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“CULTURA POPULAR”: revisitando um conceito cultura popular é uma categoria erudita. Por que enunciar, no co- meco de uma conferéncia, tio abrupta proposigao? Ela pretende somente re- lembrar que os debates em torno da prépria definigio de cultura popular fo- ram (€ sio) travados a propésito de um conceito que quer delimitar, caracterizar € nomear praticas que nunca sio desig- nadas pelos seus atores como pertencen- do a “cultura popular”. Produzido como uma categoria erudita destinada a cir- cunscrever e descrever produgées e con- dutas situadas fora da cultura erudita, 0 conceito de cultura popular tem traduzi- do, nas suas miltiplas ¢ conuaditérias acepgées, as relagdes mantidas pelos in- tectuais ocidentais (¢, enue eles, os scho- fars) com uma alteridade cultural ainda historiografico Roger Chartier mais dificil de ser pensada que a dos mundos “exéticos”. Assumindo 0 risco de simplificar ao extremo, € possivel reduzir as inameras definigées da cultura populara dois gran- des modelos de descrigio e interpreta- ao. O primeiro, no intuito de abolir toda forma de emocentrismo cultural, conce- be a cultura popular como um sistema simbélico coerente e aut6nomo, que funciona segundo uma l6gica absoluta- mente alheia e irredutivel a da cultura lewada. O segundo, preocupado em lem- brara existéncia das relagdes de domina- Gao que organizam o mundo social, per- cebe a cultura popular em suas depen- déncias e aréncias em relacio a cultura dos dominantes. Temos, entio, de um lado, uma cultura popular que constitui um mundo 4 parte, encerrado em si mes- mo, independente, e, de outro, uma cul- tura popular inteiramente definida pela Nota: Este texio foiapresentado 00 semiinirio Popular Culture, an Interdisciplinary Conference, realizado ‘89 Massachusetts Institute of Technology de 16 2 17 de outubro de 1992 ‘Atradugio € de Aone-Marie Mion Oliveira. Estudes Histéricos, Rio de Janciro, vol. 8, n° 16, 1995, p. 179-192. 180 ESTUDOS HISTORICOS ~ 1995/16 sua distancia da legitimidade cultural da qual ela € privada. Estes dois modelos de inteligibilidade, portadores de estratégias de pesquisa, de estilos de descri¢io e de propostas tedri- cas completamente opostas, atravessa- ram todas as disciplinas que pesquisam a cultura popular, seja a hist6ria, a antro- pologia ou a sociologia. Recentemente, Jean-Claude Passeron mostrou os peri- gos metodolégicos de ambos: “Da mes- ma forma que as cegueiras sociolégicas do relativismo cultural, quando aplicado As culturas populares, encorajam opopu- lismo, para quem o sentido das praticas populares cumpre-se integralmente na felicidade monddica da auto-suficiéncia simbélica, assim também a teoria da legi- timidade cultural corre sempre o risco [...] de levar ao legitinismo, que, sob a forma oarema domiserabilisno, nao fz senio descontar, com um ar compungi- do, as diferengas como se fossem carén- cias, ou as alteridades como se fossem um menos-ser.”* A oposigio se faz termo a termo: a celebragio de uma cultura popular em sua majestade se inverte em uma descri- Gio “em negativo"; o reconhecimento da igual dignidade de todos os universos simb6licos d4 lugar a lembranga das im- placiveis hierarquias do mundo social. Pode-se acompanhar Jean-Claude Pas- seron quando ele nota que, mesmo sen- do légica e metodologicamente contradi- trias, estas definigdes da cultura popu- lar nao sio por isso fundadoras de um principio cémodo de classificagio das pesquisas e dos pesquisadores: “a osctla- g@o entre as duas formas de descrever uma cultura popular pode ser observada uma mesma obra, num mesmo autor”, a fronteira entre ambas “atravessa si- nuosamente toda descrigio das culturas populares, dividindo-a quase sempre em movimentos alternativos de interpreta- gio”? ‘Como historiador, pode-se acrescen- tar que o contraste entre estas duas pers pectivas - a que enfatiza a autonomia simbélica da cultura popular e a que insiste na sua dependéncia da cultura dominante - tem servido de base para todos os modelos cronolégicos que opo- emuma suposta idade de ouro dacultura popular, onde esta aparece como matri- cial e independente, a épocas onde vigo- ram censum € coagio, quando ela é des- qualificada e desmantelada. Nao é possivel aceitar sem nuances a periodizacio clissica que vé na primeira metade do século XVI um momento de corte maior, de contraste muito forte entre uma idade de ouro, onde a cultura popu- lar teria sido viva, livre, profusa, e uma época regida pela disciplina edlesial es- tauil, onde ela teria sido reprimida e sub- jugada. Este esquema pareceu pertinente quando se watava de dar conta da trajeto- ria cultural da Europa ocidental: apés 1600 ou 1650, as acdes conjugadas dos Estados absolutistas, centralizadores € unificadores, e das Igrejas das Reformas protestante e cat6lica, repressivas e acul- turantes, teriam abafado ou recalcado a exuberincia inventiva de uma antiga cul turado povo. Aoimpor disciplinas inéditas € novas submissées, ao inaulcar novos modelos de comportamento, os Estados € as Igrejas teriam destruido em suas raizes Seus antigos equilibrios um modo uadi- cional de ver e de viver o mundo. “A cultura popular, tanto rural como urbana, sofreu um eclipse quase total na €época do Rei-Sol. Sua coeréncia intema desapareceu definitivamente. Nunca mais poderia constituir um sistema de sobrevida, uma filosofia da edsténcia”,? escreve Robert Muchembled, descreven- do a “repressio da cultura popular” na Franga dos séculos XVII e XVIII. De forma mais sutil, Peter Burke assim descreve os dois movimentos que desenraizaram a cultura popular tradicional: de um lado, o esforgo sistemitico das elites, e particu- “CULTURA POPULAR” 181 larmente dos cleros protestante e catéli- co, “para mudar as atitudes ¢ valores do resto da populagio” e “para suprimir, ou ao menos purificar, varias elementos da cultura popular tradicional”; de outro, 0 abandono, pelas classes superiores, de uma cultura até entio comuma todos. O cesultado é claro: “Em 1500, a cultura popular era a cultura de todo mundo; uma segunda cultura para os instruidos ea .Gnica cultura paraos demais. Por volta de 1800, contudo, em muitas partes da Europa, 0 dero, a nobreza, os comercian- tes, os homens de oficio - ¢ suas mulhe- res ~haviam abandonadoa cultura popu- lar, da qual estavam agora separados, como nunca antes, por profundas dife- rengas de visio de mundo.” Existem virias razbes para s6 se reto- mar com muita prudénciaesu periodiza- ioe este diagnéstico que concluem pela desqualificagio da cultura popular ou pelo seu desaparecimento. Em primeiro lugar, est4 claro que o esquema que opée, em tomo de um momento-chave (1600 ou 1650), o esplendor e a miséria da cultura da maioria, reitera paraa idade modema um contraste que outros histo- riadores estabeleceram para outros tem- pos. £ 0 que ocorre, por exemplo, com © antes € 0 depois de 1200, quando a imposigao de uma ordem tcolégica, cien- tiica e Gilos6fica isola a cultura erudiu das tradicées folcléricas, censurando as priticas doravante tidas como supersti- ciosas ou heterodoxas, e constituindo como objeto posto a distincia, sedutor ou temivel, a cultura dos humildes. Se Jacques Le Goff reconhece antes de 1200 0 “crescimento de uma cultura popular leiga que vai aproveitar 0 espaco criado, nos séculos XI e XI, pela cultura da aristocracia leiga, ela mesma toda im- pregnada do dnicosistema cultural entio disponivel fora do sistema clerical, preci- samente o das tradigées folcléricas”,> se- gundo Jean-Claude Schmiu, oséculo XII inaugura a época de uma verdadeira “aculturagio”: “€ preciso indagar se a Suspeicao crescente que pesou sobre as prdticas folcléricas do corpo (a danca, por exemplo), a personalizaco cada vez maior da pastoral, com 0 uso aida vez mais generalizado do sacramento da pe- niténcia (...], a instituigio, no século XV, de uma educagio religiosa para as crian- as (ver Gerson), nio contribuiram con- juntamente para interiorizaro sentido de pecado e para ‘culpabilizar’ todos aque- Jes homens, para mascarar aos seus olhos a‘aculturagio’ de que eram vitimas, con- vencendo-os da imoralidade da sua pré- pria cultura.” Semelhante revertério parece ter ocorrido na Franga (€ em outros lugares da Europa) durante os cinco decénios que separam a guerra de 1870 da de 1914. Considera-se que, naquela fase, as culturas tradicionais, camponesas ou po- pulares, sairam do isolamento, ¢ portan- tose desenraizaram, em proveito de uma cultura nacional e republicana.” Outra tcansformagio radical situa-se antes e de- pois do surgimento de uma cultura de massa: supGe-se que Os novos instru- mentos da midia tenham destruido uma cultura antiga, oral e comunitiria, festiva € foldiérica, que era, ao mesmo tempo, criadora, plural € livre. O destino histo- riogrifico da cultura popular é portanto ser sempre abafada, recalcada, arrasada, €,a0 mesmo tempo, sempre renascer das cinzas. Isto indica, sem duvida, que o verdadeiro problema nao é minto datar seu desaparecimento, supostamente ir- remediavel, e sim considerar, para ada época, como se elaboram as relagoss complexas entre formas impostas, mais Ou menos constrangedoras e imperati- vas, ¢ identidades afirmadas, mais ou me- nos desenvolvidas ou reprimidas. Daf decorre mais uma razio para nio se organizar todaa descricio das culturas do Antigo Regime a partir do corte iden- tificado no século XVI, pois a forca com a qual os modelos culturais impdem sen- 182 £ESTUDOS HISTORICOS ~ 1995/16 tido nio anula o espaco proprio da sua recepgao, que pode ser resistente, ma- treira ou rebelde. A descricio das normas e das disciplinas, dos textos ou das pala- vras com os quais a cultura reformada (ou contra-reformada) e absolutista pre- tendia submeter os povos nio significa que estes foram real, total € universal- mente submetidos. £ preciso, ao contri- rio, postular que existe um espaco entre anorma € o vivido, entre a injungio ea pritica, entre o sentido visado € osentido produzido, um espaco onde podem insi- nuar-se reformulagées e deturpacées. Nema cultura de massa do nosso tempo, nem a cultura imposta pelos antigos po- deres foram capazes de reduzir as identi- dades singulares ou as priticas enraiza- das que lhes resistiam. O que mudou, evidentemente, foi a maneira pela qual essas identidades puderam se enunciare se afismar, fazendo uso inclusive dos pré- prios meios destinados a aniquil4-las. Re- conhecer esta mutagao incontestivel nio significa romper as continuidades cultu- rais que atravessam os trés séculos da idade moderna, nem tampouco decidir que, apés 0 corte da metade do século XVII, nio ha mais lugar para gestos € pensamentos diferentes daqueles que os homens da Igreja, os servidores do Esta- do ou as elites letradas pretendiam incul- car em todos. Acredito que Lawrence W. Levine co- 1oca questées da mesma ordem aodesen- volver a tese da “cultural bifurcation” para caracterizar a trajet6ria cultural americana no século XIX Esta tese se baseia num conwaste cronolégico maior, que opde um tempo antigo - caracteriza- do pels panitha, pela mistura e pela exu- berincia cultural - a um tempo moderno - caractecizado pela separagio entre os publicos, os espagos, os géneros, os esti- los etc. “Por toda parte, na sociedade da segunda metade do século XIX, a cultura americana estava passando por um pro- cesso de fragmentacgio [...]. Ele se mani- festava no deciinio relativo de uma cultu- ra pablica compartilbada que, na segun- da metade do século XIX, se estilhagou numa série de culturas especificas que cada vez tinham menos a ver umas com as Outras. Os teatros, os museus, os audi- t6rios, que antes abrigavam um piiblico misturado que consumia uma mistura eclética de cultura expressiva, estavam cada vez mais filtrando sua clientela € seus programas, de mancira que cada vez menos se podia encontrar puiblicos que atravessassem 0 espectro social e econd- mico consumindo uma cultura expressi- va que unisse elementos hibridos do que hoje chamariamos de cultura erudita € cultura popular.”® Uma dupla evolugio leva da “cultura piblica compartilhada” a “cultura bifurcada”: de um lado, um Processo de retraimento e de subiragao que atribui as priticas culturais um valor distintivo tanto mais forte quanto menos elas s40 compartilhadas; de outro lado, um processo de desqualificio e de exclu- so que lanca para fora da cultura consa- grada canénica as obras, os objetos, as formas dai em diante relegadas ao diver- timento popular. Este modelo de compreensio impres- siona pela sua homologia com aquele Proposto para descrever a trajetéria cul- turai das sociedades ocidentais entre os séculos XVI ¢ XVUL Também nessa €po- a, ja nessa época, uma bifurcagio cultu- ral, originada no retraimento das elites ¢ no isolamento da cultura popular, teria ocasionado a destruigio de uma base ancestral comum = cultura “bakbtinia- na” da praca publica, folcl6rica, festiva, camavalesca. Nos dois casos, as mesmas questées podem ser colocadas. Seri que a cultura compantlhada, dada como pri- meira, era tio homogénea como parece? E quando ocorre a separagio, seri que a CULTURA POPULAR 183 fronteira entre cultura legitima e cultura desqualificada era tio marcada e estan- que como aparenta? Para a América do século XIX, David D. Hall responde ne- gativamente as duas pergunus. Segundo ele, de um lado, a “cultura publica com- partilhada” do inicio do século XIX nio era isenta de exclusdes, clivagens inter- fas € concorréncias extemas; de outro lado, a “mercadorizagio” dos bens sim- bélicos aparentemente mais esuranhos ao mercado e a captura pela cultura co- mercial de massa dos signos e valores da legitimidade cultural preservaram um forte intercimbio entre cultura Ietrada € cultura popular. Outra questio é a da articulagao cro- nolégica entre as duas trajet6rias, aeuro- péia ¢ a americana. Devemos supor que acultura americana percotre, comumou dois séculos de atraso, o caminho das sociedades do Antigo Regime da Europa Ocidenwal? Ou, a0 contririo, devemos considerar que as evolucées culturais da segunda metade do século XIX, que le- vam as elites a desprezar uma cultura popular identificada com uma cultura industrid, sio idénticas no conjunto de um mundo ocidental unificado pelas mi- gragdes transatlinticas? da, um forte laco enue, de um lado, a reivindicagio de uma cultura “pura” (ou purificada), distanciada dos gostos vulga- res, subtraida as leis da produgio econé- mica, sustentada por uma cumplicidade estética entre os criadores ¢ 0 publico por eles escolhido e, de outro lado, as con- quistas da culturi comercial, pela empresa capitalista e destinada a maioria. Como 0 mostrou recentemente Pierre Bourdieu, a constitui¢io na Franga da segunda metde do século XIXde um campo literario definido como um mun- do a parte e a definicao de uma posigio estética fundada na autonomia, no des- prendimento ¢ na absoluta liberdade de criagio si fatos diretamente ligados a rejeigio das servid6es da “literatura in- dustrial” ¢ das preferéncias populares que garantem seu sucesso: “As relagdes que os escritores e os artistas mantém com 0 mercado, cuja sangio anénima pode criar enire eles disparidades sem precedentes, contribuem, sem duvida, para orientar a representagio ambivalen- te que eles t¢m do ‘grande publico’, a0 mesmo tempo fascinante e desprezivel, no qual eles confundem o ‘burgués’, sub- jugado pelas precupacées vulgares dos negécios, ¢ 0 ‘povo’, entregue a0 embru- tecimento das atividades produtivas."!? 3. Durante muito tempo, a concepgio clissica e dominante da cultura popular teve por base, na Europa e, talvez, nos Estados-Unidos, ués idéias: que acultura popular podia ser definida por contraste como que ela nao era, a saber, a cultura letrada e dominante; que era possivel Graceriza como “popular” o publico de certas produgGes culturais; que as expressées culturais podem ser tidas como socialmente puras e, algumas de- las, como intrinsecamente populares. Foram estes us postulados que funda- mentaram os trabalhos diassicos realiza- dos na Franca (e em outros lugares) so- bre a “literatura popular”, assimilada ao repert6rio da “littérature de colporta- ge”,* € sobre a “religiio popular”, isto é, (© conjunto das crengas e dos gestos con- siderados préprios da religiosidade da maioria. Mas ficou claro agora que estas afirma- des devem ser postas em divida. A teratura popular” e a “religiio popular” no sio tio radicalmente diferentes da * Nome dado as obras popularcs difundidas por vendedores ambulantes do século XVI ao XIX Seu equivaleute n0 Brasi seria a literatura de cordel. 184 ESTUDOS MISTORICOS ~ 1995/16 literatura da elite ou da religiio do clero, que impdem seus repert6rios e modelos. Elas sio compartilhadas por meios so- ciais diferentes, e naoapenas pelos meios populares. Elas so, ao mesmo tempo, aculturadas ¢ aculturantes. £ portanto inutil querer identificar a culeura popular a partir da distribuicio supostamente especifica de certos objetos ‘ou modelos culturais. O que importa, de fato, tanto quanto sua reparticio, sempre mais complexa do que parece, é sua apro- priagio pelos grupos ou individuos. Nao se pode mais aceimr acriticamente uma sociologia da distribuigio que supée im- plicimmente que a hicrarquia das classes ou grupos corresponde uma hierarquia paralela das produgdes e dos hdbitos cul- turais. Em toda sociediade, as formas de apropriagio dos textas, dos addigos, dos modelos compartilhados so tio ou mais geradoras de distingio queas priticas pré- prias de cada grupo social. O “popular” nao esti contidoem con- juntos de elementos que bastaria identi- ficar, repertoriar e descrever. Ele qualifi- ca, antes de mais nada, um tipo de rela- Gio, um modo de utilizar objetos ou normas que circulam na sociedade, mas que sio recebidos, compreendidos e ma- nipulados de diversas maneiras. Tal cons- taugio desloca necessariamente 0 traba- lho do historiador, j4 que o obriga a racterizar, nado conjuntos culturais da- dos como “populares” em si, mas as mo- dalidades diferenciadas pelas quais eles sio apropriados. £ por isso que esta nogio parece cen- tral para toda hist6ria cultural - com a condigio, talvez, de ser reformulada Esta reformulagio, que enfatiza a pluralidade dos usos e dos entendimentos, se afasta, de saida, dosentidodado ao conceito por Michel Foucault quando coloca “a apro- priacio social dos discursos" como um dos mais importantes procedimentos por meio dos quais os discursos sio do- minados € confiscados pelas instituigoes ou pelos grupos que se arrogam o direito de exercer um controle exclusivo sobre eles.'! Ela se afasta, também, do sentido que a hermenéutica d4 a apropriagao, quan- do a representa como 0 momento em que a “aplicagio" de uma configuragio narrativa paricubr a situagio do sujeito transforma, pela interpretagio, a com- Preensio que este tem de si mesmo e do mundo, transformando assim, também, sua experiéncia fenomenoldégica tida como universal. Aapropriacio tal como a entendemos visa a elaboragio de uma hist6ria social dos usos ¢ das interpretagoes, relaciona- dos as suas determinagGes fundamennis ¢ inscritos nas priticas especificas que os constrocm. Prestar, assim, atengdo as condigdes € aos processos que muito cconcretamente sio portadores das ope- ragdes de produgio de sentido, significa reconhecer, em oposicio a antiga histé- ria intelectual, que nem a idéias nem as interpretagées sio desencamadas, ¢ que, contrariamente ao que colocam os pen- samentos universalizantes, as categorias dadas como invariantes, sejam clas feno- menolégicas ou filoséficas, devem ser pensadas em fungio da descontinuidade das.trajet6rias hist6ricas. Se permite romper com uma defini- Gio iluséria da cultura popular, a nogio de apropriacio, utilizada como instru- mento de conhecimento, pode também reintroduzir uma nova ilusao: a que leva a considerar o leque das priticas cultu- fais como um sistema neutro de diferen- Gas, como um conjunto de priticas diver- sas, porém equivalentes. Adotar tal pers- pectiva significaria esquecer que tanto os bens simbélicos como as priticas cultu- rais continuam sendo objeto de lums sociais onde esto em jogo sua classifica- Gio, sua hierarquizacio, sua consagracio (ou, ao contririo, sua desqualificacio). Compreender a “cultura popular” sig- nifica, entio, situar neste espaco de en- “CULTURA Por 185 frentamentos as relagdes que unem dois conjuntos de dispositivos: de um lado, os mecanismos da dominagao simbélica, cujo objetivo € tomar aceitiveis, pelos préprios dominados, as representagioes € os modos de consumo que, precisa- mente, qualificam (ou antes desqualifi- cam) sua cultura como inferior e ilegiti- ma, e, deoutro lado, as lgicas especificas em funcionamento nos usos € nos mo- dos de apropriacio do que ¢ imposto. ‘Adistingio estabelecida por Michel de Certeau entre estratégias € titicas consti- tui um recurso precioso para se pensar esta tensio (e evitar a ascilacio entre as abordagens que insistem no cariter de- pendente da cultura popular e aquelas que exiltam sua autonomia). As estraté- gias supdem a existéncia de lugares € instituigdes, produzem objetos, normas modelos, acumulam e capitalizim. As titicas, desprovidas de lugar préprioe de dominio do tempo, so “modos de fxzer” ou, melhor dito, de “fazer com”. As formas “populares” da culuura, des- de as priticas do quotidianoaté as formas de consumo cultural, podem ser pensa- das como titicas produtoras de sentido, embora de um sentido possivelmente estranho aquele visado pelos produto- res: “A uma producio racionalizada, ex- pansionista e centalizada, barulhenm e espetacular, corresponde uma outra producio, chamada ‘consumo’. Ela € ma- tueira e dispersa, mas se insinua em todos os lugares, silenciosa e quase invisivel, pois nao se manifesta através de produ- tos proprios e sim através de modos de usar os produtos impostos pela ordem econémica dominante." Este tipo de modelo de inteligibilida- de permite transformar profundamente acompreensio que se tem de uma priti- ca ao mesmo tempo exemplar e central: a leitura. Aparentemente passiva e sub- missa, a leitura €, na cealidade, ¢ a sua maneira, inventiva e criadora. Falando da sociedade contemporinea, Michel de Ceneau sublinha magnificamente este paradoxo: “A leitura (da imagem ou do texto) parece constituir o ponto aiximo. da passividade que supostamente carac- teriza o consumidor, instituido em voyeur (troglodita ou itinerante) numa ‘sociedade do espetdculo’. Na realidade, a atividade de leicura apresenta, ao con- tririo, todos os tragos de uma produgio silenciosa: € uma deriva a0 longo das paginas, uma metamorfose do texto pelo olho viajante, uma improvisigio e uma espera de significagdes induzidas a pactir de algumas palavras, um prolongamento de espacos escritos, uma danca efémera [..J. [O leitor] insinua as manbas do prazer e de uma rcapropriacio no texto do outro: invade a propricdade alheia, transporta-se para ela, tormna-se nela plu- ral como os barulhos do corpo.” Esta imagem doleitor, invadindo uma terra que no lhe pertence, evidencia uma questio fundamental para todo tra- balho de hist6ria ou de sociologia cultu- ral; a da variagio, em fungao dos tempos e dos lugares, dos gupos sociais e das “interpretive communities”, das condi- Ges de possibilidade, das modalidades e dos efeitos dessa invasio, Na Inglaterra dos anos 50, segundo a descricio de Richard Hoggart, a leitura (ou a escuta) popular dos jomais de grande tiragem, das cangées, dos anuincios publicitérios, das fotonovelas, dos horéscopos, se ca- macterizava por uma atencio “obliqua” ou “distraida”, por uma “adesio entre- cortada de eclipses” que levava a crer ou a descrer, a aderir a verdade do que se lia (0u ouvia) sem que jamais desaparecesse a desconflanca, a divida sobre suaauten- ticidade.'* A nogio de atengio “obliqua” permite assim entender como a cultura da maioria faz para manter a distincia, ou entio para se apropriar, inscrevendo ne- 186 ESTUDOS HISTORICOS ~ 1995/16 les sua propria coeréncia, dos modelos que os poderes ou os grupos dominantes Ihe impéem pela autoridade ou pelo mercado. Esta perspectiva contrabalanga valiosamente aquelas que acentuam, de uma forma por demais exclusiva, os dis- positivos discursivos e institucionais que, numa dada sociedade, visam a disciplinar 0s corpos e as priticas ou a modelar as condutas e os pensamentos. A midia mo- derna nao impde, como se acreditou apressadamente, um condicionamento homogeneizante, destruidor de uma identidade popular, que seria preciso buscar no mundo que perdemos. A von- tade de inculcagao de modelos culturais nunca anula o espago proprio da sua recepgio, do seu uso e da sua interpreta- £ com uma constatagio semelhante que Janice A. Radway conclui seu minu- cioso estudo sobre a apropriacio, por uma determinada “interpretive commu- nity” (no caso, uma comunidade de lei- toras), de um género maior do “inass- market publisbing”, ou seja, os “roman- ces": “Mercadorias como textos literirios produzidos em massa so selecionadas, compradas, construidas e usadas por pessoas reais com necessidades, desejos, intengdes e estratégias interpreutivas pré-existentes. Ao readmitirmos esses in- dividuos ativos e suas atividades criativas e construtivas no cenuro de nosso esforgo interpretativo, evitamos nos cegar diante do fato de que a pritica essencialmente humana de criar sentido pressegue mes- mo num mundo crescentemente domi- nado pelas coisas e pelo consumo. Lem- brando assim o cariter interativo de ati- vidades como a leitura |...) aumentamos nossas chances de resolver ou de articu- lar a diferenga entre a imposicio repres- siva de uma ideologia e as priticas de oposigio que, embora limitadas em seu alcance e efeito, pelo menos disputamou contestam 0 controle das formas ideolé- gicas.” Se “ainda existem no processo de co- municagio de massas oprtunidades para os individuos resistirem, alucrarcm € se reapropriarem de bens destinados, em outras esferas, a ser comprados por eles”,” temos que admitir que, a fortio- rt, semelhantes possibilidades eram ofe- recidas aos leitores das sociedades do Antigo Regime, num tempo em que a influéncia dos modelos transmitidos pelo material impresso cra menor (a nao ser em situagOes peculiares) que no nos- so século XX Devemos, pois, recusar toda abordagem que considere o reper- t6rio das /ttératures de colportage como expressio da “mentalidade” ou da “visio de mundo” dos seus suposios leitores populares. Tal ligagao, comum nos traba- lhos sobre a Bibltotbéque Bleue francesa, os chapbooks ingleses ou os pliegos de corde castelhanos € citalies, nao é mais admissivel por varias razdes: porque os textos publicados em livros ou folhetos pertencem a géneros, épocas e tradigGes miluiplas e fragmentadas; porque existe, {reqientemente, uma distincia (crono- logica ¢ social) considerivel entre 0 con- texto da sua producio ¢ os da sua recep- Go ao longo dos séculos; porque ha sempre um espaco entre o que © texto propée e o que o leitor faz dele. A prova disso sio os textos que, num dado mo- mento de sua existéncia impressa, entra- ram para o repert6rio da Bibliotheque Bleue. De origem letrada, pertencendo a géneros muito diversos, eles consegui- ram atingir, gragas A sua nova forma im- pressa (a das edigdes baratas) e a0 seu modo de distribuicio (a venda ambulan- te), ptiblicos muito diferentes daqucles que garantiram seu sucesso inicial, reves- tindo-se assim de significac6es bastante afastadas do objetivo inicial. Para analisar a relagio entre os textos da Hitérature de colportage e 0 mundo social das sociedades do Antigo Regime sio precisos dois tipos complementares de procedimentos. O primeiro deles, in- “CULTURA POPULAR" 187 yectendo o sentido das causalidades ha- bitualmente reconhccidas, sugere que se leia a “literatura popular” como um re- pert6riode modelosde comportamento, como um conjunto de representagdes que sio igualmente normas imitiveis (¢ possivelmente imitadas). O segundo fo- caliza a pluralidade ¢ a mobilidade das significac6es que publicos diferentes atri- buem ao mesmo texto. Mais do que uma suposta adequacio entre o repert6rio da littératiwe de colportage ¢ a “mentalida- de popular”, que corre o risco de ser apenas uma tautologia (ja que 0 sucesso da “literatura popular” costuma ser ex- plicado pela sua homologia com uma mentalidade que é na verdade deduzida da temitica livresca), 0 que importa & uma hist6ria social das formas pelas quais as diferentes comunidades de leitores que sucessivamente se apoderam desses textos Os usam e compreendem. Nume- rosas e comploms sio as mediagdes entre textos que se tommam “steady sellers” gracas as edigdes de colportage € os in- vestimentos de sentido de que sio objeto em diferentes situagdes hist6ricas e para diferentes leitores. £ preciso portanto reconhecer uma tensio importante entre as intengdes, explicitas ou implicitas, que levam a pro- por um texto a leitores numerosos € as formas de recepgio deste texto, que se estendem, freqdentemente, a registros completamente diferentes. Na Europa dos séculos XVI a XVII, os impressos destinados ao pablico “popular” tinham uma ampla gama de intencées, que ma- nifestavam diversas vontades: cristianiza- dora, com os textos de devogiio da Con- tra-Reforma que entraram para o reper- tério da Biblitbeque Bleue francesa; re- formadora, com os almanaques do ithi- mintsmo italiano ou da Volksauflarung alema; didatica, com os impressos de uso escolar ou os livros de pritica; parodisti- a, com todos os textos da tradigio pica- resca ou burlesca; pottica, com os ro- mances publicados nos pliegos castelha- nos. Mas na sua recepgio (evidentemen- te mais dificil de ser decifrada pelo histo- riador), estes conjuntos de textos eam freqientemente apreendidos e manipu- lados pelos seus leitores “populares” sem © menor respeito pelas intengdcs que direcionaram sua produgio e distri- buicdo. Ora os leitores transpunham para o registro do imaginiirio o que Ihes era dado no registro utilitirio, ora, inver- samente, tomavam como descrigdes do real as ficgdes que Ihes eram propostas. As colctineas de modelos epistolares da Bibliotheque Bleue, wodas oriundas da literatura cortesa do inicio do século XVI € reeditadas para um piblico maior no periodo compreendido entre a metade do século XVile 0 inicio do XIX, ilustram © primeiro caso: jf que nao inham ne- nhuma utilidade para Icitores que nunca se encontravam na situagio de ter que usar os modelos que lhes eram propos- tos, elas provavelemente eram lidas como historias ficticias, oferecidas sob a forma de esbogos rudimentares das no- velas epistolares.'® No mesmo acervo, os texios que compéem o repert6rio da literatura picaresca apresentam uma si- tuagio inversa: brincando com as con- vengoes e com as referéncias camavales- cas, parodisticas e burlescas, foram, pos- sivelmente, compreendidos como uma descrigio verdadeira da realidade inquie- tante ¢ estranha dos Eusos mendigos e verdadciros vagibundos.! Diferentemente das \citoras de roman- ces de Smithton que responderam a per- guntasde Janice A Radway, oudos|eitores e Ieitoras de New South Wales enucyista- dos por Martyn Lyons e Lucy Taksa,”” os da Bibliotbéque Bleue e das ouuns “litera- turas de colportage" curopéias (a no scr com raras excegies) nao disseram nada acerca das suas leituras ~ ou, pelo menos, nao disseram nada que tenha sido conser- vado pelo hitoriador. Caracteriz, em sua diferenga, uma pritica popular dos textos 188 ESTUDOS WISTORICOS - 1995/16 € dos livros nio é, portanto, coisa facil. A operagio supSe a utilizagio critica de fon- tes que nio podem ser mais que repre- senucaes da leituca: represen tagées ico nogrificas de situagdes de leitura e dos cobjetos lidos pelo maior nimero de leito- res;! represen tagbes normativas das pri- ticas de leinra ¢ de escrita contidas em naragéc, manuais, calendirios ou alma- naquesdestinados ao mercado “popular”; representagdes implicitas das competén- cias e das expectativas dos leitores menos habilidosos, tais como tanspasecem da organizacio material das edic6es de col- portage; representagdss das suas pré- prasleituras por leitores plebeus ou cam- poneses quando produzem textos auto- bic ou quando uma autoridade (por exemplo eclesisstica ou inquisitorial) 0s obriga a indicar os livros que leram —€ a dizer o que acharam e entenderam.4 Frentea esses textos ea essasimagens, que pécm em cena as leivuras populares, é indispensivel uma prec¢io. Quaisquer que scjam, essas representagées nunca mantém uma relagao imedina e transpa- frente com as praticas que permitem ver. Todas remetem as modalidades especifi- cas da sua‘produGao, e, portanto, as inten- Ges € interesses que levaram a sua elabo- ragio, aos géneros onde se inscrevem e aos destinatarios visados. Recoastruir as regras € os limites que comandam as pri- ticasda representacio letrada, ou popular, do popular é, por conseqiiéncia, uma pre- condicio necess“ria para dedifrar correta- mente o laco forte, porém sutil, que une essas representacGes e as praticas sociais que constituem seu objeto.Mantida esta prudénaia, as leituras populares nas socie- dades do Antigo Regime podem ser com- preendidas a partir das grandes oposicSes morfolégicas que comandam as formas de uansmissio dos textos - por exemplo, enue a leitura em voz alta ¢ a leitura silenciosa, ou entre a leitura e a declama- Gio. Este tiltimo contraste tem uma penti- néncia particular para sociedades onde a oralidade ocupa um lugar essencial. De- signa, de um lado, a possivel submissio dos textas impressas aos procedimentos peculiares da “performance” oral. No caso da Franca, a leitura em voz alia, nas ceu- nides notumas em volta da kareira, dos temas difundidos pela littérature de col- portage s6 raramente é atestada antes da segunda metade do século XIX Mas a dextamario destes textas - 0 que implica- va que fossem conbecidos de cor ¢ rest tuidos por uma palavra viva, livre daleitura do textoe préxima da recitacgio dos contos era uma das mais importantes formas de transmiti-los, e uma das fontes das varian- tes que modificam a sua versio impressa de uma edi¢io popular para outra. Mas de outro lado ocorreu, também, 0 inverso: a Greulgio do cepertério impresso no deixpu de ter efeitos sobre as wadigo

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