies, pelo seu sistema de produgéo material © ndo-material, dependem da preservagio dos ambientes em que vivem © desenvolveram sistemas engenhosos de manejo dos recursos naturals, Dafa necessidade de serem mantidas essas populagoes, incentivando 0 uso moderado dos recursos naturais, e apoiando-as em sua busca de melhoria da qualidade de vida (escolas, educaao, otc}. Por isso, a manutengao da Giversidade bioldgica, em muitos paises do Terceiro Mundo, passa pelo respeito a esses habitantes(22). Isso alias foi amplamente reconhecido pelo recente IV Congreso Mundial de Parques @ Aroas Protegidas (Caracas, 1992), mas ainda nao se transformou em agao pelas autoridades responsaveis pela criagto dessas areas no Brasil Oterceiro pressuposto ecolégico do desenvolvimento sustentado 6 a utlizagao sustentada das espécies e dos ecossistemas. Nesse sentido 6 importante, ainda que dificil, se detinir a capacidade de sustentacao ou carga dos vérios ecossistemas naturais utilizados pela sociedade, para que a reprodugéo dos processes © fungBes ecolégicas possa continuar acontecendo. Criticas 20 conceito de desenvolvimento sustentado Um dos aspectos positives da argumentagao que etd por tras do conceito de desenvolvimento sustentado 6 a tentativa de resolver as contradicbes entre 0 crescimento econémico, a distribuigao de renda © a necessidade de conservar os recursos ambientais, nao somente em beneficio das geragses atuais, mas também das tuturas. Com isso, fica evidente a necessidade de se reformularem muitas das propostas teéricas das correntes da economia atual cujo horizonte de reflexéo e instrumental para a tomada de decis6es quanto a investimentos (taxa de desconto, por exemplo) extremamente curto e imediatista Um outro aspecto fundamental. expresso nos documentos antes citados sobre desenvolvimento sustentavel, 6 a necessicade de uma outra ética, diterente daquela subjacente ao crescimento econdmico atval. Esta ética se basela na concepcao de que a natureza deve ser subjugada a qualquer prego, a servigo do homem. Esse jugo ou domingo se expande também sobre as relagbes sociais. Esta nova ética se basela, de um lado, na nogao de convivialidade(23) ¢ no respeito pela natureza como sendo composta de seres vives. {2 WONEELY. J ot ali 1990. Conserving the Wor! WEN. Gland (22) LUCK Lingreravenie Pai, Eatone du Seu 1971 Boonies! Dively, ‘Sao Paulo em Perspectiva, 6(1-2):22-29, janeiroijunho 1992 A nova ética exige 0 abandono da perspectiva antropocéntrica para uma perspectiva mais global, biocéntrica. Movimentos como 0 da Ecologia Protunda (‘Deep Ecology’) @ autores como Sylvan (1985) e Russel (1982) propdem novos paradigmas sociais que se controntam com os atuais. O quadro seguinte mostra as diferengas entre dois paradigmas. Paradigma Social Paradigma da Ecologia Dominante Profunda Dominio sobre a natureza Melo ambiente como Harmonia com a natureza Natureza constitulda por recurso sseres vives com direitos & ‘existéncia independents de seu valor de uso Objetivos ‘Objetivos nao-materiais/ materiais/crescimento sutentabilidade ecolégica ‘econdmico Recursos naturals iimitados Recursos finitos Solugdes baseadas exclusivamente na tecnologia avancada Consumismo Solugdes adaptadas a cada situagao e ecossistema, Necessidade basica/reciclagem Centralizag&o/grande escala Descentralizago/pequena escala Autoritarismofestruturas repressivas Estruturas democraticas! patticipagio social Varias eriticas tem surgido sobre a concepgao do desenvolvimento sustentado e sua aplicabilidade. Alguns autores, entre os quais Redolift (1987), criticam a proposta da Comissao Brundtland por nao ter dado €ntase as condigdes internacionais que o desen- volvimento sustentado deve enfrentar. Segundo esse autor, a proposta ignora as relagdes de forgas internacionais, 0s interesses dos paises industrializados em dificultar 0 acesso dos paises do Terceiro Mundo & tecnologia, as relagdes desiguais de comércio, destavoraveis a estes uitimos © a oposicao das muitinacionais a propostas tecnolégicas contrarias @ suas estratégias globais (p.17). Além disso, 0 Relatério Brundtland nao leva em conta as contradigdes internas dos paises em desenvolvimento, que os impedem de atingir 0 desenvolvimento sustentado, 27 © segundo aspecto criticado por Redolift (24) € a crenga, muitas vezes velada, do Relatério Brundland nas forgas do mercado para solucionar os problemas ambientais. Nesse sentido 0 Relatorio adota uma posigao préxima & economia neoclassica, para a qual os problemas ambientais sao meras externalidades nos projetos de desenvolvimento. Muitas agdes propostes visam somente reduzir os efeitos negativos das intervengdes provocadas por projetos de “desenvolvimento”. © autor detende a necessidade do planejamento como instrumento para resolver as contradigbes entre 0 “crescimento econdmico" e a Conservagao do meio ambiente. A questo, no entanto, n&0 ésomente técnica, mas sobretudo politica, e diz respeito as visdes ¢ interesses dos varios grupos sociais, com Interesses divergentes a respelto Go acesso @ uso dos recursos ambientais. Essasdimensées politicas nao.séo claramente explicitadas no Relatério Brundtland, Aterceira critica & mais globale radicale diz respeito a propria concepgao de desenvolvimento como estratégiae instrumento para se chegar a uma methoria da qualidade {de vida da populagao. Os conceitos de desenvolvimentoe mesmo 0 chamado “sustentado” se baselam na necessidade de se atingir o grau de “desenvolvimento” atingido pelas sociedades industrializadas. Esté cada vez mais claro que 0 estilo de desenvolvimento dessas sociedades, baseado num consumo exorbitante de energla, artificialmente barata e intensiva em recursos naturais, sobretudo aqueles vindos dos paises do Terceiro Mundo, é igualmente insustentavel a médio © longo prazos. Além disso, patente que a distancia entre esses dois grupos de palses esta se alargando cada vez mais, apesar das fracassadas- “décadas de desenvolvimento” oficialmente estabelecidas pela ONU. Dai a necessidade de se pensar o problema global sob aperspectivade “sociedade ou sociedades sustentaveis” endo de desenvolvimento sustentavel. Isso significa que 4 imperioso que cada sociedade se estruture em termos de sustentabilidades proprias, segundo suas tradigbes culturais, seus parametros préprios e sua composigao étnica especitica. Isso nao invalida as conquistas universais hoje consolidadas nos principios da Declaragao dos Direitos Humanos @ outras declaragées e acordos mais universais. {Gay REDCLFT, W Development and the Environmental Cisia, Red or green Se Development, Expiovng the Centrecictone (25) CHAMBERS, F._ Sustainable lveshoods, Institutet Socal Studies, Univot ‘Sussess 185 (mimes) (28) ROBINSON, Jat sla Daining a sustains Values, princes and ectives on seclay, technology end Desenvolvimento versus sociedade sustentavi © conceito de ‘sociedades susientaveis” parece ser mais adequado que 0 de “desenvolvimento sustentavel na medida em que possibilita a cada uma delas definir seus padrbes de produgao e consumo, bem como 0 de bem-estara partir de sua cultura, de seu desenvolvimento historico e de seu ambiente natural. Além disso, deixa- se de lado 0 padrao das sociedades industrializadas, enfatizando-se @ possibilidade da existéncia de uma diversidade de sociedades sustentavels, desde que pautadas pelos principios basicos da sustentabilidade ecolégica, econémica, social ¢ politica, anteriormente descritos. Essa nogao de sociedades sustentaveis se baseiana nogao expressa por Chambers (25) na qual as pessoas, sobretudo as mais pobres, devem ser sujeitos e nao objetos do “desenvolvimento”. O meio ambiente ¢ 0 desenvolvimento, para esse autor, S40 meios € nao fins em si mesmos. Nesse sentido ele se refere & susten- tabilidade dos modos de vida, (sustainable livelihoods) onde @ qualidade de vida passa a ser uma prioridade. J. Robinson (26) desenvolve mais especiticamente o conceito de “sociedades sustentéveis". Também para ele, 0 termo socledade sustentavel 6 mais apropriado que 0 de “desenvolvimento sustentdvel", pois € um conceito mais amplo que este aitimo, Esse autor define sustentabilidade como a persistancia, por um longo perfodo (indefinite future) de certas caracteristicas necessérias © desejéveis de um sistema socio-polltico ¢ seu ambiente natural. A sustentabilidade & considerada por ele como um principio ético, normativo e, portanto no existe uma Unica definigo de sistema sustentAvel. Para existir uma sociedade sustentével 6 necesséria a sustentabilidade ambiental, social ¢ politica, sendo um processo e nao um estagio final. Ao mesmo tempo, n8o 86 propde um determinado sistema sociopolitico que dure para sempre, mas que deva ter capacidade para se transtormar. 8 principios ecolégicos, como a conservagao dos processos vitals dos ecossistemas, a diversidade biolégica e 0 manejo cuidadoso dos recursos naturais, continuam sendo basicos para a reprodugao das sociedades sustentaveis. Na esfera ambiental, 0 autor afirma que a natureza tem o direito a existéncia, independente de seu valor para o homem. Ele atirma o valor intrinseco do mundo naturale suas formas de vida, incluindo @ humana. Os principios sociopoliticos sao aqueles jé mencionados, principalmente oda distribuigao equitativa da riqueza gerada, a participagao da populagao nas decis6es, as liberdades democraticas & a satistagao das necessidades basicas. Um enfoque semethante foi utilizado pelos autores que atualizarama Estrategia Mundial para.a Conservacao. (Munro et alii, 1991) sob o titulo Cuidar da Terra: estratégia para o futuro da vida. Também nesse documento se prega a necessidade de uma nova ética mundial, que tem como base uma relagao mais harmoniosa dos homens com a natureza e ‘entre si mesmos. Conclusdo nao-conclusiva © intuito deste trabalho foi discutir 0 conceito de “desenvolvimento sustentavel” ampliando o debate sobre seu conteddo. A contribuigéo mais positiva do debate agora realizado emtorno do conceito de desenvolvimento sustentavel 6 0 conjunto de preocupacoes sobre as relagdes entre 0 homem e a natureza, e também dos homens entre si. H4 fortes indicios, no entanto, que ele possa se converter em mais um dos modismos gradualmente incorporados pelas elites, sobretudo as do Terceiro Mundo, que nele véem uma ocasiao de buscar financiamentos para a “conservagao ambiental” entendida em sua dimensao mais restrita, isto 6, a luta contra a poluigao gerada pelo sistema sécio-econémico que elas mesmos produziram e administraram, Um dos fatores preocupantes ¢ o aparente consenso que existe a respeito do termo, ainda que o conteddo seja diferente segundo o grupo social que o utiliza. Para certos setores do movimento ambientalista significa uma Protegao do “verde" independents da realidade social envolvida. Para os empresarios trata-se, no tundo, do desenvolvimento que possa garantir a “sustentabilidade da taxa de lucro”, baseada sobretudo na criagao e venda de equipamentos contra a poluigao. Para certos governos, © termo muitas vezes constitui 0 preambulo de documentos oficiais para solicitagao de empréstimos internacionais a organismos financeiros que foram obrigados a introduzir em seus critérios de aprovacao de projetos as variéveis ambientais. No Ambito internacional esse conceito 6 frequentemente utilizado como um adjetive a mais, carente de uma refiexao mais ampla sobre as causas sociais e econdmicas da degradagao ambiental e da marginalizagao cada vez mais crescente de amplos setores das populagbes. Emcasos extremos, trata-seda maquiagem de velhos discursos com uma coloragéo “verde”. O receio € que o conceit de desenvolvimento sustentado siga a trajetéria de outros similares, hoje abandonados, como o “desenvolvimento Integrado” ‘Sto Paulo em Perspectiva, 6(1-2):22-29, janeiroyjunho 1992 “ecodesenvolvimento, “desenvolvimento de baixo para cima’, etc., que estiveram em moda por um certo tempo, alimentando grandes burecracias tanto nacionais quanto internacionais, A questao de tundo, no entanto, permanece valida ¢ atual, Isto @, como construir sociedades ecologica ¢ socialmente mais justas? Nesse sentido, a conceituagso de "sociedades sustentavels" ainda esta num “canteiro de obras’, exigindo a élaboragao de novos paradigmas, de que este artigo apenas indicou algumas linhas. A conceituacao de sociedades sustentaveis, baseada na necessidade de se manter a diversidade ecolégica, so- cial e cultural dos povos, das culturas e modos de vida nos parece ndo somente mais substantiva, mas portadora dos grandes desafios. Ela relanga, de alguma forma, a necessidade de se criarem novas utopias para o século XXI. Ela acena para a necessidade de se pensar na diversidade de sociedades sustentaveis, com opgoes econémicas e tecnolégicas diferenciadas, voltadas principalmente para o “desenvolvimento harmonioso das pessoas” e de suas relagdes com o conjunto do mundo natural. . ECR e ty! Servigo de Atendimento ao Leitor FUNDAGAO SEADE Av. Casper Libero, 464 - 3° andar CEP 01033 Sao Paulo SP Tel. (011) 227-9788 29

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