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DA MATTA, Roberto. O que faz do Brasil, Brasil? Rio de Janeiro: Rocco, 1996.

O carnaval liga casa, rua e outro mundo querendo e propondo a abertura de todas as
portas e de todas as muralhas e paredes. Os ritos cívicos e religiosos – as festas da
ordem por excelência – fazem o mesmo, mas suas propostas são diferentes. De fato, nos
carnavais e orgias, o propósito básico parece ser o de igualar e juntar. Seu objetivo é
abolir todas as diferenças, ou pelo menos foi assim que viu Bakhtin nas sociedades
hierarquizadas. Mas no caso das festas da ordem, ou seja, das formalidades sociais em
que se celebram as relações sociais tal como elas operam no mundo diário, as diferenças
são mantidas. Aqui, ao contrário do carnaval, o que se está celebrando é a própria ordem
social, com suas diferenças e gradações, seus poderes e hierarquias. Não se deseja virar
o mundo de pernas para o ar, colocando-o de cabeça para baixo, mas o que se pretende é
precisamente celebrar o mundo tal como ele é no quotidiano. Daí por que, em outro
lugar (no meu livro Carnavais, malandros e heróis), chamei os carnavais de “ritos de
inversão” e os festivais da ordem de “ritos de reforço”. Minha idéia era salientar essas
propriedades estruturais de um e outro momento solene: o carnaval promovendo a
igualdade e a supressão de fronteiras, e as festas cívicas e religiosas promovendo a sua
glorificação e manutenção. (p.55)

Nas festas da ordem, a ênfase é sempre colocada na ordem, na regularidade, na


repetição, na marcha ordeira, no cântico cadenciado, no controle do corpo que, repito,
remete à idéia de sacrifício e disciplina, esses dois ingredientes básicos da promessa.
Aqui, o mundo é englobado e apresentado pelas posições sociais que a sociedade
considera importantes. Seu foco é nas autoridades: de Deus, Pátria, Saúde, Educação e
Instrução. (p.57)

Daí, certamente, a associação entre cerimonial e poder. É que o ritual reveste o poder,
dando-lhe uma forma exterior solene e legitima. De modo que todos os rituais sempre
assumem a forma básica de um desfile, procissão ou parada militar – formas de
apresentação social desinibida e exuberante, onde as corporações que passam e se
apresentam revelam-se em todo o seu esplendor ou miséria. (p.58)
No caso brasileiro, as paradas militares são ponto importante daquilo que denominei
“triângulo ritual”. De fato, na nossa sociedade temos o desfile militar para as
autoridades, ou melhor, como rito destinado a celebrar a relação do Estado com o povo.
Temos as procissões que focalizam as relações dos homens com Deus através da Igreja.
E temos, finalmente, o desfile do carnaval, que faz o povo ser ao mesmo tempo
espectador e ator. Em todos os casos, a sociedade celebra aquilo que certamente
considera fundamental para a sua estrutura social e – o que é interessante apontar no
caso brasileiro –, para cada instituição importante, há um lugar e uma forma dramática
de apresentação ritual. (p. 59)
DA MATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema
brasileiro.6. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997

Da Matta faz uma distinção entre três formas básicas de rituais ao refletir sobre a
sociedade brasileira, ou como denomina, o mundo brasileiro, que são: a parada militar,
o carnaval e a procissão. Analisando especificamente o dia da pátria, tratando-o como
uma espécie solene de rito nacional, Da Matta trata a dada como um cerimonial
relacionado a um evento histórico específico, cuja temporalidade é marcada e
documentada, fazendo parte de um conjunto encadeado e diacrônico de momentos da
vida nacional(1997:54), sendo marcada por um sentido de “progresso, evolução e,
sobretudo, não repetição”.
Para o autor, a data seria o marco temporal de um rito histórico de passagem –
do mundo colonial para o mundo de uma nação independente.
Dessa mesma maneira podemos compreender o sentido da escolha das
comemorações das festas do centenário em Nova Friburgo.
A assinatura do tratado estabelecendo a vinda de colonos suíços para a região da
Fazenda do Morro Queimado, em 16 maio de 1818, é tomada como o marco de
fundação do município, e não na data de assentamento dos colonos, ocorrida dois anos
mais tarde.
Tal escolha é carregada de simbolismos, que explicarei em seguida.
Como afirma Da Matta, os eventos históricos e empiricamente determinados são
tomados como paradigmáticos e os personagens que o engendraram, como heróis
nacionais oficiais (1997:54). Nesse mesmo sentido, a escolha pela data de 16 de maio
de 1818 traz em seu bojo o intuito de se exaltar seus signatários: D. João VI e Nicolau
Gachet.
É evidente que a comemoração friburguense não se enquadra na ideia de “festa
nacional”, como também, por outro lado, se assemelha em seus efeitos, criando uma
ideia de unidade. E, da mesma forma que a estrutura do “dia da pátria” apresentada por
Da Matta (2017:57) mantém distinções hierárquicas entre o povo e as autoridades
públicas, a festa do centenário friburguense mantém também essa separação entre povo,
que apenas assistia às celebrações públicas e os poderes constituídos do município, que,
dentre esses, estava presente também setores da sociedade civil pertencentes à elite
econômica.
Ainda sobre as formas rituais na sociedade brasileira, Da Matta afirma que cada
um deles expressa uma maneira diferente de perceber, interpretar e representar aquilo
que se deseja “construir” como a “realidade” social brasileira, e que tais formas
atuam como discursos diversos a respeito de uma mesma realidade (1997:67).
Da Matta:
Como todo discurso simbólico, o ritual destaca certos aspectos da realidade. Um de seus
elementos básicos é tornar certos aspectos do mundo social mais presente do que outros.
De fato, pode-se dizer que sem tais destacamentos, que conduzem a descontinuidades e
contrastes, o sentido do mundo seria perdido. O mundo ritual é, então, uma esfera de
oposições e junções, de destacamentos e integrações, de saliências e inibições de
elementos. É nesse processo que as “coisas do mundo” adquirem um sentido diferente e
podem exprimir mais do que aquilo que exprimem no seu contexto normal. Em uma
palavra, o universo do ritual é o mundo do efetivamente arbitrário e do puramente
ideológico (1997:78)

O reforço é, pois, um mecanismo em que a escolha parece ser daquilo que está
submerso (ou em vias de submergir), do que está dentro e, por isso mesmo, não está
sendo devidamente percebido. (1997:81)

O ritual é a colocação em foco, em close up, de um elemento e de uma relação. Nessa


perspectiva, é mais ou menos inútil classificar os ritos quando não se entendem bem as
relações básicas de que são construídos. E, de fato, entender as relações básicas do
mundo social é, automática e simultaneamente, entender o mundo ritual. Os rituais
dizem as coisas tanto quanto as relações sociais (sagradas ou profanas, locais ou
nacionais, formais ou informais). Tudo indica que o problema é que, no mundo ritual, as
coisas são ditas com mais veemência, com maior coerência e com maior consciência.
Os rituais seriam instrumentos que permitem maior clareza às mensagens sociais.
(1997:85)

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