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ABSTRACT: This paper presents the analysis of the official hymn of the state of
Rondônia, which originated from the poem by Joaquim de Araújo Lima, which
focuses the representations of identity are present there. This usually taken as a
starting point the positions of the Cultural Studies: Stuart Hall and the concepts of
representation, ideology and identity; Nick Couldry and the method of text analysis,
which it submitted to the paradigm of Cultural Studies. It made the recovery social
and history of migration from which formed the contemporary societies of the
Amazon and, in particular, of Rondônia.
Keywords: Amazônia; migrations, representation; Cultural Studies.
INTRODUÇÃO
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referência que davam aos indivíduos uma ancoragem estável no mundo social” (HALL,
2003, p. 7).
Significa dizer que deslocamentos são impostos e levam à possibilidade de se
reconhecer, e ser reconhecido, de diferentes formas. O pertencimento deixa de ser
essencialista e imutável, e o indivíduo pode se reconhecer como parte de vários gru-
pos, auto-identificados pelas mais diferentes características, o que torna possível o
múltiplo pertencimento. E as posições diferentes às quais o indivíduo pode se apegar
são legitimadas nos discursos e estes, por sua vez, estão ancorados em práticas cultu-
rais reconhecidas pelos diferentes grupos sociais (HALL, 2003). Desta forma é possí-
vel dizer que as identificações se dão dentro das representações, através da cultura.
Esta articulação entre as esferas interior e exterior do discurso torna possível aos
Estudos Culturais assumir como ponto preferencial de abordagem das práticas cul-
turais os textos colocados em circulação num dado contexto, postos em primeiro
plano os elementos simbólicos deles advindos. Desde os primeiros textos teóricos
ligados a esta corrente1 é rejeitada a idéia de se tratar de textos legitimados por um
cânone e por isso inscritos sob a premissa dos que “vale a pena estudar”. Assim, por
texto, como faz Nick Couldry (2000), é compreendido todo o “[...] complexo de
significados interrelacionados que seus leitores tendem a interpretar como um todo
distinto e unificado”2 (COULDRY, 2000, p. 70-71). É desta forma que o texto deixa
de ser encarado como um objeto fechado sobre si mesmo, e passa a ser compreendi-
do como toda a gama de significações postas em movimento a partir de leituras
determinadas, ou preferenciais, que podem ser acionadas tanto pelo conhecimento
prévio do “leitor”, como pelas ligações feitas com outros “textos”. O conceito de
texto, desta maneira, se solta das amarras que o mantiveram como um objeto
linguístico restrito, para ser compreendido a partir das mais diferentes formas. Um
grafite num muro, um seriado, os modos de se vestir, um conjunto de músicas
executado em um evento, podem ser tomados como textos, assim como quaisquer
outras manifestações significativas.
O conceito de textualidade está diretamente ligado ao de texto. Para Couldry esta
noção é fundamental, uma vez que não é o objeto “texto” que deve ser tomado como
ponto de partida para a investigação, mas os significados por ele acionados. Como
textualidade, então, compreende-se a maneira como os diferentes textos são encarados
pelas audiências, seja na forma de recebê-los ou mesmo nas relações feitas a partir
deles. É o que ocorre, por exemplo, com os textos colocados em circulação sob a
forma de filmes ou revistas. Enquanto no primeiro admite-se que o expectador ficará
1
Culture and Society (1958) Raymond Williams; The Uses of Literacy (1957), Richard Hoggart; The
making of the E nglish working class (1963) E.P. Thompson.
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“[...] a complex of interrelated meanings which its readers tend to interpret as a discrete,
unified whole” (tradução minha).
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nele concentrado até o final, na segunda reconhece-se que pode haver atenção frag-
mentada. De qualquer forma, o que interessa saber, em ambos os casos, é sob quais
convenções esses textos são lidos, e por quem? Ao conceito de textualidade liga-se o de
intertextualidade: os leitores acionam todo um repertório prévio sob o qual têm co-
nhecimento sempre que são colocados em contato com um novo texto. Dar conta
das questões que envolvem textualidade e intertextualidade requer ir além de questões
subjetivas, e estar atento às “operações reais do campo textual contemporâneo”3
(COULDRY, 2000, p. 72).
Couldry ainda aponta para uma questão que nos parece fundamental diante do
objeto que se tem em vista aqui: como fazer análise textual diante de uma enorme
proliferação de textos? Ele deixa uma pista para a resposta, pois destaca que o objeto
de estudo não deve ser um conjunto determinado de textos, mas todo o ambiente
textual, como funciona e como ocorrem as negociações diante dele. O descentramento
da noção tradicional de texto é fundamental para a leitura proposta por Couldry, e tal
posicionamento leva a outro descentramento: “Ao invés do texto ser fonte de certeza,
tornou-se o lugar de um enigma, ou pelo menos de cuidadosa exploração”4
(COULDRY, 2000, p. 87).
tensões entre proprietários de terras e trabalhadores rurais. Para a região Norte, nas
décadas de 1970 e 1980, migraram 7,5 milhões de pessoas, o que significou um
crescimento populacional, em duas décadas, de 200% (SOUZA, 2001, pp. 52 e 59).
Em Rondônia, no mesmo período, o crescimento populacional próximo a 1.000%.
Em 1970 a população do estado era de 111 mil habitantes, e chegou a 1,13 milhão em
1991 (PERDIGÃO & BASSEGIO, 1992, p. 178).
Ao travarem contato os imigrantes colocaram em disputa as práticas que trou-
xeram ou criaram no novo ambiente. Este contato é reduzido por Thiéblot (1977) a
dois grandes grupos: a cultura amazonense – está já constituída a partir de bases
nordestinas – e cultura do migrante do sul. Absolutamente distintas entre si, as trocas
que se estabelecem entre os seus representantes são tomadas como as bases para a
constituição de uma cultura própria de Rondônia.
No entanto, não é um movimento de integração que se percebe no percurso
sócio-histórico de Rondônia, mas, ao invés disso, a subjugação e a conseqüente
substituição de um complexo cultural, e de seu sistema de representação, por outro.
As populações tradicionais – ou a cultura amazonense, como prefere Thiéblot – têm o
seu modo de vida e as formas de conhecer e de se fazerem conhecer, invadido e
desqualificado frente ao modo de vida trazido pelos novos imigrantes. Para isso
corroboram ações oficiais, principalmente através da ação do Incra5, que garantiam
apoio técnico aos colonos6, enquanto as atividades tradicionais eram praticamente
ignoradas.
A relação do homem com a natureza é fundamental na compreensão de como
se dá a fixação de um sistema de representação cultural, enquanto outro é relegado a
um segundo plano e, posteriormente, desqualificado. De acordo com Cemin (1992),
a relação social do homem com a natureza passou, a partir da colonização agrícola de
Rondônia, a ser condicionada à presença de colonos oriundos de regiões de agricultu-
ra mecanizada, que passam a agir numa área de floresta tropical. Com isso estabe-
lecendo-se relações de estranhamento, expressas em inúmeras perdas materiais e
simbólicas.
Embora a política desenvolvimentista dos militares para a
Amazônia tivesse por lema a ocupação dos vazios
demográficos, a colonização apropriou-se, na verdade, de
terras tribais, ou de terras cujos habitantes encontravam-
se inseridos em sistemas econômicos baseados no
5
Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária. O órgão foi responsável pela coloniza-
ção de Rondônia e pela criação de projetos de assentamentos, além de ter fomentado a criação
de núcleos urbanos. Nos primeiros anos da colonização era na maior parte de Rondônia a única
presença do Estado, o que acaba por ampliar, de maneira informal suas atribuições, o que
significava, inclusive, assumir funções de polícia, por exemplo.
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Aqui o termo “colonos” é usado para todos os indivíduos voltados para atividade agrícola e
que, na sua maioria, chegaram a Rondônia a partir da década de 1970, de uma forma ou de outra
em função das políticas oficiais do governo federal. Cemin (1992) diferencia “colonos” e
“capitalistas agrários”: os primeiros seriam os trabalhadores do campo e pequenos proprietários,
enquanto os outros são latifundiários. Tal distinção não é assumida neste artigo.
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O objeto de análise deste artigo, o hino oficial “Céus de Rondônia”, será abor-
dado tendo como pano de fundo as contradições advindas da colonização de
Rondônia. Trata-se de um objeto institucionalizada e se buscará recuperar a maneira
como foi apropriado em momentos particulares da história do Estado.
Um hino oficial pode ser tomado como uma peça de legitimação e identificação
de dada sociedade, por ser reconhecido por esta sociedade como uma representação
da forma como ela própria se reconhece. Esta justificativa, que pode ela mesma ser
tomada como a razão pela qual o hino de Rondônia é aqui objeto de análise. Galinari
(2007, p. 198) aponta os hinos nacionais e/ ou canções patrióticas como forma
discursivas mais ou menos estáveis, recorrentes e reconhecíveis por suas comunida-
des de origem. De acordo com Sadie & Tyrrell (apud GALINARI, 2007, p. 200-201),
a origem dos hinos com caráter de louvor remonta à Grécia clássica. A característica de
homenagem por meio de canções de louvor foi mantida, principalmente como can-
ções patrióticas, até hoje, passando pela sua adoção sistemática, no contexto cristão-
ocidental, a partir do final do século XVIII com o surgimento dos nacionalismos.
Neste percurso uma característica é marcante: os hinos são elementos discursivo-
musicais ligados a algum tipo de cerimônia.
Para Sadie & Tyrrell (apud GALINARI, 2007, p. 198), os hinos têm “o ‘fervor
patriótico’ como peça chave, ao revelar os traços de uma nação”. Tanto que é possível
afirmar que pelas suas características e pela valorização de determinadas diretrizes
morais, políticas e econômicas, os hinos nacionais possuem discurso acima de tudo
político. A intenção política se instaura através de elementos a princípio estranhos ao
debate político, caracterizado pelos confrontos públicos, pois ao se falar de hinos,
refere-se a comemorações, confraternização, identidades e valores comuns, e não a
posições políticas antagônicas.
O cerimonial, então, “pacífico”, favoreceria a instauração
de uma instância de recepção politicamente despercebida,
ou melhor, com a “guarda abaixada” para a investida sim-
bólica que recairá sobre as suas mentes, mas que corre ao
mesmo tempo o risco de ser coenunciada sem que o indiví-
duo se desse conta da violência. E a chave de todo esse
efeito estaria na cenografia característica dos hinos nacio-
nais, das canções de cunho patriótico, quase “festeira”.
(GALINARI, 2007, p. 202).
Desta forma, os hinos, que aparentemente estão isentos de posicionamentos
político-ideológicos, possuiriam grande poder de persuasão, mas que surgem de
maneira amortecida pelo conteúdo simbólico que os envolve. No campo discursivo
e pelas representações que apresenta, o hino autorizaria o indivíduo a se comportar de
uma determinada maneira, e não de outra, propiciando a legitimação de uma prática
cultural, em detrimento de outras.
Na origem, a letra do hino “Céus de Rondônia” era um poema, intitulado
“Céus do Guaporé”, de autoria de Joaquim de Araújo Lima, que teria sido escrito
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ainda na década de 1950. Na mesma década o poema foi musicado por José de Melo
Silva, e passou a ser executado em cerimônias oficiais no então território federal do
Guaporé. Quando houve a implantação do estado de Rondônia, em 1981, a canção,
já como nome “Céus de Rondônia” foi oficializada, pela constituição estadual, como
hino da nova unidade da federação.
Dadas estas premissas, é importante retomar que, quando da composição da
letra e, posteriormente, da música que viriam a se tornar o hino de Rondônia, o
contexto histórico era absolutamente distinto daquele encontrado no início da década
de 1980, quando foi adotado oficialmente. Em 1950 Rondônia tinha apenas dois
municípios8 e a população se concentrava às margens dos rios Madeira e Mamoré,
tendo como principais atividades a coleta de látex, a pesca e a mineração nos leitos
destes rios. Três décadas depois a população era pelo menos cinco vezes maior e as
atividades base do estado eram outras. Com a colonização agrícola, em função da
distribuição de terras, a agricultura passou a ser a atividade principal. Assim, a relação
com o meio alterou-se completamente, passando de atividades basicamente
extrativistas para a intervenção direta no ambiente.
Ainda assim, a letra de um poema composto sob outras representações foi
mantida como hino oficial. Isso pode ter ocorrido em função das novas leituras
possíveis de serem feitas a partir do mesmo texto. Mudou-se o contexto e as
textualidades em torno dele, e com isso o sentido do próprio texto. A partir do
movimento migratório, novas representações foram instituídas, e encontraram res-
sonância numa nova leitura do “Céus do Guaporé”. Antes de realizar a nossa análise,
convém apresentar a letra de “Céus de Rondônia”:
Quando nosso céu se faz moldura
Para engalanar a natureza
Nós, os bandeirantes de Rondônia,
Nos orgulharmos de tanta beleza.
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A capital, Porto Velho, e Guajará-Mirim, às margens dos rios Madeira e Mamoré, respectiva-
mente. Estas duas cidades eram os pontos extremos da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré.
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trata-se de reconhecer o sujeito que subverte a natureza. A tomada desta letra como
hino de Rondônia a partir da década de 1980 – já na fase de colonização agrícola – leva
a uma leitura própria, mais próxima da figura do bandeirante histórico. A representa-
ção então é do sujeito que submete o meio, e a natureza a ele serve com recursos ou
mesmo como um espaço a ser transformado.
Na estrofe seguinte a idéia do desbravador destemido é retomada e reforçada:
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Em 1943 o governo de Getúlio Vargas cria cinco territórios federais em áreas estratégicas de
fronteira: Amapá, Rio Branco (atual estado de Roraima), Ponta Porá e Iguaçu (estes extintos pela
constituição de 1946), e Guaporé, depois elevado a estado já como Rondônia.
Não só tomam mais espaço como também são mais bem descritas. É assim nas duas
últimas estrofes:
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CONCLUSÃO
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