Você está na página 1de 23
WANTING ANNE as Wr WAV AN LO KN. ~ a 1 yA a NEN, = ir YI IA) ANA ee “A VV VWVNY Ax ped <) Ni ae MANNA Ly Le A | VY ees at a ~S > >. \' = \ N N : ae > f \ AA 4 . vy > UND DAY RAY INI MEMORIA E PATRIMONIO ENSAIOS CONTEMPORANEOS REGINA ABREU * MARIO CHAGAS re 3 HS A A Memoria e patriménio: ensaios contempordineos Regina Abreu; Mario Chagas (orgs.) 1. ed, (2003). Rio de Janeiro: DP&A. © Lamparina editora Revisto Michelle Straoda (1, ed.) Angelo Lessa (2. ed.) Projeto gréfico, diagramacao e capa Priscila Cardoso Imagem da capa Pintura corporal ¢ arte grafica wajdpi. Seni Wajapi’2ec0. O texto deste livro foi adaptado ao Acordo Ortogrfico da Lingua Portuguesa, assinado em 1990, que comegou a vigorar em se janeiro de 2009, Proibida a reproducao, total ou parcial, por qualquer meio ov proceso, seja reproged- fico, fotografico, grafico, microfilmagem etc. Estas proibigdes aplicam-se também as caracteristicas graficas efou editorials. A violagao dos direitos wutorais & punivel co mo crime (Cédigo Penal, art. 184 € §4; Lei 6.95/80), com busca, apreensio e inde- nizagdes diversas (Lei 9.410/98 ~ Lei dos Direitos Autorais — arts. 122, 123, 124 € 126), Catalogagiio-na-fonte do Sindicato Nacional dos Editores de Livros M487 2. ed. Meméria e patriménio: ensaios contemporaneos / Regina Abreu, Mario Chagas (orgs.) ~2. ed. — Rio de Janeiro: Lamparina, 2009, 320 pail Inclui bibliografia ISBN g78-85-98271-59-¢ 1. Patriménio cultural — Protegfo ~ Brasil. 2. Meméria —Aspectos sociais ~ Brasil. | Abreu, Regina. 11. Chagas, Mério, 81519. CDD: 363.6g98t CDU: 351-853(81) Lamparina editora Rua Joaquim Silva, 98, 2° andar, sala 201, Lapa Cep 20241-110 Rio de Janeiro RJ Brasil Tel.fax: (21) 2232-1768 lamparina@lamparina.com.br PARA ALEM DA PEDRA £ CAL: POR UMA CONCEPGAO AMPLA DE PATRIMONIO CULTURAL MARIA CECILIA LONDRES FONSECA A imagem que a expresso “patriménio histérico ¢ artistico” evoca entre as pessoas é a de um conjunto de monumentos antigos que devemos preservar, ou porque constituem obras de arte excep- cionais, ou por terem sido palco de eventos marcantes, referidos em documentos e em narrativas dos historiadores. Entretanto, é forgoso reconhecer que essa imagem, construfda pela politica de patriménio conduzida pelo Estado por mais de sessenta anos, esté longe de refletir a diversidade, assim como as tensdes e os confli- tos que caracterizam a produgao cultural do Brasil, sobretudo a atual, mas também a do passado. Quando se olha, por exemplo, a Praga XV, no centro do Rio de Janeiro, um dos icones do patriménio histérico nacional, a evo- cacao mais Sbvia é a do poder real, suscitada pelo Pago Imperial, sede da Corte. Ao fundo, a antiga catedral, hoje igreja de Nossa Senhora do Carmo, atesta a importancia, no Brasil colonial e im- perial, do poder da Igreja. Esses séo testemunhos materiais im- ponentes, tanto do ponto de vista da ocupagao e da permanéncia no espaco da cidade, quanto dos padrées estéticos hegeménicos, valorizados como expressdes de cultura 4 época do tombamento desses bens pelo SPHAN. Essa leitura da Praga XV, no entanto, esta longe de evocar plena- mente 0 passado, a sociedade da época ca vida que se desenvolvia naqucle espaco. Poucos foram os registros que, como os deixados por Debret, Hildebrandt (Fundagéo Bienal de Sao Paulo, 2000) e outros, captaram ainda a presenga, nesses espacos, de mercado- res, escravos domésticos, negros de servico e alforriados, enfim, da sociedade complexa ¢ multifacetada que por ali circulava. Era, so- 59 60 MEMORIA E PATRIMONIO bretudo, o olhar distante dos viajantes estrangeiros, movide menos pela necessidade de construir uma imagem ideal, em moldes eu- ropeus, do pafs, que pelo interesse em documentar o que lhes pare- cia peculiar, e proprio daquelas terras, que costumava “incluir” na paisagem os “excluidos”, nao apenas daqueles espagos, que tam- bém ocupavam, mas da meméria coletiva O exemplo da Praga XV é significativo. Nesse local nao € possi vel encontrar nenhuma marca ou men¢io, atualmente, 2 presenca constante dos escravos pegando agua no Chafariz do Mestre Valen- tim, que 14 ainda permanece apenas como mera extensdo do Paco Imperial. Se, como pesquisas histéricas vém comprovando, o Rio de Janeiro foi uma cidade quase africana durante a primeira metade do século XIX," essa informacao nao ficou registrada nos bens que ali sio identificados como patriménio cultural brasileiro, nem na leitu- ta que deles fazem os érgaos de preservagao. Isso foi agravado pela falta de documentagao sobre essa vertente da histéria do Brasil. Mesmo em relagao a centros hist6ricos, como o da cidade de Goids, tombado pelo Iphan em 1978, portanto j4 em fase mais re- cente da politica federal de preservacao, a perspectiva nao é muito diferente. Hé muito tempo realiza-se, na Semana Santa, nessa ci- dade, a Procissio do Fogaréu, de que as igrejas, ruas e pragas sio elementos fundamentais, assim como os rituais, a indumentéria e, sobretudo, as formas especificas de participagao da comunidade. Entretanto, a condigao de patriménio cultural da nacao é atribus- da, pelo orgao federal encarregado, apenas ao conjunto urbano edificado, além de alguns iméveis isolados. Embora fugaz, pois s6 se realiza uma vez no ano, a Procissdo do Fogaréu confere a esse cendrio ¢ 4 cidade um significado particular, indissocidvel de sua identidade como patriménio cultural. Na cidade de Belém, cujo centro hist6rico a beira do rio Amazo- nas tem feicao portuguesa, ¢ impossivel deixar de perceber, no mer- cado Ver-o-Peso, a forte presenca indigena nos produtos trazidos da +. Conforme noticia publicada no Jornal do Brasil, em a de agosto de 2001, 2 pigina 19, com o titulo “Livres, mas sem direito & memiéria", em que é mencivnado o livro da historiadora norte-americana Mary Karasch, intitulado A vida dos escauvos no Ria de Janeiro: 1808-1350. PARA ALEM DA PEDRA E CAL selva e, especialmente, nos modos de usé-los, também transmiti- dos pelos vendedores. No espago do mercado, coexistem edifica- cGes de valor arquiteténico e artfstico, como os mercados do Peixe e da Carne, com tendas ¢ esteiras em que ficam expostos ervas, cheiros e outras tantas mercadorias; é um lugar onde “se concen- tram e se reproduzem praticas culturais coletivas”,* referentes aos grupos que, nesse espace, efetuam trocas materiais e simbdli ‘Trata-se de um raro exemplo de local em que coexistem claramente marcas de culturas tio distintas como a portuguesa e a indigena, sendo que apenas as primeiras foram identificadas ¢ reconhecidas, via tombamento, como patriménio cultural brasileiro Também a Feira de Caruaru, em Pernambuco, é um lugar com as mesmas caracteristicas do mercado paraense, com a diferenga de que, em seu perimetro, nao ha qualquer edificagdo que pos- sa ser tombada pelos critérios reguladores desse instrumento de protecao. Em barracas iguais a diversas outras, e nos espagos entre elas, convivem as manifestagdes mais variadas da cultura nordestina rural e urbana: o artesanato da regiao, suvenires para turistas, comidas tipicas, bandas de pifanos, folhetos de cordel. A Feira de hoje é, sem diivida, muito menos homogénea, ou “au- téntica”, como muitos ditiam, que a de cinquenta anos atrds, de cardter essencialmente rural. Todavia, ¢ impossivel negar que con- tinue a ser uma referéncia da cultura nordestina, que incorpora cada vez mais intensamente outras influéncias que nado apenas as da vradigdo sertancja. Um lugar como esse, porém, sem nenhusmea edificagao ou paisagem de “excepcional valor”, nao apresentava, até a edig&o do Decreto 3.551/2000, os requisitos para integrar 0 2. Citagio de trecho relativo ao Livro dos Ingares, no inciso IV de § 1*dlo astigo #8 - Decreto 3.551, de 4 de agosto de 2000. 3. Também na cidade de Belém ¢ em municipios vizinhos ocorre anualmente, no segundo domingo de outubro, o Cirio de Nasaré, considerado @ maior festa da cristandade pelo riimero de pessoas que retine, e que também nio figura no repertério oficialmente consti- tuide do patriménio cultural brasileiro. 4.0 Decreto 3.551, de 4 de agosto de 2000, “institui o Registro de Bens Culturais de Nu- turcza Imaterial que constituem patriménio cultural brasileiro, cria © Programa Nacional do Pattiménio Imzterial e da outras providéncias”. Sobre os trabalhos que culminaram ma publicagio do decteto, ver publicagio O repistro do patriménio imaterial — dossié final » si 62 MEMORIA E PATRIMONIO universo de bens considerados pelo Estado patriménio histérico e artistico nacional. Na verdade, do conjunto de bens ¢ manifestagdes culturais ci- tados, apenas uma pequena parte foi, até agora, integrada ao pa- trim6nio cultural brasileiro, constitufdo por legislagao federal: o Pago Imperial, 0 Chafariz ¢ a antiga Catedral, na Praca XV; 0 conjunto arquiteténico e paisagistico Ver-o-Peso, em Belém; e as edificagdes j4 mencionadas em Goids. Sao esses os bens passi- veis de tombamento, ¢ a leitura deles feita, como incorporados ao patriménio, esté centrada em seus aspectos arquiteténicos, integrando marginalmente dados histéricos ¢ andlises de sua re- lagdo com a cidade e a paisagem.* A Constituig&o Federal de 1988 (2003), em scu artigo 216, en- tende como patriménio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referéncia a identidade, & agdo, & meméria dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: 1. as formas de expresso; IL. os modos de criar, fazer e viver; Til. as criagdes cientificas, artisticas e tecnolégicas IV. as obras, objetos, documentos, edificagdes ¢ demais espagos destinados as manifestagées artistico-culturais; V. os conjuntos urbanos ¢ sitios de valor histérico, paisagistico, artistico, arqueoldgico, paleontolégico, ccolégico ¢ cientifico, das atividades da Comissio ¢ do Grupo de ‘Trabalho do Patrindnio Imaterial, produida distribuida pelo Iphan e pela Secretaria do Patriménio, Muscus ¢ Antes Plisticas do Minis- tétio da Culeara (Fonseca, 2009). 5. Uma proposta de leitura mais rica dos ambientes natural ¢ construido, inserindo nessa leitura sua dimensio histérica, foi feita pelo arquiteta do Iphan, Luis Fernando Franco, na Informagao 1359/1986. Cahe nolar que o Guia dos ens tonebados {Carrazzoni, 1987), apesar do que o titulo sugere, abrange apenas os bens iméveis inscritos nos Livros do Tombo do Iphan (que, na verdade, constituem a esmagadora maioria dos bens tombados). e apresenta basicamente informagdes de caréter formal, estlistico ¢ arquitetdnico. Esse guia de grancle utilidade foi elaborado com base na consulta 20s pracessos de tomhamento, o que s6 vem a confirmar o tipo de leitura feita pelos técnicos do Iphen. predominantemente aryuitetos PARA ALEM DA PEDRA E-CAL Portanto, de acordo com o entendimento do legislador, 0 con- junto de bens passiveis de ser tombados (artigo 216, incisos IV e \) constitui apenas parte® do que, no texto constitucional, é con- siderado patriménio cultural brasileiro. Para esses, aplica-se um tipo de protecao legal que visa a assegurar sua integridade fisica, podendo inclusive Jimitar-se, com essa finalidade, o direito indivi- dual a propriedade. Entretanto, o que deveria ser uma das moda- lidades de formagao desse patriménio terminou por ser, durante mais de sessenta anos, a tinica disponivel.’ No caso da maior parte das “criagdes cientificas, artisticas e tec- noldgicas” (inciso ILI), sobretudo as de autoria individual, existem mecanismos prdprios de registro, transmissdo, protegao e difusao. As leis de propriedade intelectual e de direito autoral foram de- senvolvidas com essa finalidade, assim como 0 depésito legal de publicagées na Biblioteca Nacional. Embora nao tenham como objetivo atribuir valor cultural aos bens a que se apliquem, es- ses instrumentos e essas praticas terminam por contribuir para a construgao do patriménio cultural brasileiro, na medida em que identificam essas criagdes e asseguram 0 acesso a elas, trazendo garantias e beneficios a seus produtores. No caso especffico das criagées artfsticas de cardter erudito, sao muitas as instancias de atribui¢ao de valor cultural, como pre- miagées, referéncias em textos de histéria da arte ou de critica, integragao em colegées particulares, principalmente de museus, divulgagao em exposigGes etc. Esses critérios de atribuigao de valor foram mencionados por Mario de Andrade (1981, p. 39-54), em seu anteprojeto para a criagdo do Servico do Patrimdnio Artistico Na- cional, elaborado em 1936. No entanto, ha toda uma gama de bens e manifestagdes cultu- rais significativos como referéncias de grupos sociais “formadores da 6. Em depoimento a0 Conselho Federal de Cultura, em janeiro de 1964, Rodrigo Melo Franco de Andrade (1987, p. 71) diz que, entre “os bens a proteger de valor arqueolégico, historico, artistico € natural [...] avultam, porém, os monumentos arquitetOnicos, como nucleo primacial de nosso patrimanio” ~. A protegiio dos monumentos aryuealégicos e pré-histéticos € objeto de legislaco espe- cifica, a Lei 3.924, de 26 de julho de 1961 63 G4 MEMORIA E PATRIMONIO sociedade brasileira” (Brasil, 2003, p. 146-147) a que ndo se podia aplicar, até recentemente, nenhum instrumento legal que os cons- titufsse como patriménio. Isso significa que muitos deles poderiam desaparecer sem deixar nenhum vestigio, seja material, seja na le mem6ria da nagio, pelo fato de no terem sido considerados valor excepcional", conforme determina o artigo 1 do Dec -Letag, de 30 de novembro de 1937, que cria o tombamento, ou por tratar de manifestagées de cardter processual, a que nao se aplica qual- quer forma de protecdo que tenha por objetivo fixar determinada feicdo fisica do bem.* A limitagao, durante mais de sessenta anos, dos instrumentos disponiveis de acautelamento teve como consequéncia a produ- cao de uma compreensiao restritiva do termo “preservagdo", que costuma ser entendido exclusivamente como tombamento. Tal si- tuacdo veio reforcar a ideia de que as politicas de patriménio sao intrinsecamente conservadoras e elitistas, uma vez que os critérios adotados para 0 tombamento terminam por privilegiar bens que referem os grupos sociais de tradigao europeia, que, no Brasil, sao aqueles identificados com as classes dominantes. A consciéncia desses problemas, que também ocorrem, com as devidas diferengas, na grande maioria dos estados que desenvol- vem politicas de patriménio, tem levado, nos foros nacionais e in- ternacionais, como a Unesco, a solugdes diferenciadas, visando a ampliar a abrangéncia de tais politicas.? Esse movimento é relativa- mente recente e, na Unesco, é fruto tanto da critica ao eurocentris- mo da nogao tradicional de patriménio histérico e artistico quan- to da reivindicagao de paises e grupos de tradigao nao europeia, 8. Cahe lembrar 0 proceso de tombamento do Santuario de Bom Jesus da Lapa, na Buhia, que foi arquivado porque o relator, 0 antropélogo Luis de Castro Furias, em 1968, via um conflito entre a conservagio da edificacao e seu uso, a pritica de “um culto de cunho popular” que tinha uma dinamica propria envolvendo “ampliagao, renovacio e mesmo ino- vacio" do espago. Argument semelhante foi invocedo como objegde a0 tormbamento do Terreio da Casa Branca, em 1984, mas, nesse caso, o bem foi inscrito no Livvo histérico © no Livro arqueolégico, etnogrifica e paisagistico, 9. Ver Lévi-Strauss (inédito). O antrapélogo acompanbou ativamente os trabalhos de pre- paragao da proposta do decreto, desde 0 Seminario de Fortaleza, em 1997. Ver também 0 texto publicado no dessié, citado na note 4. PARA ALEM DA PEDRA £ Cat no sentido de verem reconhecidos os testemunhos de sua cultura como patriménio cultural da humanidade, No Brasil, a publicagao do Decreto 3.951/2000 insere-se numa trajetéria a que se vinculam as figuras embJematicas de Mario de Andrade e de Alofsio Magalhaes, mas em que se incluem também patrim6nio cultural brasileiro, montada a partir de 1937. Contri- buem, ainda, para essa reorientacio nao sé o interesse de univer- sidades e institutos de pesquisa em mapear, documentar e analisar as diferentes manifestagées da cultura brasileira, como também fios estaduais c federais de cultura, que se empenham em construir, via patriménio, a “identidade cultural” das regides em que esto situados.” Eintretanto, ante a existéncia, hoje, de um contexto favordvel a ampliagao do conceito de patriménio cultural e & maior abrangén- cia das politicas puiblicas de preservacao, ficam no ar algumas per- guntas: 0 que se entende por “patriménio imaterial’, se 6 que essa expressao nao constitui uma contradi¢ao em termos? Qual o obje: vo do Estado ao criar um instrumento especifico para preservar ma- nifestagdes que ndo podem e nao devem ser congeladas, sob o risco de, assim, interferir-se em seu processo esponténeo? E como evitar que esse registro venha constituir um instrumento “de segunda classe”, destinado as culturas materialmente “pobres”, porque a seus testemunhos nao se reconhece o estatuto de monumento?® Nao se pretende aqui responder a essas perguntas, apenas fazer algumas consideragdes que auxiliem no mapeamento dessa nova a multiplicagdo de érgi 10, Essa observagao nao deve ser entendida como uma critica a aco passade do SPHAN, que significaria um anacranismo (Fonseca, 1997, p- 20) 11, Um exemplo € 0 projeto “Gonhecer para preservar", apresentado so. prémio Rodri- go Melo Franco de Andrade, em 1997, pela Secretaria de Estado da Educagto e Cultura do ‘Tocantins, que se propée a fazer um inventério em nove cidades historicas do estado recém-criado, aliando assim 4 emancipagao polities uma “emancipagio” simbélica. A pro- pésito, um importante material para o estudo do patriménio cultural de natureza imaterial ro Brasil & constituido pelos trabalhos apresentados zos prémios Silvio Romero, do Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular da Funarte, ¢ Redrige Melo Franco de Andrade, do tphan 12. A “Carta de Veneza”, de 1964, estende a nogéo de monumento historico “também as obras modestas que tenham adquirido com o tempo uma significago cultural” (Cartas Patrimoniais, 1995, p. 109). 65 66 MEMORIA E PATRIMONIO representagao, mais ampla, do patriménio cultural brasileiro, e a tragar politicas inclusivas, que contribuam para aproximar o patri- ménio da cultura produzida no pais. A fungao de patrimGnio e as politicas publicas A questo do patriménio imaterial, ou, conforme preferem outros, patriménio intangivel, tem presenga relativamente recente nas poli- ticas de patriménio cultural. Em verdade, é motivada pelo interesse em ampliar a nogao de “patriménio histérico € artfstico”, entendida como repertério de bens, ou “coisas”, ao qual se atribui excepcional valor cultural, 0 que faz com que sejam merecedores de protecao por parte do poder ptiblico. Voltadas para monumentos e visando & conservagdo de sua inte- gridade tisica, as politicas de patriménio centradas no instituto do tombamento certamente contribufram para preservar edificagdes e obras de arte, cuja perda seria irrepardvel. Contudo, esse entendi- mento da prética de preservagao terminou por associé-la as ideias de conservagao e de imutabilidade, contrapondo-a, portanto, 4 nagdo de mudanga ou transformagao, e centrando a atengao mais no ob- jeto € menos nos sentidos que lhe séio atribufdos ao longo do tem- po. Como observa 0 antropélogo José Reginaldo Gongalves (1996, Pp. 22), a énfase na ideia de “perda” é tributdria de uma nogao de histéria como “processo inexordvel de destruigiio [...] sem que se Jevem em conta, de modo complementar, os processos inversos de permanéncia e recriagdo das diferengas em outros pianos”. E necessario pensar na produgio de patriménios culturais nao ape- nas como a selegao de edificagdes, sitios e obras de arte que passam a ter protecdo especial do Estado, mas, conforme propée o autor cita- do, como “narrativas”, ou, como sugere Mariza Veloso Motta Santos (s992), tomando de empréstimo a formulag&o de Michel Foucault, como uma “formacao discursiva”, que permite “mapear” contetidos simbélicos, visando a descrever a “formacao da nagao” e constituir uma “identidade cultural brasileira”. Em verdade, as politicas de pa- PARA ALEM DA PEDRA £ Cai triménio, tal como estao estruturadas atualmente, com certeza estao longe de cumprir esses objetivos, ainda mais numa sociedade que se queira democratica. Uma anilise critica dos Livros do Tombo, do Iphan, revela que essa limitagao tem consequéncias mais graves que a mera exclu- sau de “tipos” de bens culturais desse repertérie. Na realidade, essa estratégia produziu um “retrato” da nagdo que termina por se identificar & cultura trazida pelos colonizadores europeus,'3 repro- duzindo a estrutura social por eles aqui implantada. Reduzir 0 patriménio cultural de uma sociedade as expressdes de apenas algumas de suas matrizes culturais — no caso brasileiro, as de origem europeia, predominantemente a portuguesa — é tao proble- mético quanto reduzir a fungao de patriménio a protecao fisica do bem. EF. perder de vista o que justifica essa protegao, que, evidente- mente, representa também um énus para a sociedade e para alguns cidadaos em particular. Para que essa fungdo sc cumpra, € neces- sdrio que a ago de “proteger” seja precedida pelas ages de “identifi- car” e “documentar” — bases para a sclegdo do que deve ser protegido —, seguida pelas acdes de “promover” ¢ “difundir”, que viabilizam a reapropriacao simbdlica e, em alguns casos, econdmica e funcional dos bens preservados. Todas essas agdes encontram-se fundamentadas em critérios nao apenas técnicos, mas também politicos, visto que a “represen- tatividade” dos bens, em termos da diversidade social e cultural do pais, € essencial para que a fungao de patriménio realize-se, no sentido de que os diferentes grupos sociais possam se reconhecer nesse repertério. Porém, nao basta uma revisao dos critérios ado- tados pelas instituigdes que tém o dever de fazer com que a lei seja aplicada, tendo em vista a dinamica dos valores atribufdos. E necessaria, além disso, uma mudanga de procedimentos, com 0 propésito de abrir espagos para a participagao da sociedade no pro- cesso de construgiio e de apropriacao de seu patrimonio cultural. 13. Ver Rubino (igg1). Ver também 2 mensagem do entdo ministre da Cultura, Francisco Weffort, a0 Consclho Gonsultivo do Parriménio Cultural, proferida cm 2 de dezembro de 1997, na sesso comemorativa dos sessenta anos do Iphan, e publicada no dossié referido na nota 4 or 68 MEMORIA £ PATRIMONIO Sobre a nogao de patriménio imaterial Quando se fala em patriménio imaterial ou intangfvel, ndo se esta referindo propriamente a meras abstragdes, em contraposigao a bens materiais, mesmo porque, para que haja qualquer tipo de co- municagio, 6 imprescindivel um suporte fisico (Saussure, 1969). Todo signo (e nao apenas os bens culturais) tem dimensdo ma- terial (o canal fisico de comunicagao) ¢ simbélica (0 sentido, ou melhor, os sentidos), como duas faces de uma moeda. Cabe fazer a distingao, no caso dos bens culturais, entre aqueles que, uma vez produzidos, passam a apresentar relativo grau de autonomia em relagao a seu processo de produgao, e aquelas manifestagdes que precisam ser constantemente atualizadas, por meio da mobi- lizagao de suportes fisicos — corpo, instrumentos, indumentaria e outros recursos de carater material —, 0 que depende da acao de sujeitos capazes de atuar segundo determinados cédigos. A imaterialidade é relativa e, nesse sentido, talvez a expressdo “patrim6nio intangivel” seja mais apropriada, pois remete ao tran- sitério, fugaz, que nao se materializa em produtos duraveis. Em relacdo a Procisséo do Fogaréu, por exemplo, apenas algum tipo de registro documental pode viabilizar um acesso continuo (e re- lativo) a essa manifestacao cultural. Talvez o melhor exemplo para ilustrar a especificidade do que se est4 entendendo por patriménio imaterial — e assim diferencid-lo, para fins de preservacao, do chamado patriménio material — seja a arte dos repentistas. Embora a presenga fisica dos cantadores e de seus instrumentos seja imprescindivel para a realizacao do repente, € a capacidade de os atores usarem, de improviso, as técnicas de composigao dos versos, assim como sua agilidade, como interlo- cutores, em responder a fala anterior, que produz, a cada “perfor- mance’, um repente diferente. Nesse caso, estamos no dominio absoluto do aqui e agora, sem possibilidade, a nao ser por meio de algum registro audiovisual, de perpetuar esse momento. Outro exemplo é o da pintura corporal, praticada por varias tri- bos indigenas no Brasil. Impossivel nao Ihe reconhecer valor es- PARA ALEM DA PEDRAE CAL 69. :ético, apesar de ser estranho que nao costume figurar em nossos compéndios de artes visuais. Assim como o repente, tem caracte- risticas que a distinguem da tradigao pictérica moderna, de cardter individualista, que busca a originalidade como valor: os padres relativos aquela pintura sao codificados pela tradigao e funcionam como sinais distintivos entre membros do grupo. Trata-se, portan- to, de uma pratica ritual, cujo valor simbolico s6 tem sentido num determinado contexto. Se ndo forem consideradas essas particula- tidades, corre-se 0 risco de entender essa pratica em seu aspecto puramente formal, projetando sobre ela valores estranhos aos con- textos culturais a que se refere. Essa abordagem da questo do patriménio cultural vem eviden- ciar um aspecto que a pratica de preservagao dos monumentos, centrada nos aspectos técnicos da conservagao e da restauracio, tende a ocultar: a ideia de que a preservacao do patriménio cultu- ral é uma “pratica social” (Arantes, 1989, p. 12-16), que implica um processo de interpretagéio da cultura como produgdo néo apenas material, mas também simbdlica, portadora, no caso dos patrimé- nios nacionais, “de referéncia a identidade, 4 acdo, A meméria dos diferentes grupos formadores da sociedade” (Brasil, 2003, p. 146). Mesmo quando a iniciativa parte do Estado, esses valores preci- sam ser aceitos e constantemente reiterados pela sociedade, a par- tir de critérios que variam no tempo e no espago. Nessa linha de reflexao, fica claro que a elaboragao e a aplica- go de instrumentos legais, como o tombamenty, ndo sav sufi- cientes para assegurar que um bem venha a cumprir efetivamente sua funcdo de patriménio cultural em uma sociedade. f necessaria uma constante atualizagao das politicas especfficas, tanto mais se tais politicas desenvolvem-se num contexto democratico. E, portanto, a partir de uma reflexéo sobre a fungdo de patrimé- nio e de uma critica & nogio de patriménio hist6rico e artistico, que se passou a adotar — nao 36 no Brasil — uma concepeao mais ampla de patriménio cultural, nao mais centrada em determinados obje- tos — como os monumentos —, e sim numa relagdo da sociedade com sua cultura. Nesse sentido, as palavras de Aloisio Magalhaes 11985) nao perderam sua atualidade. 70 MEMORIA E PATRIMONIO. Ocorre, entretanto, que o conceito de bem cultural no Brasil conti- nua restrito aos bens méveis e iméveis, contendo ou nao valor cria- tivo proprio, impregnados de valor histérico essencialmente voltados para o passado, ou aos bens da criacao individual espontanea, obras que constituem 0 nosso acervo artistico (musica, literatura, cinema, artes pldsticas. arquitctura, teatro), quase sempre de apreciagao el tista. Aos primeiros deve-se garantir a protegdo que merecem e a possibilidade de difusdo que os torne amplamente conhecidas. Deles podem provir as referéncias para a compreensao de nossa trajetéria como cultura e os indicadores para uma projecdo no futuro. Quanto aos segundos, basta assegurar-Jhes a liherdade de expresso ¢ os re- cursos necessarios & sua concretizagao. Permeando essas duas categorias, existe vasta gama de bens ~ procedentes sobretudo do fazer popular — que, por estarem in- seridos na dindmica viva do cotidiano, nao sao considcrados bens culturais nem utilizados na formulagao das politicas econémica ¢ tecnolégica. No entanto, é a partir deles que se afere 0 potencial, se reconhece a vocagiio e se descobrem os valores mais auténti- cos de uma nacionalidade. Além disso, é deles e de sua reiterada presenga que surgem expressdes de sintese de valor criative que constitui 0 objeto de arte (p. 52 [...] Bu diria que minha missao talvez seja temporaria nesta dupla fungao [de Secretario de Assuntos Culturais e Secretario do Patrimé- nio Histérico e Artistico Nacional]; talvez seja apenas 0 tempo neces- sdrio para estabelecer uma adequacdo mais nitida, dentro do sistema do trato cultural, da responsabilidade do Estado, e talvez definir me- thor o que sejam as duas grandes vertentes do bem cultural: a yertente patrimonial € a vertente da acdo cultural. Parece nitida essa divisio que, na verdade, é mais para efeito de trato metodolégico, ¢ nao pro- priamente uma divisdo de areas. Na imayem que me ocorre, a vertente patrimonial lembra uma rotaco ou circulo de diametro muito amplo e rotagao lenta, enquanto a ago cultural, na criagav do bem cultural, é um cfrculo de didmetro curto e rotagde muito répida. Ambas as rotagées, ambos os circulos trabalham, interagindo um com o outro, mas tém os seus tempos ¢ a sua dindmica préprios ¢ especrficos. Se PARA ALEM DA PEDRA E CAL for possivel neste trabalho identificar melhor as duas vertentes e esta- belecer melhor os critérios de adequagao dessas vertentes — a quem compete 0 qué, como e quando, onde essas vertentes se encontram, e elas se encontram frequentemente, alimentando-se mutuamente, na verdade — talvez seja possivel chegarmos a uma visao de conjunto mais compreensiva do que seja o bem cultural, dentro do quadro geral da nacao brasileira (p. 133-134) Nessa visao, € evidente que 0 patriménio nao se constitui apenas de edificagdes e pegas depositadas em museus, documentos escri- tos e audiovisuais, guardados em bibliotecas e arquivos. Interpre- racdes musicais e cénicas (documentadas ou nao) e, mesmo, ins- tituigdes, como é o caso da Comédie Frangaise ou do Balé Bolshoi Rigaud, 1996, p. 73), também integram um patriménio cultural coletivo. Interpretagées e instituigdes, assim como lendas, mitos, ritos, saberes e técnicas, podem ser considerados exemplos de um patriménio dito imaterial. Esse entendimento amplificado da no- ¢4o de patriménio cultural apresenta trés consequéncias. Em primeiro lugar, vem diluir certas dicotomias que, tradicio- nalmente, organizam o campo das politicas culturais: produgdo x preservacdo; presente passado; processo x produto; popular x erudito. Impossivel negar, por exemplo, que a arte do repente seja um patriménio cultural do Brasil, mas impossivel também é tombd-la”.“ Sua manutencao depende, sobretudo, da adogao de medidas de apoio a seus produtores, no sentido de preservar, na medida do possivel, condigdes de produgao, divulgagao e forma- -ao de publico, assim como costumam ser orientadas, por exem- plo, as politicas voltadas para as artes cénicas. A plena fruigdo de um repente supde a presenga fisica de seus produtores frente aum ptiblico (do mesmo modo que uma pega teatral precisa de intérpretes), 0 que nao ocorre na leitura de um livro ou na apre- ciagdo de uma obra de arte visual ou de um monumento. Hoja vista os efeitos inécuos do tombamento da edificacdo e dos equipamentos da fé- srica de vinho de eajut Tito Silva, em Jodo Pessoa, realizado em 1982, visando a preservacto Jesse modo de Fazer 7 72 MEMORIA £ PATRIMONIO. Em segundo lugar, vem esclarecer certos mal-entendidos, como © que restringe a ideia de patriménio imaterial a folclore e/ou cul- tura popular. Embora essas areas venham a ser das mais benefi- ciadas por uma politica de patriménio mais abrangente, na medida em que tém ficado bastante desassistidas pelas politicas publicas de cultura, nao é a suposta imaterialidade ou, pior, uma hipotéti- ca “pobreza” de seus testemunhos materiais que constituitiam 0 diferencial em relagao a bens culturais de natureza material, que seriam assim associados as manifestagdes de cardter erudito.”* Em terceiro lugar, a questo abre espacgo pata estender a grupos e nagées de tradigao nao europeia as polfticas de patriménio cul- tural. Foi a pressao de paises como o Japao e outros do Oriente e da Africa, manifestada na conferéncia de Nara, realizada em 1994, no Japao, e em outras ocasides, que levou a uma reviséo dos cri- térios da Unesco para inscri¢ao na lista do patriménio mundial. A impossibilidade de incluir na lista bens como o Templo de Ise, naquele pais, que é sistematicamente destrusdo e reconstrufdo no mesmo local,"* ou a arquitetura no Norte da Africa, cujas edifica- ¢des devem ser constantemente refeitas devido & agao do vento, constitufa um desafio para o Comité do Patriménio Mundial. Nos dois casos, e em outros tantos, a protecio fisica do bem é invid- vel, mesmo porque essa nao é a légica de sua preservagio. O que importa para esses grupos sociais é assegurar a continuidade de um processo de reprodugao, preservando os modos de fazer e 0 respeito a valores como 0 do ritual religioso, no caso do ‘lemplo de Ise, e o sentido de adequagao da técnica construtiva 4s condicées geol6gicas e climaticas, no caso da arquitetura em terra do deserto norte-africano. A ampliacao da nogao de patriménio cultural é, portanto, mais um dos efeitos da globalizacao, na medida em que ter aspectos de sua cultura, até entdo considerada por olhares externos como tos- ca, primitiva ou exética, reconhecidos como patriménio mundial 15. Sobre essus questdes, ver os textos do Semingvio “Fulclore © Cultura Popular”, promovi- do pelo ento Instituto Nacional do Folclore da Funarte, em 1988 (2000) 16. Em 1993, 0 templo foi reconstruido pela 63! vez PARA ALEM DA PEDRA E CAL contribui para inserir um pais ou um grupo social na comunidade internacional, com beneficios nao s6 politicos, mas também eco- némicos. Por outro lado, essa abertura no processo de produgdo dos pa- triménios culturais apresenta novos problemas para uma pratica de caréter essencialmente seletiva, e que tem sido restrita a espe- cialistas. Se os critérios de atribuigdo de valor tornaram-se mais flexiveis, se hé maior preocupagao com a dimensao politica dessa pratica social, o que significa a participagao de novos atores e um permanente questionamento dos critérios adotados, ha estudiosos que alertam para o risco de banalizagao no pressuposto de que tudo pode se tornar patriménio (Chastel e Babelon, 1980, p. §-32). Cabe, entio, a pergunta: banalizacdo ou dessacralizagao, como conside- ram outros estudiosos, que veem nesse movimento uma orientacdo democratizante? O fato é que, tendo em vista fendmenos recentes como os in- tensos fluxos migratérios, os processos de comunicagao cada vez mais 4geis, a presenca ¢ a interpenetragdo de tradigdes culturais distintas, mesmo em pafses de cultura consolidada, como a Fran- ga, movimentos que podem ser resumidos no que tem sido deno- minado “desterritorializagdo da cultura” (Gupta e Fergusson, 2000, p- 31-49), nao ha duvidas de que essa ampliagao no conceito de patriménio cultural contribui para aproximar as politicas culturais dos contextos multiétnicos, multirreligiosos e extremamente hete- rogéncos, que caracterizam as sociedades contemporaneas. Nesse raciocinio, torna-se necessario ampliar também o reperté- rio das praticas de preservagao, que até recentemente eram identi- ficadas, no Brasil, exclusivamente com o tombamento. No caso das manifestag6es citadas no inicio c ao longo deste capitulo, o que se pode preservar sao registros (escritos, sonoros, visuais etc.) dessas formas de expressao e informagdes sobre 0 contexto em que ocor- rem, assim como os sentidos que tém para os diferentes produtores e destinatdrios, o que tem um interesse evidente para a sociedade (Fonseca, 2000). 73 74 MEMORIA E PATRIMONIO. A preservagiéo da meméria de manifestagdes, como interpre- tagdes musicais e cénicas, rituais religiosos, conhecimentos tra- dicionais, préticas terapéuticas, culindrias e hidicas, técnicas de produgao e de reciclagem, a que é atribufdo valor de patriménio cultural, tem uma série de efeitos: 1) aproxima o patrimé6nio da produgao cultural, passada e presente; 2) viabiliza leituras da produgao cultural dos diferentes grupos so- ciais, sobretudo daqueles cuja tradi¢ao é transmitida oralmente, que sejam mais préximas dos sentidos que essa produgo tem para seus produtores e consumidores,” dando-lhes voz nao ape- nas na produgao, mas também na leitura e na preservagao do sentido de seu patriménio; 3) cria melhores condigdes para que se cumpra o preceito consti- tucional do “direito 8 meméria” como parte dos “direitos cultu- rais” de toda a sociedade brasileira; 4) contribui para que a insergdo em novos sistemas, como o mer- cado de bens culturais e do turismo, de bens produzidos em con- textos culturais tradicionais possa ocorrer sem 0 comprometi- mento de sua continuidade histérica, contribuindo, ainda, para que essa inser¢do acontega sem o comprometimento dos valores que distinguem esses bens e lhes dao sentido particular. ConsideragGes finais Para Lyndell Prott (Unesco, 2000, p. 157), ages voltadas para a identificagao, a preservacao e a valorizagao do patrimdnio imate- rial (que a Unesco entende aqui, prioritariamente, como conheci- mentos e modos de vida tradicionais) tem objetivos variados. 17. Em recente visita as novas salas do Museu do Louvre, em que estio expostas pecas mui- to antigas de culturas africanas, asidticas e da Oceania, ouvi do chefe do Servico Cultural do Museu, Jean Galard, uma observagdo sobre a dificuldade dos curadores de apresentar e contextualizar as pecas, por falta, praticamente absoluta, de informagées complementares, © que os levava de modo inexordvel a fazer uma leitura predominantemente estética dos bens, pelo que vinham sendo eriticados sobretudo por historiadores e antropélogos. PARA ALEM DA PEDRA E CAL Para os que mantém esses estilos de vida, 0 propésito pode ser o de preservar 0 conhecimento tradicional e um valioso modo de vida para as futuras geracdes; pode ser, igualmente, a sobrevivéncia fisica, uma vez que a adaptagdo tradicional ao meio ambiente é ca- paz de evitar um estilo de vida, em tiltima instancia, insustentavel. Para um Estado, o objetivo pode ser o de manter tratamento médi- co local de baixo custo para populagées no limite da subsisténcia; para outros, a intengao pode ser a de ganhar tempo para inventariar e explorar exaustivamente recursos, como o conhecimento tradi- cional de propriedades vegetais (médicas, biolégicas e agricolas), de modo a apropriar-se delas para ganho econémico; para cientis- tas, o objetivo pode ser o de viabilizar a pesquisa sobre modos de vida sustentaveis ou sobre diversidade do desenvolvimento huma- no como evidenciado, por exemplo, nos milhares de linguas hoje ameagadas de extingao, ou na sobrevivéncia de espécies desconhe- cidas fora de sua comunidade, como parte dos recursos biolégicos da Terra. Ainda outros grupos podem querer utilizar elementos tra- dicionais em sua cultura como fonte de renda, a ser autorizada para uso de outros ou reservada para eles préprios, a fim de prover-lhes recursos econémicos. Pode-se preservar um modo tinico de vida como uma fonte de dignidade, de orgulho cultural e de identidade, ou usd-lo como uma atracao turistica para gerar renda. Nao € coincidéncia o fato de que, no texto citado, patriménio natural e cultural praticamente nao se diferenciem. Cada vez mais, a preocupaciio em preservar est associada a consciéncia da im- portincia da diversidade ~ seja a biodiversidade, seja a diversidade cultural — para a sobrevivéncia da humanidade. No caso da biodiversidade, ha uma clareza cada vez maior, por parte da opiniao publica, de que se trata de um patriménio de todos os cidadaos, acima de interesses particulares. Talvez as ori- gens do movimento ambientalista, que nasce associado a pesquisa cientifica e as organizagdes da sociedade, tenham favorecido essa mobilizagdo em torno da necessidade de preservar 0 meio am- biente, dificultando a apropriagao dessa “causa” por faccées polf- ticas ou sua associagdo a posturas ideolégicas, como elitismo ou conservadorismo. 8 76 MEMORIAE PATRIMONIO. Por sua vez, 0 conceito de patriménio hist6rico e artistico € for- mulado tendo como pano de fundo a questao nacional. Raros séo os autores que, como Alois Rieg! (1984), pensam a questao do pa- triménio cultural a partir da dinémica de valores que o constitui, Dado 0 modo como se implantaram as politicas de patriménio, predominantemente associadas a construe’o dos Estados-nagao e de uma representaciio de “identidade nacional”, e dada também sua precdria apropriagio pela sociedade como um todo, essas po- liticas terminaram por refetir-se predominantemente Aqueles gru- pos sociais que detém o poder de produzir a representagéo hege- ménica do “nacional”. Sem diivida, a ampliacao do conccito de cidadania — 0 que im- plica reconhecimento dos “direitos culturais” de diferentes grupos que compéem uma sociedade, entre eles 0 direito A meméria, ao acesso A cultura e & liberdade de criar, como também reconheci- mento de que produzir e consumir cultura sao fatores fundamen- tais para o desenvolvimento da personalidade ¢ da sociabilidade ~veio contribuir para que o enfoque da questo do patriménio cultural fosse ampliado para além da questao do que é “nacional”, beneficiando-se do aporte de compor como a Antropologia, a So- ciologia, a Estética e a Histéria. Outra analogia com a questo ambiental diz respeito & posi¢ao, nesse novo cendrio, dos paises em desenvolvimento. Nesse caso, menos se torna mais: a manutengao, em geral involuntdria, dos recursos naturais, torna-os “ricos” nesse sentido,"* assim como a sobrevivéncia de formas de vida, ou melhor, de “formas de ex- pressaio” ¢ “modos de criar, fazer ¢ viver” diversificados, em geral mais apropriados aos recursos disponiveis na regio, torna nao s6 esses recursos, como os conhecimentos a eles associados, uma “riqueza” que tem sido cobicada e, em muitos casos, expropriada pelos pafses desenvolvidos.” Pensar em formas de preservar esse 18. Essa foi a principal premissa das idcias desenvolvidus por Aloisio Magalhaes (rg85) ¢ do trabalho que desenvolveu & frente das diferentes instituigdes publicas que dirigiu, de 1975 a 1982, ano de seu felccimento. 19. No Brasil, esse assunto tem sido ebjeto dos trabalhos do Grupo Interministerial de Pro- priedade Intelectual (Gipi), que funciona na Casa Civil da Presi¢éncia da Repiiblica, em que ha um subgrupo que trata especificamente dos conhecimentos tradicionais. PARA ALEM DA PEDRA & CAL patriménio, como também sua relagao com seus produtores e con- sumidores, passa a ser estratégica para o desenvolvimento de tais regioes. Como se vé, as questdes levantadas por essa nova concep¢ao, ampliada, de patriménio cultural, abrem em muito o leque de cam- nos de saberes e de instituigdes que passam a se envolver, direta zu indiretamente, com a producao, gestao e promogao desse patri- mnénio. No mesmo sentido, as novas questées levam a sociedade 4 uma compreensao mais rica da nogao de patriménio cultural, e

Você também pode gostar