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A TRAJETORIA DO PERDAO NA OBRA DE HANNAH ARENDT DOSSIE Adriano Correia* © objetivo deste artigo ¢ examinar 0 desenvolvimento do tema do perdido na obra de Hannah Arendt, principelmente nos textos da década de 1960. Ao longo da década a utors modifica substancialmente sua ‘compreenséo da telagéo do petdéo com o cristinismo e progressivamente situa 0 perdgo, essim como a promesse © 0 podat, no centro de sua aulise da acao e de suas fagildades, Reaizamios uma andlice bi= ‘uiograics que parcarne cbrae ulicacae« textos snacttoe @buscamioe realizar uma sinteve concestial dae vérias caractersticas do perdéo na obra da autore e partir do exame da relagSo da ago com a necesséria reconciliagdo com sua imprevisibilidade, Palavras-chave: Pend, Acdo, Reconciliagio. Hannah Arendt Paul Ricoeur INTRODUCAO 6 muitas coisas que devemos carregar como um fixe de lena nos omeros. redicn Holderiin © tema do perdao aparece em A condi- 40 humana, de Hannah Arendt, em um mo- vimento breve e decisive ao fim do capitulo sobre a acdo, 0 conceito que sob muitos as- pectos pode ser tido por centro de toda a obra. Ao longo do capitulo Arendt insiste no caré- ter reveladior da acao, no vinculo entre acao e identidade, na espontaneidade do agente, na sua necessidade de articulacdo com seus pares para levar a cabo seus empreendimen- tos. Caracteriza a ago como néo-soberana, precisamente porque é livre e se d4 em uma tia de relacdes constituidas pelas iniciativas e reacdes de outros agentes. A ndo-soberania dos agentes sobre os desdobramentos de suas. ‘Universidade Feel de Goits,Fculdage de Fost fr Eeparanca, SN. ‘7Hoe0'900, Colanla— colds res agbes e a consequente imprevisibilidade delas € um trago fundamental do dominio dos as- suntos humanos e faz com que haja uma de- manda permanente de reconciliacao, uma vez que a nao soberania de um agente espontineo implica em que ele provoque ofensas, por im- previdéncia, por fragilidade ou pela “obscuri- dade do coracao humano” - “a incapacidade do homem para confiar em si mesmo e para ter £6 absoluta em si proprio (0 que éa mesma coisa) € o prego que os seres humanos pagam pela liberdade” (Arendt, 2016, p. 302) Dentre as varias hipéteses de Arendt so- bre a capacidade do perdao de ser um remédio ppara 0s efeitos das transgressées e para as rup- turas entre os agentes na teia de relagdes, cabe & destacar a simetria entre perdao e vinganga = como possibilidades de reacdo nao compulsé- = ria & ofensa. Focaremos nossa atencao. dentre outros temas, na assimetria que se instala no percurso do perdao entre ofensor e ofendido com o padido de perdao ~ pedido que é indis- peusével, para Arendt: tanto uma porta escan- carada pata a recomposicao dos fios rompidos pela ofensa quanto um caminho ancho para uma vinganca redobrada. No plano do espa- co comum, a assimetria no percurso do per dao pode se apresentar para o ofendido como ‘momento oportuno para extrair vantagens piiblicas na exposicao fragilizada do ofensor amependido, como uma forma proveitosa de reparagao vingativa sem reconciliagao. Arendt considera essa assimetria como desigualdade em suas primeiras anotagdes so- bre o tema do perdao, no inicio dos anos 1950. ‘mas nao a retoma em A condiogo humana, onde temos a formulagao mais acabada do per- dao como ago redentora, Exploraremos suas consideracdes iniciais em didlogo com a obra de Paul Ricoeur, para quem a assimetria do perdao € um tema fundamental, com vistas a considerar a sua extraordindria poténcia, mas também sua fragilidade como remédio para a imprevisibilidade da agao. © PERCURSO DO PERDAO EM HANNAH ARENDT £ bem conhecida e debatida a segao de A condicdo humana (1958) em que Arendt tra- ta da irreversibilidade da acao e do poder de perdoar. O percurso da reflexdo de Arendt que culmina nesta segao breve e veemente parece remontar ao infcio da década de 1950, quando Arendt retomou de uma longa viagem 4 Eu- ropa, a primeira apés a Segunda Guerra Mun- dial, e é marcado por descontinuidades e infle- xbes decisivas na compreensao do perdao pela autora, Este perourso pode ser precariamente retracado em sua obra inédita ¢ tem inicio pre= cisamente tendo como um dos temas centrais = aassimetria do perdao, ou o que ela chama de ‘ destruicao radical da igualdade, gd ‘A primeira anotacao de Hannah Aren- dt do volume de mais de mil paginas de seu Didrio de pensamento, editado ¢ publicado ha pouco mais de uma década, tem como tema © perdao, Na ocasido em que concluia para publicacao a obra As origens do totalitarismo ela se detém no exame das articulacdes entre injustica, perdao, vinganga © reconciliacao. A-TRAJETORIA DO PERDAO NA OBRA DE HANNAH ARENDT Arendt pondera que a injustiga a nés cometi- da é como um fardo que carregamos sobre as. costas, a0 contrario do que concebe 0 conceito cristio de pecado, consoante ao qual “a injus- tica vem dentro do préprio individuo, como se co pecado permanecesse dentro de nés mesmos ¢ envenenasse o organismo inteiro, jé afetado potencialmente, de modo que sao requeridos a graca e © perdio nao para nos des-carregar, mas para purificar-nos” (Arendt, 2002, p. 3 [1 Jun-1950, 1], grifos no original), Entre os cristaos, insiste Arendt, o perdao 86 pode, em tiltima insténcla, vir de Deus, e em pemiltima s6 pode se dar entre individuos ra- dicalmente separados entre si qualitativamente. (O gesto de perdido destsi ti radicalmente a igual: dace © cont isto 0 tudamento dae zelagses uma nes, que, propriamente, depois de tal ato no seria possivelrelacio alguma.O perdio entre homens no [pose signiticar algo aiferente do sequinte: rensne 4 vingar-se,calar, € pastar 80 largo; © por si mesmo iso signiica, por principio, despedirse. A vingan (, palo contrano, permanace sempre préscma do ‘out € 0 relacionamento simplesmente nao termina. (© perdio, ou o que aormalmente ee chama assim. ¢ realmente apenas un simulacro; ele um se afina ‘como superior ¢ © outro exige algo que os homens rio podem nem retirar nem conceder uns aos ou tuos, O simulacro consiste em que um, que se apre- ‘senta sem carg, carrega aparentemente 0 peso das Costas de outro (Arendt, 2002, p.3 fl. jun-1950, 1) O mais notével nessa sua remota ocupa- 0 com o tema é sua insisténcia em separar perdao de reconciliagao, por um lado, ¢ seu rechaco do perdao cristio como signo da con- cepcao de uma natureza humana comompida e imedimivel em uma medida humana, por outro, Ao perdao Arendt opée a reconciliagao, queconsiste em, porassim dizer, assumir 0 que recaiut sobre nés, na medida em que “o que se reconcilia carrega voluntariamente 0 peso que 0 outro leva de qualquer modo. Isso significa que restabelece a igualdade, Assim, a reconci= liacdo € exatamente o contrario do perdao, que estabelece a desigualdade” (Arendt, 2002, p. 4 (1 jun-1950, 1), grifos no original). Trata-se do tormento da desproporcdo entre profundidade da falta e a altura do perdao considerado por Paul Ricoeur, mas lamentavelmente este é um tema ao qual Arendt nao retornard. Em 2000, quase nonagenario, Paul Ri- coeur publicou a obra A meméria, a histéria, 0 esquecimento, Marcadamente abrangente & aberta em suas conclusées, a obra articula os ‘rs conceitos mencionados no titulo a partir de uma fenomenologia da meméria, de uma epistemologia da histéria e de uma hermenéu- tica da condicao histérica, alinhavados pela problemética comum da representagao do pas sado (cf. Ricoeur, 2014, p. 18). O epilogo do livro, segao que mais nos interessa aqui, acres centa a triade mencionada no titulo o tema do perdao, Intitulada “O perdao dificil” - “nem facil, nem impossfvel” — a segao apresenta 0 perdao como “horizonte comum da meméria, da hist6ria e do esquecimento” (Ricoeur, 2014, p. 405). O perdao articula a representacao do passado com a fenomenologia do homem fali- vel e do homem capaz, levada a cabo ao longo de décadas por Ricoeur em sua obra Em sua discussao sobre o perdao, Ricoeur estabelece um diflogo estreito com varios pen- sadores, como Derrida ¢ Jaspers, mas também com Arendt. Ele tende a concordar com Derri- da, quando este afirma, em didlogo critico com Arendt, que “o perdao dirige-se ao imperdoavel, ounio é. Ele € incondicional, ele é sem excecao e sem restricio. Ele néo pressupde um pedido de perdao” (Ricoeur, 2014, p. 474). Como vere- mos, a compreensao de Arendt segue em outra diregao, mas h4 um ponto decisivo na anélise de Ricoeur que dialoga involuntariamente com as primeiras consideracdes de Arendt sobre 0 perdao: tratarse do que Ricoeur chama de as- simetria do perdao, do desequilibrio entre a profundidade da falta e a altura do perdio. Isto toma o perdao dificil, mais uma vez, na medida em que, mais que a teconciliacao eo alivio do fardo da culpa e do ressentimento, ele tem de encontrar uma equagio a partir de uma situa- (a0 de profunda desigualdade. Com efeito, nao pode haver perdao a nao ser que se possa imputar a alguém um ato & que esse alguém assuma como suas as acdes que sao levadas a sta conta (cf. Ricoeur, 2014, p- 467), assim como as consequéncias dela, na medida ponderada da imputacio em um con- texto de pluralidade. Esta assungao da respon- sabilidade na vinculagao do agente ao ato, pelo ofendido e por ele mesmo, é o reconhecimen- to de uma falta que tende a afetar a poténcia de agir do ofensor e a meméria apaziguada do ofendido, mas é também a via privilegiada de uma liberacio de ambos do ciclo do atrela- mento compulsério a uma ocorréncia passada que sem a reconciliagdo nao cessard de urdir implicagdes no presente e no futuro, Para compreender a possivel equagao do perdao a partir de uma radical assimetria entre a profundidade da falta e da culpa e a altura do perdao, Ricoeur reflete sobre o que chama de economia do dom e sobre a afinidade entre 0 perdao e o dom em sua dimensao de recipro- cidade em uma troca que nao é comercial. Tra- tarse de ultrapassar a notavel assimetria entre quem da e quem recebe a partir do modelo ar- caico da toca, que vincula as obrigacdes de dar, de receber € de retribuir (cf. Ricoeur, 2014, p. 486-487), reinterpretado sob a forma de um dar que supée, em vez da retribuicéo, um simples- mente receber. Esta dadiva, para Ricoeur, nao institui uma demanda de reciprocidade nem es maga o beneficiério em uma profunda assime- ‘ria instaurada por uma divida insolfivel. Ainda que subsista como um enigma, aassimetria “en tre omuito alto espirito do perdao e o abismo da culpabilidade” pode ter uma resposta avanga- a, pensa Ricoeur: “dar honrando o beneficiario 6a forma de que se reveste, no plano da troca, a consideracao” (Ricoeur, 2014, p. 469) —ou, para Arendt, o respeito, como veremos, ‘A solidariedade do ofendido com o far- do do dano s6 é possivel se tivermos em conta “a gratidao fundamental pelo dado”, owa grat dao por tudo que é como &, 0 avesso do ressen- timento e permite uma ativa reconciliagao com o dado elementar de que nao sou meu proprio criador, ainda que muito do que me constitu esteja sob minha responsabilidade - uma ativa eoauote (Cantuno CRI, Salva reconeiliag4o que busca romper com a com- preensao da existéncia como devedora e cul- pavel por nao ter criado a si mesma (Cf, Aren- dt, 2002, p. 4 ¢ 815 [I. jun-1950, 1 e “Kant"]). Ainda que seja “ineludivelmente escasso”, 0 que ocorre na reconciliagao assim compreen= ida, seguramente, no se trata de um sucesso aparente, como no caso do perdao, na medi- da em que nio promete o impossivel, isto 6a ‘miitua liberagao. Trata-se antes da compartilha solidaria do fardo da injustica, baseacla na de- liberada disposicao do ofendido para assimilar co que lhe sobreveio e para reatar com o ofensor 8 vinculos rompidos ~ “decidemrse a ser cor Tesponsdveis, mas sob nenhuma circunstincia co-culpadios” (Arendt, 2002, p. 7 [I, jun-1950, 1). Tratarse, ao mesmo tempo, de se reconci- liar com uma realidade, de aceitar ou recusat assimilar um estado de coisas e a reposicao de ‘um vinculo ~ algo que s6 potle ser motivado pela gratidao pelo dado e pelo desejo de con- servagao do estar junto a outros, que Arendt por vezes chamou de amizade, amor ou respei- to, como considerarel adiante. Por outro lado, é a atitude de calare pas- sar ao largo, de desviar 0 olhar que forma um ar com a reconciliacio. Sao, assim, disposi- ées claramente positivas ou ativas, antagoni- cas 4 mera reagao do perdao ou da vinganga. A solidariedade nao é do compartilhamento da macula, mas a da nao soberania dos agentes. No “intento hibrido de conseguir que o fei- to deixe de estar feito, algo pretendido tanto pelo que perdoa quanto pelo que pede perdao” (Arendt, 2002, p. 6 [[, jun-1950, 1)), tem Ingar © puramente “re-ativo", antagdnico a ago. 5A gatiado nfo € uma virude ctist, nfo exté presente Toute de Deus, ou soa 6 aa vercade Jabeutuda pea Superagdo do ressentimenio contra Deus. Distintamente {sto de sertira Deus-bo resentment do escravo conta Senter divino, como percebeu Nietzsche, surge o ressem. tthnento mais protindo contr toda a ealidade-ne medida fm que ea exh dada nao ol abricada pelo omen E dat brotao essentimente contra o feito por ouos homens, ot {Gitmo ane auaturaa ¢ amb uma falta Gs gratdae, ai surge uma desconfianga contra o que é subiaido sobe- {aula humans. A lberdae cris é host a natures, pois ‘STgniica soberanis, independéncte de natureza ou domi nfo sobre el” (Arendt, 2602, p. 10-11 [jan 1050. 6) A-TRAJETORIA DO PERDAO NA OBRA DE HANNAH ARENDT O avesso da gratidao pelo dado e da re- conciliacao com 0 ocorrido, que se traduz no responder por si inclusive no que concerne ao que propriamente nao controlamos, é a cum- plicidade crista baseada no pecado original. Com efeito, em vez de compartilhar da culpa com base no pecado original, que implica a cumplicidade consistente em dizer “também poderiamos té-lo feito” ou “também isto é hu- mano”, temos a solidariedade resultante da reconciliagao via partilha da injustica aconte- cida, Da-se, assim, a reconciliagao entre agen tes que admitem que o fracasso e a ofensa sao insepardveis de uma vida ativa, mas nao a de- finem em tiltima instancia, Esta reconciliacao, que nao promete dis solver o fardo da injustiga nem exoneraro ofen- sor, mas antes indica a disposicao do ofendido para aceitar compartilhar o fardo do ocorrido com ele, € 0 avesso do perdao, na medida em que restabelece uma igualdade na comparti- Jha do fardo. Nao est em jogo a cumplicidade com a ofensa pela concepgao de uma natureza ‘humana comum degenerada — que exonera por Jembrar que poderia ter feito o mesmo, porque somos todos pecadores e podemos esperar 0 pior de nés mesmos e dos outros -, mas antes a solidariedade que resulta do fato de que “a re conciliagao pressupde seres humanos que atu am e que podem inclusive cometer injusticas, mas nao seres humanos envenenados” (Aren- dt, 2002, p, 6-7 [f, jun-1950, 1]). Tratase de uma nogao de solidariedade que, assim como 0 desviar do olhar ¢ despedir-se que & sua ale temativa, supée o juizo e nao opera, como a vinganca e o perdao, na altemnativa entre o cas tigo e a exculpacao citmplice. A avaliagto do cristianismo como um ressentimento contra uma natureza humana pe- cadora e como meio de transformagao de toda falta ou ofensa em culpa — como se toda ofensa fosse mera atualizacéo desta natureza envene- nada pelo pecado ~ é decisiva para o rechaco inicial do perdao cristo, por Arendt. Esta ava~ liagao ¢ demarcada por um estreito didlogo com Nietzsche, nas anotagdes nos Didrios de pen- samento, mas também nos numerosos cursos e conferéncias ministrados por ela até meados da década de 1950. Ao longo desta década, nao obstante, esta sua avaliacdo se transfigura pro- fundamente e ganha novos contornos. Em uma anotagao de abril de 1951 Aren- dt ainda separa perdao de reconciliacéo tendo em conta a assimetria do perdio, mas jé esta~ belece uma distincao decisiva de compreensio entre Jesus de Nazaré e o cristianismo acerca do perdao, Para ela, Jesus nao buscava com 0 perdao exibir a natureza perversa ¢ culpavel do ser humano, mas antes banir o ser culpavel do mundo dissolvendo “o ser culpavel em um mero haver-cometido-injustiga” (Arendt, 2002, p. 69 [Il, abr-1951, 22]) ou perpetrado uma ofensa, Pouco tempo depois insiste em que a propria esséncia ou natureza humana é inde- finida e desconhecida, havendo entio um ir- redutivel elemento de inseguranca na aco, de modo que “nao é possivel nenhuma agao sem perdao recfproco (que em politica se chama re~ conciliagao). Assim como em Jesus, o perdao se baseia no couhiecimento de que nés nunca podemos saber inteiramente 0 que fazemos” (Arendt, 2002, p, 3039-304 [XIIL, jan-1953, 17], grifo no original}, Em dois momentos em 1958 Arendt ja aponta na direcao da breve sintese desse longo periodo de reflexio que se articnla enfim em A condicéo humana: ‘panto, a misericérdiae a reconcitiaglo nto revo gam coisa alguma, mas prolongam a apo iniiada, ‘embora ems uma ciregéo qu nao Ine ere inerante |A grandeza destas formas de comportamento esta ‘em que intenompem 9 automatieme do que ‘nio -revogivel’(Nichtstekgangigzu-Machenden). Sioa ‘auténtioa re-agd0 esporttnea. Af radica sua produ tividade. Instauram um novo comeso no interior de tuna ago cuje exacugio jf havia comecado (Arendt, 2002, p. 312 [HI fev-1853, 30) * £ No texto “Compreensio ¢ politica, publicado em 1954, ‘Arendt observa que © perdi ¢ "uma dae mores eapact. dades humana ¢talver » e¢g0 humana male cused, oa medida em que fente o apaientemente impossvel, a se ‘ber, desfazer © que fi fele. © couvesue cfar um comeyo {quando tudo parecia ter chegado eo fim” (Arendt, 2006, pau0230) J4 temos entao a indicagao do carter ativo ou produtivo do perdao, que representa uma profunda alteracao em sua posigao ini cial, assim como adiante suprimiré qualquer referencia positiva a compaixao, enfatizan- do sempre antes a solidariedade dos agentes. Pouco tempo depois, em junho de 1953, altera mais uma vez um aspecto fundamental de sua posicao inicial quando afirma que principio propriamente politica do amor cristio reside no perdiio, Com efit, ita nio pode ser deslo cado a alma do individuo, para isso se requer sempre outro. Bu posso dominara mim mesmo (mas nin 1€m pode perdonra st mesmo, Nesse sentido o cris tSanieme levou reslmente a afro a pluralidade doe ‘homens (Arendt, 2002, p. 278 [SVI,jun-1953, 7). Actescenta ainda, pouco tempo depois, por fim, que “todo o ensinamento de Jesus, do perdao a graca, pretendia somente mostrar aos homens que eles mesmos podem conseguir que 0 feito nao esteja feito, ¢ isto é precisamen- te em que consiste a graca de Deus” (Arendt. 2002, p. 504 [XX, nov-1954, 44) Se considerarmos a elaboracao das arti- culacées entre irreversibilidade e perdao em A condigao humana, como o faremos, é notavel 0 quanto os elementos conservados dessa anéli- se ~ como o caréter reativo da vinganga e o ca- réter ativo da reconciliagao ~ sao amplamente suplantados pelos tracos de ruptura, claramen- te no que tange ao significado e & dignidade do perdao. Todos os elementos nietzschianos da Tecusa do perdao cristao com vistas ao passar ao largo, desviar a vista ou despedir-se sao eli- Gidas. As razées dessa profunda mudanga de posicao, notadamente no que tange & avaliacao do cristianismo, ou ao menos dos ensinamen- tos de Jesus de Nazaré, talvez possa ser com preendida pelo progressivo distanciamento da critica nietzschiana ao cristianismo, que tanto @ ocupou no inicio dos anos 1950, mas infeliz~ ‘mente nao pode ser retracada passo a passo em sua obra inédita ou publicada, Esta mudanga marcante de compreen- sio aparece de modo exemplar em um escrito inédito de meados da década de 1950. “A tra- A cons rg0018 (Cameo CRI, Salvador, ¥. 93, pe dicao do pensamento politico", editado postu- ‘mamente em A promessa da politica, no qual as experiéncias do cristianismo primitivo sao mencionadas entre as experiéncias pol fundamentais. Arendt sustenta que 4 tratigio do pensamento politico se interessa pela pluralidads humana como ep ela indicasee apenas 8 soma total de seres razodveis qu, devide a algum Aefelto decsivo,s80 forgados a viver Juntos © afor- ‘mar um corpo politica. Mas as trée experiéncias ppoliticee que fcam fora da ted 42a ago come inicio de um novo empreenaimento za Grécia pré-potis, a experiéncia da fundacio em Roma ea expeitncia crsté de agir e petdost como vinculades, isto ,o connecimento de que quem age tem de estar pronto perdoar ede que quem perdoa de fato age ~ tam um significado especial porque permaneceram relevantes para nossa histria mes: smo tends ido desconsideradae pelo pensamiento politico, De um modo fundamental todas elas dizem respeito a um especto da condicdo bumans sem 0 {goal a politica nio sera nem possivel nem necesas ria: o foto da plurslidade humans enquanto distinta a unicidade de Deus, sea ele compreendide como soma ‘dais’ floseica ow como 9 Deus pessoal ane religides monotefstas (Arendt, 2008, p. 60-81) = a experiencia Arendt chega a afirmar que talvez a falha ‘mais explicita da tradigao do pensamento poli- tico em relacao as verdadeiras experiéncias po- Iiticas se encontre “no abandono silencioso pela escoldstica das experiéncias politicas centrais do cristianismo primitive” (Arendt, 2005, p. 56). Hla salienta a ousadia e a singularidade da conclusao de Jesus acerca da incerteza da acao humana. Em vez de duvidar da seriedade dos assuntos humanos devido & falta de controle dos agentes sobre stias agoes e da maitua depen- déncia dos agentes, como teria feito a tradicao do pensamento politico e as modemnas conside- rages das filosofias da histéria, Jesus teria bus- cado na natureza da prépria agao Ihumana wm remédio para os inevitaveis erros de um agente que no pode ser soberano justamente porque atua em condigéo de pluralidade na teia de relagoes constituida pelos agentes, [A guande aucicia © o ongulho unico deses conceite 4e perdido como uma relagio bésioa entre os seres A-TRAJETORIA DO PERDAO NA OBRA DE HANNAH ARENDT ‘umanos néo residem na aparente conversio da Jauidede da culps « do erro nas posses vntudes dda magnanimidade ow da solidariedade. Reside an ‘ee no fato de que o perdio tenta o aparentemente Impossivel, desfazer que foi feito, © que consegue Jazer um novo comeco onde comecos nie pareciam sep mis possiveis, Que oe aeres umanos 80 e2 ‘bem o que eles esto fazendo com relago 80s outros, ‘que oles possam pretender o bom ¢ aleangar 0 mal, (eric versa, e qua, nfo cbetante,agpirem me mesma reaizagio da intenglo da habilidade téctca (cuastershp) em sua telagdo com as coisas naturais ‘materia tema sc o grande tema da tragacia cesce a Antlguldade greg. tradigdo nunca perdew de vista ‘ste elemento trigico em toda agio nem foi imcapaz ‘de compreendes, embota ueualmente em um con texto nfo potiico, que perdoaresté entre as malores vinludes bumanas (Arendt, 2005, p. 38, Anovidade especificamente polftica dos ensinamentos de Jesus de Nazaré, para Aren- dt, era justamente a assungao da interconexao entre agir e perdoar como sendo constitutiva da relacdo entre agentes que vivem em comu- nidade, Em vez de apelar para uma articulacao superior das cegas acées humanas em alguma asticia ou providéncia e de rechagar como ab- surda uma agéo tragica (livre e ndo soberana). em que o agente nao controla os desdobramen- tos de suas iniciativas, Jesus teria encontrado no perdéo o remédio propriamente ativo para lidar com as tribulacdes de uma acto nao so- berana em um contexto de pluralidade e in- terrelacionamento. A grande virtude desse remédio consistiria em nao tomar as tribula- c6es ou constrangimentos como razies para 0 menoscabo da ago, mas antes em buscar lidar com a cadeia de consequéncias imprevisiveis que se desenrolam de toda acao, enquanto ini cio, de modo que permitam ao agente em al- guma medida desligarse do que desencadeou, a0 menos na medida necessaria para, mesmo sem deixar de ser responsével, conservar sua poténcia de agir. Com efeito, ‘ato de perdoaré a Unica ago estritamente hume sna que ibe (2 do tipo de comsaquencias que toda acso engencras fenquanto tal, 0 perdio ¢ uma ago que garante a continuidade da capacidade paraa agéo, para come 1 nés mesmos ¢ aos outros da cadeia ‘gat algo novamente, em cada ser bumano individual ‘que, sem perdoar © vem ser perdosdo, se pereceria ‘com 0 individu do conto de fades a quem € conce ido um desejoe depois é para sempre punido com 4 relegao desse deseo (Arend, 2005, p. 58). Aqui jé nos encontramos plenamente no ambiente da articulagao dos conceitos ¢ das experiéncias em A condiedo humana, No cen- tro da obra, dedicada a “pensar 0 que estamos fazendo ou pensamos que estamos fazendo no mundo em que passamos a viver” (Arendt, 2016, p. 400; Gf. também p. 6) e a refletir so- Dre as transformagoes nas atividades humanas fundamentais ao longo da era modema, esta um exame sobre os tragos bésicos da ativida- de da acao, enquanto distinta do trabalho e da fabricacao. Enquanto o trabalho é a atividade que busca atender & condicao de viventes dos seres humanos e a fabricacao cria um mun- do artificial de coisas titels, comrespondendo @ condicao humana da mundanidade, a acao corresponde a pluralidade humana, ao fato de que somos ao mesmo tempo iguais ¢ singula- res enquanto humanos, que é a0 mesmo tempo sua condigao de possibilidade e sua razio de ser (Cf. Arendt, 2016, p. 9). E caracteristico da agao 0 fato de que os empreendimentos iniciados pelo agente 86 podem ser levados a cabo a partir da acao conjunta com outros agentes. do “agir em concerto” que constitui o poder politico, como assevera Arendt em uma referéncia a Burke (Arendt, 1998, p. 526, Cf, também p. 267). Ade~ mais desta interdependéncia entre os agentes, “como a ago atua sobre seres que sao capazes de realizar suas prdprias agoes, a reagao, além de ser uma resposta, é sempre uma nova aga0 que segue seu curso préprio e afeta os outros” (Arendt, 2016, p. 236), fazendo com que todo agente nao apenas nao seja senhor dos des- dobramentos do que inicia, mas também seja padecente das re-agbes que sua agao original provoca. Isto faz com que uma das caracteristi- cas marcantes da acao seja sua ilimitabilidade, que faz.com que cada agente jamais saiba exa- tamente o que provocard quando se pée a agir, de modo que além de ilimitada, a acdo jamais é realmente previsivel, precisamente porque constitui uma taia de relagdes em que cada agente interfere e desvia as iniciativas de cada outro agente, O remédio para a ilimitabilidade ¢ a imprevisibilidade das agoes humanas sao as promessas reciprocas que se materializam em acordos, leis ¢ instituicées que estabilizam, ainda que de modo provisional. as agées de- senroladas no espaco comum, na esfera pibli- ca, Precisamente por este cardter da ac: um contexto de phuralidade, a fragilidade é um traco constitutive dos assuntos humanos, mas também a fonte de sua extraordindria fecundi- dade, de sua capacidade de engendrar relacoes sempre novas. Essa fecundidade se revela de modo mais evidente nos remédios buscados no am- bito da propria ado para as incapacidades dos agentes para controlar os processos desenca deados por melo da agao e para desfazer o que foi feito, Os remédios que redimem a acao dos constrangimentos da irreversibilidade e da im- previsibilidade sao as capacidades de perdoar e de prometer, que formam um par, desfazen- do 08 atos do passado e instaurando ilhas de seguranca no oceano de incertezas do futuro, ¢ “surgem diretamente da vontade de conviver com os outros na modalidade da agao e do dis- curso ¢ so, assim, semelhantes a mecanismos de controle instaurados na prépria faculdade de iniciar processos novos ¢ interminaveis" (Arendt, 2016. p. 304). Na caracterizagao do perdao em A condi- Go humana Arendt tece uma série de conside- ragdes, muitas delas pouco desenvolvidas. que sao fundamentais para a compreensao de sua anélise. (1) Ela sustenta que o perdao, assim como a promessa, s6 possui realidade em um contexto de pluralidade, uma vez que se ba- seiam “em experiéncias que ninguém pode ter consigo mesmo e que, ao contrério, se baseiam inteiramente na presenca de outros” (Arendt, 2016, p. 294), Em vista disto, ninguém poderia perdoar a si mesmo - tornaremos a este tema no final do texto, (2) Para Arendt, “o descobr: dor do papel do perdao no dominio dos assun- tos humanos foi Jesus de Nazaré”, e 0 fato de que ele temha feito esta descoberta no contexto religioso é menos relevante que o fato de que temha se dado no ambito da vida em comum das comunidades cristas primitivas. A desco- berta — e nao a invencio® - do perdao por Je- sus teria se dado justamente pela experiéncia politica auténtica desta vida comunitétia. (3) dever de perdoar sobre o qual insistiu Jesus tem conexao estreita com o fato de que na vida em comum a ofensa, ao contrario do crime do mal voluntétio. uma scorténcia cotsiana, deccnréncia natural do rato de que & agio estabetece constantemente novas relagées em uma tea de relagées, © precisa do par (fo, ca iberecso, para poesblitar que a vida pores ‘continuar, esobrigando constantemente of homens aquilo que izeram sem o saber, Oz homens podem ser agentes livnes somente mediante essa mitua © cconstante desobrigagdo do que fazem:; somente com ‘aconstante disposicio para mudar de ideiaeecome (at podeee confer a eles um poder tio grande quan too de comegar algo novo, (Arendt, 201, p. 297), Assim, 0 perdao tem estreita conexao nao apenas com a recomposicao dos vinculos rompidos entre as pessoas por meio da ofen- sa, mas também com a conservagao da liber dade humana que se realiza na agao. Esta no centro, portanto, de toda a vida politica, ain- da que Arendt nao indique com clareza como © perdao pode se manifestar nas instituicdes da vida politica’, (4) Em A condigdo humana, contrariamente a sas primeiras reflexdes so- bre o perdao nos seus Didrios de pensamento, o perdao é compreendido como 0 exato oposto da vinganga, uma vez que esta enreda o agente indefinidamente em um processo reativo “que prende tanto o agente quanto o paciente no eoauote 8, pa 49 contririo do que afirma David Konstan, em Before for _giveness~ the origins of moral idea (2010, p. 112), Arendt Ggmaie atimmow que "a idoss do parcan cofio mata caps Cidade Bumana Comezou com Jesus", mas antes que ele {ena Gescatorto sou papel contal a expeniencia over «esse respeito, Paul Ricoeur sustenta “que existe uma as- simi sgniicaliva ete o poder perdoar eo poder pro- Inter, como o comprova a impossibiidade de sutenticas Institugbes poiteas do perdas” (Ricseur 2044, p46). (Cantu CRI, Salva A-TRAJETORIA DO PERDAO NA OBRA DE HANNAH ARENDT inexordvel automatismo do processo da acao” ao passo que o perdéo é uma reagao que con- serva algo do carter original da agao, em sua imprevisibilidade, libertando das consequén- cias da ofensa “tanto 0 que perdoa quanto 0 que é perdoado” (Arendt, 2016, p. 208). (5) Em. As origens do totalitarismo Arendt conclui suas reflexes indicando que o totalitarismo permi- tiu que descobrissemos que “existem crimes que os homens nao podem punir nem perdo- ar", na medida em que os que cometeram esses crimes “situam-se além dos limites da propria solidariedade do pecado humano” (Arendt, 1096, p. 410). Esta conexao entre o imperdo- vel o impunivel reaparece em A condigao humana nos seguintes termos: “é, portanto. bastante significative, um elemento estrutu- ral no dominio dos assuntos humanos, que os homens nao sejam capazes de perdoar aquilo que nao podem punir, nem de punir o que se revelou imperdodvel” (Arendt, 2016, p. 208+ 9). E decisive aqui tanto a dependéncia que a nossa capacidade de perdoar tem da nossa aptidao para compreender e julgar - desafiada pelo mal extremo ~ quanto o fato de que so- mos capazes de provocar ofensas que “trans cendem o dominio dos assuntos humanos ¢ as potencialidades do poder humano, os quais, destroem radicalmente sempre que surgem"” (Arendt, 2016, p. 299). f uma das fragilidades decisivas da aco, portanto, o fato de que pode desencadear eventos que seus préprios remé- dios nao sao capazes de redimir. Os seres hu- manos podem desencadear coisas que os pode res humanos nao podem remover, porque sao livres, mas nao sao soberanos, (6) Para Arendt, 0 perdao envolve um percurso necessario a ser percorrido pelo ofensor, ao final do qual nao resulta qualquer dever de perdoar por parte do ofendido. Ao comentar uma das mais conhe- cidas falas de Jesus sobre 0 perdao “se ele te ofender sete vezes no dia, e sete vezes no dia retornar a ti, dizendo 'me arrependo’, tu 0 per- doarés” (Lucas 17. 3-4) - Arendt observa que 0 que esta em jogo nas palavras chave do texto é a transgressio, 0 erro ou o fracasso (hamarta- nein), o mudar de ideia, ou a manifestacao do desejo de “voltar sobre os proprios pasos”, se fosse posstvel (metanoein), e a possivel libera cao on desobrigacdo (aphienai). Em vista disto, Arendt se permite retraduzir 0 trecho nos se- guintes termos: “E se ele transgredir contra ti (J e() procurarte, dizendo: Mudei de ideia, (Arendt. 2016, p. 297, nota 98). E decisivo que Arendt assimile este rito do perdao assim descrito e nao o conceba como uum ato incondicional tanto quanto sua recusa de que o perdao, em seu cardter de agao im- previstvel, possa ser um dever. De todo modo, para ela o perdao deve implicar um pedido de perdao do transgressor que indique nao ape- nas arrependimento, mas, na manifestacao de- sejo de nao ter cometido a ofensa, a promessa de nao repeti-la, no que estiver ao alcance do agente. Por fim, (7) 6 notério que em suas ano- tages do inicio da década de 1950 a reconci- Macao que ela julga imprescindivel seja antes de tudo um reconciliarse mais com a realida- de do ocorrido que com alguém que ofendeu, em respeito ou deferéncia ao agente (que seria assim desligado do ato e da maldigao de se ver reduzido em tiltima instincia como pessoa ao dano que causon). Ainda que a reconciliacao com a realidade jamais deixe de ser um tema para Arendt, em A condigdo humana a énfase recai antes sobre a reconciliacdo entre quem ofenden e quem foi ofendido, em respeito ao ofensor, que ndo ¢ assim identificado com sua ofensa e pode entao persistir como agente, para liberar a ambos do ciclo da vinganga e para permitir que restabelecam relagies entre si. deves desobrigé-lo" CONSIDERACOES FINAIS Arendt assevera que “o perdao e a rela- ao que ele estabelece constituem sempre um assunto eminentemente pessoal (embora nao necessariamente individual ou privado), no qual o que foi feito € perdoado em considera- a0 a quem o fez” (Arendt, 2016, p. 299, grifos no original). Esta consideracao ela chama de respeito, que é “uma espécie de ‘amizade’ sem intimidade ou proximidade: é uma considera- cao pela pessoa desde a distancia que o espaco do mundo coloca entre nés, consideragao que independe de qualidades que possamos admi- rar ow de realizagdes que possamos ter em alta conta” (Arendt, 2016, p. 301), Arendt conecta esta nocdo de respeito a philia politiké aristo- ‘élica, a amizade que subjaz as comunidades politicas e se dé justamente na constituicao da interacdo e do didlogo entre individuos que se tomam por iguais, assim como na instauracao de um espago que separa, une e preserva as diferencas, Ela observa que “para os gregos a esséncia da amizade consistia no didlogo. Sustentavam que 86 0 intercambio constante da fala podia unir 08 cidadaos em uma polis. No didlogo tormavam-se manifestas a impor- tancia politica da amizade ¢ a humanidade que lhe é propria” (Arendt, 1970, p, 24). Esta amizade traduzida como respeito & uma das ‘manifestagées do amor ao mundo que para ela era decisivo para a vida politica (Cf. Campillo, 2019, p. 97-107), Ela lembra, em seu ensaio s0- bre Lessing, que “os gregos chamavam aquela philanthropia. ‘amor ao homem’, a humani- dade (humanness) que se alcanga no discurso da amizade, uma vez que ela se manifesta em uma disposicdo para partilhar o mundo com os outros” (Arendt, 1970, p. 25, grifos meus). Esta disposigao néo recusa jamais a premmogativa de julgar, mas nao admite que se possa julgar senao em uma medida humana, mas se solidariza com a nao soberania dos agentes, julga com padrdes humanos e se re- cusa a imitar a ira de um Deus todo-poderoso. Na formulagao de Paul Ricoeur (2014, p. 501): “sob o signo do perdao, o culpado seria consi- derado como capaz de outra coisa além de seus, delitos e faltas. Ele seria devolvido a sua capa- cidade de agir, e a acdo, & de continuar (...) A (Como comenta Faul Ricoeur (2014, p 490) “Dar hoarse. oo beneficiaro é a forma de que te veveste, no plane da ttoce, a considetagzo evocada acim. A reciprocidede do dare do secober poo fim 2 assimetiia honzoalal da dom Sem espirto de troce, ob a égide da figura singular de que SS consieracio pauss onto a c= sevestt™ RH, 8 20018 (Came CRI, Salvador, ¥. 93, pe formula dessa fala ibertadora, abandonada & nudez de sta enunciacao, seria: tu vales mais que tous atos”, Os atos revelam quem alguém em sua identidade ‘mica, mas jamais alguém deveria ter sua dignidade usurpada na identi- ficagao de sua personalidade com um ou outro ato fracassado — em um juizo desmedido. Ba isto que Hannah Arendt se refere quando condena o louvor de Brecht a Stélin e ‘manifesta ao mesmo tempo seu respeito pelo poeta, Com efeito, diz ela, “todo julgamento esta aberto ao perdido, todo ato de julgar pode se converter num ato de perdao: julgare perdo- arsao apenas os dois lados de uma mesma mo- eda”, Mas enquanto a lei tende a avaliar os atos em desconsideracio & pessoa que o cometeu, © ato ae perdoar, pelo contrétio, leva & pessos em considerasio: nenhum perdio perdea o assassina- 10-0u 0 roubo, mae apense 0 assassino ou o lado, ‘Sempre pentoamos aiguém, nunca ago, e € por isto (que as pessoas peneam que apenas 9 amor pode pet oat Tadevia, com ou sem ator, pardoamos em con sideragio & pessoa, ¢ a0 passo que a justige exige que todos seam iguais, a micercsndia insists na desi. ‘gualdade ~ uma desigualdade que implica que todo ‘homem é, ou deveria ser, mais que aquilo que fez ou zealizou. (Arendt, 1970, p. 248, grifos no original [Ressbiso para publicacio om 11 de faveneiro de 2020 “Acelto-em 27 de juno de 2020 A-TRAJETORIA DO PERDAO NA OBRA DE HANNAH ARENDT REFERENCIAS ‘ARENDT, Hannah. Men in dank times. Nova York: Harvest Book, 1970. ARENDT, Hannah, Origens do totalitaiamo, Trad, Roberto Raposo. $20 Paulo: Compania das Letras, 1986, ARENDT, Hannah. Denktagebuch ~ 1950 nis 1073. 2 Vol Ba. Ursula Lutz © Ingeborg Nocdman, Munique: Fiper 2002. ARENDT, Hannah. The promise of politics. Nova York Schocken Bowie, 2005 ARENDT, Hannah. Compreensio politic as difculdades de compreensto). in: Compreender. formagao, exilio © ‘Slits [enesioe 1020 L0si} Tad. Demise Hottnana ‘She Paulo: Compantsa das Letras, 2008, ‘ARENDT, Hannah. A condigdo humana. 12* ed. rev. Trad. RoRaporo. dev Tee. A comeias is de janaire”forenee ‘pntistana 2015, CAMPILLO, Anténio. concepto de amor en Arenal Madi: Aboaa Eaitores, 2018, KONSTAN, David, weyore jogivenese: the origins of a ‘Boral idea, Nova York: Cambridge University Preze, 2040, RICOEUR, Fat. A memeria, a nistnia, o enquecinienta Trad. Alan Frangols et, al, Campinas, Sr Edltora da Untcamp, 2014. 986p. ‘THE TRAJECTORY OF FORGIVENESS IN THE ‘WORK OF HANNAH ARENDT Adriano Comeia ‘The aim of this article is to examine the development of the theme of forgiveness in Hannah ‘Arendt’s work, especially in the texts of the 1950s. Throughout the decade, the author substantially modifies har understanding of the relationship of forgiveness with Christianity and progressively places forgiveness, as well as promise and the power at the center of her analysis of the action and its weaknesses. We performed a bibliographic analysis. that covers published works and unpublished taxts ‘and wa seek to camry outa conceptual synthesis of the various characteristics of forgivensss in the author's ‘work from the examination of the relationship of the action with the necessary reconciliation with its irreversibility. Kenvorps: Forgiveness. Action. Reconciliation. Hannah Arendt, Paul Ricoeur LA TRAJECTOIRE DU PARDON DANS L:EUVRE DHANNAH ARENDT Adriano Correia Le but de cet article est d'examiner I'évolution du théme du pardon dans l'ceuvre d’Hannah Arendt, notammentdansles textes des années50, Toutaulong do la décennio, auteur modifie considérablement sa compréhension de la relation entra le pardon et le christianisme ot place progressivement le pardon, ainsi que la promesse at le pouvoir, au centre de son analyse de Yaction et de ses faiblesses. Nous avons effoctué une analyse bibliographique qui couvre les couvres publiées at les taxtes non publiés et nous chorchons & réaliser une synthése concaptuelle des différentes caractéristiques du panion dans Je travail de auteur, basée sur un examen de la relation entre l'action et la nécessaire néconciliation avec son iméversibilit. Mors-ccfs: Pardon. Action. Reconciliation. Hannah Arandt, Paul Ricoour (Adriano Correia ~ Professor de @iica e Alosofia politica da Universidade Fodaral de Galis, Professor] permanente nas pés-graduagdes em Filosofia da UFG e da UFES © om Artes da Cena da UFG. Doutor em filosofia pela Universidade Estadual de Campinas. Realizou pesquisas de Pés-doutorado na Freie ‘Universitat Berlin (em 2011, com bolsa GAPES/DAAD) e The New School (Nova York, 2017, com bolsa CAPES). E autor de Hannah Arendt (Zahar, 2007) e Hannah Arendt e a modemidade: politica, economia 20 disputa por uma fronteira (Foranse Universitaria, 2014), ML Sa

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