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Breve histéria de vida e cotidiano de Mateus ‘Mateus (M)** era filho mais velho da familia e cursou até o primeiro ano do ensino médio, Relatou que sua infancia foi conturbada e sofreu momentos de abandono, de violéncia fisica e verbal dos pais. Aos 8 anos de idade, teve o primeiro contato com as substancias psicoativas (SPAS) Hicitas (Alcool e cigarro de tabaco) e, aos 14 anos, com drogas (cocaina e ‘maconha). Sempre possuiu autonomia nas atividades de vida diéria e de vida prética. Jé adulto, trabalhou como pintor, mas abandonou o oficio para vender e consumir drogas, envolvendo-se com o tréfico préximo a sua residéncia, Sobre sua vida intima ¢ amorosa, relatou que viveu um relacionamento estivel no qual se tomou pa ‘A morte do pai ¢ da avé paterna, em sequéncia, foram episédios {que se apresentaram como um divisor de aguas em sua historia e, a partir deles, deflagrou-se o percurso psiquidtrico de Mateus associado a0 consumo abusivo de drogas. Deve-se considerar que M. era jovem, num quadro inicial de psicose, lidando com profunda mudanga em sua estrutura psiquica e com todos os efeitos causados por isso. Inclusive o uso da medica¢io impunha limitagies {que repercutiam em seu cotidiano, nas dreas de desempenho ocupacional, ‘Mateus queixava-se das dificuldades na realizagao do autocuidado, do seu lazer preferido, pois nao conseguia jogar futebol, bem como relatava insatisfagdo nas atividades sexuais e laborais, A crise psiquidtrica e os efeitos nas dreas do desempenho ocupacional no cotidiano de Mateus Mateus apresentou alteracao de comportamento com delitio mistico- religioso, ouvindo vozes de comando para ajudar os outros e foi levado or seus familiares a0 CAPS III para usuarios de élcool e outras drogas 56. Nome ficticio (CAPS III-AD), sendo acolhido no plantao.” Nesse acolhimento, afirmou estar abstinente do uso de drogas (maconha e cocaina) hé duas semanas, Foi, entdo, encaminhado para o CAPSIII de adultos para usuérios com neurose e psicose graves. Ele ndo tinha nenhuma critica de morbidade em relagdo ao surto psicético que apresentava, Antes de ser acolhido no CAPS IIL-AD, M. era acompanhado pela Unidade Basica de Satide (UBS), ‘no entanto, por dificuldades de adesio ao tratamento nesse dispositivo, a familia o internou numa clinica de recuperacdo para dependentes quimicos onde permaneceu sem fazer uso de sta medicagao psiquidtrica, segundo M. “sé rezando’, “sem futebol” (sic) eacabou fugindo desse local. Estavam presentes, também, no quadro psiquidtrico de Mateus alteragdes no senso de percep¢do (alucinagées auditivas), que eram causadoras de sofrimento e angistia. Esse quadro se manifestava por vozes de comando que atribuiam a M. a “responsabilidade de trazer & ‘vida meu pai e minha avs" (sic) jé falecidos. Nas palavras de M., “tenho um fardo muito pesado, carregar a familia inteira nas costas” (sic). Assim, apésa avaliagao psiquidtrica, foram aventadas as hipéteses diagnésticas de Fag (Psicose ndo-organica nao especificada) e F1g (Transtornos mentais ‘e comportamentais devido ao uso de miltiplas drogas e 20 uso de outras, substncias psicoativas) Essa condigio determinou o uso da medicagio antipsicética, que causou em Mateus lentificagao, sonoléncia, movimentos robotizados, fala arrastada, sialorreia e embotamento afetivo. Durante a crise, todas as areas do desempenho ocupacional de Mateus foram afetadas, Ele estava em condicdes precarias de higiene, fragilizado, sem apoio familiar, sem renda, em uso abusivo da maconha e se colocando em risco no territério, completamente delirante. Uma queixa importante de M, eraa de nao conseguir ter erecdo na relagdo sexual. Essas reagdes ‘no corpo so conhecidas como efeitos colaterais negativos (causados pelos 57, Plantéo am dispositvo de atendimento nos CAPS em que pelo menos 2 técnicos de sade mentale um psiquiata fazem os acolhimentos que chegam a0 servigo através do SAMU, PM, sozinhos ou levados por familiares em demanda espontinea, além de encaminhamentos de outros servicos de saide e educacio, piblicos e privados. antipsicéticos de primeira geracéo) que limitam, significativamente, 0 autocuidado ¢ a realizagio de atividades de vida pratica. Sua aparéncia era de um jovern com o tronco curvado, postura ccabisbaixa, malcuidado e vestes sujas. M. mal conseguia erguer sua cabega ¢ olhar nos olhos das pessoas. 0 Projeto Terapéutico Singular e as intervenes do terapeuta ocupacional (0 Projeto Terapéutico Singular (PTS) objetivou inserir Mateus no tratamento em satide mental de forma regular a fim de estabilizar a crise siquidtrica e auxiliar seu entendimento e aceitasao do sofrimento mental. No campo ocupacional e social, a expectativa era que as intervenes pudessem favorecer a reinser¢ao familiar, escolar, recreativa e laboral do usuario, Para tanto, a modalidade de inscri¢do no tratamento de Mateus foi, inicialmente, em ambulatério-crise. Porém, com o agravamento do quadro, foi necessirio inseri-lo de forma intensiva, diaria, na permanéncia- dia (PD). Posteriormente, com a piora dos sintomas, ee foi inscrito em hospitalidade noturna (HN) por alguns dias. Ua das intervengoes iniciais do terapeuta ocupacional, que merece destaque, foi a proposta para que Mateus fizesse o desenho de um rel6gio de sua rotina, ilustrando as suas ocupagtes didtias. A visualizacio desse desenho levou M. a constatar 0 quanto seu cotidiano era defasado em termos de ocupacies significativas, pois ele nao se cuidava, nao estudava € ndo trabalhava. Ele percebeu que seu dia era preenchido apenas pela cocaina, maconha ¢ cigarro, € quando nao consumia drogas, somente dormia. Essa intervencao teve o efeito de despertar os anseios de Mateus para retomar possfveis projetos de vida. M. verbalizou, entao, 0 desejo de ter uma casa, voltar a ser pintor ou até ser jogador de futebol, tentar parar de fumar, ter dinheiro e poder dar assisténcia financeira e cuidar de seus filhos. OPTS foi uma ferramenta para (re)criar com Mateus um cotidiano significativo e potente, para além do consumo de drogas e de passar 0 dia dormindo em casa ou apenas frequentando a PD do CAPS. Deve-se tet clareza de que, no CAPS, lida-se com a crise, ou seja, com o sofrimento mental agudo do usuario, No entanto, a medida que M. adquiriu certa estabilizagio do quadro psiquistrico, o terapeuta ocupacional buscou fomentar, junto com ele, a perspectiva de um cotidiano com um modo de vida prazeroso: voltar a se cuidar, a namorar ¢ jogar futebol. A diregao do ‘tratamento se orientou a partir do resgate de sua dignidade como sujeito de direitos: retomar seu papel de estudante e de trabalhador. Ressalta-se que a condugao do tratamento, alicergada nos principios da atengao singular as demandas da pessoa em sofrimento mental, repercutiu imediatamente na mudanga da aparéncia de Mateus. E ele passou a frequentar o servico com roupas impas, cabelo e barba cuidados ¢ um semblante que revelava mais confianga e satisfacio. Posteriormente, nos atendimentos, estimulou-se M. a pensar formas de alcancar subsisténcia financeira, com a proposta de elaborar um curriculo para o trabalho formal ou informal. Assim sendo, ele se antecipou e compareceu a consulta de posse de um curriculo elaborado por ele préprio, numa Jan house préxima & sua casa, com 0 objetivo de procurar vagas no mercado de trabalho. Concomitantemente, se deu a compreensio de sua condigao de satide, como uma pessoa com um transtorno psiquidtrico, que produzia sofrimento e necessitava de tratamento, Tal elaboracdo favoreceu o uso regular de seus remédios, inclusive do antipsicético. Em decorréncia, os sintomas foram apaziguados Mateus conseguiu retomar parte das atividades de vida pritica, passando 2 realizar pequenos servigos, “bicos’, na regido onde morava e conseguiu obter uma pequena renda. Na condugao desse caso clinico foi ponderada, pelo técnico de referéncia, a problemética do uso regular da medicagao antipsicética, pois ‘Mateus era sensivel aos efeitos colaterais negativos desse medicamento. E isso impactava diretamente a execucdo das ocupagdes que compunham sua rotina, limitando ainda mais o seu cotidiano. Diante dessa situacao foi realizada uma discussdo sobre a mudanca do medicamento junto a0 residente de psiquiatria que acompanhava o caso. A parti dai, possibilitou- se a introdugio de um antipsicético atipico, ou seja, uma medicacéo mais moderna e com menos efeitos colaterais no corpo, no afeto e, ‘consequentemente, no cotidiano de Mateus. Foi essencial o trabalho de esclarecimento de M. sobre os ganhos que a nova medicacio traria, como voltar a “dominar” seu corpo para trabalhar, jogar futebol e namorar. ‘Todavia, esse medicamento era disponibilizado apenas pela secretaria estadual de satide, no servigo da Farmécia de Minas." Assim, uma vez que ‘osmodos de acesso a esse remédio diferiam dos usuais da UBS ¢ do CAPS, foi primordial a intervencio psicoeducativa do terapeuta ocupacional. Esse profissional foi o responsével pela orientagdo e supervisio no processo burocritico para o primeiro acesso a essa medicagdo. Essa tarefa era complexa e demandou continuidade do acompanhamento as idas & Farmacia de Minas, que pode ser realizada coma insergo de uma técnica de enfermagem, mediada pelo técnico de referéncia, Mateus logo sentit © efeito da mudanga de medicagdo em seu corpo com a quase auséncia dos efeitos colaterais negativos, o que contribuiu para maior confianga em sie no tratamento. Os atendimentos com o terapeuta ocupacional tiveram como foco intervenes que pudessem favorecer 0 cotidiano de Mateus, atuando ‘com as ocupagdes que estavam limitadas para 0 usuério. No que diz respeito a0 autocuidado, M. voltou a ter vaidade, cuidar da aparéncia, usar roupas limpas e cuidadas, assim como, ao lidar com o uso regular de medicacao ¢ assimilar as orientagdes psicoeducativas, aderiu 20 tratamento medicamentoso. No lazer, M. voltou a participar de peladas de futebol com os amigos de seu bairro e voltou a namorare ter relagdes sexuais prazerosas. Ele buscou fazer sua matricula na escola publica S.A Rede Farmicia de Minas dlpens, grtultarente&populasto, medicament pare atengio primériae medicamentos de alto custo vinulados prstacio deservigos Tarmacéuticos, possbiitando uma integracio maior com 9s outtos servigos de sade oferecidos no municipio e nas regides de sade do estado de Minas Gerais, proxima & sua casa ¢ retomou os estudos para concluir 0 Ensino Médio. Por fim, Mateus consegui alguns trabalhos em servicos gerais, com ‘vinculo informal, conseguindo uma renda minima para voltar a realizar trocas sociais basicas, Ele voltou a consumir produtos que desejava, como por exemplo, comprou um ténis novo, comeu um sanduiche em uma lanchonete que gostava e comprou leite para os filhos. Além desses ganhos, é importante destacar que Mateus ndo interrompeu 0 uso de maconha, mas conseguiu fazer um uso mais controlado € recreativo, sem se prejudicar como antes. Como resultado, obteve-se a adesto de ‘Mao tratamento e ele demandou ao técnico de referencia sua alta do CABS IIT e seu encaminhamento para a UBS. (0 “fardo” de Mateus ficou mais leve ao compartilha-1o com o técnico de referéncia e com a equipe multiprofissional do CAPS IIL, por meio das discussdes de caso em reunides, nos atendimentos com os demais técnicos. Nessa jornada de tratamento pelo CAPS III, durante a qual Mateus, inicialmente, se apresentava cabisbaixo e pouco se implicava na construga0 de outro projeto de vida, foi preponderante a condugao do trabalho por tam terapeuta ocupacional. O diferencial desta especificidade contribuiu para reconstruir o cotidiano de M. de forma mais potente e alinhada 4s demandas singulares apresentadas por ele. Esse jovem, vivendo aprendendo em sua experiéncia coma loucura, voltou a erguer seu olhar a projeté-lo para o horizonte. O terapeuta ocupacional, portanto, foi agente da engrenagem de uma clinica antimanicomial, numa praxis coletiva, pautada pelo tratamento em liberdade e na utopia de uma sociedade que produza lugares possiveis de trocas sociais, afetivas ¢ cidadas para todos, sem manicémios. ‘Afirma-se, por fim, que a clinica nos coloca desafios de lidar com: a vulnerabilidade social em que vive grande parte da populacdo que atendemos; a desisténcia da familia em dar suporte ao usuério no tratamento e na vida cotidiana; ¢ com a auséncia ou quase insignificante renda para subsisténcia, £ necessario que as priticas multidisciplinares nos servicos substitutivos busquem avangar no tradicional paradigma biomédico em saiide, visto que mantém o sujeito na condigdo de paciente, desconsiderando seus saberes sobre sua experiéncia com a loucura. E fundamental a continuidade da construgdo de um modelo que abarque 0 cuidado integral do sujeito, conforme preconizado nos principios do SUS.

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