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20. ARGAN, Giulio Carlo. Histério de arte como histéria do cidade... Op. cit. P 243, 21. Idem. P10. 22. Cf. ZUKIN, Sharon. “Poisagens urbanas pés-modernos: mapeondo cultura € poder”. In: ARANTES, Anténio Augusto. O espaco da diferenga. Sé0 Paulo: Ed. Papirus, 2000. 23. Cf. FEATHERSTONE, M. Cultura de consumo e pés-medernismo. S30 Pavlos Nobel, Sao Paulo, 1995. 24. Cl. HOLANDA, Heloiso B. de. “Cidode ou cidode: Nocional (N. 23, 1994). Rio de Janeiro, 1994 25. Ck. FOUCAULT, Michel. Arqueologia do saber. Peteépolis: Vozes, 1972. Revista do Patriménio Hist6rico e Aristico 26. Erwin Gollan, opud FEATHERSTONE, M, Cultura de consumo e pés-modemismo... Op. ct 27. Ck. MOTTA, Lia. “A apropriagio do patriménio urbono: do estético nacicnal co consume visual alobol.” In: ARANTES, Antonio Augusto. Op. cit 28. Cf. CANCLINI, Nestor Garcia, Cuturos hi Sao Poulo: USP 1983. ridas: Estratégias pora entor e sair do modernidade, 29. Cl. BENJAMIN, WW, “Origem do drama barraco aleméo.” In: BENJAMIN, W. Obros escolhids 580 Paulo. Brasiliense, 1984 30. Ch. MAUS, Marcel. Ensaio sobre o dédivo. Lisboo: Edigdes 70: Séo Paulo: Livrario Martins Fontes, 2001 31. CENORA, Pierre. “Entre mémoire ot histoire: lo problemotique des lieux." In NORA, Pierre (org). Les lieux de la mémoire (Tomme |: Le nation). Paris: Gollimord, 1984. 32. CANCLINI, Nestor Garcio. Culturas hibridos.... Op, cil. P $2, 33. BENCHETRITT, Sorah F. “A histério representeda: porque relletic sobre o dilema dos museus.” In BITTENCOURT, J. N,, BENCHETRITT, Soroh F, TOSTES, V.L. B. Histéria representado: © dilema dos museus. Rio de Jeneiro: Livros do Museu Histérico Nacional. Rio de Janeiro, 2003. P 22. 34. Cl. FABIAN, J. Time ond the other: How oniehropology make ils object. New York: Columbia University Press, 2002. 35. BENJAMIN, W. "O colecionader." In: BENJAMIN, Wolter. Obras ... Op. ci. 36. Cl, MAFFESOLI, M. A conquista do presente. Ric de Janeiro, Rocco, 1984. 37. HUYSSEN, Andreos. Twilight memories: Making time in an ature of amnesia. New York: London Routledge, 1990. 121 122 38, Cl, FOUCAULT, Michel. Arqueologio... Op. cit 39. Cl. DELEUZE, G., GUATTARI, F Mil Platés. (Vol. 1). Rio de Joneiro: Ed. 24, 1996, 40. CHAGAS, Mério de S. Hé uma goto de sangue em cada museu: A dtica museolégico em Mério, de Andrade, Lisboo: ULTH,, 199. 4}. Wolter Benjamin, apud. CHAGAS, Mério de S, “Compo em metomortose ou Ainde bem que os ruseus s80 incompletos.” In: BITTENCOURT, J. N. ef al. Historia representado... Op. cit. P 246. 5°Parte Cidades monumentos O patriménio das cidades Lia Motta 123 | i Lia Motta é arquiteto. Mestre em Meméria Social e Documento pela Universidade do Rio de Janeiro (Uni-Rio), é técnico do Instituto do Patriménio Histérico e Artistico Nacional (IPHAN), lotads no Departamento de Patriménio Imaterial e Documen- taco, sendo encarregada pelo inventério de sitios urbanos tombados. Artigo baseado na comunicagéo proferida na meso redonda Cidades monuments, reclizade no, dia 15 de outubro de 2003, 124 A atribuigéo de valor de patriménio aos bens culturais é a bose para suo preserva- G0, seja para abrigé-los nos museus, seia pora sua conservagio nos contextos em que foram construic Jos. Trato-se de umo escolha feita pelo poder publico, dicnte de ume de- monde social e do universo da producto cultural. O patriménio nao é preexistente como. tal. Sua escolha, ossim como as opg6es pore o sev tratamento, ndo so atos desinteresso- dos; dependem do ponto de vista do selecéo, do significado que se deseja airibuir cos produtos culturais e do uso que se quer fazer deles. A complexidade urbane acresce @ tarefa de sua valorizacéio como patriménio outros fotores, tornando-a um desofio também complexo. As cidades sao de forma especial objetos culturcis social e historicomente construidos, em permanente proceso de apropri- agéo social e adaptagéo a novos usos. Acumulam vestigios e irazem as morcas desse @ sucederam. Dessa maneira, transfor- proceso © representacdes das relagées que mam-se em lugares, ou seja, espagos nos quais podem ser reconhecidos elementos da hist6ria e identidade de quem os produziu. Por outro lado, séo lugares de confluéncia de inémeros interesses financeiros referentes, especialmente, & posse do solo. Antagonizam-se, assim, no mesmo espaco, o interesse coletivo e 0 privedo, dionte do qual o valor coletivo dos bens, referenciador do passodo, deve sobrepor-se aos interes- ses particulares. Também, diante do conceito de sustentabilidade econémica, antagonizam- se no mesmo espaco os interesses econdmicos, legitimos, e os finonceiros, imediatistas. No primeiro caso, a sustentobilidade do patriménio cultural esté em acordo com o concei- to de desenvolvimento susteniével originado no érea de meio ambiente, que objetivo su- prir “as necessidades do presente sem comprometer a possibilidade de geracées futuras atenderem as suas préprias necessidades"'. O mercado de consumo fica, assim, entendi- do como fonte da economia de uma sociedade, prética histérica geradora do processo cultural e de qualidade de vide. No segundo caso, esto os interesses de quem quer extroir proveitos financeiros imediatos do patriménio urbano, por intervengées que o expdem, a qualquer custo, no vitrina do consumo. Essa intervencdes, geralmente, se concretizom por meio de projetos que maquiam os cidades, ressaltando seus ospectos estéticos e estilisticos, sem considerar os métodos e procedimentos pertinentes 6 atribuigéo de valor de patriménic. 125 E so esses métodos e procedimentos que interessam ser evidenciados, especial- mente, no contexto do semindrio “Museus & Cidades’, em mesa-redonda intitulada “Cidades Monumentos”, umo vez que @ prétice interdisciplinar é fonte fundamental pora sua formulacéo e implantacéo. $é0, essencialmente, meconismos de consirucéo de conhecimento sobre os objetos culturcis com base em sua identificagéo, documenta- 80, contextvalizacéo e divulgagéo, visondo 6 preservacéo. Tarefas de rotina dos mu- seus, nem sempre desenvolvidas plenamente pelos érgéos de preservacéo, de tradigo orrcigade na prética do valorizagéo do patriménio urbane baseada meromente na concepgGo do volor estético-esiilstico, usando historiogratio erudite do arquitetura e sob 0 dominio dos arquitetos. Diante de avangos nes préticas de preservacéio empreendidas pelas insfituicbes de patriménio na décade de 80, interesse reatirmor aqui um ponto de vista sobre 0 selecdo ¢ trotamento do patriménio e apontor olgumas dificuldades pora sua implontacéo. Isso, especialmente em funcéo do abrangéncio do conceito cidade-documento, que valoriza 0 patriménio dos cidades em fungéo da linguegem da forme urbana. Por meio desse con- ceito, busca-se identificar na configuracéo dos cidades expressdo e significados represen- tativos do proceso de sua formacio e desenvolvimento, pora ampliar as possibilidedes de preservacéo, somande as quelidedes esiélico-selilsticas outros valores confides no mortologia das cidades. Esse cominho envolve, necessariomente, categorias profissionais diversificodas para sua identificagdo e pore promover a participagéo sacial no processo de atribvigéo de valor do potviménio és cidodes Patriménio das cidades e memoria social A tradigéo arraigado nos 6rgdos de preservagéo se mantém presente e morconle cinda hoje, o despeito de ampliagéo da nocéo de patriménio nos anos 70, com bose numa viséo antropolégica de cultura e de notéveis avangos nas préticas de preservacéo empreendidas pelo instituigdes de preservagéo na década de 80. Mais que uma trodicgao, que se reproduz dentro dessas inslitvig6es, que norteia e fortalece as acées de protegéo urbana baseades no juizo de valor estético-estilistico é um quadro social do memério, 126 construido pela a¢éo inicial de preservagéo no Brasil, incorporoda & meméria social. O acervo selecionado como patriménio nacional com base no valor esiético-estilistico du- rante todo o periodo inicial de trabalho do IPHAN, de 1937 até a década de 70, resultou Go somente na construgdo € vinculagéo do “patriménio histérico e ortistico nacional’, mas também fez com que esse patriménio fosse incorporado 4 meméria social, circunscre- vendo as acées dos periodos subseqientes, mesmo quando baseadas em propostos dife- renies. Virou senso comum a idéia de que 0 patriménio das cidades relaciona-se apenas com 0 valor artistico, segundo padrées dos arquitetos, Esses protissioncis foram legitima- dos como especialistos no selegdo do patriménio, considerando o qualidade da arquitetu- a € a uniformidode estilistica dos iméveis que compdem os sitios histéricos. No entendimento de Maurice Halbwochs, @ meméria de cade homem & sempre coletiva e socialmente construida. © homem nunca esté s6 e, de alguma maneira, partici- po da vida de um ov mais grupos sociais. Os pensamentos so sempre permeados por lembrongos e imagens exteriores, muitos dos quois nunca foram vistas ou vividas, mas repassodes por familiares e pessoas do conwivio coletivo. Desde a inféncia, o homem é alimentado com informacées que o ontecederam, utilizedes para entender o mundo integror-se socialmente, Séo fontes de identificagéo que situam © homem no grupo € na sociedade, A meméria é, portanto, uma faculdade humana alimentado socialmente, mui- tas vezes de informacées que antecederam 0 nascimento das pessoas Holbwachs estabelece uma divisdo enire 0 meméria coletivo e o meméria social. A meméria coletiva & mais restrita aos grupos, alimentando-se dos referéncias relatives o estes, como as lembrancas de fomilia, das comunidades religiosos, dos associagoes corporativas. Ela mantém vivos as tradicées, os comportomentos, os crencas etc. A memé- rio social, também chamoda de meméria histérico, olimentoda por construgées intenci- ‘onais, com 0 objetivo de estabelecer ume lembranca comum enire grupos sociais que ndo necessariomente interojam de forma direto, estabelecendo, assim, um elo ene eles. Holbwochs refere-se ao uso desta meméria pare a construgée do nacéo, apoiando-se, geralmente, nos acontecimentos mais importantes que modificoram a vida dessa nagéo, pora identificar cidadéos que, mesmo distontes, devem sentir-se membros dela, A memé. 127 rio social 6, portanto, mois abrangente que o meméria coletiva. E como um pensamento outénomo, que transcende aos grupos. Segundo interpretocéo de Gerard Namer (1987), a meméria social para Halbwachs $a meméria coletiva que, com o tempo, privada do contexto do grupo, transformo-se em uma meméria da sociedade em geral, Refere-se, assim, dquela meméria que per- passa vérios grupos, periodos e espacos, reproduzindo-se fora dos contextos mais res- tritos nos quais € possivel contar com a transmisséo oral, costumes e tradigées. Ela exige outras formas de perpetuagéo, tais como as institvigées. Ainda segundo Halbwachs, @ meméria social apéia-se nos quadros sociais do meméria. Estes so quadros de refe- réncia que servem como provoce¢éo, para trazer & lembranca temas ov assuntos refe- rentes a uma coletividade’. ‘A.agéo do IPHAN, predominantemente protegendo e veiculando « arquiletura colo: nicl € com seus resultados uniformes abrangendo grande parte do territério nacional, construiu um quadro social da meméria. Essa arquitetura era consideroda, segundo os intelectuais modemistas que se ossociaram ao projeto de construgéo da nagéo iniciado pelo Estado Novo, na década de 1930, simbolo do “abrasileiramento” da cultura trazido pelo meirpole. Representovo a forca de um Brasil mestico, fonte de compreenséo dos brasileiros 0 panir da dinémica que se estabeleceu no proceso de consirugéo da nagéo. Segundo Lucio Coste - um dos mais ilustres modemistas que integrou os quadros do IPHAN, “o arquiteture popular brasileira (colonial) é 0 resultado do “amolecimento” e da “simplificagdo das construgées que eram feitas na Metrépole”®. Representava o primeira expresso “autenticamente” brasileira, seu traco primitive, marca da civilizagéo nacional. Diferenciavo-se, portonto, segundo os modernistas, de outros expressées do passado, com a arquiteture “europeizado” do século XIX que no se “aclimatou", A arte e arquite- tura colonial representariam o povo brasileiro caracterizariam a nagéo “civilizada”, por- tadora de cultura prépria. Especialmente a erquitetura, ao mesmo tempo, identificarie 0 Brosil como nagGo e seria fonte de inspiragdo para as construgées modernas, de padréo intemecional, trazendo @ marca nacional 128 Esta concepcéo, além de valorizar os sitios urbanos de caracteristicas coloniais, continentes do arquitetura popular brasileiro, selecionou pare protegéo por parte do poder piblico os igrejas, capelas, conventos, passos, oratérios piblicos, casas nobres, solares, sobrados, prédios, chécaras, engenhos, palacios, palacetes, pacos municipais, casos de cémara e cadeia, chaforizes, aquedutos, ponies, fortalezas e fortes, nas gran- des cidades e éreas rurais, quase todos do periodo colonial. Foram excecéo ds carac- teristicas esiilisicas do periodo apenas iméveis excepcionais, tais como poldcios ov lugares que abrigaram acontecimentos histéricos relevantes para a historia da nacao, segundo o entendimento dos modernistas vinculados ao governo, na empreitade de construgéo da nagéo. Ouro Preto, principal simbolo do “abrasileiramento" das construcées trazidas de Portugal, como outros sitios urbonos tombados nos primeiros nos de ctuagéo do IPHAN, tinha coractersticas orquiteténicas uniformes e estava longe dos pressées de modemizacéo, conse- lentes do industrializacdo ov do cres- cimento dos grandes cidades. Foto: Lia Motte, 1998. Nos grandes cidades edificacées do pe- rfodo colonial ov excepcionais foram pro- tegidos para conviverem lado a lado com ‘nova produgao do Brasil moderno. A Igroja de Santa Luzia com os prédios mi risteriais construidos pelo governo do Es tado Novo ao fundo é uma imagem sig nificativa desse projeto de construgéo da identidade nacional, que orientou as agées de preservacao no Brasil Foto: Lio Motto, 1998. 129 Silvana Rubino, em seu artigo “O Mapa do Brasil passado”, na Revista do Patriménio Histérico e Artistico Nacional, n.24 — que analisa a atuagéo do IPHAN de 1937 0 67 -, mostro que, dos 689 tombamentos feitos no periodo, 645 sdo bens arquiteténicos e ape- nas 44 correspondem o outras categorias, ou seja, 93,62% e 6,38%, respectivamente, Esses bens situam-se, principalmente, em Minos Gerais, com 165 tombamentos, seguido do Rio de Janeiro, com 140, pele Bahia, com 131, por Pernambuco, com 56 e Sao Paulo, com 41, ficando os demais 18 estados onde forom realizados tombamentos com quanti- dades inferiores o 17 tombamentos cada, somando 108 bens. No entento, observa-se que foram realizados tombamentos em quase todos os estados brasileiros. Rubino registra ainda que, entre os 689 tombamentos, 523 sto comprovadamente de bens do século XVIII ou enteriores a esse periodo. Ou sejo, 75,90% séio de arquitetura ou sitios urbanos do periodo colonial. (O mesmo critério orientava intervengSes nos sitios urbanos tombados, enfatizando suas qualidades estilisticas, muitos vezes em detrimento de vestigios histricos. O tragado. diferenciado com ruas, becos e antigos caminhos de acesso aos sitios em alguns casos forom uniformizados, devido & aprovagdo de novos iméveis imitando os coloniais, para o preenchimento dos dreas vagas, 0 que seguiu 0 critério de manutencao da uniformidade estilistica, desvalorizando, dessa forma, o tragado urbane da cidade como patriménio. ‘Além disso, ndo eram observados outros aspectos urbanos, como o parcelamento dos lotes e a densidede ocupocionel. Da arquitetura, havia um empenho em promover a retirada de elementos do século XIX, especialmente frontées ¢ @ ornamentagao eclética, para que se nevtralizassem no cendrio colonial, sempre visando a manutengéo da unifor- midade estilistica do sitio. Com esto prética, o IPHAN veiculou uma imagem homogénea de patriménio cultu- ral para 0 nagéo brosileira ao longo de 30 onos, abrangendo grande parte do territério nacional. Construiy uma representacdio para a identidade nacional por meio da preserva- Go dos bens culturais selecionades como potriménio, tendo como resultado o que Mércia Chuva chamou, em sua tese de doutorado, de "materializagéo no espaco de uma histéria nacional"®. Associado o outros veiculos de comunicagéo, fais como as publicacées do 130 IPHAN, noticias em jornois e revistas e, ainda, auxiliado por uma rede de simpatizontes do IPHAN, formade por intelectuais de diversos estados onde nao havi representagéo institucionol, © critério modernista de patriménio, ao explorar a linguagem esiilistico e 0 que hovia de excepcional nas cidades, foi afirmado e reconhecido. Com 0 tempo, mesmo depois dos referidos avancos nos anos 70 e 80, ficorom esquecidos o origem e os motivos da escolha dos iméveis e sitios coloniais e excepcionais como potriménio na fase iniciol do PHAN, quando se buscava construir uma identidade, dentro do projeto nacionalista do governo Vargas. A fungdo simbélica desse patriménio deu lugor 00 encantomento, com suas coracteristicas arquitet6nices. Ignoro-se 0 foto de esse ser um determinado recorte feito sobre a producéo cultural brasileira, em acordo com um projeto e momento histérico especificos. Tende-se, assim, & manutencao de critérios semelhantes de selegdo do patriménio cultural, observando-se aspects estético- estilisticos e a excepcionalidade, em contextos histéricos diferentes e diante de novos \cluidos novos estilos, mas enfatizando-se o critério projetos de identidade cultural. Sé arquitetnico de selegéo, o que dificulta que sejam agregados ds praticas de preservago procedimentos para a incorporagao de outros valores de carditer histérico, cultural, afetivo © cognitive dos objetos. A imagem do potriménio que deveria identificor o Brasil como nag6o foi apropriada como idéia de potriménic lato sensu. Construiv um quadro social da meméria que alimen- ta. a meméria social, contribuindo para @ reprodugdo dos métodos e procedimentos de trabolho empreendidos pelos instituicdes de preservacéo. Do mesmo modo, condiciona as demandas pora preservagdo dos ogentes de fore delas. Uma meméria social que traz & lembranga, como valor de patriménio, os iméveis que tém estilo ou excepcionalidade. Apermanéncia dos critérios tradicionais © levantamento de dados sobre as océes de preservagio, no periodo que vai de 1979-0 1990, mostra que, tonto no IPHAN quanto nas novas institigoes de preservacéo, estoduais e municipois, predominaram os agdes que buscovam selecionar bens culturais ‘ov tratar o patriménio observando principalmente as caracteristicas estético-eslilisticas & 131 de excepcionalidades 6 consogradas. Isso, depois de periodo de significativos transfor- magées nos discursos que deveriam orientar os agées, em que os inslituigées, seguindo tendéncias intemacionais, passaram o adotar uma nova politica cujo alvo era a preservo: Go de valores regionais, 0 diversidade cultural do pois e, especialmente, 0 patriménio como referéncio cultural, Mostra também que o porticipagée da sociedede civil néo trouxe grandes mudangos* Dados pesquisados no IPHAN, no Instituto Estadual do Patriménio Cultural do Rio de Janeiro ~ INEPAC e no Departamento Geral do Patriménio Cultural do Municipio do Rio de Janeiro - DGPC, entre 1979 ¢ 1990, mostram que 42,24% dos pedidos de tomba- ‘mento fiveram origem nos insttuigdes, enquanto 57,76% tiveram origem fora delas. Trato~ se de quodro bastonte distinto do inicialmente proticado no Brosil, quando o IPHAN sele- cionov o gronde moioria dos bens a serem protegidos. Esses pedidos, no entanto, pouco traziam de diferente com relagGo 00 que tradicionalmente era protegido. Os iméveis erom valorizodos individualmente, sendo a maioria deles prédios publi- cos, insfitucionois e de servicos ~ que 18m por suc fungéo porte polaciano -, além de residéncios nobres. As éreas urbanas, lugor de diversidade e socializacéo de cultura, noo foram protegides em grande proporgéo, Foram 33 os protegides. Dessos, 17 foram pro- tegidos pelo IPHAN, 12 pelo DGPC - sendo APACS’ ~ e 4 pelo INEPAC. Equivolem aos equipomentos urbanos, tais como chafarizes e corelos, € & arquiteturo militar CLASSIFICACAO TIPOLOGICA |_INEPAC TIPHAN | “OGPC Total Sitio urbano/ceatro histérico 4 v7 12 33 33_]14,22% Grupo de bens arquitetOnicos | 5 - i 6 6 Conjunto arquiteténico z 3S 6 u u Prédio péllico 7 16 6 39 106 | 45,69 % Institucional ov servigos 4 3 14 21 Residencial 16 15. 15 46 Misto _residenciol e comercial - 2 2 2 Religioso catolico Wl 6 1 18 8 Equipomento urbono 23 5 6 34 o4_ [145% Militar 1 1 1 33 33 Comercial v - 6 6 6 132 RETGIOSS NUS CATOTCS = T J Tadusiral g 2 2 7 7 Funerério i i - 7 1 Monumento : a a 1 1 a | TC | | |S | Predominaram prédios de meados do século XIX até inicio do XX, de caracteristicas ecléticas, mas ainda foi considerével a proporgéo de tombomentos de iméveis coloniais, consagrades pelo IPHAN no inicio de sua otvagéo, conforme tabela absixo: (GARAGTERISTIGAS’ESTIUSTICASE | MMFINEPACAM | MMTPETAN MM] NMEA] STS | CC Coloniais * 9 7 3 29 | 12,50 Neoeléssicas 7 nv 13 41 17,67, Modernista 1 8 5 14 6,03 Ecléticas 43 7 33, 93 40,09 ‘Aa deco 3 : 4 7 3.02 Indusiriois 3 5 1 9 3.88 Neocolonial 1 : 3 4 172 Diversos ** 5 - 5 3 216 Poisagistico 1 - : 1 0,43 Vernacular zi 2 : 2 0,86 Militor 1 1 2 0,86 Sitio urbane helerogéneo 1 8 nu 20 8,62 Imigronte 3 : 3 1,29 Fantastico 1 = 1 0,43 LSS | 8 | | | 5 | 232 | wa 00 Inclui 2 sitios urbanos tombados pelo IPHAN, ** Refere-se 00s tombomentos que inciuem diversos bens arquiteténicos disperses em ume mesma cidade, Do total de 232 tombamentos e APACs, em 68 casos © que mofivou a acéo de proteco foi a ameaga iminente de desirvigdo ov de descoracterizagéo dos iméveis e sitios urbanos, correspondendo a 29,31% do total. A maioric dessos iniciativas era de agentes 133 de fora das instituigbes de preservacéo, principalmente da sociedade civil. Houve, portan- to, um trabalho institucional e um movimento social, nesse coso em menor escola, de busca deliberade do preservacdo do patriménio, mos, como visto, predominantemente de padrées tradicionois. Os planos urbanislicos - por natureza obrangentes no suo compreenséo sobre o cidode, devendo também levar em conto suo historicidade e, portanto, © patriménio, & partir de conceito mais amplo - pouco contribuiram pore a mudongas. Tratavam 0 patriménio urbano como algo dissociado do planejamento, como o desenvolvimento eco- ndmico e social, delimitondo e isolando as éreas selecionades pora preservagdo como excepcionais e como problema dos instituigdes de patriménio. Geralmente essos dreas foram delimitados openos em fungio dos caracteristicos arquiteténicos que apresenta- vam, sem considerar ospectos referentes & sua integracGo 00 restonte da cidade e outros ospectos moolégicos, ombientais e histéricos. No municipio do Rio de Joneiro, © primeiro projeto de preservagéo — 0 Projeto Corredor Cultural -, embora encarregado de grande érea do centro do cidade, ficou separado do dio-o-dia do plonejomento urbano. Foi iniciado dentro da Secretaria de Plonejamento, mas logo tornou-se independente, conslitvindo um “projeto especial”. Se, por um lado, essa separogdo pode representar uma vontagem, conforme entendiam seus coordencdores ~ uma vez que gonhovam recursos exclusivos e dispunhom de técnicos dedicados a um Unico projeto -, por outro lado, separava a preservagéo urbana do restonte do planejomento e das oportunidades de um trobolho integrado com as equipes que tratavam a cidade. Em 1984 foi criada o Diretoria do Patriménio Cultural e Arfistico, transformada no DGPC em 1986, visando melhorar as condigdes de desenvolvimento dos trabalhos de preservagio do Municipio do Rio de Janeiro, oté entéo tarefa do Conselho Municipol de Protegio do Potriménio Culturel, criado 1980, dentro de Secretaria Muni G0 e Cultura. Incorporaram como pratice de trabalho as APAC, oficializando a incluséo pal de Educa- do patriménio edificado como valor ambiental, segundo modelo semelhonte ao Coredor Cultural. Mantiverom, ainda, a concentragéo nos temos arquiteténicos, distantes da di- namice do planejamento e multiplicidade do patriménio urbono. Esse tema foi aborda- 134 do no Encontro do patrim6nio: estratégias de atuacéo, em 1990, pela orquiteta Eliane Frossard Barbosa, que havia essumido 0 direcéo do DGPC em 1988. No encontro, 0 arquiteta reclamou dos trabalhos do DGPC, que se desenvolviom tratando os beirros do Rio de Janeiro como fatias de um bolo, sem estarem condicionados a uma aborda- gem geral da cidede e de falta de condicées para a realizagée de um trabalho integro- do ao planejamento urbane. Entre os levantamentos realizados no INEPAC e no IPHAN, constata-se que foram muitos os solicitagées de tombamento feitas por prefeituras a estos duos institviges de preservagdo entre 1979 e 1990. Houve, portanto, uma atengGo ao tema, mas esta de- manda néo foi por elas assumida. A preservacéo era vista como um coso a parte do desenvolvimento da cidade e dos questées urbonas. De toda maneira, constata-se que ~ fosse por meio de trabalhos realizados exclusi- ciotivo de agentes de fora vamente pelas instituigées de preservacdo ou portindo da destas —, prevoleceu, no perfodo aqui abordado, a construcéo de um patriménio selecio- nodo com base em critérios estético-estlisticos, de excepcionolidade e considerando a uniformidade dos sitios urbanos. Asobrevivéncia dos critérios tradicionais Embora a pesquiso anteriormente referide aborde principolmente a década de 80, é flagrante a permanéncie ainda hoje do critério referido. Na década de 90, diante de um modelo globalizado de tratamento dos sitios urbanos, 0 critério estético-estilistico em al- guns aspectos se fortaleceu®, Esse modelo promove intervengées em dreas histbricas das cidades, orientadas por estratégias que visam sua opropriacéo pora © consumo visval, envolvendo 0 seu enobrecimento e 0 seu uso como produtos na disputa entre cidades em um mercado globalizado. No modelo globalizedo, 0 poder publico situa-se como produ- tor de um volor que tira partido des transformacdes que vém ocorrendo em fungéo do globalizegéo da economia e da cultura. Trato © patriménio como uma mercedoria ov como um atrative para 6 consumidor, oderindo aos valores que esto sendo ditados pela exigéncio de lucros imediatos do capital financeiro. Produz cendrios padronizades, utili zando os éreas urbanas antigos de acordo com as tendéncios globais, ditados pelo ..."intensi- 135 ficagéo das relagées sociois em escalo mundial, que ligam lugares distantes de tal manei- ra que acontecimentos locais si0 moldodos por eventos ocorrendo a muitos milhas de distancia e vice-versa”’. Esso obordagem gero um conflito de objetivos entre os promotores do modelo globalizado e as instituigbes de preservagéo quando querem efetivar os trabslhos de atribuigéo de valor e tratamento do patriménio considerando outros atributos olém dos estéticos. Na légico do mercado de consumo nao cabe o tempo da construgdo dos sttios como documentos ~ como lugares nos quais podem ser reconhecidos elementos da histo- ria e identidade de quem os produziu —, 0 que exige estudos e pesquisas. Também nao interessom ao mercado as possiveis resirigbes ou limitagdes ao uso e adaptagées dos sitios, que muitas vezes resultam das conclusées dos estudos. Nessa ldgico, © que vale é aproveitor-se da imagem configurada pelas antigas agées do IPHAN, de um patriménio entendido pela estética e estilos, e utiliza-lo como produto de consumo. Exemplo mais flagrante desta prético € a maquiagem feita em parte do centro histéri- co de Salvador, conhecida como Projeto Pelourinho. As obras foram feitas em apenas uma gesto governomental na décade de 90. O objetivo principal era a criagéo de uma érea de comércio. Foram desapropriados diversos quorteirées de uso predominantemente residencial, ‘5 fochadas frontais foram restauradas e nos fundos foi inventado um cenério colonial, diante das dificuldades da sua restauracéo. Foram livremente remanejados os espacos inter- nos das edificagées e, em alguns quarteirdes, rompidas os estruturas dos lotes, interligondo- se edificagdes e antigos quintais para acomodar o comércio e bares ao ar livre. Tratou-se de uma intervengéo na realidade local, que havia se constituido através de um proceso hist6- rico e gradual, transformando, subitomente, o conjunto histérico num shopping, ou seja, nao se tratando de um trabalho de preservagéo, mas do uso de um patriménio consagrade para finalidades comerciais. Além da radical transformagée no use do sitio, foram desconsiderados 08 vesligios hist6ricos impressos no solo e nos iméveis. No Rio de Janeiro, também na década de 90, o érea mais antiga do centro da cidade, tombada pelo IPHAN, foi objeto de intervencées promovidos pela prefeitura. Viso- vom @ sua “requalificagéo” segundo os projetos e noticias veiculodas pelos jorncis, com 0 136 instalagéo de equipamentos de interesse turistico (hotéis e restaurantes), a demolicdo de prédios “feios”, a construgéo de um grande aquério, o incentivo @ instalagéo de universi- dodes porticulares paro garantir pablico notumo no local, a programacéo de shows estecionamentos distribuidos em volte do érea delimitada para intervengio. Havia, tam- bem, a previséo de deslocomento do pier de embarque do Estacéo dos Borcas do eixo da Praca, per onde possam 200 mil pesso0/dia, pore outta lateral da estacdo e a extingéo do terminal de énibus da sua proximidade, diminvindo a presengo de um piblico que sim- plesmente cruza o local. Trotava-se do indugéo de um processo de “enobrecimento” do lugar, que comegou em 1991, com o exlingéo do Enlreposto do Pesca que ali funcionova, 6 por empenho do preleituro, Esso otividade proporcionava um movimento peculiar em toro da pesco, com seu movimento notumo em funcéo dela e da presengo de pensdes que serviam de mora- dias poro pescadores. Pretendia-se finlizar esse processo com a demolicao do prédio que obrigova 0 Entreposto do Pesca, conhecido como Conab. Essa proposta néo considerova © su0 histéria, valor simbélico € nem o uso alval. A pressa em viobilizor as obras ndo permitiram a realizagGo dos estudos necessérios a0 entendimento do seu valor cultural. Ignorou-se 0 foto de a edificagéo ser um dos oito componentes do principal grupo de prédios oficiois em art deco construidos pelo Estado Novo, representatives da imagem do nagéo moderna que se buscou construir na capital do pais no década de 30, referéncio fundomental para a compreenséo do cultura brosileira e morca do cidade como capital federal. Ignorou-se lombém que o edilicio, ligado atividade dos pescadores, con: um testemunho de vococéo de ume dreo sempre ligada o esso atividade, com sua porto- do, representondo pescodores, esculpida em boixo relevo, além de oferecer uma gronde drea consiruide possivel de adoptagéo a novos usos sociois. Prevaleceu 0 crtério de valo- rizagdo do sitio ditado pelo prefeito, que era arquiteto, e por outros arquitetos da cidade, todos condenando © prédio por considerd-lo feio, conforme mancheles dos jornais (‘A Praga Quinze dos Sonhos do Prefeito ~ orquitetos foriam desoparecer monstrengos arquiteténicos que enfeiam a cidade”), e afirmacées do prefeito como "s6 os prédios histéricos oli sero preservados” ou, cinda, “leio, ontiquodo, desproporcionol”. 137 Fachada principal do antigo Enireposio da Pesca, hoje cconhecido como Conab, na Praca 15 de Novembro, no centro histérico do Rio de Janeiro. Foto: Lia Motta, 1999 © prédio da CONAB nao foi demolide gracas ao empenho do INEPAC, que o tombou logo apés receber um abaixo-assinado solicitando sua preservago, tendo como cipal alvo manter as esculturas da portada. Mas aspectos do projeto que foram implementados e ainda estéo em implantacdo vém descaracterizando diversos vestigios da histéria. O piso do Proga em lojes de pedro, que marcava a sua organizocéo espacial do século XIX, foi arrancado e sua reposicao néo reproduziu a condigéo anterior. O calgamento em cantaria na beira do cais, do mesmo periodo, merecedor de restouro, foi ignorado, sendo recoberto pelo novo piso inspirado na Basilica de Séo Marcos, em Veneza, na ltélia. Este também encobriu o sitio arqueolégico onde possa um sofisticado sistema de bombeamento de égua do século XVIll, entre outros vestigios que néo foram conside- rados, apesar do vultoso investimento piblico ali empregado. Nesse caso, nem mesmo os arquedlogos da prefeitura foram ouvides. Atualmente os paralelepipedos das ruas e be- cos que compdem o conjunto urbano que se estende até a Candeléria estéio sendo subs- tituidos por granito serrado, ignorando-se a historicidade local para favorecimento dos bores que ocupam as rvas. 138 © patriménio das cidades na linguagem de forma Vole, portanto, diante do quadro anteriormente descrito, reofirmar os avoncos da década de 80. Emboro alguns exemplos importantes empreendidos pelo INEPAC ¢ pelo DGPC pudessem ser citados, seréo usados apenas exemplos referentes 0s trabalhos do IPHAN, empregando 0 conceito cidade-documento, para atribuicéo de valor os sitios urbonos fombados"? ios e seus imédveis sdo valorizados come fonte documental, Por esse conceito, os buscando @ leitura dos significados contidos em sua formo, em sintonia com as concep- cées da nova historiogratio, tendo como referéncia autores como Marc Bloch e Jacques Le Goff e exemplos de leitura do tecido urbano desenvolvidos na Iiélia. Na concepgio de Jacques Le Goff, o monumento ¢ 0 documento se igualam conceitualmente, pela origem filologico do termo monumento. Monumento é “tudo aquilo que pode evocar o pasado, perpetuando recordagéo, como, por exemplo, os atos escritos.”"® Mare Bloch, em seu livo Inrodugéo & Histéria, referindo-se as dificuldades de se pesquisor determinado periodo, em fungée da érdua compreenséo da documentagéo textual a seu respeito, afirmo que: (..) houve uma condicéo primordial a respeitar, a fim de interpretormos 08 roros docu- mentos que permite penetror nessa génese brumoso, de pormos os problemas corte- tomente, de formarmos umo idéio deles: tal condicéo foi observar @ poisogem de hoie. E isso porque s6 ela podia propicior as perspectivas de conjunto de que era necessério partir'*, As informogées exiraidas das poisagens, cidades, prédios e objetos, que os tronslor- mam em documentos, também os tronstormam em patriménio. Isso porque so apropria- dos para o construgéo de conhecimento, constitvindo-se em fontes de novos produgées culturois, em referéncios de ideniidode e de historia Accultura é © processo permanente de producao, uso e reapropriacéo dos produtos culturais, enquanto o patriménio é 0 produto cultural reopropriado — 0 bem cultural que foi compreendido pelo inteligéncia humana para investimento em noves producées, assim como seu uso como referéncia de historia, meméria e identidade. E possivel, entao, ofir- 139 mar que 0 potriménio dos cidades seré fruto da copacidade de os homens usarem os informagdes contidas em sua forma. A compreenséo de configuragéo urbana como uma linguagem que informe sobre os produtores do lugar & que a transforma em patriménio, conferindo-lhe um valor, Desta maneira, © patriménio das cidades esté na copacidade de © homem compreendé-los, atribuindo-lhes um sentido. Esté no volor 0 elas atribuido, sendo dever e competéncia dos profissionais que ctuam na preservagio e gestéo urbana, mas devendo, também, ser fruto de umo opreenséo democrética dos modos de valoragéo feito pelos populacées e usudrios dos lugares"*. Para uma agéo que considere esse entendimento acerca do que se constitui patriménio, é preciso adotar métodos apropriados, promovendo investimentos em trabo- Ihos adequados 4 leitura do territério, assim como procedimentos necessérios 6 apropric- cdo social dos conteédos documentais da configuracao urbanas, visando estobelecer pro- cessos paricipativos de valorizagéo do patriménio, Os exemplos que seguem, do Inventério Nacional de Bens Iméveis em Sitios Urbo- nos Tombados (INBI/SUT), representa um esforco para a construcéo de procedimentos que possom levar @ esse tipo de prética. Trata-se de método que viso opreender as infor- magées culturais dos cidades, tronsportando-as de seus suportes originals ~ matericis — para outros suportes como © popel, bancos de dados, de mais fécil anélise, apreensdo & que viabilizam a veiculagio dos informagées e conhecimento consiruido @ seu respeito. Possibilito 0 mapeamento de dadas histéricos, territorializando-os, para andlise das carac- terislicas diferenciadas da forma, justficando-os pore sua compreenséo diante do proces- so de formagio e desenvolvimento urbano. O Inventario de Tiradentes (Minas Gerais), sitio tombado pelo IPHAN em 1938, pos- sibiitou uma série de observagées que levoram 6 valorizacéo de caracterslicas diferencia dos do sti, pora se somarem & suo orquiteturo colonial jé reconhecide como patriménio. O mopeamento dos dados levantados na pesquisa histérica possibiltou @ definigao de éreos que foram volorizadas de acordo com 0s fatores de ocupacdo e desenvolvimento do terrt6 rio, considerando dreas historicamente mais rarefeitas de antigos cominhos, areas de produ- 60, éreos de servicos, 6reas que nunca tiveram ocupacao, lotes antes ocupados hoje vagos etc. O territéria ocupade no selecentos e reas de desenvolvimento posterior foram delimi- 140 tados, buscando superar a inexisténcia de cartografia histérica. Com base nesses estudos, foram definidas normas de ocupacéo do solo de acordo com as caracteristicas identificadas, ‘ampliondo a abrangéncia do trabalho de preservacdo, que, até entao, limitava-se 6 Grea cocupada pelos iméveis coloniais, destacado na imagem Area ocupada pelo casario i: colonial, tradicionalmente tratada pelo IPHAN. Bown stage do Trem Planta de Tiradentes-MG produzida pelo INBI/SU, em 1994, mapeando os elementos balizadores do ocupacio e desenvolvimento urbano para « definico dos normas de preservacao considerando 08 aspectos miltiplos da mortologio do sitio e sue historicidade. 141 Por meio de depoimentos de moradores antigos de Tiradentes e do observacéo da plonta atual da cidade, constatou-se que inicialmente quase todos os lotes de Tiradentes finham acesso pela frente e pelos fundos, sendo o casario voltado para as ruas € os uintois, para os becos e dreas de servico. Embora varios becos cinda estivessem integros, © seu processo de ocupagéo estava acelerado enquanto © Inventirio era desenvolvido. Foi possivel, entéo, @ sua volorizagéo e protecdo considerando especialmente seu uso setecentista para servicos, o que possibilitou a feicdo urbana mois nobre das ruas, em oposicéo aos servicos nos fundos. Tratava-se de vestigio, perlinente & protecéo, por corac- terizar historicamente o uso da cidede'*. TWACADOATUAL 1D tered gee 1 ecos msgs caren mats 1 decor comin igo saucers Arado cents Detathe de planta de Tiradentes-MG produzida pelo INBI/SU, em 1994, morcando 0s becos e éreos de servicos nos fundos dos lotes. Alguns becos ainda puderam ser preservados, outros becos e éreos de servico 6 estavam ocupados, permanecendo em alguns casos apenas os vestigios de sv reloéo com o fundo dos lotes. 142 A identificagao do parcelamento das antigas chécaras, na cartografia de Diamantina- MG, do século XVIII, ainda legivel - ndo sé na planta cadastral, mas também na paisagem = foi apontada como um valor de patriménio que deveria ser protegido nos definigées do plano diretor que estava em andamento, quando 0 Inventério estava sendo desenvolvido, no final da década de 90. Pretendio-se que fossem adotadas normas de parcelamento e ocupacao do solo diferenciados, pora que esse vestigio histérico ligado as atividedes de extracdo do diamante ndo fosse apagado, conforme tendéncia identificada de loleamento dessas dreas. Reproducéo do Planta do Arraial do Tijuco, de 1784, do Arquivo Histérico do Exercito, no Rio de Janeiro, mostrando com as setas as reas com o parcelamento das antigas chécaras ao redor da cidade, 143 Estudo mostrando os edificagdes e lotes do século XVII, incluindo os vestigios dos antigos chécaros no parcelamento do solo, indicados pelas setos. A base do estudo 6 @ Plonta Cadastral de Diomontina, de 1977, existente no ‘rquivo do IPHAN. No entanto, a dificuldade de ver como patriménio outros vestigios do passado além da arquitetura, a despeito do esforgo do IPHAN na ocasiéo, fez com que as normas urbanisticas ndo as considerassem os antigas chécaras e seu parcelamento de forma especial. A subdivisdo dessos éreas em noves lotes foi proposta de maneira homogeneizada no setor, em parcelas de 300 m?, e sem qualquer recomendagdo sobre o desenho dos novos parcelamentos e arruamentos. Embora tenha tido o éreo para sev tombamento, em 1992, delimitada a partir da busca do uniformidade das caracteristicas estilisticas do casario, o estudo que definiu o tombamento na abordagem da Praca 15 de Novembro e imediacées empregou 0 concei- 144 to cidode-documento, procedendo minucioso levantamento das edificagbes pare leitura de suas formas e entendimento de seus significados, com relagdo a0 processo histérico de ocupacéo do centro do Rio de Janeiro Os condicionantes geograficos e as formas geradas na superacéo das dificuldades de ocupacéo dos espacos foram indicadores do valor de patriménio dos iméveis. Busca ram-se nas edificagdes os aspectos que revelassem os desafios da ocupacdo do territério. € as odaptacées as necessidades sociais em fase importante da valorizagéo econémica do sitio no século XIX. Esse estudo levou @ incluséo no tombamento de elementos internos dos prédios que revelam as solugbes de adaptagao co sitio, tais como clarabéias de ventilacéo, pocos de ventilagéo e escadarias que ligavam o rua diretamente aos pavi- mentos superiores!” Foto aérea de Diomantino, tirada para 0 Dossié para Patriménio da Humanidade, em 1998, que mostra os vestigios das chécaras na poisagem. 145 Imagens dos acessos independentes para os povimenlos superiores, escodas, clarabéias e pocos de ventilagéo, que coracterizam os iméveis da dreo to nbada pelo IPHAN nas imediagées da Praco 15, 10 Rio de Janeiro. Fotos 1 0 4 de Cynthia Torrisse, 2003, folo 5 do clarabéia, do equipe do INBI/SU do UFRJ, em 2001- 02. Imagens 6 € 7, de desenho da clarabsia e do prismo de ventilagéo, tirada dos anexos do proceso de tombamento do IPHAN, da décado de O Inventério realizado em 2002 mostrou que aqueles elementos incluides no tom: bamento estéo sendo demolidos ou descaracterizados em funcdo do processo de “requalificacéo” promovido pela prefeitura, anteriormente referido. Isso, enquanto as fo- chades estéio sendo restauradas ¢ iluminadas. Observo-se, portanto, que ndo se trate de desvalorizar 0 patriménio, mos da incompreensao dos novos elementos valorizados como patriménio, ou seja, daqueles distintos dos iradicionalmente valorizados, jd reconhecidos € incorporados & meméria social. Mais uma vez prevalece o crilério estético-esilistico, em detrimento de outras releréncias da culiure local, sendo necesséria a veiculagéo do produ: cao do conhecimento a seu respeito para sua apr riagdo e preservacéo. 146 Wila Imperial Petropolis- 1846 Ma, Focaba-tsene Planta da Vila Imperial de 1846, onde se vé projetada a sua principal avenida ~ a Rua do Imperador. Foto do Arquivo do Museu Imperial. Em Petrépolis, o fato de a Rua do Imperador e a Igreja do Rosdrio dos Pretos terem sido excluidas do tombamento do IPHAN, em 1992, também evidencia a permanéncia desse critério estético-esilistico. Embora o tombamento de Petrdpolis valorizosse o cidade como simbolo monérquico e da imigragéo alema — delimitando suas éreas mais nobres & integras -, diante doquele ponto de visto, da Vilo Imperial, foi excluida a sua principal ovenida, a Rua do Imperador. Tambou-se na avenida apenas o canal e as balaustrodas de suas margens. Como rua principal mais antiga de comércio, teve vérios iméveis subs- fituidos por prédios altos, alguns prédios foram reformados e marquises foram acres- 147 centadas em iméveis antigos, entre outras modificagdes. Mesmo que julgadas transfor- magées lomentéveis, nao séo desprovidas de histéria. Denotavam e registravam histo- ricamente @ presséo do “desenvolvimentismo” e forga da especulagéo imobiliéria ocortida a partir da década de 50. Marcavam o lugar das transformacées ¢ do “pro gresso” que mescla obras desse periodo com as edificagées ecléticas mais antigas, formando um panorama heterogéneo com personolidade histérica propria — um espa- 0 que, opesar das descaracterizagdes, no havie perdido sua relagée com o restante nos fundos dos do sitio, Os prédios eclélicos que permaneceram, os mortos vi lotes € o canal que forma a calha do ruc cinda articulavam-se paisagisticamente com 0 restante de cidode, Independentemente de sua unidode estlstica, esse trecho de Petrépolis 6 parte integrante do conjunto histérico que constitui seu potriménio urbano, mas néo foi tombado pelo IPHAN. A pesquisa histérica do Inventario, além de ressaltar 0 valor histérico dessa aveni- do, registrou 0 notivel presenco de escravos na cidade. Sobre esses, pouca referéncia existe na historiogratia petropolitona. A énlase € dado @ substivicéo da méo-de-obra escrava por imigrantes europeus, no projeto de branqueamento e de civilizogéo do Brosil No entanto, « observagéo da paisagem de hoje, com a Igreja do Rosério dos Pretos situada no final da Rua do Imperador e de frente para elo, documenta a presenca desso populacéo, 0 que levou « um aprofundamento da pasquisa 0 seu respeito. Constoto-se, pelo censo de 1872 ~ 0 primeiro da histério brasileiro -, que 83% do populagao petropolitana era constituide de escravos. Percentual muito acima do de ou- {10s cidades brosileiras, que girovom entre 35 e 50%. A principal explicacéo para isso 6 0 @xodo dos imigrantes europeus em funcdo do solo e seu parcelamento, que resultaram em condigées inadequadas para a agricultura. Uma primeira capela dedicada o Nossa Senhora do Rosdrio dos Pretos foi construida em 1883, no mesmo local onde hoje o Igreja se situa, O Conselheiro Joaquim Firmino 148 Pereira Jorge cedeu seu terreno para a construcéo. Ele era um desembargador aposenta- do, catdlico fervoroso e um grande defensor do causa abolicionista, tendo libertado seus escravos antes do Lei Aurea. A capela foi construida, em grande parte, com esmolas recolhidas junto a antigos escravos. Por todas essos circunsténcias, era a capela preferida dos negros e mulatos, que em tomo dele organizoram uma associagéo denominada Devogdo de Nossa Senhora do Rosério. A Capela foi demolida na década de 1960 e a tual Igreja do Rosério foi inougurada em 3 de abril de 1978, sem possuir nenhuma semelhanca com a original. Configura ainda, entretanto, a principal representacao sim- bolica da presenga dos negros em Petrépolis, que, sendo um imével novo e sem interesse orquitet6nico, néo foi considerado no tombamento federal Fotografia da primeira Igreja do Rosério no final da Rua do Imperador, demolida na década de 70. Foto do Arquivo do Museu Imperial 149 Fotografic da atual igreja do Ro- cal da pi desses exerc racéo da pr sl tizo informacées, para a produ je conhecin para a construcdo de um nove quad: Je mer incorporand jalores & meméria social e ampliando « ibilidades de 18 150 Notas 1. Relotério Brundland. Nosso futuro comum. P46. 2. Sobre o nogéo de meméria como construgdo social e seu desenvolvimento histérico, cf. LE GOFF Jacques. “Meméria.” In: ROMANO, Ruggiero (dir) Enciclopédia Einoud (Vol. 1 - Meméria/historia) Lisboa: Imprenso Nocional: Coso de Moedo, 1983. P 11-50. 3. COSTA, Lucio. "Documentaséo necesséric 1940.8 91 “In: Revista do patriménio (N. 1, 1940}. Rio de Jonsiro, 4. Essa abordagem dos principios dos intelectusis modemistas 6 desenvolvida em AMARAL, Aracy. ‘Attes plésticas na semona de 22: Subsidios pare ume histéria da renovogéo dos ortes no Brasil, Sdo Paulo: Perspective, 1970; CAVALCANTI, Lauro. As preocupasées do belo. CHUVA, Marcio. Os orqui- tetos do membrio: Construgio do potriménio histérico e artistico nacional no Brosil - anos 30 ¢ 40. Nitoréi: UFE, Depto. de Histévio, 1998 (tese de dovtorado); ANDRADE, Mério de, Mério de Andrade: cortas de trabalho: Correspondéncio com Rodrigo Melo Fronco de Andrade, 1936 -1945. Broslio: SPHAN; PréMern6rio, 1981. P 191 5. CHUVA, Marcia. Os arquitetos da meméria... Op. ci. P16. 6. Ct. 0 levontamento reolizade para nossa dissertacao de mestrado: MOTTA, Lio. Patriménio urbano fe memério social: préticas discursivas @ seletivos de preservagéo cultural de 1975 0 1990. Rio de Joneiro. UNIRIO, Depto. de Biblioteconomia e Arquivologio, 2000 (dissertagéo de mestrodo}. 7. Trata-se da "Avec de Preservagto Ambientol e Cultural” [APAC}, i Joneiro. do pelo Municipio do Rio de 8. Cf, MOTTA, Lia. “A epropriogéo do potrimanio urbono: do estético-esilistico nacional 60 consumo visual global." In: ARANTES, Antonio A. (org.). © espaso do diferengo. Compinos: Popirus, 2000. ® 256-287. 9. GIDDENS, Anthony. As conseqiiéncios do modernidade. S60 Poulo: UNESP 1991. P69. 10. "A Praga Quinze dos Sonhos do Prefeito - orquiteos fariom desoparecer monsirengos orquiteténicos que enfeiam a cidade”, © Globo, 15/6/97. 11. Decloragées do preleito Luis Poul Conde, do Rio de Joneiro, publicades no Jomal do Brosil, 7/6/ 97 © 9/11/97. 12. © marco fundador da adogéo desse conceito no IPHAN foi o parecer do arquiteto Luiz Fernando Fronco pare o tombomento de Logune, de 1984. Ci. FRANCO, Luiz Fernondo PN. “Centro histérico de Lagune." Cademnos de documentos (Vol. 3 - Estudos de tombomerto). Rio de Janeiro: IPHAN, 1995, 8.9.22, 13. LE GOFF, Jacques. Meméria... Op. cil. P95, 151

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