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A voz, a Memória e o Olhar de um povo: Entre o rememorar e o festejar.

Orsione Alves pereira1


Thaís dos Santos Vinhas2

Resumo

A festa, enquanto manifestação de identidade de um povo ou de um lugar representa e


simboliza um momento de sociabilidade sendo também um espaço da construção de
valores e memórias entre os diferentes sujeitos que dela participam. O presente trabalho
versa sobre as manifestações festivas do reisado de São Sebastião da cidade de
Eunápolis - Bahia e objetiva analisar a importância de suas memórias e representações
enquanto mecanismo de fortalecimento da identidade cultural do grupo, perceptível em
suas práticas cotidianas. Como aporte teórico utiliza-se dos conceitos de (BRANDÃO,
2010), (CHARTIER, 1990), (POLACK, 1992), (HALBWACHS, 2003) que discutem
sobre festa,prática,representações,memória e identidade. A metodologia empregada para
o levantamento dos dados da pesquisa, estiveram centradas na observação não
participante e na realização de entrevistas orais com sujeitos que organizam, participam
e vivenciam as festividades do Reisado. Os resultados da pesquisa evidenciam que a
Festa de São Cosme e Damião do Reisado São Sebastião configura-se como espaço de
interação entre a história, memória e a identidade cultural do grupo social analisado.

Palavras chave:Festa. Memória. Representação.

Introdução

A produção historiográfica, nas últimas décadas do século XX, aprofundou-se


nas questões referentes à inter-relação entre História e Cultura e seus desdobramentos
no processo de produção do conhecimento histórico. Dentro dessa perspectiva de
pesquisa, novas possibilidades analíticas sobre o fazer humano no tempo e no espaço
são evidenciadas a partir da identificação de diferentes fontes pertencentes ao universo
cultural de distintos grupos sociais. Assim, os saberes, fazeres, as práticas culturais, as

1
Graduanda em História pela Universidade do Estado da Bahia Campus XVIII Eunápolis-Ba. E-mail:
orsionepereira@hotmail.com
2
Professora do Curso de Licenciatura em História – Universidade do Estado da Bahia – Campus XVIII.
Graduada em História e Mestre em Cultura e Turismo.
festividades dentre tantos outros objetos passam a compor o campo de estudo da
História Cultural. Para Pesavento (2005, p.118), “uma das características da História
Cultural foi trazer à tona o indivíduo, como sujeito da História, recompondo histórias de
vida, particularmente daqueles egressos das camadas populares”.
É nesse direcionamentoque se insere o objeto de estudo, a festa de São Cosme e
Damião do reisado São Sebastião de Eunápolis- Bahia, esta, que se realiza a 30 anos
nessa cidade do extremo sul baiano. Uma tradição familiar, carregada pelos seus
membros e herdeiros durante sua caminhada de vida, que foi trazido para Eunápolis
entre 1980, onde se expandiu, mantendo suas características e agregando práticas e
costumes de sua cidade oriunda, Salto da Divisa no Estado de Minas Gerais.
Conservando viva a memória e a história desse povo, que mantém com vigor essa
tradição. Visando essa riqueza e historicidade, o presente trabalho tem como proposta,
analisar a importância de suas memórias e representações enquanto mecanismo de
fortalecimento da identidade cultural do grupo, perceptível em suas práticas cotidianas.
Ao pensar nessa festa como objeto de pesquisa, e presenciando o evento e os
envolvidos, alguns questionamentos foram levantados:Quem são essas pessoas que
compõe esse grupo?Como se manteve vivo?Qual a relevância social da memória
coletiva construída em torno da festa do Reisado São Sebastião para a comunidade
praticante? Para obtermos respostas, utilizaremos como recurso metodológico a
oralidade, as memórias e fontes bibliográficas.

O festejar: Entre história, Memória e Representações

A festa é um espaço de coletividade, onde estão intrínsecas a identidade de um


povo, suas vivências e costumes. Um evento que ultrapassa o campo da sociabilidade,
sendo também um espaço da construção de valores e memórias entre os diferentes
sujeitos que dela participa. É pensando a festa dentro dessa ceara de emoções, sentidos e
representações que a festa de São Cosme e Damião do grupo de reis São Sebastião se
tornou peça fundamental na construção desse trabalho.
Marta Abreu (1999, p. 38)3, utiliza do discurso de Michel Vovelle para ampliar o
olhar do pesquisador sobre esse objeto, deixando claro que, da mesma forma que não
há uma “História imóvel, não há uma festa imóvel”. Atribuindo assim, a importância
dos estudos voltadospara festa e suas peculiaridades.Já EdileceCouto(2011, p.02) em
seu levantamento historiográfico sobre alguns principais pesquisadores de festividades
religiosas e demais festejos, faz um paralelo entre a historicidade do evento e seu tempo
festivo. Segundo a autora o tempo festivo é repetido, mas não é imóvel nem imutável.
Dessa forma, podemos considerar a festa religiosa ou profana, como um evento que
carrega tradição de um calendário, mas que renova, apropria e resignifica suas práticas
de acordo com o tempo.
Em sua tese de mestrado, Alex Brandão trabalhando com festas populares
descreve,

Festa é, portanto, sempre uma produção do cotidiano, uma ação coletiva, que
se dá num tempo e lugar definidos e especiais, implicando a concentração de
afetos e emoções em torno de um objeto que é celebrado e comemorado e
cujo produto principal é a simbolização da unidade dos participantes na
esfera de uma determinada identidade. Festa é um ponto de confluência das
ações sociais cujo fim é a própria reunião ativa de seus
participantes.(GUARINELLO, 2001, p. 972 apud BRANDÃO, 2001, p.09).

O autor nos chama atenção sobre a discussão em torno desse objeto, o mesmo
nos apresenta a festa não somente como espaço de comemoração e de celebrações, mas
também, como um símbolo da unidade dos participantes na esfera de uma determinada
identidade. Fator que é perceptível na festa do Grupo de Reis de São Sebastião.
A história de um sujeito é construída de passado e presente. Para entendermos as
transformações, ações coletivas, individuais e suas práticas, é importante recorrer as
suas memóriase vivências, que vivas, carregam a história de um grupo.A Festa de
Cosme e Damião, por se tratar de um evento popular sincrético e religioso, se torna um
instrumento de identidade coletiva, essa se constrói através das memórias do seu povo.
Maurice Halbwachs (2003, p.51), nos apresenta alguns aspectos sobre a
memória e a maneira que deve tratá-la, ou seja, como um fenômeno coletivo e social,

3
ABREU, Marta. O Império do Divino: Festas religiosas e cultura popular no Rio de Janeiro, 1830-1900.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
construído coletivamente e submetido àstransformações, mudanças e costumes. Nesse
contexto o autor descreve a memória coletiva:

Ela é uma corrente de pensamento contínuo, de uma continuidade que nada


tem de artificial, pois não retém do passado senão o que ainda está vivo ou é
capaz de viver na consciência do grupo que a mantém. Por definição, não
ultrapassa os limite desse grupo que a mantém.(...) (HALBWACHS, 2003,
P.102).

A festa pode ser entendida como uma ação de memória coletiva, podendo
incentivar o sentimento de pertença e coesão do grupo. Nesse sentido podemos
compreender que festa de Cosme e Damião do Reisado São Sebastião no que se refere a
sua continuidade e acontecimento, se dá pelo esforço e doação de seus membros,
participantes e seguidores, que buscam manter viva essa expressão cultural/ religiosa.
Viviane Pedrazane (2010, p.25)4 em sua tese de doutorado“No “Miolo” da
festa: um estudo sobre Bumba- meu- BoiIpiauí”,escreve que “a festa é uma fala, uma
memória e uma mensagem, em que cerimonialmente se separam aquilo que quer ser
esquecido e aquilo que deve ser preservado, festejado”. Nesse contexto, podemos
entender a festa do Reisado São Sebastião também como uma representação do passado
e um espaço de memórias que se ressignifica com o seu presente.
Michel Pollack (1992, p.02)5em sua obra “Memória e Identidade Social”
levantam alguns questionamentos em torno dos elementos constitutivos da Memória
individual ou coletivas. Para Pollack os elementos são em primeiro lugar, os
acontecimentosvividos pessoalmente. Em segundo lugar, são os acontecimentos que
chamaríamos de "vividos por tabela", ou seja, acontecimentos vividos pelo grupo ou
pela coletividade à qual a pessoa sente pertencer. Diante de tantas indagações sobre a
memória, o autor chega a conclusão de sua primeira característica, “a memória é
seletiva, nem tudo fica gravado e nem tudo fica registrado” Pollack (1992, p. 04).

4
PEDRAZANE, Viviane. . No “Miolo” da festa: um estudo sobre Bumba- meu- Boi Ipiauí. Tese
(Doutorado em História Social) – Universidade Federal Fluminense. Instituto de Ciências Humanas e
filosofia. 2010.
5
POLACK, Michel. Memória e Identidade Social.Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 5, n. 10, 1992,
p. 200-212.
A memória é constituída por pessoas, personagens e lugares. Um acontecimento
construído social e individualmente, que pode ser vividaou herdada.Através de sua
representação, ela carrega a história do passado e presente de determinado grupo ou
pessoa, podendo agregar assim novos valores e características.
Segundo Roger Chartier (1990, p.41), “a História depois do fortalecimento da
história cultural não e mais vista como uma verdade sobre determinado fato, mas, como
uma narrativa que se expressa como uma ou varias representações do “real” ocorrendo
transformações nos seus métodos” (...). No que diz respeito à representação, esta será
abordada sob a perspectiva de Roger Chartier (1990), este que é um estudioso da área de
representação coletiva e social. Assim, é importante salientar que o mesmo utilizou
como referência grandes pensadores, dentre eles Bourdieu. Seus estudos voltados para a
representação, dentro do contexto coletivo e social inovaram e motivaram o início de
vários trabalhos acadêmicos ligados à história das representações.
Sobre o conceito de representação Chartier descreve:

São formas de apreender, pensar, classificar e construir uma realidade social,


de tornar presente algo ausente, de perceber o mundo e se perceber nele. Ou
seja, é sempre um olhar sobre uma realidade, tal qual a imagem no espelho se
constroem através da praticas sociais e culturais, já quedar-se na mente do
individuo, mas também a partir da apreensão do uso e dos símbolos
socialmente compartilhados. (CHARTIER 1999, p. 86).

Nesse sentido, podemos considerar a representação como algo mutável, que


pode mudar de acordo com a disposição dos grupos ou classes sociais. Chartier (1990,
p.72)6,nos chama atenção em seus escritos sobre as diversas apropriações das
representações, ele não se apega a ideia de prevalecimento do indivíduo, ao seu
entendimento as representações são coletivas , ou seja, está dentro do social, das
experiências coletivas da comunidade ou grupo, ultrapassando sentimentos e sensações
individuais.É importante salientar que as representações além do poder de
deslocamento, ela tem um discurso vivo que agrega valores e poderes, bem como,
legitima práticas, escolhas e também promove disputas.

6
CHARTIER, Roger. Introdução. Por uma sociologia histórica das práticas culturais. In: _____. A
História Cultural entre práticas e representações. Col. Memória e sociedade. Trad. Maria Manuela
Galhardo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990, p. 13-28.
As representações também são mecanismo de identificação do indivíduo,
tornando-o mais evidente. Podemos perceber esses fatostambém através das roupas e
demais atrativos, são instrumentos utilizados como forma de aproximar e impor respeito
para si mesmo, bem como,o poder e reconhecimento. Dentro de um evento social,
político, jurídico, podemos perceber as representações dos sujeitos pelas suas vestes e
posturas.Nessa perspectiva o autor relata:

Representação e uma prática sócio cultural,é dentro destas práticas que


ocorre o processo de identificação do sujeito enquanto pessoa, enquanto
grupo social, político e cultural. Cada discurso de representação e em suas
disputas, contém pessoas que se identificam com tal. (CHARTIER, 1990,
p.161).

Relacionando a festa de São Cosme e Damião do grupo de Reis São Sebastião,


nosso objeto de estudo, a essa ideia de representação e identificação, percebemos como
as roupas, as músicas, os instrumentose o espaço,caracterizam o evento e simboliza suas
práticas. São emaranhados de ações e objetos, que através de suas representações
demonstram a história da festa e vivências daquele povo.
Processo histórico de inserção da festividade de São Cosme e Damião
do Reisado São Sebastião de EunápolisBahia.

O processo de ocupação e povoamento do extremo sul da Bahia pelos


portugueses iniciou-se a partir do litoral e mediante o esforço de criar povoados, vilas e
cidades com fins de defesa, comércio e administração colonial. A criação dessas vilas
orientou-se pela política de urbanização e povoamento da Coroa portuguesa no decorrer
do século XVIII. “Fundar cidades, portanto, também fazia parte da estratégia portuguesa
de colonização, esta que não visava apenas à exploração predatória, mas a permanência
do homem nessa terra7”. Com a criação dessas vilas e cidades e o encontro de culturas
entre povos indígenas, e em seguida negros e caboclos, surge uma mistura de práticas
que se transformaram e se adaptaram ao decorrer dos tempos. Assim, as festas de reis e
demais festejos se espalharam por várias regiões com seu sincretismo, na Bahia não foi
diferente.
7
NASCIMENTO, Milson do Carmo. Cachoeirinha: Freguesia de Nossa Senhora da Conceição da
Cachoeirinha do Baixo Jequitinhonha. Brasília, 2010. P. 15
Em meados do século XIX, o comércio entre Minas Geraise Bahia era intenso, o
transporte por terra era feito por tropeiros, através do uso de animais, e o fluvial por
canoas através do Rio Jequitinhonha. Nesse contexto se inicia a construção da cidade de
Eunápolis, que antigamente o nome era Quilômetro 64. A ocupação na área onde hoje é
o município deu-se a partir do século XIX, com a criação de uma pequena povoação
denominada de Córrego Grande, hoje Gabiarra. Mais tarde a partir de 1936, alguns
posseiros vindos de Minas Gerais se estabeleceram no vale do Rio Buranhém8.
O Quilometro 64 surgiu no contexto político desenvolvimentista em meados dos
anos 50, cujo plano de governo projetava a construção e ampliação das rodovias
federais no Brasil. Este pequeno núcleo de tropeiros e de trabalhadores que ajudaram a
construir o respectivo trecho da rodovia federal, começou ao longo de algumas décadas
a crescer e ascender economicamente no cenário local, tornando-se de certa forma um
importante entreposto comercial de produtos agrícolas entre pequenas cidades
circunvizinhas, dentre elas Salto da Divisa. Além de sua importância econômica, a
cidade de Eunápolis carrega ao longo de sua história elementos culturais que permeiam
até os dias atuais, elementos estes que estão agregados à memória e a oralidade de seu
povo.
Eunápolis hoje é uma cidade com pouco mais de “112 mil habitantes”9,
localizado no extremo sul da Bahia, na chamada Costa do descobrimento. Era ainda um
povoado quando aqui chegou do Salto da Divisa, vale do Jequitinhonha-MG, a família
de Dona Zilda, esta que trouxe a festa de Cosme e Damião e Reisado de São Sebastião,
manifestação que já era cultivada em sua família desde que segundo ela, "se entende por
gente”. Em sua entrevista Dona Maria Zilda Varcilina da Silva relata;

Quase Chegando nos 30 anos só aqui nesse bairro tá chegando uns 27anos
que moro aqui (...). Quando a gente começou com nossa missão, começamo
na roça morava na Fazenda da Jaqueira, na cidade de Gabiarra. Depois que eu
casei ficamo na Jaqueira. Eu já era casada quando eu fui pra Minas, depois o
seu Zé Barreira vender a fazenda nós viemos morar na União Baiana, daí

8
LACERDA, Alcides. Fundador de Eunápolis, Sessenta e Quatro, as 13 Marias e os Anjos da Traição.
Feira de Santana. Radami, 2003.
9
Pode ser consulta em: http://cidades.ibge.gov.br/xtras/perfil.php?codmun=291072. Senso do IBGE de
Eunápolis para 2014. Acessado em: 25/08/2014, as 17 horas.
depois nós fomos pra lá pro Salto da Divisa, de lá fomos pra Pedro Canário
daí nós resolvemo morar aqui e estamo até hoje, criei todos meu filho. 10

O referido grupo desde sua chegada a essa localidade vem realizando seus
festejos no bairro Rosa Neto, zona periférica da cidade. Sobre a localidade dos festejos
que funciona até os dias atuais no mesmo espaço desde a sua fundação, essa é uma
característica desses grupos populares, que em sua maioria realiza seus trabalhos na
zona rural ou em periferias, ou seja, longe dos grandes centros e com um espaço mais
amplo. A festa acontece anualmente no dia 27 de setembro, dia de Cosme e Damião. A
escolha e permanência dessa data, segundo relatos, estão vinculadas a um ato de fé e
solidariedade. Nesse sentido, Dona Zilda diz que:

Tinhauma pessoa que morava com agente, ela era dessa região de Trancoso/
Prado, desse meio aí, uma senhora de idade (...). Aí uma época esse meu filho
mais velho o Geraldo colocava sangue pelo nariz, foi assim que começou a
obrigação dos Cosme, aí começou, a gente, dava um remédio aqui outro
aculá, e nada resolvia. Com pouco que não, parou (...). Daí ela falou com
meu marido, olha seu Vanderlino, ela só chamava ele pelo nome, o apelido
dele era Nengo, aí ela disse, olha seu Vanderlino, meus meninos vem me
buscar e eu já tô nessa idade, não sei o que possa acontecer, só que tem uma
promessa de Fiim (Geraldo). Ela chamava ele de Fiim, eu fiz quando ele
soltava sangue pelo nariz. Pra rezar um terço para Cosme e Damião e dar
comida para sete criança. Pagamo a promessa e tamo fazendo até hoje, até
Deus me levar e outro continuar.11
De um ato de fé individual, a Festa dos Cosme e Damião do Reisado São
Sebastião tomou grande dimensão, até os dias atuais vem conservando seu público,
mesmo com a pouca participação dos moradores do bairro. Essa festa é mantida com o
trabalho e suor de seus membros. Durante anos Dona Zilda a matriarca da família abre
as portas de sua casa para receber os festeiros e devotos de São Sebastião e de São
Cosme e Damião.
A festa do Reisado São Sebastião é um evento vasto de significações
particulares,composta por Santos, danças, cantos religiosos e populares. Um momento
de encontro e celebração fé, tendo como figura principal no festejo os Santos Cosme e

10
Entrevista concedida por Dona Maria Zilda Varcilina da Silva, matriarca da família, moradora de
Eunápolis- Bahia, membro e organizadora da festa de São Cosme e Damião do reisado São Sebastião a 35
anos, desde quando casou-se e herdou essa missão do seu esposo.
11
Idem. Ela relata como foi consolidada a data de comemoração da festa, esta que foi iniciado com uma
promessa feita em pedido da saúde de seu filho Geraldo.
Damião. Alex Brandão (2010) vem dialogando sobre as características da festa e a
dinâmica de passado e presente.

“Todo homem é filho do seu tempo”, da mesma forma, as manifestações


criadas por eles terão as características deste tempo presente, e a festa de
Santos Reis está no bojo desta dinâmica social, por isso, não podemos pensá-
la como resistência, mas sim, como um diálogo constante entre o passado e o
presente. (BRANDÃO, 2010, P.6).

Pensar a festa como um objeto do seu tempo presente, não nos permite chegar a
conclusão que ela é puramente um objeto desse período, temos que enxergá-la como
uma manifestação cultural ou social que apropria de práticas e costumes
contemporâneos. Não podemos desassociar sua história presente de suas origens
passadas, pois esta tem uma história que a fundamentou, e com passar do tempo se
ressignificou. Se apropriar de novas linguagens e visões, também não nos permite tratar
o passado como algo ultrapassado, pois a sua história e vivência atual também é fruto de
representações de sua história passada.
Chartier(1990, p. 21), nos chama atenção sobre as representações herdadas e a
representações dos ausentes. Segundo o autor, as representações tornamos objetos
presentes, bem como, conceitos e pessoas.Nessa perspectiva de representações,
podemos aludir essa reflexão à história da festa do Reisado São Sebastião. Levando em
conta que a mesma é uma herança familiar do patriarca da família senhor Vanderlino.
Sua esposa Dona Zilda recebeu essa “missão”12 quando se casou com o mesmo, e
assumiu a prática e preparação da festa juntamente com seus filhos na ausência do seu
esposo, honrando com prazer seu compromisso e missão. Em sua fala Dona Maria Zilda
emocionada relata:

A festa significa uma coisa muito importante na minha vida, porque se torna,
foi uma vida do meu marido e hoje ta sendo uma vida minha e da minha
família, tem uma fundação muito grande, pra mim e para meus filhos, hoje a
irmandade que ele nos deixou, nossa igreja é minha família também, tenho
eles como minha família e também dos meus filhos, ele construiu duas
famílias. Eu falo, ele me deixou duas famílias, a maior riqueza e hoje falo

12
Missão, expressão utilizada por Dona Maria Zilda e demais membros da família quando se remeteao
compromisso religioso da festa de Cosme e Damião.
que se ele tivesse me deixado fazendas cheia de gado, um banco de dinheiro
não seria tão precioso.13

Mesmo não se fazendo mais presente entre a família, percebemos o quanto os


valores de seu Vanderlino estão representados e agregados na prática da festa, nos
objetos e ensinamentos de seus filhos que se orgulham em mostrar que herdaram do seu
pai. Os mesmos buscam transmiti-los para seus herdeiros e envolvidos com o evento.
Em entrevista a Geraldo Flores Rodrigues filho mais velho de Dona Maria Zilda e o
senhor Vanderlino relata: “O reisado minha mãe desde criança faz, porque minha vó
Lindaura já organizava lá no Salto. A festa religiosa nós herdamos do meu pai. Nós que
criamos nossa música de reis, a nossa música tem haver com o campo, nossas
vivências”.14
Analisando esses discursos dos entrevistados, bem como o evento da festa e suas
práticas, podemos percebê-la como um evento de integração social, conservação de
memórias e de representações. São fatores que estão presentes nos dois momentos da
festa, considerada pelos seus participantes como a parte religiosa e cultural. Em seus
momentos de oração, ceia, rezas e culto religioso aos santos, e no momento festivo de
dança, contra dança, samba de couro, apresentação de Reis, Boi lê lê e Cordão de
Caboclos. São valores intrínsecos em suas práticas, costumes e história. Salientando que
mesmo citando esses momentos da festa separadamente, os dois comungam de uma
mesma unidade, se divididos corre o risco de perder seu significado perdendo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A busca por objetos voltados a história da cidade que eu resido, Eunápolis-Ba,


me fez deparar com essa riqueza cultural que é o grupo do Reisado São Sebastião.
Lugar que visualizei desde o início como um espaço informal de construção do saber.
Mesmo com olhares tímidos de uma historiadora em processo de formação, pude

13
Entrevista com Maria Zilda Varcilina da Silva.
14
Entrevista cocedida por Geraldo das Flores Rodrigues.
perceber o quão precioso seria essa pesquisa que colaboraria para reconhecimento dos
bens culturais de nossa cidade.
Levando em conta essa riqueza historiográfica que é a festa de São Cosme e
Damião e suas manifestações religiosas que é símbolo dessa história de acontecimentos
lúdicos e de fé, percebi que este evento dentro de suas peculiaridades, vivências e
detalhes, agregam valores e representações, tanto no contexto coletivo e social, quanto
individual, também se tornou perceptível que essa comunidade carrega na sua história e
em suas práticas uma forma de manter viva sua memória e identidade coletiva. No mais,
sou grata à comunidade do grupo de reis que me acolheu e sempre esteve disponível
para colaboração desse trabalho.

REFERÊNCIAS

ABREU, Marta. Cultura popular: um conceito e várias histórias. In: Ensino de


História:conceitos, temáticas e metodologia. Martha Abreu & Rachel Sohiet (Orgs.).
Rio deJaneiro: Casa da Palavra, 2003.

BRANDÃO, Alex Sandro da Conceição. Santos Reis: Festa, Poder e Memória


(Governador Mangabeira-Ba 1970-2000). Artigo apresentado no X Encontro
Nacionalde História Oral.

COUTO, Edilece Souza. Devoções, festas e ritos: algumas considerações. Revista


Brasileira de História das Religiões – Ano I, no. 1 – Dossiê Identidades Religiosas e
História.

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. 2ª ed. São Paulo. Centauro, 2003.

LACERDA, Alcides, O fundador de Eunápolis, Sessenta e Quatro, as treze Marias e os


Anjos da Traição. Feira de Santana. Radami, 2003.

NASCIMENTO, Nilson do Carmo. Cachoeirinha: Freguesia de Nossa Senhora


daConceição da Cachoeirinha do Baixo Jequitinhonha – Brasília, 2010.

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. 2 ed. São Paulo:Centauro, 2003.

POLACK, Michel. Memória e Identidade Social.Estudos Históricos. Rio de Janeiro.


vol. 5, n. 10, 1992, p. 200-212.

VAINFAS, Ronaldo, Domínios da História, 2.ed. Rio de Janeiro. Elvesier, 2011.

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