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OS TRES NOMES DE GODOFREDO Assombras cobrem a sua sombra, os salgueiros da torrente 0 rodeario. (Jo, XL, 17) Ora, aconteceu que vislumbrei uma ruga na sua testa De uma data que nio poderia precisar, todos os dias, ao almogo ¢ a0 jantar, ela sentava-se 4 minha frente na mesa onde por quinze anos seguidos fui o tinico ocupante. Ao me certificar da sua constante presenga, considerei o fato perfeitamente natural. O lugar ndo me pertencia por nenhum direito e além do mais minha vizinha nada fazia que me importunasse. Nem sequer me dirigia a palavra. Também o seu comportamento durante as refeigdes era discreto, alheio a qualquer ruido que chamasse a atencio. Naquela noite, porém, sentia-me desinguieto, incomodado por desconhecer os motives da sua preocupagio. Jé me dispusera a abandonar a mesa, convencido de que assim a minha companheira ficaria A vontade. Talvez estivesse atribulada e desejasse ficar s6. Entretanto, percorrendo com os olhos 0 recinto, notei serem numerosos os lugares vagos, 0 que nao deixava de ser comum no restaurante, cuja frequéncia era muito reduzida. Fiquei aborrecido e achei um desaforo ter que sair dali quando a moga poderia fazer 0 mesmo. E por que viera sentar-se justamente a meu lado? Vencida a irritagio e acreditando ser pouco educado alimentar semelhantes pensamentos, resolvi abandonar a mesa. Afinal, como eu, ela poderia preferir justamente aquela. Virei-me para a jovem ¢ lhe perguntei se nao levaria a mal se eu mudasse de lugar. A indiferenga dela ante um gesto, que eu pensava ser o mais delicado possivel, me decepcionow. Fiz-lhe um répido cumprimento com a cabega ¢ me dirigi para a extremidade oposta da sala. Tio logo me acomodei noutra cadeira, nova surpresa me aguardava: a mulher caminhava em minha diregao, com o evidente propésito de voltar para perto de mim, Ao mesmo tempo, alegrei-me vendo que a ruga desaparecera de sua testa e me repreendi por nio me ter ocorrido antes a ideia de escolher um lugar melhor, que fosse do agrado da minha companheira. Passava-se, contudo, algo que eu ainda nio conseguira entender: seria ela minha convidada naquela noite? E nos dias anteriores? Insatisfeito com as dividas que me ocorriam, indaguei meio constrangido: — Eua convidei para o jantar, nao? — Claro! E nao havia necessidade de um convite formal para me trazer aqui. — Como? — Bolas, desde quando se tornou obrigatério ao marido convidar a esposa para as refeigdes? — Vocé é minha mulher? mn, a segunda. E pre matou num acesso de ciimes? — Nao é necessério. ( J ficara bastante abalado em saber do meu casamento ¢ nio desejava que me criassem o remorso de um assassinato do qual nio tinha a menor lembranga.) Gostaria somente de esclarecer se somos casados hi muitos anos. Um tanto forgada, querendo divertir-se comigo, retrucou: — Euma histéria bem antiga. Nem me lembro mais. — E temos dormido juntos? — insisti, & espera de que, a qualquer momento, se desfizesse 0 equivoco e, aliviado, verificasse que tudo decorria de uma farsa bem engendrada Aresposta me desiludiu — Que bobagem! Sempre dormimos juntos. Nao restava muito a perguntar, mas continuei: — Vocé poderia me dizer quando nos conhecemos Aminha insisténcia no a contrariou e acho que se sentiu bem-humorada com o meu crescente embara¢o: — Lembro-me apenas de que nio foi na primavera, época dos meus geranios. Precisava saber tudo, apesar de estar capacitado da inutilidade de alongar o interrogatorio: — A minha primeira mulher ndo se enciumava com a nossa camaradagem? — Absolutamente. (E no era simples camaradagem.) Vocé, sim, é que se ressentia por qualquer coisa, sabendo — como ninguém — da fidelidade dela. Deve té-la matado por essa mesma razio. — Nio me fale do crime — pedi, agarrando-lhe o rosto, um rosto macio ¢ fresco, Contemplei os seus olhos, castanhos e meigos. Achei-a linda. Cauteloso, temendo ser repelido, acariciei as suas pequeninas maos: — Pensei que fosse uma sombra. ‘olice, Joao de Deus! Por que seria eu uma sombra? — E que, ultimamente, ndo converso com ninguém nem reparo nas pessoas. Dafa razio da minha demora em aceitar a sua presenga. Parei um pouco. Olhei para os lados e vi que estivamos s6s na sa ‘Mesmo sabendo que o restaurante fechava cedo, retomei o didlogo: — O meu constante siléncio nao a entediava? — De maneira alguma, vocé nunca deixou de conversar comigo. Tornei a fixar os olhos nela: diabélica era a sua beleza. Tao bela que me tiroua vontade de renovar as objecées. Esperei que terminasse o jantar e indaguei para onde famos. — Para a nossa casa, creio. Confesso que tive curiosidade de saber se a nossa casa seria diferente da minha. Nao me recordava exatamente do seu aspecto e fiquei em divida se poderia localizé-la. o lhe diver que a primeira era loura e que vocé a Em frente ao prédio, que minha companheira assegurava ser 0 nosso, eu hesitava: —Tem certeza de que é aqui, Geralda? Fla balangou a cabega afirmativamente, porém nao dei importincia a0 gesto. Preocupava-me unicamente em descobrir como conseguira adivinhar-lhe o nome, pois estava certo de té-lo pronunciado pela primeira vez naquele exato instante. Aberta a porta de entrada, dissiparam-se as minhas dividas: 0 meu sobretudo de gola de peles encontrava-se em cima do sofa. Apenas me perturbavam certos detalhes que antes nao observara. Os méveis, embora antigos, eram sdbrios, enquanto os quadros, mal distribuidos pelas paredes, destoavam pelo mau gosto. E havia flores por toda a parte. Geralda, em siléncio, acompanhava sem estranheza as minhas sucessivas descobertas. Esgotada a curiosidade, lembrei-me da minha esposa. Desajeitado ¢ incerto se me comportava bem, estendi minhas mos para trazé-la de encontro a mim. Palida, os cabelos negros, os olhos grandes, ela permanecia sorridente no centro da sala, esperando que eu a abragasse. A emogio, somada a um temor inexplicével, me conteve momentaneamente. Nao me foi possivel, entretanto, controlar o instinto a exigir a posse daquela mulher que se oferecia integral aos meus bragos. Para ela avancei, procurando-lhe a boca. Beijei-a com sofreguidio, sentindo um sabor nove, como se fosse a primeira femea que beijava. Somente quando entrevi um bocejo nos seus labios, dei conta de que era tarde. E fomos dormir. Por instantes, achei estranho que Geralda me acompanhasse em dire¢io a0 quarto. Logo percebi que me preocupava sem necessidade: a cama era de casal e tinha dois travesseiros. Na nossa frente estava uma penteadeira com diversos objetos de uso feminino, Ela comegou a despir-se e, encabulado, eu nao sabia se me retirava ou se vestia o pijama ali mesmo. Por culpa da indecisio ou pela beleza das suas pernas, faltou-me a iniciativa e permaneci parado no meio do aposento. Vendo-a acomodada no leito, assentei-me na beirada da cama e fui me desembaragando das roupas. J deitado, sentindo o calor daquele corpo, veio-me intensa sensagao de posse, de posse definitiva. Nao mais podia duvidar de que ela fora sempre minha. Baixinho, quase sussurrando, lhe falei longamente, os seus cabelos rogando no meu rosto. Os meses se aligeiravam e evitavamos sair de casa. (Nao desejava que outros presenciassem a nossa intimidade, os meus cuidados com ela.) Loquaz, alegre, eu agora gostava de vé-la comer aos bocadinhos, mastigando demoradamente os alimentos. As vezes me interrompia com uma observacao ingénua: — Se a Terra roda, por que nao ficamos tontos? Longe de me impacientar, dizia-Ihe, em resposta, uma porgao de coisas graves, que Geralda ouvia com os olhos arregalados. No final, me lisonjeava com um descabido elogio aos meus conhecimentos. Nao tardaram a se acompridar os dias, tornando rotineiros os meus carinhos, criando 0 vacuo entre nds, até que me calei. Ela também emudeceu. Restava-nos 0 restaurante. Para lé nos dirigimos, guardando um siléncio condenado a dolorosa permanéncia. O rosto dela passou a aborrecer-me, bem como 0 reflexo do meu tédio no seu olhar. Enquanto isso, despontava em mim a necessidade de ficar s6, sem que Geralda jamais me largasse, seguindo-me para onde eu fosse. Nervoso, a implorar piedade com os olhos, nao tinha suficiente coragem de lhe declarar 0 que passava no meu intimo. Uma tarde, olhava para as paredes sem nenhuma intencdo aparente e enxerguei uma corda dependurada num prego. Agarrei-a e disse para Geralda, que se mantinha abstrata, distante: — Ela lhe servird de colar. Nada objetou. Apresentou-me 0 pescogo, no qual, com delicadeza, passei a corda. Fm seguida puxei as pontas. Minha mulher fechou os olhos como se estivesse recebendo uma caricia. Apertei com forca 0 né e a vi tombar no assoalho. Como fosse hora de jantar, maquinalmente, rumei para o restaurante, onde procurei a mesa habitual. Sentei-me distraido, sem que nada me preocupasse. Pelo contrério, envolvia-me doce sensagio de liberdade. Ainda no escolhera o prato e senti um calafrio: na cadeira defronte 4 minha acabava de assentar-se uma jovem senhora que, nio fossem os cabelos louros, juraria ser minha esposa. A semelhanga entre elas me assombrava. Os mesmos libios, nariz, os olhos, o modo de franzir a testa. Passada a perplexidade, resolvi esclarecer a desagradavel situagio: — E vocé, Geralda? (Perguntei mais para puxar conversa do que para receber uma resposta afirmativa. Minha mulher tinha os cabelos negros e um dente de ouro.) — Nio. Sou a sua primeira esposa, a segunda vocé acaba de matar. — Sim, jé sei. Matei-a num acesso de chime —E poderia ser de forma diferente, meu pobre Robério? — Robério?! (Em tempo algum me conheceram por esse nome. Havia um erro, um tremendo engano em tudo aquilo.) Procurei recuperar a calma, a fim de desfazer o mal-entendido: — Tudo passou, Joana. Chamo-me Godofredo. — Engana-se, Robério, nfo lhe vird o esquecimento. — Quem disse que nao virs? — retruquei, agressivo, impaciente com a teimosia dela. Ela ignorou a minha rispidez. Fria, irritantemente tranquila, me provocava: — Pode gritar, o restaurante estd vazio. —E por que esta vazio? — indaguei, aspero, elevando ainda mais a voz. Joana sabia da inutilidade de explicar, mas respondeu, tentando disfargar a piedade: — Somente nés dois frequentamos este restaurante que papai comprou para vocé. — Nada pedi a seu pai, nem sabia da existéncia dele. Ao diabo com vocés dois! Entre a ndusea e o medo, levantei-me apressado. Alcancei répido o passeio ¢ sai correndo sem ter nogio do que iria fazer. S6 me detive frente ao porto de casa. Fechei-o com o cadeado e tranquei, por dentro, a porta de entrada. Ainda nio guardara as chaves no bolso, quando me lembrei do cadaver de Geralda. Pensei em retroceder e me contive: diante de mim, parada no vestibulo, encontrava-se uma mulher bastante parecida com as minhas outras esposas. Tinha os cabelos alourados de Joana e se distinguia das duas por ter, além das sobrancelhas arqueadas, um anel de ametista no dedo anular. Envolveu-me uma afli¢do desesperante. Abri os bragos para ela, que neles se aconchegou, colando © corpo bem rente ao meu. Levei as mos ao seu pescogo e apertei-o. Ficou estendida no tapete e prossegui até a copa. Mal penetrara na saleta, assustei-me: na cabeceira da mesa, posta para o jantar, uma jovem de rara semelhanga com Joana e Geralda sorria. — Naturalmente vocé é a minha quarta esposa? — Nio, Joao de Deus, somos apenas noivos — disse, indicando-me um lugar a sua esquerda. — Minha noiva tempo. — Moro sozinha desde a morte de meus pais. Vocé acaba de chegar ¢ é meu héspede. Apés o casamento, iremos residir na sua cidade. A fita de veludo, que prendia um medalhio antigo ao pescogo de Isabel, me fascinou por alguns segundos. Desviei os olhos para o prato, j& servido, e percebi que perdera a fome. Ao levantar de novo a cabeca, ocorreu-me formular algumas perguntas, possivelmente as mesmas que fizera 2 minha segunda mulher, naquela noite, no restaurante. Desisti, preocupado em redescobrir uma cidade que se perdera na minha memoria. — Espantado, perguntei se viviamos juntos hé muito

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