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ESFERAS DA JUSTICA. Uma defesa do pluralismo eda igualdade Michael Walzer Tradugio JUSSARA SIMOES Revie tenca eda tradi ‘CICERO ROMAO DIAS ARAUIO Martins Fontes Sto Paulo 2003 eo pad nano nlc lo “SPHERES OF JUSTIC por ase Bot Noe ok. Cop 5b Da Bak ne oni 28 ari Mare Pes Ei aa, ‘Sol prs pete a ese ‘Tage ssi sve ‘Cie anti ras companbomet “i pereinerSeter Revs re Prarie Pagan Direct de Calin me) {laura rar SPB Wr ems "Blo ea atid eine ed gaa ne Ye ato sen Sine ei i (io Cae Ramlo Dus Ari» Sl Pun Mies Fos, 2008 (Coke js deo) “Til ghar ie iterate Bona I9n 1. tine 2 ei dtu 3. Huron (es Tea parece state lt li pais 328 Todos ove dee aio par Bra reservaios Livaria Martine Foner Eaitora Leda, ‘Rue Comethle Rama, $3040 01325-000 Sho Plo SP Bra! To. (1) 32413677 Fax (11) 31056867 mal fomartinsfonescom br haptvienartafontes.com be : JOSEPH P. WALZER 1906-1981 “A. meméria do homem de bem é uma béngio.” Indice Prefcio Agradecimentos 1. Igualdade complexa... Pluralism nnn Teoria dos bens Predominio e monopilio.. Igualdade simples... Tirania e igualdade complexa, ‘Trés prinefpios distributivos. Livre intercambio. Mérito Necessidade Hierarquias ¢ sociedades de castas O cenétio da argumentagao .. 2. Afiliagéo. Membros ¢ estrangeiros . ‘Analogias: bairros, clubes e familias. Tenttério... ‘A ‘Austrdlia Branca” e a Refugiados... . Permanéncia definitiva e naturalizagao Os metecos atenienses... ‘Traballadores convidados AfiliagBo @ justiga mm 59 3. Seguranca e bem-estar social Afiliagao e necessidade Provisdo comunitéria Atenas nos séculos Ve IV. Una comunidade medieval judaica.. Parcelas justas A amplitude da provisao. Um Estado norte-americano de bem-estar social. O caso da assisténcia médica Nota sobre caridade e dependéncia... Os exemplos do sangue e do dinheiro. 4, Dinheiro e mercadorias O alcoviteiro universal. © que o dinheiro nao compra Oalistamento de 1863 Intercdimbios proibidos. O que o dinheiro compra Omercado.. A maior loja de departamentos do mundo... ‘Méquinas de lavar roupa, televisores, sapatos automéveis . Definicdo de salétios Redistribuigdes Doagdo e herang: . ‘Troca de presentes no Pacifico ocidental. O presente no Cédigo Napolednico 5. Cargos piblicos... Aiigualdade simples na esfera dos cargos pablicos Meritocracia. = O sistema chinés de exames O significado de qualificacao, ‘Qual é 0 problema do nepotismo’ Avreserva de cargos 85 90 1 95 104 112 14 122 124 127 127 130 131 133 139 145 148 151 156 161 16 166 168 175 17 183 189 195 200 202 206 21 A contengio de cargo. © mundo da pequena burguesia Controle dos trabalhadores Clientelismo.. 6. Trabalho arduo .. Igualdade e arduidade .. ‘Trabalho arriscado. Trabalho exaustivo. O Kibutz israelense. Trabalho sujo. Os lixeiros de So Francisco... 7. Lazer O significado do lazer. Duas formas de descanso... Breve histéria das férias A iidéia do sab... 8. Educagio ‘Ajimportincla das escolas A."Casa dos Jovens” asteca Educagao fundamental: autonomia ¢igualdad Hillel no telhado. . : O exemplo japonés.. Escolas especializada: ( periodo escolar de George Orwell. Associagio e segregacio.. Escolas particulares e v vule-educucio Separacio em turmas segundo a capacidade... Integragio e transporte escolar. Escolas de bai... 9. Parentesco e amor... As distribuigSes de afeto. Os guardies de Plato. 218 219 220 221 225 225 229 232 235 237 242 251 255 259 263 269 269 272 274 275 278 282 288 292 296 300 303 306 311 311 314 A questo feminina. 10. Graga divina... O mmuro entre Igreia e Estado. A comunidade puritana M1. Reconhecimento. ‘Aluta pelo reconhecimento Una sociologia dos titulos DistingSo ptiblica e mérito individual Os stakhanovistas de Std O Prémio Nobel de Literatura O triunfo romano e outros triunos.. Punigéo Prisiio preventioa.. Auto-estima e auto-respeit 12. Poder politico... Soberania e governo limitado Usos bloqueados do poder. Conhecimento/Poder... A nave do Estado, Instituigdes disciplinares... Propriedade/Poder caso de Pullman, Mlinois A cidadania democrética A loteria ateniense.. Partidos e primérias 13. Tixanias e sociedades justas....... Arelatividade e a ndo-relatividade da justia... 318 319 321, 323 324 328 333, 336 337 : A justiga no século XX.. Igualdade e mudanga social... Notas Indice remissivo 467 | . Prefacio A igualdade, em seu sentido literal, é um ideal propicio, a traigdio. As pessoas com ela comprometidas-a traem, ou parecem fazé-lo, assim que organizam um movimento pela igualdade e distribuem poderes, cargos e influéncias entre si. E um secretdrio executivo que sabe de cor o primeiro no- ‘me de todos os membros; é um adido de imprensa que tem habilidade notavel no trato com jornalistas; é um orador fa- moso € incansavel, que visita as sedes locais e “constréi a base”. Essas pessoas so necessérias, inevitdveis e, decerto, algo mais do que iguais para seus camaradas. Serdo traido- ras? Talvez sim - mas talvez nao. Os atrativos da igualdade ndo sao explicados pelo sig- nificado literal. Vivendo num estado autocratico ou oligar- guico, talvez sonhemos com uma sociedade em que 0 po- der seja compartilhado, e todos tenham parcelas exatamente iguais, Mas sabemos que igualdade desse tipo no sobrevive & primeira assembléia dos novos membros. Elegeréo um presidente, alguém que tera um discurso forte e nos con- vencerd a seguir suas ordens. No fim das contas, comecare- mos a classificar uns aos outros ~ é para isso que existem assembléias. Vivendo num Estado capitalista, talvez sonhe- mos com uma sociedade em que todos tenham o mesmo capital. Mas sabemos que 0 dinheiro igualmente distri- buido 20 meio-dia do domingo teré sido desigualmente re- distribuido antes do fim da semana. Algumas pessoas pou- xv ESFERAS DA JUSTICA pardo, outras investirdo e outras ainda gastardo (@ 0 fardo de diversas maneiras). O dinheiro existe para viabilizar to- das essas atividades; e, se nao existisse, o escambo de bens materiais levaria, s6 que um pouco mais devagat, aos mes- mos resultados. Vivendo num Estado feudal, talvez sonhe- ‘mos com uma sociedade em que todos os membros sejam. igualmente honrados e respeitados. Porém, embora possa- mos dar a todos o mesmo titulo, sabemos que é impossivel recusar-se a reconhecer ~ na verdade, queremos ser capa- zes de reconhecer ~ 0s tantos tipos e graus de habilidades, forca, sabedoria, coragem, bondade, energia e elegancia que distinguem um individuo do outro. Muitos de nés, que estamos comprometidos com a igualdade, também nao ficarfamos satisfeitos com o regime necessério para manter seu significado literal: o Estado pro- custiano. Frank Parkin escreveu que o igualitarismo parece exigir um sistema politico no qual o Estado seja capaz, de manter controle continuo sobre os grupos sociais e ocu- pacionais que possam, devido a suas habilidades, formacao, cultural ou atributos pessoeis[..] reivindicar uma parcela des- proporcional das recompensas da sociedade. A maneira mais, eficaz. de manter controle sobre esses grupos é negar-lhes 0 direito de se organizar politicamente.* Isso provém de um amigo da igualdade. Os advers4- ros apressam-se ainda mais a descrever a repressio que se- ria necesséria e 0 conformismo monétono e medonho que produziria. Uma sociedade de iguais, dizem eles, seria um mundo de falsas aparéncias, no qual as pessoas que nao fos- sem iguais seriam obrigadas a aparentar e agir como se 0 fossem. E as falsidades teriam de ser impostas por uma eli- te ou vanguarda cujos membros fingissem, em revezamen- to, que no existem. Nao é uma perspectiva tentadora. ‘Mas no era isso que querfamos dizer ao falar da igual- dade. Existem igualitérios que adotaram a argumentacdo de Parkin e se reconciliaram com a repressio politica, mas, esse é um credo cruel e, quanto mais compreendido, me- PREFACIO xv nos provavel se torna que atraia muitos adeptos. Nem os defensores do que chamarei de “igualdade simples” costu- mam ter em mente uma sociedade nivelada e conformista, Mas o que eles tm em mente? O que significa igualdade se 6 impossivel interpreté-la literalmente? Nao tenho como objetivo imediato formular as perguntas filoséficas conven- cionais: Em que aspectos somos todos iguais? E devido a qual caracteristica somos iguais nesses aspectos? Este livro inteiro é uma resposta a um tipo complicado da primeira dessas perguntas; & segunda nao sei responder, embora va sugerir no tltimo capitulo uma caracteristica importante. Decerto, porém, existe mais de uma: a resposta a segunda pergunta seria mais plausivel se apresentasse uma lista, em vvez de apenas uma palavra ou frase. A resposta relaciona- se com nosso reconhecimento miituo de seres humanos, membros da mesma espécie, e com 0 que reconhecemos como corpo, espitito, sentimento, esperanca e talvez até al- ‘ma, Para os fins-deste livro, presumo o reconhecimento. So- mos bem diferentes e também evidentemente semelhan- tes. Quais projetos sociais (complexos), entéo, se inferem da diferenca e da semelhanga? A raiz do significado da igualdade é negativa; o iguali- tarismo, em sua origem, é uma politica abolicionista. Nao pretende eliminar todas as diferencas, mas determinado conjunto delas, e um conjunto diferente em cada época e ugar. Seus alvos sio sempre especificos: privilégios, rique- za capitalista, poder burocrético, supremacia racial ou se- xual. Em todos esses casos, porém, as lutas se assemelham tum pouco. O que esté em jogo é a capacidade de um grupo de pessuas dumtinar seus semelhantes. Nao € 0 fato de existirem ricos e pobres quie gera a politica igualitéria, mas © fato de que os ricos “oprimem os pobres”, impoem-Ihes sua pobreza, exigem-Ihes comportamento respeitoso. De maneira semelhante, nao é a existéncia de aristocratas ¢ plebeus, ou de autoridades e cidados comuns (e, decerto, no é a existéncia das diversas ragas ou dos sexos) que pro- duza exigéncia popular de abolicao das diferencas sociais e XVI ESFERAS DA JUSTICA politicas; & 0 que os aristocratas fazem aos plebeus; 0 que as autoridades fazem aos cidadaos comuns; o que as pessoas que tém poder fazer aos que ndo tém. A experiéncia da subordinagio ~ sobretudo da subor- dinago pessoal - est por trés do ideal da igualdade. Os adversérios desse ideal costumam declarar que as paixdes «que estimulam a politica igualitatia so a inveja eo ressen- timento, e é bem verdade que essas paixSes infestam todos 10s grupos subordinados. Até certo ponto, sao elas que for- mam sua politica: donde o “comunismo tosco” que Marx descreveu em seus primeiros manuscritos, e que nada mais 6 que a representacao da inveja?. Mas a inveja e o ressenti- ‘mento sao paixdes incdmodas; ninguém gosta delas; e acho acertado dizer que o igualitarismo nao é tanto sua repre- sentago quanto uma tentativa de fugir & situagao que as produz. Ou que as tora letais — pois existe um tipo de in- veja que fica, por assim dizer, na superficie da vida social e ndo tem conseqiiéncias graves. Posso invejar a mao hébil de jardineiro do vizinho, ou sua bela voz de baritono, ou ‘mesmo sua capacidade de conquistar 0 respeito dos nossos amigos miituos, mas nada disso me levard a organizar um. movimento politico. objetivo do igualitarismo politico é uma sociedade livre da superioridade. Essa é a esperanca vigorosa 4 qual denomina a palavra igualdade: fim das mesuras e rapapés; das bajulagdes e adulacdes; fim do temor trémulo; fim dos todo-poderosos; fim dos senhores, fim dos escravos. Nao é a esperanga da eliminacao das diferencas; nao precisamos ser todos iguais nem ter a mesma quantidade de coisas ‘iguais. Todos sao iguais entre si (para todos os fins morais e politicos importantes) quando ninguém possui nem con- trola os meios de dominagao. Mas esses meios tém consti- tuigéo diferente em cada sociedade. Linhagem e sangue, latiftindios, capital, cultura, graca divina, poder do Estado — tudo isso tem servido, numa ou noutta época, para que al- gumas pessoas dominem outras. O dominio é sempre me- diado por algum tipo de bem social. Embora a experiéncia PREFACIO| xv seja pessoal, nada nas préprias pessoas determina seu ca- rater. Donde, novamente, a igualdade, conforme a sonha- ‘mos, nao exigir a repressdo de ninguém. Precisamos enten- der e controlar os bens sociais; nao temos de esticar nem encolher seres humanos. ‘A minha finalidade neste livro & descrever uma socie- dade na qual nenhum bem social sirva, ou possa servir, de meio de dominac&o. Nao tentarei descrever o que fazer para criar tal sociedade. A descrigo jé é bem dificil: igualitaris- mo sem 0 leito de Procusto; um igualitarismo vigoroso e aberto que no seja par do significado literal da palavra, mas dos mais ricos acess6rios do ideal; um igualitarismo que seja compativel com a liberdade. Ao mesmo tempo, nao é meu objetivo esbocar uma utopia localizada em lugar nenhum ou um ideal filoséfico aplicdvel a qualquer lugar. A sociedade de iguais esté ao nosso alcance. I uma possibili- dade pratica aqui e agora, que jé esté latente, como tentarei demonstrar, na:nossa percepséo comum dos bens sociais. ‘Nossa percepeZo comum: o ideal é relevante para o mundo social no qual se desenvolveu; nfo é relevante, ou nao 0 é obrigatoriamente, a todos os mundos sociais. Encaixa-se em certa concepgao de:como os seres humanos'se relacio- nam uns com 0s outros e como usam 0 que criam para en- gendrar suas relagdes. Minha argumentacdo é radicalmente particularista. Nao afirmo que me distanciei muito do mundo social em que vivo. Um modo de iniciar a empreitada filoséfica — talvez 0 modo original - é sair da caverna, sair da cidade, escalar a montanha, criar para si (0 que-nao pode jamais ser criado para pessoas comurs) ui Objelive & ua perspective us versal. Assim, descreve-se o terreno da vida cotidiana a dis- t€ncia, para que perca os contornos particulares e assuma um formato geral. Mas pretendo ficar na caverna, na cida~ de, no chao. Outro modo de filosofar é interpretar para os semelhantes 0 mundo de significados que compartilha- mos. £ possfvel conceber a justica e a igualdade como arte- fatos filos6ficos, mas a sociedade justa ou igualitria néo XVII ESFERAS DA JUSTICA pode ser assim concebida. Se tal sociedade ainda nao exis- te —oculta, por assim dizer, em nossos conceitos e catego- rias ~ jamais a conheceremos concretamente ou a percebe- remos de fato. Para sugerir a possivel realidade do igualitarismo (de certo tipo dele), tentei trabalhar minha argumentagZo por intermédio de exemplos contemporéneos e hist6ricos, rela- tos de distribuigdes na nossa prépria sociedade e, & guisa de comparagio, numa série de outras sociedades. As distri- buigdes nao geram relatos impressionantes, e raramente consigo contar as histérias que gostaria de contar, com ini- cio, meio e um fim que contenha uma moral. Meus exem- pplos so esquemas toscos, 3s vezes concentrados nos agentes da distribuicdo, &s vezes nos métodos, as vezes nos critérios, as vezes no uso e no significado do que compartilhamos, di- vvidimos e trocamos. Esses exemplos pretendem: demons- trar a forga das coisas em si ou, pelo contrétio, a fora dos nossos conceitos das coisas. Construfmos o mundo social tanto com a cabeca quanto com as maos, é 0 mundo em es- ppecial que criamos se presta a interpretagoes igualitérias. ‘Nao, repito, para um igualitarismo literal ~ nossos concei- tos so complexos demais para tanto; mas tem a tendén- cia estavel de proscrever 0 uso das coisas com finalidades dominadoras. Essa proscrigo tem sua fonte, creio, menos num con- ceito universalista das pessoas do que num coneeito plura- lista dos bens. Assim, nas paginas seguintes imitarei John Stuart Mill e desprezarei (quase todas) as vantagens que minha argumentagao pudesse extrair da idéia de direitos pessoais isto é humanos ou naturais’. Alguns anos atrés, quando escrevi sobre a guerra, fundamentei-me bastante na idéia dos direitos, pois a teoria da justica na guerra pode, de fato, provir dos dois direitos mais fundamentais e mais reconhecidos dos seres humanos ~ e em sua forma mais simples (negativa): nao ser privado da vida ou da liberda- det. Talvez 0 mais importante é que esses dois direitos pa~ recem responséveis pelos juizos morais mais comuns em PREFACIO| xx tempos de guerra. Funcionam mesmo. Mas sua utilidade é limitada no raciocinio acerca da justica distributiva. Bu os invocarei principalmente nos capitulos sobre afiliagio bem-estar social; mesmo nesses capitulos, no nos levaréo muito longe na substéncia da argumentacao. A tentativa de produzir uma teoria completa da justiga ou uma defesa da igualdade por meio da multiplicagao dos direitos logo trans- forma em farsa aquilo que multiplica. Dizer, de qualquer coisa que acreditemos que as pessoas devem ter, que tém 0 direito de t8-lo nao é dizer muito. Os seres humanos tém, de fato, direitos que transcendem a vida e a liberdade, mas cles no provém da humanidade que temos em comum; pro- vém de conceitos compartilhados de bens sociais; sao lo- cais e particulares em caréter. Contudo, nem o princfpio da utilidade de Mill pode funcionar como apelo supremo ein argumentagdes sobre a igualdade. “Utilidade no sentido mais amplo” pode funcio- nar, suponho, de qualquer maneira que desejarmos. Mas 0 utilitarismo cléssico talvez exigisse um programa coorde- nado, um plano central especialissimo, para a distribuiggo dos bens sociais. E, embora o plano talvez produzisse algo semelhante a igualdade, nao produziria a igualdade que descrevi, livre de todos os tipos de dominagdo: pois o poder de seus planejadores seria predominante. Se pretendemos respeitar os objetivos sociais, as distribuigées néo podem ser coordenadas, seja com relagao & felicidade geral ou a qualquer outra coisa. 86 se evita a dominacéo se os bens sociais forem distribuidos por motivos claros e “internos”. Explicarei o que isso significa no primeiro capitulo e, de- pois, argumentarei que a justiga distributiva nao é —o que 0 utilitarismo decerto é— uma ciéncia integrada, mas a arte da diferenciagéo. Ea igualdade é simplesmente o resultado dessa arte ~ pelo menos para nés, que trabalhamos com o material de que aqui dispomos. No restante do livro, ento, tentarei des- crever esse material, as coisas que criamos e distribuimos, ‘uma por uma, Tentarei chegar & importéncia que tém para x ESFERAS DA JUSTICA 16s a seguranca e 0 bem-estar social, 0 dinheito, os cargos, a educacao, os periodos de folga, o poder politico ete; como ram em nossa vida; e como poderiamos compartilhar, dir e trocd-los se estivéssemos livres de todos os tipos de dominagio. Princeton, Nova Jersey, 1982 Agradecimentos Agradecimentos e citagSes so questdo de justiga dis- ‘ributiva, a moeda com a qual pagamos nossos débitos in- telectuais, O pagamento é importante; de fato, hé um dita- do no Talmude segundo o qual,’ quando um académico agradece a todas as fontes, torna mais préximo o dia da re~ dengio. Mas nao é fécil fazer esse agradecimento comple- to; é provavel que nao percebamos, ou no sejamos capa~ zes de reconhecer, muitos dos nossos mais profundos débi- tos— assim, 0 grande dia ainda esté bem distante. Até nes- te aspecto a justica é incompleta e imperfeita. No ano académico de 1970-71, dei um curso na Har- vard University, junto com Robert Nozick, sobre 0 assunto “Capitalismo e Socialismo”. O curso teve a forma de deba- tes, e metade desses debates encontra-se em Anarquia, Estado e utopia (Anarchy, State, and Utopy ~ Nova York, 1974 ¢ Rio de Janeiro, 1991); este livro contém a outra metade. Nao tentei responder pormenorizadamente 3s opiniées de Nozick, mas apenas elaborei minhas proprias. posturas. Devo mais do que sou capaz de expressar, porém, a nossas conversas e discordancias. Varios capitulos do livro foram lidos e debatidos em encontros da Society for Ethical and Legal Philosophy e em seminérios patrocinados pela School of Social Science do Institute for Advanced Study: Sou grato a todos os. mem- bros da sociedade e aos colegas do instituto durante os 2m ESPERAS DA JUSTICA anos académicos de 1980-81 ¢ 1981-82. Quero agradecer especialmente aos conselhos e &scrticas de Jonathan Bennett, Marshall Cohen, Jean Elshtain, Charles Fried, Clifford Geertz, Philip Green, Amy Gutmann, Albert Hirschman, Michael McPherson, John Schrecker, Marc Stier e Charles Taylor. Judith Jarvis Thomson leu todo o manuscrto e indicou todos (0 pontos em que, embora eu tivesse todo o direito de dizer 0 que disse, tetia sido melhor se eu tivesse elaborado uma ar- gumentacao. E eu tentei fazer as argumentagées, embora nem sempre com a profundidade que ela (e eu) teria gostado. Robert Amdur, Don Herzog, Irving Howe, James T. Johnson, Marvin Kohl, Judith Leavitt, Dennis Thompson e John Womack, cada um deles leu um capitulo do livro e ofereceu conselhos titeis. Minha esposa, Judith Walzer, leu grande parte dele, conversou comigo sobre tudo e me auxi- iow no empenho de dizer algo, embora de maneira bem re- sumida, sobre parentesco e amor. Ninguém que escreva sobre a justiga hoje em dia pode deixar de reconhecer e admirar as conquistas de John Rawis. No texto, discordei principalmente de A Theory of Justice (Cambridge, Mass,, 1971). Minha empreitada é bem dife- rente da de Rawls, e fundamenta-se em outras disciplinas académicas (historia e antropologia, em vez de economia e psicologia). Mas ndo teria tomado a forma que tomou — po- deria nao ter tomado forma nenhuma ~ sem a obra dele. Dois outros filésofos contemporéneos aproximam-se mais do que Rawls da minha teoria da justiga. Em Justice and the ‘Human Good (Chicago, 1980), William M. Galston afirma, como eu, que os bens sociais “dividem-se em diversas ca~ tegorias”, e que “cada uma dessas categorias traz & tona ‘um conjunto préprio de reivindicagoes”. Em Distributive Justice (indianépolis, 1966), Nicholas Rescher defende, como eu, uma teoria “pluralista e heterogénea” da justica. Mas, ‘na minha opinio, 0 pluralismo dessas duas argumentacées, é invalidado pelo aristotelismo de Galston e pelo utilitarismo de Rescher. A minha argumentacdo néo se baseia nesses vin- culos estruturais. AGRADECIMENTOS xa O capitulo sobre afiliago, em versio anterior, figurou ‘em Boundaries: National Autonomy and lis Limits, editado por Peter G. Brown e Henty Shue e publicado pela Rowman and Littlefield (Totowa, N. J,, 1981). Sou grato aos editores pelos comentétios e pelas criticas, ¢ & editora pela permis- so para reimprimir 0 texto aqui. Uma parte do capitulo 12 foi publicada em The New Republic (3 ¢ 10 de janeiro de 1981). ‘Alguns dos textos reunidos no meu livro Radical Principles (Nova York, 1980), publicados originalmente na revista Dissent, so exposigdes primitivas e provisérias da teoria aqui apresentada. A resenha critica de Radical Principles de Brian Barry, publicada em Ethics (janeiro de 1982) me aju- dou a reformulé-los. Os dois versos de “In Time of War” de W. H. Auden foram extrafdos de The English Auden: Poems, Essays, and Dramatic Writings, 1927-1939, editado por Ed- ward Mendelson (Nova York, 1978). Mary Olivier, minha secretéria no Institute for Advan- ced Study, datilografou o manuscrito e voltou a datilogra- far, imtimeras vezes, com preciso infalivel e paciéncia ines- gotdvel. Por fim, Martin Kessler e Phoebe Hoss, da Basic Books, ofereceram 0 tipo de incentivo e conselhos editoriais que, numa sociedade perfeitamente justa, todos os autores rece- berdo. Pluralismo Justica distributiva é uma idéia abrangente. Traz & flexo filos6fica todo. mundo.dos bens, Nao se pode omi- nada; nenhuma faceta da nossa vida normal. escapa & ponderagio. A Sociedade humana é uma comunidade dis- _tributiva. ‘Nao é sd isso, mas é fundamentalmente isso: nés nos feunimos para compartilhar, dividir e trocar. Mas a pr6- pria confeecdo ~ o trabalho em si ~ é distribuida entre nés em uma divisio de trabalho. Meu lugar na economia, mi- nha situasio na ordem politica, minha reputagao entre os. pares, minhas posses materiais: tudo isso me vem de outros seres humanos. Pode-se dizer que ter o que tenho é certo. | ou errado, justo ou injusto; mas, face-d.extensao das distri. bulges ‘e ao nimero.de participantes, esses juizos nunca sao \ eis. | "A idéia de justica distributiva tem tanta relagéo com 0 ser e 0 fazer quanto com o ter, com a produgao quafito com 6 constimo, com a identidade e o status quanto com a ter- 13, 0 capital ou as posses pessoais. Diferentes arranjos pol i ticos'impoem’e diferentes ideologias justificam as diversas, distribuigdes de aflliagio, poder, homenagens, eminéncia ritual, graca divina, parentesco e amor, cultura, riquezas, seguranca lisica, trabalho e lazer, gratificagdes e punig6es, € ‘uma infinidade de bens concebidos de maneira mais restri- 1. Igualdade complexa 2 ESFERAS DA JUSTICA tae material - alimentos, abrigo, roupas, transportes, assi téncia médica, todos os tipos de mercadorias e todas as ou- tras coisas (quadros, livros raros, selos postais) que os seres humanos colecionam. E essa multiplicidade de bens se com- bina com uma multiplicidade de métodos, agentes e crité- rios de distribuicdo. Existem sistemas distributivos simples = galés, mosteiros, manicémios, jarcins-de-infancia (embo- xa todos, se examinados com atengao, possam exibir com- plexidades inesperadas); mas nenhuma sociedade humana ‘madura jamais evitou a multiplicidade. Precisamos estudé- Ios todos, os bens e as distribuiges, em muitos locais e épo- cas distintas, Nio existe, contudo, apenas um ponto de acesso a esse mundo das ideologias e dos sistemas de distribuigao. Ja- mais houve um meio de troca universal. Desde o declinio da economia de escambo, o dinheiro tem sido 0 meio mais, ‘comum. Mas a velha médxima, segundo a qual existem coi- a8 que o dinheiro ndo compra, nao é sé uma verdade nor- ‘mativa, mas verdade de fato. O que se deve ou nao se deve vender compete &s pessoas decidir, ¢ elas 0 tém decidido de diversas maneiras. Em toda a histéria, o mercado tem sido um dos mais importantes mecanismos de distribuicéo de bens sociais; mas nunca foi, ndo é hoje em lugar nenhum, um sistema distributivo completo. Analogamente, jamais houve um s6 ponto de decisio do qual se controlassem todas as distribuig6es, ou apenas um conjunto de agentes a tomar decisdes. Estado nenhum jamais teve penetragao de poder suficiente para regulamen- tar todos os tipos de partiha, divisio e troca que modelam a sociedade. Hé coisas que escapam ao alcance do Estado; surgem novos padrdes — redes familiares, mercados negros, aliangas burocraticas, organizagGes politicas e religiosas clan- destinas. As autoridades do Estado podem tributar,alistar para o servico militar, distebuir, utros agentes de distribui- 6&0. Eninguém pode fazer isso também: existem monopé IGUALDADE COMPLEXA 3 lios e golpes no mercado, mas nunca houve uma conspira- edi ~E, por fim, jamais houve um critério tnico, ou conjun- to tinico de critérios intertigados, para todas as distribui- ses. Mérito, classificacao, hereditariedade, amizade, ne- cessidade, livre intercdmbio, lealdade politica, decisao de- mocrética: cada uma tem seu lugar, juntamente com muitas outras, e coexistem de maneira tensa, convocadas por gru- pos concorrentes, confundidas umas com as outras. Na questo da justica distributiva, a histéria nos mos- tra uma diversidade de sistemas e ideologias. Mas o prime 10 impulso do fil6sofo é resistir is demonstracBes, va, ao mundo das aparéncias, procurar alguma.. dad, fundamental: uma breve lista de bens essencias, rapide “parando=se; péld menos simbolicamente, a \ torde decisiio: Demonstrarei que procurar.unidade € ¢ certa forma o-impulso filoséfico é inevitavel. Mesmo que) optemos pelo pluralismo, como farei, tal escolha ainda ex ge uma defesa coerente. Deve haver principios que juistifi- quem a éscolha e definam limites para ela, pois o pluralis- mo néo exige o nosso endosso de todos os critérios distri- butivos propostos nem que aceitemos todos os candidatos a agentes. Pode-se conceber que haja um principio tinico e ‘um tinico tipo legitimo de pluralismo. Mas, ainda assim, se~ ria um pluralismo que compreenderia uma vasta gama de distribuigdes. Em contrapartida, a mais profunda hipétese da maioria dos filésofos que escreveram sobre a justiga, a partir de Plato, é que existe um, e somente um, sistema distributivo que a filosofia possa abracar corretamente. . 4 : Is Hioje em ia, esse sistema costuma ser deserito como cq aquele que pessoas idealmente racionais ideais escolhe- riam se fossem obrigadas a escolher de maneira imparcial, ”) no sabendo nada acerca da prépria situagao, impedidas de / fazer reivindicacdes particularistes, deparando-se com um 4 ESFERAS DA JUSTICA conjunto absirato de bens’. Se essas restrigdes aos conheci- mentos e as reivindicagées tiverem formato adequado, e se os bens estiverem adequadamente definidos, talvez seja ver- dadeira a possibilidade de se apresentar uma conclusao tini- ca, Seres humanos racionais, restringidos desta ou daquela maneira, escolherao um, e somente um, sistema distributi- Yo. Mas néo é facil avaliar a forca dessa conclusio singular. E, decerto, duvidoso que essas mesmas pessoas, caso se ‘ransformassem em pessoas comuns, com percepcéo firme da propria identidade, com seus préprios bens em méos, envolvidas nos problemas cotidianos, reiterassem sua esco- Iha hipotética, ou mesmo a reconheceésem como sua. O problema nao esté, 0 que é mais importante, no particula- rismo dos interesses, que os filésofos sempre presumitam poder deixar de lado com seguranea — isto é, de maneira in- controversa. As pessoas comuns também fazem isso, em nome, digamos, do interesse piiblico. O maior problema _,> esté no particularismo da histéria, da cultura e da afliacéo. ‘Mesmo que estejam comprometidos con’a imparcialidade, a questo com mais probabilidade de surgir na cabeca dos membros da comunidade politica néo € "O que os indivi- duos racionais escolheriam em situagdes universalizantes de tal tipo?”. Mas, pelo contrério, “O que escolheriam indi- viduos como nés, situados como nés, que compartilham uma cultura e esto decididos a continuar compartilhando- a?”. Bessa é uma questo que logo se transforma em “Quais opgées jé fizemos no decorrer da nossa vida cotidiana? | Quais entendimentos compartilhamos (realmente)?”. ‘A justica é invenc&o humana, @ duvida-se que seja'fei- ta de uma 86 maneira. Seja como for, vou comecar duvi- dando, e mais que duvidando, desse pressuposto filosofi- co comum. As questdes apresentadas pela teoria da justi- a distributiva admitem uma série de respostas, e hA espaco dentro dessa série para a divetsidade cultural e as opgées politicas. Nao é s6 questo de implementar algum principio singular ou conjunto tinico de principios em diversas circuns- tancias historicas. Ninguém negaria que existe uma série de IGUALDADE COMPLEXA 5 implementacdes moralmente permissiveis. Quero defen: "> der mais do que isso: que os prineipios da justica sfo phurg~ J, listas na forma; que os diversos bens sociais devem ser dis- tribuidos por motivos, segundo normas e por agentes di 05; € que toda essa diversidade provém das interpretacdes variadas dos proprios bens sociais ~ 0 inevitavel produto do patticularismo histérico e cultural. Teoria dos bens As teorias da justica distributiva concentram-se num processo social comumente definido como se tivesse a se- guinte forma: ‘As pessoas disrbuem bens para (utras) pessoas. Aqui, “distribuir” significa dar, repartir, trocar e assim por diatitee-e-foco-esté-nos individiios que ficamn eri.cada extremo desses atos: nao nos'prodiutores ¢ consumidores, —mas-ni ss disttibuiidores e recebedores dos bens. “Estamos sempre interessados em 16s mesmos, mas, nesse caso, numa versio especial e limitada de nds mesmos, como pessoas que dao e recebem. Qual é a nossa natureza? Quais, sio 08 nossos direitos? De que precisamos, 0 que quert ‘mos, 0 que merecemos? A que temos direito? O que ac tarfamos nas circunstncias ideais? As respostas a essas per guntas transformam-se nos principios distributivos, os quais se espera que controlem a circulacéo dos bens. Considera- se que os bens, definidus por abstiagév, so Lanspurtévels em qualquer direcao. Mas essa é uma explicacio simples demais do que real- mente acontece, e nos obriga a fazer declaragoes precipita- das e abrangentes sobre a natureza humana. a agéncia mo- ral—declaracbes com pouca probabilidacle de merecer con- cordancia geral. Quero propor uma definigéo mais precia e complexa do processo central: 6 ESPERAS DA JUSTICA As pessoas concebem e criam bens, que entito distribuem entre si. Nesta definigdo, a concepgao e a criagdo precedem e }_ controlam a distribuico. Os bens no aparecem nos gru- aye \\ pos de agentes distribuidores que fazem com eles 0 que \s querem ou os distribuem segundo algum principio geral? Pelo contrério, os bens com seus significados ~ por causa de seus significados ~ sio o meio fundamental das relagGes so- ciais, entram nas mentes antes de passar pelas mos; as dis- ‘tribuig6es se modelam segundo conceitos compartilhados do que so os bens e para que server, Os agentes distri- buidores sao constrangidos pelos bens que detém; pode-se quase dizer que os bens se distribuem por si mesmos entre 2 pessoas. As coisas estdo na sela E cavalgam a humanidade? ‘Mas so sempre coisas particulares e grupos particula- res de setes humanos. E, naturalmente, somos nés que fa- zemos as coisas — até a sela. No quero negar a importancia ‘da iniciativa humana, apenas deslocar a nossa atengéo da / distribuigéo para o conceito e a criacio: 0 ato de dar nome A\o.a0s bens, e a concessio de significado, e a criacéo coletiva. ~~ que precisamos, para explicar ¢ lipitacopluralismo das oh? cpossibilidades distributivas, é de umateoria dos Ben’ Para (07, ) Reepata todas as fnalidactes prices, se permanecessem sem _psentido, ss wy 4. Mas € 0 significado dos bens)que define sua movi- 4} mentagio. Os critérios e-os écordos distributivos nao so . _intrinsecos ao bem em si, mas ao bem social. Se entender- mos 0 que ele é, 0 que significa para aquele para quem & we um bem, entenderemos como, por quem e por quais moti- vos deve ser distribuido, Todas as distribuic6es so justas ou IGUALDADE COMPLEXA 9 injustas em relago aos significados sociais dos bens em questo. Isso 6 obviamente um principio da legitimagéo, mas também é um principio critico*. Quando os cristos medie- vais, por exemplo, condenavam o pecado da simonia, esta ‘vam declarando que o significado de determinado bem so- cial, um oficio eclesiéstico, exclufa sua venda ou compra Segundo a interpretagio crista de oficio, concufa-se que ~ estou inclinado a dizer que se conclufa obrigatoriamente ~ 0s detentores de oficios deviam ser escolhidos segundo os conhecimentos e a devosio, e nao pela riqueza. Presume se que existam coisas que o dinheiro compra, mas ndo essa, De maneira semelhante, as palavras prostituigio e suborno, assim como simonia, definem a venda e a compra de bens que dais cers interpretages de seu significado, jamais deveriam ser vendidos ou comprados. 5, O& significados soeiais-sao-histéricos-em-cardtes tanto, as distribuigies, © 6 distribuigoes justas e injustas, mudam com o tempo. Decerto alguns bens essenciais tem © que podemos imaginar como estruturas normativas ca~ racteristicas, reiteradas além dos limites (mas nem todos os limites) do tempo e do espago. E devido a essa reiteracao que 0 filésofo inglés Bernard Williams pode afirmar que os bens devem sempre ser distribufdos por "motivos relevan- tes" donde relevancia parece vincular-se aos significados etnareiee aa eee ‘patrocinaiitppssar muito bem estar em, conden de por ears pe er em pe aie eee 10 -ESFERAS DA JUSTICA essenciais, e nao aos sociais.” A idéia de que os cargos, por ‘exemplo, devem ser entregues a candidatos qualificados - embora no seja a tinica idéia que se tem dos cargos ~ é bem nitida em sociedades bem distintas onde se conside- ram igualmente pecaminosos ou injustos a simohia e o ne- potismo, com os mais diversos nomes. (Mas ha muitas di- vergéncias de opinides sobre quais tipos de fungdes e postos recebem adequadamente o nome de “cargos”.) Ademais, quase sempre se entende que castigo é um bem negativo que se deve aplicar a quem é julgado merecedor por meio de veredicto, e nao de decisdo politica. (Mas o que constitui © veredicto? Quem deve pronuncié-lo? Como, em resumo, aplicar a justiga aos réus? Tem havido muitas discordancias acerca dessas questdes.) Esses exemplos suscitam investi- Bagio empitica, | Nao existe método meramente intuitivo ou especulati- vo para apoderar-se de motivos relevantes. 6. Quando os significados séo diferentes, as distribui- goes devem ser auténomas. Todo bem social ou conjunto de bens sociais constitui, por assim dizer, uma esfera distri- butiva dentro da qual s6 so apropriados certos critérios e acordos. O dinheiro é inadequado na esfera dos oficios ecle- sidsticos; é intruséo de outra esfera. E a devocio nio deve implicar nenhuma vantagem no mercado, tal como o mer- cado é comumente entendido. Tudo o que se pode vender ‘com justiga deve ser vendiclo aos devotos e também aos pro- fanos, hereges e pecadores (senao ninguém faria negécios). O mercado esté aberto a todos; a igreja no esté. Em ne- nhuma sociedade, é claro, os significados sociais sdo total- mente diferentes. O que acontece numa esfera distributiva afeta o que acontece nas outras; podemos procurar-no.mé- ‘eat, ximo, uma autonomia relativa. Mas a autonomia assim como o significado social, é um principio critica — de fato, conforme argizmentarei em todo este livro, um princf- pio radical. Eradical, mesmo que nao indique apenas um Modelo Belo qual se devam.avaliar todas as distribuigées. ‘No existe modelo tinico. Mas existem modelos (grosso modo defi coms ay "" lizado seripré qué apenas uma pessoa, monarca no mundo IGUALDADE COMPLEXA n inteligiveis, mesmo quando também controversos) para to- dos os bens sociais ¢ todas as esferas distributivas de cada sociedade; e esses modelos so quase sempre transgredi- dos, 0s bens sdo usurpados, as esferas s4o invadidas, pelos poderosos. Predominio e monopélio ~ De fato, as transgressées sio sisternticas. feonopla € questdo de significado social e valores compartiifados, porém é mais provavel que provoque reformas e rebelides ocasionais do que adesio cotidiana. Apesar-de-todara com- plexidade de seus arranjos distributivos, a maioria das so- ciédades se organiza sobre 0 que poderiamos pensar Como nha versio social do padréo-ouro: um bem ou um conjun-, to de bens predomina e determina o valor em todas as est - feras da distribuiicio_E esse bem ou conjunto de bens cos- tuma ser monopolizado, seu valor mantido pela forca dominante se i uma vasia série de outros bens. Emonopo) dos Valores - ou.um grupo, oligarea—osmyantém cont éxi- to contra todos os rivais. O(predomifnio define um modo de usar os bens sociais que naoresté limitado por seus signifi- cados intrinsecos, ou gue molda tais significados a sua pr6- pria imagem. (ono ae ‘um modo de possuir ou controlar os béns-soctais para explorar seu predominio. ‘Quando os bens so escassos e ha grande nevessidade de~ Tes, como a Agua no deserto, o proprio monopélio os trans- forma em predominantes. Em geral, porém, o predominio 6 uma criacdo social mais elaborada, obra de muitos gru- . pos, que misturarealdade esimbolo, Fora sea renome 7, 9 ni de fafa, cargo poltco ou religoso,aifindios, capita (* ' saber tecnolégico: cada uit em periodos histéricos distin- ~~~ tos, teve predominio; e cada um foi monopolizado por al-_ ow a 2 ESFERAS DA RUSTICA gum grupo-F assim, tudo o que é bom passa as méos da- queles que tém o que ha de melhor. Basta possuir o melhor para que o resto venha a reboque. Ou, para trocar de meté- fora, o bem predominante é convertido em outro bem, em muitos outros, segundo o que quase sempre parece um pro- cesso natural, mas é, na verdade, mégico, uma espécie de alquimia social. ‘Nenhum bem social predomina inteiramente sobre to- dos os bens; nenhum monopélio é perfeito, Pretendo des- crever apenas tendéncias, mas tendéncias fundamentais, pois poclemos caracterizar sociedades inteiras em relagao aos padrées de conversad dentro delas estabelecidos. Algu- ‘mas Caracterizages sto simples: na sociedade capitalista, 0 capital é predominante e imediatamente convertido em prestigio e poder; na tecnocracia, o saber técnico tem 0 mesmo papel, Mas néo é dificil imaginar, ou descobrir, or- ganizacbes sociais mais complexas. De fato, o capitalismo e a tecnocracia so mais complexos do que esses nomes indi- cam, mesmo que os nomes oferegam informagies reais so- bre as formas mais importantes de partilha, divisdo e troca. Q.ontrole monopolista de um bem predominante cria uma classé dominante, cujos membros ficam no.topo do sistema distributive = muito como fildsofos, afirmando terem ber que amam, poderiam gostar de ser. Rorém, j& que o pi Smiinio é sempre incompleto e o monopélio ¢ imperfeito, sl es : WY) 0 poder de toda classe dominarite € instavel. ff incessante- ~~ ‘mente desafiado por outros grtipos em nome de padrdés altemativos de conversio. ‘O'motivo do conflito social sempre é a distribuicio. A + ocultar de nés a simples verdade de que a luta pelo contro- >, Je dos meios de produgéo é uma luta distributiva. Esto em Do jogo terra e capital, e esses so bens que podem ser com- pattilhados, divididos, trocados e incessantemente conver tidos. Mas terra e capital no so os tinicos bens predomi nantes; é possivel (tem sido historicamente possivel) che- gara eles por meio de outros bens — poder politico ou mili- ys forte énfase de Marx nos processos produlivus no deve Sy Ay IGUALDADE COMPLEXA, a tar, cargo religioso e carisma etc. A histéria ndo revela ne- hum bem predominante e nenhum bem naturalmente pre- dominante, mas somente tipos diversos de magia e de ban- dos de magos adversarios. ‘A pretensdo de monopolizar um ben predominante - quando tem finalidades piiblicas — constitui uma ideologia Sua forma comum é vincular a posse legitima a algum con- junto de qualidades pessoais por meio de um principio filo- séfico, Assim, a aristocracia, ou governo dos melhores, é © prinefpio dos que reivindicam direito de linhagem e inteli- sgéncia: sdo, em geral, os monopolistas de latifiindios e de renome familiar. A supremacia divina é o principio daque- les que afirmam conhecer a palavra de Deus: so os mono- polistas da graca e do oficio. A meritocracia, ou carreira aberta a talentos, é principio dos que se declaram talento- sos: so, com mais freqliéncia, os monopolistas da educa- lo. O livre intercdmbio 6 o principio dos que estao dispos- tos, ou nos dizem que estéo dispostos, a pér seu capital em risco: so os monopolistas dos valores mobilidrios. Esses ‘grupos ~e outros, também definidos por seus principios ou posses ~ concorrem uns contra 0s outros, lutando pela su- premacia. Um grupo vence, depois outro grupo; ou organi- zam-se coaliz6es ¢ se divide, com desconforto, a suprema- cia. Nao ha vitéria final, nem deveria haver. Mas isso nao quer dizer que as reivindicagdes de cada grupo estejam obrigatoriamente erradas, nem que os principios aos quais apelam nao tenham valor como critérios de distribuigao; os princfpios quase sempre estdo corretos, dentro dos limites de determinada esfera. As ideologias se corrompem rapi- damente, mas sua vosrupgao ndo € o que tén de mais inte- ressante ‘Eno estudo dessas lutas que procurei o fio condutor de ‘minha propria argumentagio. As lutas tém, acredito, uma forma paradigmatic. Um grupo - classe, casta, estrato, alianga ou formagao social ~ passa a desfrutar do monop6- lio ou de um quase monopélio de algum bem predominan- te; ou uma coalizao de grupos passa.a desfruté-lo, e assim 14 ESFERAS DA JUSTICA por diante, Esse bem predominante é convertido de manei- ra mais ou menos sistemética em tocios os tipos de outras coisas ~ oportunidades, poderes e reputagdes. Assim, a ri- queza € conquistada pelos fortes, a honra pelos bem-nasci- dos, os cargos pelos mais cultos. Talvez haja uma convicgao geral de que a ideologia que justifica a conquista é verda- deira, Mas 0 ressentimento e a resisténcia também so con- viegSes (quase) to difundidas. Sempre hé algumas pes- soas, e depois de algum tempo ha muitissimas, que acham que a conquista nao é justica, mas usurpagao. O grupo do- minante nao possui, ou nao possui exclusivamente, as qua- lidades que declara ter; 0 processo de conversao transgride a interpretaso comum dos bens em jogo. O conflito social é intermitente, ou endémico; a certa altura, apresentam-se contra-reivindicagSes, Embora sejam de muitos tipos, trés tipos gerais so importantissimos: 1. A declaragio de que o bem predominante, seja qual for, deve ser redistribufdo para que possa ser compartilhado com igualdade ou, pelo menos, de manera mas abran- _- gente: é 0 mesmo que afirmar que o monoplio ¢injusto. (faerie te emanate p/\— puigdo autdnoma de todos os bens sociais: 0 mesmo que afirmar que o predominio é injusto. 3. A declaragio de que algum bem novo, monopolizado por lum grupo novo, deve substituir o bem atualmente predo- minante: é 0 mesmo que afirmar que o padrio existente de predominio e de monopélio é injusto. A terceira declaragio é, na opinido de Marx, o modelo de toda ideologia revoluciondria ~ com excesao, talvez, da Ultima ideologia, ou proletatia ideologia. Assim foi a Revo- lugdo Francesa na teoria manxista: o predominio do berco e do sangue nobre e do latifiindio feudal chega ao fim, ea ri- queza da burguesia se estabelece em seu lugar. A situagio original é reproduzida com sujeitos e objetos diversos (isso nunca deixa de ser importante), ¢ entdo a luta de classes se renova imediatamente, Nao tenho aqui a intengo de en- IGUALDADE COMPLEXA a dossar ou criticar a tese de Marx. Desconfio, de fato, que hé ‘um pouco das trés declaragées em todas as ideologias revo- lucionérias, mas isso, também, nao é postura que eu pre- tenda defender aqui. Seja qual for sua importancia sociol6- gica, a terceira declaracfio nao tem interesse filossfico-anao ser que alguém acredite que existe um bem naturalmente predominante, de modo que seus possuidores possam rei- vindicar com legitimidade o poder sobre todos nés, De cer- ta forma, Marx acreditava exatamente nisso, Os meios de produgao séo os bens predominantes de toda a histéria, e 0 ‘marxsmo é uma doutrina historicista por afirmar que quem controla os meios mais importantes tern o poder legitimo®. Depois da revolucdo comunista, todos controlaremos os meios de produs&o: nesse ponto, a terceira declaragao se re- sume A primeira. Enquanto isso, 0 modelo de Marx é um programa de luta distributiva incessante. Importaré, ¢ cla- ro, quem vence neste ou naquele momento, mas no sabe- remos por que rem como importa se s6 dermos atencao as alegacoes sucessivas de predominio e monopslio. Igualdade simples ‘das duas primeiras pretensdes que tratarei e, por fim, somente da segunda, pois ela me parece captar melhor a pluralidade dos significados sociais e a verdadeira comple xidade dos sistemas distributivos. Mas a primeira é a mais comum entre os fil6sofos; combina com sua propria procu- ra de unidade e singularidade; e precisarei explicar suas di- ficuldades com algum grau de mind Quem expressa a:prim: nsf se opde a0 mo~ nopélio, mas nao ao predominio de determinado bem o> 6 um desafio ao monopélio em geral, pois, se ‘a tiqueza, por exemplo, for predominante e compartilhada de maneira abrangente, talvez: no seja possivel monopoli- zar nenhum outro bem. Imaginemos uma sociedade na qual tudo esta a venda e todo cidadao tem tanto dinheizo quan- é ae rmetrafitio * furdomadn, | “yy \ 45 % to qualquer outro, Chamarei a isso de “regime de igualda- ESFERAS Da JUSTICA oC de simples”. A igualdade é multiplicada por meio do pro- LX 9880 de conversao, até estender-se a todos os bens sociais, “or _O regime da igualdade simples nao dura muito, pois 0 pro- \\ 7 gress posterior da conversio, olive intermbio no mer- cado, com certeza traré desigualdades a reboque. Se alguém quisesse sustentar a igualdade simples no decorrer do tem- po, precisaria de uma “lei monetéria”, como as leis agrérias. da antiguidade ou a licenca sabética hebraica, que propor- cionasse um retorno periédico & condigéo original, S6.um Estado centralizado e ativista teria forca suficiente para im por esse retor Mao esta clar 1s bem predominante. Seja como for, a condigao original € instavel de outra maneita. Nao 6 36 0 monopélio que reapareceré, mas 0 predominio tam- bém desaparecerd. Na prética, eliminar-o monapilio do dinheiro neutrali- za seu predominio, Entram em jogo outros bens, ¢ 4 desi~ gualdade assume novas formas, Voltemos a analisar o regi- me da igualdade simples. Tiido est & venda, e todos t8m a . Mesma quantia em dinheiro. Assim, todos tém, digamos, ©" capacidade igual de pagar pela educagao dos filhos. Agung PPL otazem, outros néo. Acontece que ¢ ecucerione anton « investimento: outros bens sociais so oferecidos, cada vez | ‘mais, para compra somente por quem tem diplomas. Logo todos investem em educagao; ou, o que é mais provavel, a compra éuniversalizada por intermédio do sistema tributé- vio, Porém, a escola se transforma num mundo competitivo dentro do qual o dinheiro nao é mais predominante. O ta. lento natural, a educagio recebida de bergo, ou o talento em provas escritas se tora predominante, e o éxito educa~ cional e a concessio de diplomas so monopolizados por ‘um grupo novo, Vamos chamar esse grupo (como eles mes~ mos se denominam) de “grupo dos talentosos”. Eventual. mente, os membros desse grupo declaram que o bem que controlam deve ser predominante fora das escolas: eles tamn~ IGUALDADE COMPLEXA v bém devem possuir cargos, titulos, prerrogativas, riquezas, Essa é a carreira aberta aos talentos, oportunidades iguais etc. E isso que a justica requer; 0 talento serd revelado; e, em todo caso, as pessoas talentosas ampliaro os recursos disponiveis para todas as outras. Assim, nasce a meritocra- cia de Michael Young, com todas as desigualdades que a acompanham?. . © que devemos fazer agora? & possfvel impor limites aos novos paditdes de conversao, reconheces, porém restrin- giro poder de monopdlio dos talentosos,Ceneror sa a finalidade do principio da diferenga de Jdhrt Rawls) segun- do o qual s6 se justificam as desigualdades se forem criadas para trazer, e realmente trouxerem, o maior beneticio pos- sivel para a classe social mais desprivilegiada'®. Mais espe- cificamente, 0 principio da diferenca é a restricio imposta 20s talentosos, depois de desfeito o monopélio da riqueza. Funciona assim: imaginemos um cirurgiao que reivindica mais do que sua parcela igualitéria de riquezas com base no que aprendeu e nos diplomas que recebeu nas duras lutas competitivas da faculdade de medicina. $6 atenderemos & reivindicacao se, e somente se, atendé-la proporcionar be- neficios das maneiras esipuladas. Ao mesmo fempo, to- ‘mazemos providéncias para limitar e regulamentar a ven¢ de cirurglas— ‘sto 6 a conversZo dveta da hablidede crdr- sm riqueza. a Essa egulamentaclo serd, necessariamente, dever do Estado, da mesma forma que as leis monetérias e agrérias sio dever do Estado. A igualdade simples exigiria interven- ou FeSerINgHI HToTO~ fo continua do Estado para el polios meipie Porém, 0 o poder ai central das lutas competitivas. monopolizar ¢, depois, usat_o F controle dos outros bens sociais. Ou o Estado sera mono- alizado por rios'agentes segundo a Leide Ferro, ba oligarquia. A politica é sempre o caminho mais curto para yy ‘Cdortinio, e o poderpal fio Os Telos de ProGUCGO) 18 ESFERAS DA JUSTICA te, € decerto mais perigoso, ‘ hist ade*. Dai, ainecessidade dé réstringir e 65 agentes da reptessio, estabelecer poderes e contrapode- res constitucionais. Esses so limites impostos ao monopélio politico, e se tornam ainda mais importantes depois de eli- minados os diversos monopélios sociais e econémicos. ‘Uma maneira de limitar 0 poder politico é distribuf-lo de forma abrangente. Isso pode nao funcionas, devido aos riscos minuciosamente analisados da tirania da maioria; mas esses riscos talvez sejam menos graves do que se cos- tuma fazer parecer. O maior tisco do governo democrético, € que venha a ser fracd para enfrentar o ressurgimento dos monopélios na sociedade ei geral, a forca social dos plu- toeratas, burocratas, tecnocratas, metitocralas ete. Na teo- 1a, 0 poder politico é o bem predominante na demiocracia, e é conversivel da maneira que os cidados escolherem, Na pratica, porém, romper o monopélio do poder neutraliza seu predominio: ©:podiér politico nao pode ser amplamen- te compartilhado sendo submetido a forca de todos os ou- | t¥os bens que 0s cidadaos jé tém ou pretendem ter. Por jorZ_ conseguinte, a democracia 6, conforme Marx reconheceu, OW gE essencialmente um sistema especular, que reflete a distr ws buig&o prevalecente e emergente dos bens sociais"". O pro- em eee Cee en aa trocam e compartitham: &s vezes predominante, outras vezes no; $s vezes possuido por muitos, outras vezes na posse de pouquissimos. E, em rato toy wear mon rns ema Sete een greet ood me nes oon ee eee eee ean sn ei re a i oo: Cor om igualdade simples. er aa “ IGUALDADE COMPLEXA 19 cesso decisério democrattico serd cinzelado pelos conceitos culturais que definem ou aderem aos novos monopélios. Para prevalecer contra esses monopélios, seré preciso que poder seja centralizado, talvez. ele mesmo monopolizado. Novamente, o Estado precisa ser muito poderoso se quiser alcancar os objetivos a ele atribuidos pelo principio da dife- renga ou por qualquer lel igualmente intervencionista. Contudo, o regime da igualdade simples poderia dar certo, Pode-se imaginar uma tensGo mais ou menos estével centre os monopélios emergentes e as restrigSes politicas, en- tre a reivindicacio do privilégio feita pelos talentosos, diga- ‘mos, e a imposicéo do principio da diferenga, e, entdo, entre 8 agentes da imposicio e a constituigo democratica. Mas desconfio que as dificuldades se repetirio, e que em muitas ‘ocasides 0 tinico remédio para o privilégio privado seré 0 es- tatismo, e a tinica fuga do estatismo seré o privilégio priva~ do. Mobilizaremos o poder para controlar 0 monopélio, de- pois procuraremios algum meio de controlar 0 poder que mo- bilizamos. Mas nao hé meio que nao crie oportunidades para que pessoas estrategicamente posicionadas se apropriem de importantes bens sociais e os explorem. Esses problemas provém de se tratar 0 monopélio, € no o predominio, como questéo central da justica distri- butiva. Decerto nao é dificil compreender por que os filéso- fos (e 0s ativistas politicos também) t8m-se concentrado no monopélio. As lutas distributivas da idade moderna come- am com uma guerra contra 0 ptedominio tinico da aristo- cracia na posse da terra, dos cargos e das honras. Esse pare- ce um monopélio especialmente pernicioso porque se fun- damenta em bergo e linhagem, que nada tém a ver com os individuos, a nao ser coma riqueza, 0 poder ou a educasio, todos os quais — pelo menos em principio - podem ser con- quistados. E quando todos se tormam, por assim dizer, pe- quenos proprietérios na esfera do bergo e da linhagem, ha uma vitoria importante. O direito inato deixa de ser bem predominante; dali para a frente compra muito poucoy a queza, o poder e a educagéo passam para o primeiro plana \ 20 ESFERAS DA JUSTICA Com relacio a esses tiltimos bens, contudo, é impossivel sustentar a igualdade simples, ou s6 é possivel sustenté-la se sujeita as vicissitudes que acabo de mencionar. Dentro de suas proprias esferas, conforme atualmente interpretados, esses trés costumam gerar monopélios naturais que $6 po- dem ser reprimidos se o préprio poder do Estado for pre- dominante e se for monopolizado por autoridades empe- nhadas na represséo. Mas existe, creio, outro caminho para outto tipo de igualdade. Tirania e igualdade complexa Quero argumentar que devemos nos concentrar na re- dugio do predominio - e nao, nem principalmente, na quebra ou na restri¢o do monopélio. Devemos analisar que significaria estreitar o Ambito dentro do qual determi- nados bens so conversiveis e~defender a autonomia das esferas distributivas. Mas essa linha de argumentagao, em- Bora Tao seja historicamente incomum, jamais emergiu completamente nos escritos filoséficos. Os fildsofos costu- mam criticar (ou justificar) os monopélios existentes ou emergentes de riqueza, poder e educagao. Ou criticam (ou justificam) determinadas conversdes — de riqueza em edu- cacao ou de cargo em riqueza. E tudo isso, quase sempre, em nome de algum sistema distributivo radicalmente sim- plificado. A critica do predominio insinua, pelo contrario, um modo de reformular e, entdo, viver com a verdadeira complexidade das distribuicdes. Imaginemns agora uma sociedade na qual os diversoe bens sociais sejam monopolizados ~ como sao, de fato, e sempre serdo, a ndo ser que haja intervengo continua do Estado - mas na qual nenhum bem em especial seja geral- mente conversivel. Mais adiante, tentarei definir os limites precisos da conversibilidade, mas, por ora, a definico geral basta. Essa é uma sociedade igualitéria complexa. Embora hhaja muitas desigualdades pequenas, a desigualdade nao 'ser4 multiplicada pelo processo de conversao. Nem seré a IGUALDADE COMPLEXA a soma de diversos bens, pois a autonomia das distribuiges terd a tendéncia de produzir uma diversidade de monopé- lios locais, pertencentes a grupos diversos. Nao pretendo afirmar que a igualdade complexa seria, obrigatoriamente, mais estavel do que a igualdade simples, mas estou inclina doa achar que abriria 0 caminho para formas mais difusas. ¢ particularizadas de conflitos sociais. E a resisténcia a con- versibilidade seria mantida, em grande escala, por pessoas comuns dentro de suas esferas de competéncia e controle, sem ago em grande escala do Estado. Esse é, creio, um quadro atraente, mas ainda nfo ex- pliquei por que é atraente. A argumentagio pela igualdade complexa comeca com nossa interpretacao ~ isto é, nossa interpretacio real, concreta, positiva e particular ~ dos di- vversos bens sociais. Em seguida, passa a uma teoria do mo- do como nos relacionamos uns corn os outros por intermé- dio desses bens. A igualdade simples é uma situacao distri- butiva simples: Se tenho quatorze chapéus e vocé tem qua- torze chapéus, somos iguais. E serd excelente se os chapéus forem predominantes, pois entéo a nossa igualdade se am- plia a todas as esferas da vida social. Da perspectiva que adoto aqui, porém, terrios simplesmente o mesmo ruimero de chapéus, e é improvavel que os chapéus sejam predomi- nantes por muito tempo. A igualdade é uma relago com- plexa de pessoas, mediadas por bens que criamos, compar- tilhamos e dividimos entre nés; néo é uma identidade de posses. Requer, entéo, uma diversidade de critérios distri- butivos que expresse a diversidade de bens sociais. ‘A defesa da igualdade complexa foi belamente expres- sa em um dos Pensamentos* de Pascal, ‘A tirania consiste em desejar poder, universal e fora de sua propria esfera Ha diversas campanhas de fortes, de belos, de bons, de espiritos piedosos, cada qual reinando em sua casa, no fora. * Trad, bras. So Paulo, Martins Fontes, 2001 22 ESFERAS DA JUSTICA Mas as vezes, quando se encontram, batem-se tolamente, 0 forte e 0 belo, pata decidir quem seré senhor um do outro, pois sua serhoria & de géneros diversos. Nao se entendem, consistindo seu erro em querer reinar por toda parte. Ore, nada 0 pode, nem mesmo a forca: esta ndo faz nada no reino dos sabios.. Tirania, Estes discursos so falsose tinicos: “Sou belo, Jogo deve temer-me; sou forte, portanto devem amar-me. Sou... etcetera.” A tirania consiste em querer ter por uma via o que s6 se pode ter por outra. Damo-nos diferentes deveres a diferen- tes qualidades: dever de amor ao encanto; dever de medo & forea; dever de crenga ao conhecimento.!? Marx fez afirmagdes semelhantes em seus primeiros manuscritos. Talvez tivesse em mente esse Pensée: Se se pressupée o homem como homem e sua relagio com 0 mundo como uma relagéo humana, s6 se pode trocar ‘amor por amor, confianga por confianga etc. Se se quiser gozar da arte, deve-se ser um homem artisticamente educado; se se ‘exercerinfluéncia sobre outro homem, deve-se ser umn homem ue atue sobre os outros de modo realmente estimulante e en- corajador... Se amas sem despertar amor, isto é, se teu amor, enquanto amor, no produz amor reciproco, se mediante tua exteriorizagéo de vida como homem amante nao te convertes ‘em homem amado, teu amor é impotente e um infortinio.® Nio so argumentos faceis, ¢ a maior parte do meu vro é simplesmente uma exposicéo de seu significado. Mas agora tentarei algo mais simples e esquemético: uma tra ducio dos argumentos nos termos que jé venho usando. A primeira afirmagdo de Pascal e Marx é que as quali- dades e os bens sociais t8m suas prOprias esferas de atua- ‘Go, onde exercem suas influéncias livres, espontaneas e le- gitimas. Existem conversdes prontas ou naturais que provém do sentido social de determinados bens, e devido a ele so intuitivamente plausiveis. Apela-se para a nossa interpreta- so comum e, 2o mesmo tempo, contra nossa aquiescéncia comum nos padres legitimos de conversio. Ou é um ape- IGUALDADE COMPLEXA 23 Jo da nossa aquiescéncia ao nosso ressentimento. Ha algo errado, afirma Pascal, na conversio da forga em fé. Em ter mos politicos, Pascal quer dizer que nenhum governante tem o direito de comandar minhas opinides meramente de- vido ao poder que detém. Nem tem o direito, acrescenta Marx, de reivindicar influéncia sobre meus atos: se o gover nante quiser fazé-lo, precisa ser persuasivo, prestativo, en- tusidstico etc. A forca dessas argumentacdes depende de ‘uma interpretacdo compartilhada do saber, da influéncia e do poder. Os bens sociais tém significados sociais, e procu- ramos caminho que leva a justica distributiva por intermé- dio da interpretacio desses significados. Procuramos prin- | cipios internos a cada esfera distributiva. | ‘A segunda afirmacao que no levar em conta esses princfpios 6 tirania, Converter um bem em outro, quando no hé ligagio intrinseca entre os dois, é invadir a esfera apropriadamente governada por outro grupo. O monop6- lio no é inadequado dentro das esferas. Nao’hd nada de (2, der extado, por exemplo, no.dominio qiie as pessdas persuasi- » () vvas e prestativas exercem sobre o poder politico, Mas étira- © nigo 0 tis do poder politics para ter acesso.a outros-bens. Assim, generaliza-se urtia-amitiga definicdo de ‘tirania: os principes se tornam tiranos, segundo os autores medievais, quando se apoderam das propriedades ou dominam a fa~ lia dos stiditos*, Na vida politica ~ mas também de ma~ neira mais ampla - predominio de bens resulta no poder sobre 0 povo. O regime da igualdade complexa 6 o contrétio da tira~ nia. Define um conjunto de relagdes de modo que torne impossivel o predominio. Em termos formats, a tzualda complexa significa que a situagao de nenhum cidadao em uwila 6sfera ou com relacio a-um bem social pode definir sua situagao ém qualquer outra-esfera,.com relacao a qualquer outro bem. Assim, pode-se preferir o cidadao X ao cida: dao Y para cargos politicos e, entdo, os dois Sef0 desi- ‘suai Tia esfera politica." Mas-née-seto desiguais.em geral, ~ contarito qué 6 cargo de X nao the conceda vantagens s¢ aa FESFERAS DA JUSTICA bre Y em qualquer outra esfera — atendimento médico s perioracesso.a escolas Melhores para os filhos, oportuni dades empresariais etc. Contanto que o cargo nao seja um. bem predominante, que em geral nao seja conversfvel, os detentores de cargos politicos permanecerio, ou pelo me- nos podem permanecer, em relagdo de igualdade com as pessoas que sao governadas por eles. Mas, e se 0 predominio fosse eliminado, estabelecida a autonomia das esferas — e as mesmas pessoas tivessem &xi- to em uma esfera apés a outa, triunfantes em todos os gru- pos, acumulando bens sem a necessidade de conversées le- gitimas? Isso decerto resultaria numa sociedade desigual, ‘mas também indicaria da maneira mais enfética que a so- ciedade de iguais ndo é uma possibilidade estimulante. Du- vido que qualquer argumentagao igualitéria sobreviva face a tais indicios. Eis um homem que escolhemos livremente (Gem mengéo aos lagos de familia ou & riqueza pessoal) ‘como nosso representante politico. Ele também é um em- preendedor ousado e inventivo. Quando era mais jovem, estudou ciéncias, teve notas surpreendentemente altas em todas as provas e fez descobertas importantes. Na guerra, demonstrou valentia insuperdvel e recebeu as mais altas ho- menagens, Compassivo e enérgico, é amado por todos que ‘© conhecem. Existe gente assim? Talvez, mas tenho minhas diividas. Contamos histérias como a que acabei de contar, mas elas so ficgSes, que é a converséo do poder, do dinhei- ro ou do talento académico em fama lendéria. Seja como for, ndo existe pessoas assim o suficiente para constituir uma classe dominante e dominar a todos nés. Nem podem ter éxito ei lodas ay esferas distributivas, pols existem al- gumas esferas as quais nao pertence a idéia de éxito. Tam- bém nao é provavel que seus filhos, em condigdes de igual- dade complexa, herder seu &xito. Via de regra, os mais ta- lentosos politicos, empresirios, cientistas, soldados e amantes serdo pessoas diferentes; e contanto que os bens que pos- suem nao tragam outros bens a reboque, no temos motivo para temer suas realizagées. IGUALDADE COMPLEXA B ‘Actitica do predominio e da dominacao indica um prin. cipio dlstbutive limitado Nera be socal x ee bnutdo a quem possua algurn outro bem y meramente a I ee pio que provavelmente vern-se repetindo, em ocasides di- ‘versas, para todo y que tenha sido predominante. Mas nem sempre é enunciado em termos gerais. Pascal e Marx suge~ riram a aplicagdo do principio a todos os y possiveis, e ten- tarei desenvolver essa aplicagdo. Nao me concentrarei, en- ‘20, nos membros dos grupos de Pascal ~ o forte ou 0 fraco, o belo ou o comum ~ mas nos bens que eles compartilham e dividem, A finalidade do princfpio é concentrar nossa aten- fo; ele nao determina a partilha nem a divisio. O principio nos leva 20 estudo do significado dos bens sociais, 20 exame interno das diversas esferas distributivas. ‘Tres principios distributivos & provavel que a teoria que daf resulte no seja elegan- te, Nenhuma teoria do significado dos bens sociais, ou dos limites da esfera dentro da qual opera com legitimidade, serd incontroversa. Nem existe algum método claro para getar ou testar as diversas teorias. Na melhor das hipéte- ses, as argumentacdes serdo toscas, expressando o caréter diversificado e repleto dos conflitos da vida social que pro- ccuramos simultaneamente entender e regulamentar ~ mas ‘96 regulamentar depois de entender. Deixarei de lado, en- tao, todas as declaragdes feitas em nome de qualquer crité- rio distributivo, pois nenhum desses critérios poderia com- patibilizar-se com a diversidade dos bens sociais. Contudo, parece que trés critérios atendem as exigéncias do principio, ilimitado e vém sendo defendidos com freqiéncia como ncipio e fim da justica distributiva-de modo que preci Sizer al ybre cada um deles Livre intereimbby anerito’p Geren sn i renhum deles tex sf 3 ( mies ‘9 - sir foda a escala de distribuigées. Sao parte da hist¢-_ tia, e nao toda ela. bE ESFERAS DA JUSTICA Liore interciimbio O livre intercémbio é obviamente, ilimitado; nao ga- ante nenhum resultado distributivo em especial. Em ne- nhum momento de qualquer transacéo plausivelmente dita “livre” sera possivel prever determinada divisdo de bens so- ciais que venha a prevalecer em algum momento futuro. (lalvez seja possivel, contudo, prever a estrutura geral da divisio.) elo menos em teoria, o live intercimbio gera um metcado dentro do qual todos os bens sao conversiveis em todos os outros bens por intermédio do meio neutro do di- nheiro, Nao ha bens predominantes nem monopélios. Por conseguinte, as divisdes sucessivas que prevalecerem ex- pressardo diretamente os significados sociais dos bens que sio divididos, pois cada negécio, intercdmbio de mercado- ras, venda, compra e aquisigao seré fruto de um acordo vo- luntério entre pessoas que conhecem tal significado, que séo, de fato, suas criadoras. Toda transagéo é reveladora de significado social, Por definiglo, ento, nénhum x passard as maos de alguém que possua y, meramente porque esse alguém possui y e sem levar em conta o que x significa para algum outro membro da sociedade. O mercado 6 radical- mente pluralista em suas operagdes e em seus resultados, sensibilissimo aos significados que os individuos atribuem aos bens. Que restrigdes é possivel impor ao livre intercdm- bio, entdo, em nome do pluralismo? ___ Mas a vida cotidiana no mercado, a verdadeira expe- riéncia das transagées livres, é bem diferente do que a teo- tia afirma. O dinkeiro, que se supe ser meio neutro, é na prética, um bem predominante, e € monopolizado. pelos pessoas que possum o talento especial dos negécios e do comércio~ a habilidade de jardineiro da sociedad burgue- sa. Outras pessoas, entio, exigem a redistribuigao do di- heiro e a ctiagdo de um regime de igualdade simples, e comeca a procura de alguma maneira de manter tal regime Porém, mesmo que nos coneentremos no primeiro momen- to tranqiiilo da igualdade simples ~ livre intercambio com IGUALDADE COMPLEXA 27 base em quinhées iguais —, ainda precisaremos estabelecer limites sobre o que se pode trocar pelo qué. Isso porque 0 livre intercémbio deixa as distribuigées completamente nas, mos de individuos, e os significados sociais nao esto su- jeitos, ou nem sempre estio sujeitos, as decisdes interpre~ tativas individuais. ‘Analisemos um exemplo fécil, o caso do poder politico. Podemos imaginar 0 poder politico como um conjunto de bens com valores variéveis, votos, influéncias, cargos etc ‘Quaisquer desses objetos pociem ser negociados no merca~ do e acumulados por individuos dispostos a sacrificar outros bens, Mesmo que os sacrificios sejam reais, porém, o resul- tado é uma forma de tirania — tirania insignificante, dadas as condigdes da igualdade simples. J que estou disposto a abrir mao do meu chapéu, votarei duas vezes; e voc’, que dé me- nos valor ao voto do que ao meu chapéu, nao votard. Des- confio que o resultado é tirdnico, mesmo com relagao a nés dois, que chegamos a um acordo voluntario, Decerto é tird- nico no tocante a todos os outros cidadiios, que agora preci- sam submeter-se ao meu poder desproporcional. Nao é que nao se possam negociar os votos; em uma de suas interpre- tages, & nisso que consiste a politica democrética. E sabe~ se, com certeza, que os politicos democraticos compram vo- tos, ou tentam compré-los, prometendo despesas puiblicas que beneficiem ceterminados grupos de eleitores. Mas isso é feito em pablico, com verba piiblica e sujeito a aprovacao piiblica. Exclui-se o comércio privado devido ao que € a po- Iitica, ow a politica democrética - isto é, em razdo do que fi- zemos quando constituimos a comunidade politica e do que ainda pensamos do que fizemos. (O livre intercdmbio nao é um critério geral, mas s6 po- deremos especificar os limites dentro dos quais ele funcio- na por meio de anélise minuciosa de determinados bens sociais. E, depois de realizar tal andlise, teremos, na melhor das hipoteses, um conjunto filosoficamente abalizado de li- mites, e ndo obrigatoriamente 0 conjunto que deve ser po- liticamente abalizado. Pois o dinheiro atravessa todas as 28 ESTERAS DA JUSTICA fronteiras ~ € a principal forma de imigracao il I Ligragao ilfcita; e 0 local onde se deve tentar deté-lo é questio tanto de convenién- cia quanto de principio. Deixar de deté-lo em algum ponto razodvel tem conseqiiéncias em toda a escala de distribui- g6es, mas a anélise dessas conseqiiéncias f tulo posterior. “st mad Mérito Assim como o livre interc&mbio, parece que é tanto ilimitado quanto pluralista. Poderseia imagines orn tinico érglo neutro distribuindo recompensas e ‘astigos, sensibilissimo a todas as formas de mérito, O processo dis. tributivo seria, entao, de fato centralizado, mas os resulta- dos ainda seriam imprevisiveis e variados. Nao haveria bem predominante. Nunca se distribuiria nenhum x sem que se levasse em conta seu significado social, pois, sem atengao a0 que é x, é conceitualmente impossivel dizer que x é me recido. Todos os grupos receberiam sua devida recompen- sa, Como isso funcionaria na prética, contudo, nao é facil imaginar. Talvez faca sentido dizer de certo homem encan- tador, por exemplo, que merece ser amado. Nao faz sentido dizer que merece ser amado por determinada (on qual- quer) mulher. Se ele a ama e ela continua insensfvel a seus encantos (verdadeiros), azar dele. Duvido que quiséssemos que a situacéo fosse retficada por algum agente externo. O amor individual de homens e mulheres, no nosso entendi- mento, s6 pode ser distribufdo por eles mestnos, que rara- rents ac dein yoar nesses assuntos por quests de Acontece a mesmissima coisa com a influéncia. Eis, di- gamos, uma mulher muito considerada por incentivar e ani- mar os que a cercam. Talvez mereca ser membro influente da nossa comunidade. Mas ndo merece que eit seja influen- ciado por ela ou que faca o que ela manda. Nem irfamos querer que a minha devocéo, por assim dizer, fosse a ela IGUALDADE COMPLEXA 2» atribuida por qualquer agente capaz de tais atribuig6es. Ela pode empenhar-se muito para me incentivar e me animar, e fazer tudo o que geralmente se chama incentivo e estimu- Jo. Porém, se eu (obstinadamente) me recuso a ser incenti- vado ou estimulado, nao the estou negando nada que ela mereca. O mesmo argumento se aplica, por extensio, aos politicos e aos cidadéios comuns. Os cidadios nio podem trocar votos por chapéus; ndo podem decidir por contra propria atravessar a fronteira que separa a esfera politica da esfera do mercado, Porém, dentro da esfera politica, tomam decisdes individuais e raramente so guiados, repito, por questdes de mérito, Nao esté claro se 0 cargos possam ser merit6rios — outra questo que preciso adiar; mas, mesmo ‘que possam, isso violaria nossa interpretagio de politica de- mocritica se fossem meramente distribufdos a pessoas me- recedoras por algum érgao central. ‘De maneira semelhante, por mais que tracemos os li- mites da esfera dentro da qual opera o livre intercambio, 0 mérito no terd fungao dentro desses limites. Sou talentoso em negociagdes e trocas, digamos, e acumulo um grande niimero de belos quadros. Se presumirmos, como 0s pinto- res costumam presumit, que os qitadros sio negociados de maneira adequada no mercado, entéo nao ha nada de erra- do no fato de eu possuir os quadros. Meu direito é legitimo. Mas seria estranho dizer que mereco t8-los s6 porque te- ho talento para negociagdes e trocas. Parece que o mérito requer uma ligagio bem intima entre determinados bens e determinadas pessoas, a0 passo que a justiga somente de vez em quando requer vinculo desse tipo. Contudo, deve~ riamos repetir que 86 as pessoas que tém cultura artistica, que merecem ter quadtos, deveriam possui-los. Nao é difi- il imaginar um mecanismo distributivo. O Estado poderia comprar todos os quadros que estivessem & venda (mas se~ ria preciso que os artistas fossem licenciados para que nfo houvesse um niimero infinito de quadros), avalié-los e dis- tribuf-los as pessoas que tivessem cultura artistica, os me- Ihores quadros pata os mais cultos. O Estado as vezes faz a ESFERAS DA JUSTICA algo assim, com relagio a coisas de que o povo precisa ~ as- sisténcia médica, por exemplo~mas nao com relagio a coi- sas que 0 povo merega. Hé dificuldades praticas nisso, mas desconfio que essa diferenca tem motivo mais profundo, O mérito ndo tem a urgéncia da necessidade, e nao envolve a posse (ter e consumit) da mesma maneira. Por conseguin= te, estamos dispostos a tolerar a separagao entre proprieté- rios de quadros e pessoas com cultura artistica, ou nao es- tamos dispostos a exigir o tipo de interferéncia no mercado que seria necessédria para acabar com a separaco. Natural- mente, 0 aprovisionamento piblico é sempre possivel em paralelo ao mercado, e, assim, poderiamos argumentar que as pessoas que tém cultura artistica nao merecem quadros, porém museus. Talvez merecam, mas ndo merecem que to- dos nés contribuamos com dinheiro ou verbas piblicas para a compra de quadros e para a construcao de prédios. ‘Terao de nos convencer de que a arte vale a despesa; tero de estimular e incentivar nossa prépria cultura artistica. E se no 0 conseguirem, seu préprio amor pela arte pode muito bem tomar-se “impotente, um infortirio”. Mesmo que tivéssemos de atribuir a distribuicéo de amor, influéncia, cargos, obras de arte ete. a alguns drbitros onipotentes do mérito, como os escolheriamos? Como al- guém mereceria tal situacéo? $6 Deus, que sabe dos segre- dos ocultos no coragao do homem, seria capaz de fazer as distribuigdes necessétias. Se os seres humanos tivessem de faz8-las, 0 mecanismo distributivo seria logo expropriado por algum grupo de aristocratas (assim eles se denomina- tiam) com uma nogéo fixa do que é melhor e de quem é mais merececor, ¢ insensivel as diversas exceléncias dos concidadaos. E 0 mérito deixaria de ser critério pluralista; ‘és nos verfamos face a um novo conjunto (de um tipo an- tigo) de tiranos. f claro que escolhemos pessoas como atbi- tros do merecimento ~ para participar de jiris, por exem- plo, ou conceder prémios; vale a pena ponderar, adiante, quais so as prerrogativas dos jurados.. Mas é importante salientar que eles atuam num Ambito restrito. O mérito é rei- 31 IGUALDADE COMPLEXA vindicagdo forte, mas requer juizos dificeis; e s6 em condi- g6es especialissimas produz distribuicdes especificas. Noecessidade Por fim, 0 critério da necessidade. Em geral, considera- se que “a cada um segundo a suas necessidades” é a meta- de distibutiva da famosa méxima de Mans devemos 1epat- tiras riquezas da comunidade segundo as necessdades de seus membros‘. £ uma proposta plausvel, mas radical~ mente incomplete, De fato, a primeira metade da maxima também 6 uma proposta distibutiva, ¢ néo se encaixa na regra da segunda metade, “De cada um segundo suas ca- pacidades” indica que se deve distribuiro trabalho (ou que as pessoas dever ser aitadas para o trabalho) com base nas qualificages indviduais. Mas ninguém, de maneira Sova, precisa dos servigos para os quais esta qualificado, Talvez esses servigos sejam escassos, e haja um grande nimero de candidatos qualificados: quais precisam mais dessesservi- 08? Se j foram atendias suas caréncias materia ave nem precisem de trabalho, Ou, se em algum sentido imate tial, todos precisem trabalhar, entdo essa necessidade nso serd discernivel entre eles, pelo menos a olho nu, Em to caso, seria estranho pedir uma comisso de pesquisa que estivesse procurando, digamos, um diretor de hospital que tomasse a decisio com base nas necessidades dos candi tos, e nao nas do pessoal ¢ dos pacientes do hospital. Mas este segundo conjunto de necessidades, mesmo que no esteja sujeito a discordincia politica, nfo produziré um: dinica decisao distributiva. en precisaro de trabalho para muitos outros bens. ‘A.méxima de Marx néo nos ajuda com relagéo & distribu co de poder politico, honraiase fama, barcos 8 vela, livros raros objets belos de todos 05 tipos. sas no sho coisas de que ninguém precise, estritamentefalando, Mesmo sen- do complacentes a ponto de definir o verbo necessitar & 32 ESFERAS DA JUSTICA neira das criancas, como forma mais forte do verbo querer, ainda nao temos um critério adequado de distribuigao. Nao é possivel distribuir com igualdade as coisas que enumerei 0s que tém desejos iguais porque alguns desses objetos cos tumam ser, e alguns sempre so, raros, e alguns deles nin- guém pode ter mesmo, a néo ser que outras pessoas, por mo- tivos proprios, concordem acerca de quem vai possui-los. ‘A necessidade gera uma esfera distributiva especial, dentro da qual é, ela mesma, o prinefpio distributivo ade- quado. Numa sociedade pobre, uma proporco alta das ri- quezas sociais seré atrafda para dentro dessa esfera. Mas, dada a grande diversidade de bens oriundos de qualquer vida comum, mesmo quando é vivida num nivel material baixissimo, sempre haverd outros critérios distributivos em. operagao paralela & necessidade, e sempre sera necessério reocupar-se com as fronteiras que os separam uns dos ou- ‘ros, Dentzo de sua esfera, a necessidade decerto obedece & regra geral da distribuicéo com relagdo a x e y. No hd pre- dominio de nenhum outro bem sobre os bens distribuidos aos necessitados proporcionalmente a suas necessidades. importante nfo é ter y, mas ndo ter x. Mas vemos agora, acho, que todo critério que tem qualquer forca obedece & regra geral dentro de sua propria esfera,e em nenhum outro “lugar. Esta é a Corseqiiéncia da regra: bens distintos para “cada grupo'por-razes diferentes especiicos. E entender bem tudo isso, ou mais ou menos en- tend@=Io, € mapear todo o mundo social. Mierarquias ¢ suciedades de castas Ou, pelo contrério, é mapear determinado mundo so- cial, pois a andlise que proponho tem cardter iminente e fe- nomenol6gico, Nao produz um mapa ideal nem um plano geral, mas, em vez disso, um mapa ou plano adequado as pessoas para quem foi tracado, de cuja vida comum é refle- x0, A meta, naturalmente, é um tipo especial de reflexao, de acordo com métodos _ IGUALDADE COMPLEXA 38 que capta as interpretagdes mais profundas dos bens so- ciais que nao tenham reflexdo obrigatéria no exercicio coti diano do predominio e do monopélio. Mas, e se essas in- terpretagdes nao existissem? Estou supondo desde o inicio que os significados sociais exigenre-autonomia, ou a auito- Sativa, das esferas distributivasye assim ofazem na ‘fnaior parte do tempo. Mas no é impossivel imaginar uma sociédade tia qual’6 prédominio e o monopélio nao sejam transgressées, mas ratificagdes do significado, na qual os bens sociais sejam hierarquicamente considerados. Na Eu- ropa feudal, por exemplo, as roupas nao eram mercadorias (como hoje), mas insfgnia de classe. A classe dominava 0 vestuario. O significado do vestuatio foi criado & imagem da ordem feudal. Vestit-se com os requintes aos quais no se tinha direito era uma espécie de mentira; era uma falsa declaragao acezca de quem assim s¢ vestia. Quando um rei ou primeiro-ministzo se vestia como plebeu para descobrir as opinies dos siditos, isso constituia uma espécie de frau- de politica. Por outro lado, as dificuldades de impor as re- gras da indumentéria (as leis suntuérias) indicam que sem- pre existiu uma idéia alternativa acerca do significado das roupas. Em certo ponto, pelo menos, pode-se comegar a re- conhecer os limites de uma esfera distinta dentro da qual as pessoas se vestem segundo suas posses, 0 que esto dis- postas a gastar, ou qual aparéneia querem tet. As leis sun- tudrias talvez ainda existam, mas é posstvel argumentar con- tra elas de maneira igualitéria - e 0 povo em geral o faz. possivel imaginar uma sociedade na qual todos os bens estejam sujeitos a uma hierarquia? Talvez o sistema de castas da antiga India tenha tido essa forma (embora 1550 seja uma declaragéo muito abrangente, e seria prudente du- | vidar de sua veracidade, pelo seguinte motivo: parece que o |; poder politico sempre éscapou as leis das castas). Imagina- ‘mos as castas como grupos rigidamente segregados, o sis- | tema de castas como uma “sociedade plural’, um mundo de fronteiras™”, Mas o sistema consiste numa integracéo ex- traordinéria de significados. Prestigio, riqueza, cargo, ocu- x a 305 Set - Pasio, alimentago, indumentétia, até o bem social da con «x7 34” versa: tudo esté sujeito & disciplina fisica e intelectual da wy ° hierarquia. E a prOpria hierarquia é definida por um nico valor: 0 da pureza ritual. E possivel haver certo tipo de mo- bilidade coletiva, pois as castas ou subcastas podem culti- var as marcas externas da pureza e (dentro de limites rigi- | dos) elevar a propria posi¢ao na escala social. E o sistema, em sua totalidade, tern como alicerce uma doutrina religio- | sa que promete igualdade de oportunidades, nao nesta vida, | ‘mas ao longo das vidas da alma. O status do individuo aqui e agora “é oresultado de sua conduta na encarnacao ante- rior... e, se insatisfatdrio, € possivel remedié-lo por inter- médio da aquisigao de méritos na vida atual, o que elevard seu sfatus na préxima”, Nao devemos supor que os indi- viduos sempre se sentem plenamente satisfeitos com a de- sigualdade radical. Nao obstante, as distribuigbes fazem parte, aqui e agora, de um sistema tinico, praticamente in- | contestado, no qual a pureza predomina:sobre os outros | bens ~e a linhagem também predomina sobre a pureza. Os } significados sociais se sobrepdem e se juntam. ‘Quante-mais-perfeitaa vwesdo,-menos possivel é até pensar_em_igualdade-complexa. Todos os bens sio como, J cozoas e tronos numa monargui dria Nao hé espa- fato, porém, até as monarquias heYeditariasaramehte tém estrutura tZo simples. A interpretacio social do poder régio costuma envolver alguma idéia de graga divina, ou de dom magico, ou de discemimento humano; e esses critérios para © exerciclo do cargo sao potencialmente independentes da linhagem. O mesmo acontece com a maioria dos bens so- ciais: sua integracdo nos sistemas maiores é imperfeita; so ‘entendidos, pelo menos de vez em quando, em seus pré- prios termos. A teoria dos bens explicita interpretacées des- se tipo (onde existem), e a teoria da igualdade complexa as explora. Dizemos, por exemplo, que é tirania um homem sem a graca, o dom ou o discemnimento se sentar ao trono, ESFERAS DA JUSTICA pe IGUALDADE COMPLEXA 35 E esse é apenas o primeiro e mais Sbvio tipo de tirania. Po- demos pesquisar muitos outros. O caréter da tirania é sempre especifico: atravessar de- terminada fronteira, determinada transgresso do signifi- cado social. A igualdade complexa requer a defesa das fron- teiras; funciona por intermédio da diferenciacéo dos bens, da mesma forma que a hierarquia diferencia as pessoas. y Mas s6 podemos falar de um regime de igualdade comple- <4" xa quando ha muitas fronteiras a defender; e ndo é possivel ‘especificar 0 niimero certo. Nao existe ntimero certo. A igual- awd? of SASH dade simples é mais fil: um bem predominante amplamen- ete distribuido torna igualitéria a sociedade. Mas a complexi- wo” yedade é dificil: quantos bens é preciso criar de maneira aut6- SSP" noma para que as relagdes que intermediam possam tornar- se relagées de cidadios iguais? Nao existe resposta certa ¢, por conseguinte, no existe regime ideal. Mas, assim que co- megamos a distinguir significados e delimitar esferas disti- butivas, ingressamos numa empreitada igualitéria. O cenario da argumentacéo ‘A comunidade politica 6 0 cendrio apropriado para esta empreitada. Nao é, de fato, um mundo distributive auto- suficiente: s6 0 proprio mundo é um mundo auto-suficien- te, ea ficcio cientifica contemporanea nos convida a espe~ cular sobre uma época em que nem isso seré verdade. Os bens sociais sio compartilhados, divididos e trocados entre’ fronteifas politicas, O monopélio ¢ 0 predominio funcio- nnauit praticamente com a mesma facilidade tanto além das fronteiras quanto dentro delas. Transportam-se objetos, as pessoas se mudam, cruzam as fropteiras.para ambos 0s la~ dos. Nao obstante, a gomunidade politicatalvez seja o mais prdximo que consegulimtos chegar.de-ur mundo de signifi- cados comuns. Lingua, histéria e cultura se unem (uma unio mais intima do_que-emqualguer outro setor) para produzir uma congéfénca coletiva© carter nacional, tido 36 [ESEERAS DA JUSTICA ( _grtjo?” Como eta de eptito fro e permanente, éobvamente um o mito; mas a partilha de sensibilidades e intuigdes entre os membros de uma comunidade histérica é inevitavel. As vezes as comunidades politica ¢ histérica nao coincidem, e bem pode haver um niimero cada vez. maior de Estados no mundo atual onde as sensibilidades e as intuigdes nao sejam de ime- diato compartilhadas; a partilha acontece em unidades meno- res, Talvez. devamos, entdo, procurar um meio de ajustar as decisées distributivas &s exigéncias dessas unidades. Mas esse ‘mesmo ajuste precisa ser elaborado de maneira politica, e seu cardter preciso vai depender das interpretagdes compartilha- das entre os cidadios sobre o valor da diversidade cultural, da autonomia local etc. B a essas interpretagdes de que devemos apelar quando apresentamos nossas argumentacées ~ todos 1niés, nao s6 0s filésofos; pois, em questdes de moralidade, a argumentagio é o mero apelo a significados comuns. ‘Ademais, a politica define seus préprios vinculos de in- teresses comuns. Num mundo de Estados independentes, © poder politico ¢ tmmrmonopélio Taral-Esvas ess cinzelar o proprio destino, E se s6 tiverem nas mos uma parte desse destino, a luta se dedica totalmente a essa par- e. E dessas \s-que parte a-decisio de.afrouxar ou tor- nar mais rigidos os critérios distributivos, de cent imétodos; de intervir ou Fecusur-se-a infervir nesta‘ou na- quela esfera distributiva. Provavelmente, algum grupo de Ii- deres toma as decisGes de fato, mas os cidados devem es- tar aptos a reconhecer seus lideres como tais. Se os lideres forem_cruéis, néscios on_infinitamente_venais,-coma_ffe- qiientemente 0 sfo, os cidadaos, ou alguns dos.cidadaos, tenfam substitu‘-los, lutando pela igfo_do_poder politica. O que dara forma. uta serdo-as estraturas mstita- inais da-comunidade—isto-6-os-resultados-das lutas an- teriores..O presente politico é.0 produto-de-passado politi- 6. Estabelece um cendrio inevitével para a ponderagio acer- ca da jastiga distibutiva— [ole IGUALDADE COMPLEXA 37 ‘HA um tiltimo motivo para adotar a idéia de comuni- dade politica como cenério, motivo sobre o qual discorrerei_| oe préximo capftulo. A propria comuni- /} dade é um bem — talvez o mais importante bem — que é dis- is we tribuido. Mas 6 um bem que $6 se distribui quando se aco- [[~ Ihem pessoas, quando todos os sentidos desta tiltima frase ~— so relevantes: elas devem ser fisicamente admitidas e pol ticamente recebidas, Por conseguinte, nao se pode arreba-| nhar afiliagbes por meio de iniciativa externa; seu valor de-| pende de uma decisio interna. Se nao houvesse comunida-| des capazes de tomar tais decisées, no haveria neste cast nenhum bem que valesse a pena distribuir. ‘A tinica alternativa plausivel para-a comunidade polit- caé a'propria humanidade, a sootédade das nagée2, todo 0 globo: Mas, se f6ssemos escolheno globo como

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