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O museu na era da informa¢ao Em 1985, durante estagio de pos-doutoramento na Universi- dade de Indiana, USA, gracas a uma bolsa de estudos concedida pela Fapesp, tive oportunidade, entre outras pesquisas, de assistir a uum curso sobre Arte e Pés-Modernismo, ministrado por Donald Preziosi, ént&o chefe do Departamento de Arte e Historia da Arte na State University — Nova York. Da bibliografia desse curso, constava, entre outros, “O Museu de Arte Moderna como ritual do capitalismo tardio” (Allan Wallach 1978) e “Sobre as ruinas do Museu” (Douglas Crimp 1983). Sd esses titulos so, por si, mes- mos, capazes de colocar em evidéncia 0 teor ea direcionalidade do programa desse curso. Nos Estados Unidos, estava-se, naquele ano, no apice da in- fluéncia, sobre as humanidades, do movimento intelectual chama- do de deconstruction, aliado e temperado por debate cerrado sobre a pds-modernidade. Tratava-se de uma demoligSo generalizada ¢ implacavel de todos o principios e valores da ordem estabelecida, da estruturagao imediatamente legivel de informagdes sempre dis- poniveis, dos arquivos saturados de organizacao e despidos de sur- presa, das mostras, exposigdes e acervos de arte perfeitamente gerenciados e direcionados. Enfim, tratava-se de desconstruir a boa ordem logocéntrica das formas de armazenamento ¢ circulag4o dos processos da arte, do saber e da cultura, para evidenciar as tendenciosidades, as distorgSes e imposigdes que se ocultam por tras de um gerencia- mento sem falhas. No que diz respeito aos Museus, colocava-se sob mira da cri- tica os rituais e cerimoniais oferecidos ao piblico como experiénci- as de saciedade em que nada falta e tudo ja vem pronto. Acritica demolidora da boa ordem e da saturagao de informa- g6es, a busca de brechas ¢ lapsos ¢ de novas estratégias da desor- dem, o desejo da imprevisibilidade das descobertas ¢ da alteridade eram recebidas como prentincios de uma temporalidade historica 150 LUCIA SANTAELLA emergente ¢ forma de sensibilidade correspondente, deno pos-modernas. ‘ Ao final do curso, durante os debates, tive oportunidade: emitir (para receber como resposta os olhares surpresos ¢ incré los dos que me ouviam) a seguinte conclusdo: “Se isso é p modemidade, por fatalidade congénita e tendéncia incorrigivel, brasileiros, sempre fomos pds-modernos”. O NACIONAL E O INTERNACIONAL No entanto, diferentemente do que essa concluso pode levar a crer, ou seja, de que estamos isentos da tarefa de pensar a pds modernidade, ao contrario, ela ndo nos dispensa de interrogar bre as particularidades ¢ idiossincrasias de brasileiros no confront com 0 debate internacional que hoje se trava em relagdo a essa” questao. Nem o dissabor (para fazer uso de um eufemismo) de tarmos no Terceiro Mundo, nem a tragédia (para nao fazer uso de um eufemismo) social e descompasso histérico, que vivenciamos, _ nos livra de estarmos inseridos, tanto quanto qualquer outro pais do planeta (do Primeiro ao Terceiro Mundo), no contexto da pos- modernidade. Essa unidade, no entanto, nao pode ocultar a diversi- dade, Na unidade internacional do pés-moderno, ocupamos uma posi¢gdo diversa e exatamente inversa a dos paises do Primeiro” Mundo (que aqui exemplifiquei através dos Estados Unidos). Se as estratégias da desordem surgem para eles como valvu- las de escape dos excessos de organizagao, para nds (que, desde — sempre, ja as tivemos) clas brotaram e brotam como subproduto de ; nossas caréncias. Se, para eles, o caminho é driblar as imposigdes. da distribui¢do ordenada e da saturagao da informagao, para nds, 0 desafio 6, justo o contrario, fertilizar os meios de produgao, — armazenamento, circulagao ¢ recepgdo-consumo de informagées técnicas, artisticas ¢ cientificas. Para tal é preciso nao ter medo de buscar formas racionais e criativas de estocagem ¢ processamento, € preciso ndo poupar esforgos para ser organizado e perfeccionista. Tanto quanto posso ver, nao ha nada mais subversivo e revolucio- nario no Brasil de hoje do que a seriedade, honestidade, escrapulo € vocagao em termos individuais ¢ a luta pela atualizagao das infor- mag6es técnicas, politicas, artisticas, cientificas e pedagogicas no nivel coletivo. Tanto quanto posso ver, mais uma vez, eSsas sao as armas que temos de buscar para fazer frente as complexidades do CULTURA DAS MIDIAS 151 as imprevisibilidades do futuro. Sem isto, em poucas beaten ease reduzidos a situagdo de hordas primitivas em relagdo aos paises mais adiantados. O ritmo das invengdes a cas, do crescimento da informagao e da transformagao de valores nao perdoa qualquer uma das formas de disfarce da xenofobia. E no contexto dessas indagacdes ¢ postulagdes que passo a delinear alguns dos pontos a que, segundo meu ponto de vista, de- vemos estar alertas para pensar 0 Museu hoje. OQ MUSEU HOJE Inicio tal pensamento com uma passagem acerca da prensa tipografica, que considero paradigmatica € que aqui tomarei como metaférica para questionar a situagdo do Museu: Com 0 advento da prensa tipografica, em meados do século 15, os copistas tornaram-se caligrafos. Por quase um século, enquanto a tipografia acelerava seu curso, esses caligrafos continuaram a trabalhar “no comércio quase exclusive das encomendas de luxo”. Na maior parte das vezes seus manuscritos, “encomendados por patronos ricos, ndo cram sendo recopiados de livros ja impres- sos”. E isso assim continuou, até que a caligrafia— arte aplicada — “virou simples passatempo” ou exercicio escolar de controle motor para deixar a letra mais bonita. (Curt Buhler) O que essa citagdo deixa imediatamente patente é a historicidade dos meios de produgiio, circulagao e consumo de lin- guagens, mensagens-e cultura. Ou seja, embora sejamos rete pela iluso de que os chamados “bens culturais "tém a nobreza intocavel do eterno, eles est4o, na realidade, tao sujeitos as vicissi- tudes da histéria e ao desgaste do tempo quanto quaisquer outras coisas. Isto quer dizer: a criagdo da arte, da ciéncia € da cultura tem bases historicas ¢ materiais ¢ depende de meios também historicos e materiais de produg&o, circulagao ¢ difusaéo, que determinam e implicam novas formas de recepgao ede consumo. sagas Para pensar qualquer fendmeno como fenémeno a ura i preciso pensa-lo no processo de comunica¢ao, visto que es nome: nos culturais s6 funcionam culturalmente porque sao tambem a cessos comunicativos. Para a analise de tais processos, temos de considerar como se caracterizam e se entrelagam as quatro fases em que toda ¢ qualquer mensagem esta envolvida: a produgdo, 0 152 LUCIA SANTAELLA armazenamento, a circulagao ¢/ou difusao ea recepgdo e/ou consu O Museu costuma ser localizado, antes de tudo, na fase setor de conservacao ¢ armazenamento de produtos sobrecarregg dos de aura, ou seja, os produtos artisticos como objetos unico; Isso explica a grade seméntica que caracteriza 0 Museu nas suai associagdes com as idéias de monumentos cerimoniais perter tes a classe dos templos, igrejas, santuarios e certas especies palacios. Nao pretendo seguir, contudo, por esse rumo de analise se- gundo a otica da critica da aura do Museu ou do Museu coi cerimonial ideolégico. Isso ja foi feito 4 saciedade. A maneira uma estranha no ninho, o que pretendo trazer a tona s4o perguntas, - Faltam-me condi¢des ¢ também vocacao para pontificar respostas, A introdu¢ao deste texto nao foi casual. Com ela, busquei preparar o terreno para langar questées acerca das funcdes do Museu na era da informag4o ¢ no contexto da pés-moderidade. a Primeira pergunta: que tipo de sobrevivéncia pode ter 0 Mu- seu, se ndo enfrentar o desafio de repensar a arte e suas formas de producao para além da exclusiva concepgdo de arte como objeto nico? Em outras palavras: sera que podemos escapar das trans- formagGes que os novos meios e as novas tecnologias esto trazen- do para a criagdo? Fazer face a esta tarefa parece urgente. Temos de considera-la até suas tltimas conseqiiéncias, mesmo que a preco q de abandonarmos o nome e a concep¢ao de arte que herdamos do Renascimento. _ Segunda pergunta: como repensar 0 Museu diante da gritante faléncia e derrocada das velhas setorizagdes e dicotomias inoperantes entre folclore vs. elite, kitsch vs. vanguarda, reprodugdo vs. arte auratica, automagdo vs. aretesanato? Trocando em mitidos: a velo- cidade dos circuitos de informagdo e os meios de comunicagdo modernos estado configurando novos transitos e conexées entre es- ses setores culturais outrora vistos no comodismo das separagoes. Em que medida o Museu pode contribuir para propiciar o movi- mento ¢ intercimbio gerados por novas associagdes entre setores diferenciados de produgdo artistica? (Observem que evito aqui a palavra interdisciplinaridade. Esta palavra, cuja origem remonta as academias, aprisiona nossa cabeca nos recintos tidos como ex- clusivos do saber, ¢ nos impede de pensar, por exemplo, que néo h4 nada mais interdisciplinar do que a televisdo). CULTURA DAS MIDIAS 153 Terceira pergunta: como fica o Museu diante das _ tecnologias que permitem ¢ exigem a mudanga do conceito de memoria, documento ¢ acervo? Hoje, com um laboratorio de repro- dugdo fotografica, é possivel organizar uma colegdo de imagens > historia da pintura maior que 0 acervo de qualquer Museu do pla- neta. E com uma colegao de fitas de video pode-se organizar uma filmoteca que cinemateca alguma poderia sequer almejar. Em ou- tras palavras: diante das facilidades dos novos meios de estocagem de mensagens e das capacidades enormemente expandidas das in- formag6es que armazenam para uma memoria instantanea, nos bancos dos computadores, todas as técnicas, formas e imagens mo- dernistas, pré-modemistas, antigas ¢ primitivas, assim como gene~ ros e codigos, mundos e imagens de culturas populares e da moder- na cultura de massas, como fica aquilo que costumavamos chamar de arte, assim como a fungaio do Museu? : es Sintetizando: nao foi por acaso que aqui trouxe a citagdo so- bre o inexoravel destino da caligrafia. Posso talvez estar exageran- do, o que, alias, nestas circunstancias nao é pernicioso, mas estou relativamente convicta de que, se o Museu nao enfrentar, com sa- bedoria ¢ sem desvarios, 0 conjunto de questées que tentet aqui elencar, em menos tempo do que podemos imaginar, ele nao passara de algo semelhante a um mausoléu para visitas em dias de finados. Museu e producdo de cultura O titulo acima se organiza numa interessante sucessdo de metonimias, isto é, numa seqiiéncia de partes para o todo. Assim como o museu é uma parte da produgo cultural, a produgdo é uma parte da cultura, Nessa medida, cultura é um conceito mais amplo do que produgao e produgao cultural é evidentemente um conceito e uma realidade mais amplos do que muscu. Essa seqiiéncia do titulo acabou por produzir efeitos concretos em minhas reflexdes, de modo que elas se apresentarao também numa sucessdo, mas em ordem exatamente inversa ao titulo. Comegarei do mais amplo - a cultura - até atingir o mais especifico — o museu. Muitas sao as acepgdes, denotacdes e mesmo conotagdes do termo cultura. Todas as areas ¢ subareas do conhecimento no cam- po das humanidades definem cultura a seu modo, em fun¢gao do recorte especifico que cada area impée a esse campo. Para tornar ainda mais complexa a variedade dessas acep¢des, de algumas dé- cadas para ca, a cultura passou a se constituir numa espécie de objeto privilegiado dos estudos semidticos que se desenvolvem, sob a rubrica de Semidtica da Cultura, em varias partes do mundo, muito especialmente Alemanha, Unido Sovictica, Estados Unidos ¢ mesmo Japao. A coincidéncia da rubrica nao impede a diversidade. Embora partam de pressupostos que sdo similares porque sdo semidticos, esses estudos se desenvolvem tao diferencialmente que se torna possivel acrescentar 4 expressdo mais um genitivo para identificar, pelo lugar, as distingdes dos grupos que tém se dedica- do A quest&o. Por exemplo: a semidtica da cultura de Berlim, de Bochum, de Tartu, etc. Nao pretendendo, contudo, penetrar nos meandros desses es- tudos que tém, inclusive, se colocado em confronto — por vezes complementar, por vezes positive — com a antropologia, ao deslo- car, para dentro de um paradigma semiotico, as bases para a com- preensio da cultura. Por razdes que se tornardo dbvias ao final deste trabalho, ao invés de tentar apreender as possiveis novas 156 LUCIA SANTAELLA contribuigdes que a semidtica traz para o entendimento da comp xidade cultural, prefiro resgatar trés autores e respectivas obra que, dentro do paradigma que poderiamos chamar de paradigma historicidade, nos permitem pensar o museu de hoje, ou seja, ¢ desafios com que as contradigdes do presente fustigam nossa co preensdo da cultura ¢ do museuw na cultura. TEORIAS DA CULTURA Os trés autores sao dispares no tempo € no espaco. Nao e9 ceram quaisquer influéncias uns sobre os outros. Partiram de damentos distintos, assim como localizam-se em areas e€ posi diferentes dentro das humanidades. Nao obstante tantas diferengas, suas obras acabam chegando a resultados similares que, no que diz” Tespeito a cultura, as tomam complementares e conseqiientemente passiveis de uma jungdo. Duas dessas obras, de um lado, a do rus- so P.N. Medvedev, cujo subtitulo propde Umea introdugdo critica a uma poética sociolégica (1928), e, de outro lado, a do brasileiro Robert Srour, Modos de produgdo: elementos da problemdtica (1978), e mais recentemente seu livro Classes regimes, ideologias (1987), a meu ver, ndo tém recebido a atengo que-merecem. Ha j quase dez anos venho citando esses dois teoricos em meus traba- | thos, pois encontro neles meios eficazes para a tarefa de pensar deslindar a intrincada malha da cultura nas sociedades complexas 3 modernas. O terceira deles, hoje bem conhecido e divulgado no Brasil, é Walter Benjamin. Vejamos, portanto, na seqiiéncia, que ndo sera cronoldgica, as contribuigdes que, segundo meu ponto de vista, esses autores podem trazer para o desafio que é a compreen- sdo dos processos culiurais neste final de século. Comegando com a obra de Medvedev, escrita provavelmente em _co-autoria com M. Bakhtin, uma sintese de suas propostas é suficiente para evidenciar a importancia de que se revestem. Sem trair as bases do materialismo histérico, mas partindo de uma redefini¢ao altamente operacional do conceito de ideologia, os autores enfatizam a necessidade de um esforgo para se repensar ° estudo da cultura através do que chamam de uma ciéncia das ideo- logias. Ampliando a visao da ideologia para além do limite estrito de falsa consciéncia, consideram como ideolégica qualquer criagdo ou produgao de cultura e reivindicam que o estudo das ideologias tem meios objetivos para se processar, quando se considera que a CULTURA DAS MEDIAS 137 ideologia nao pode ser divorciada da realidade material das lingua- gens nas quais a ideologia toma corpo. Nessa medida, na materialidade mesma das linguagens e de seus meios de produgao, os autores resgatam o aspecto material ¢ historico de qualquer fe- nomeno cultural e ideoldgico concreto. Propdem como tarefas basicas a serem cumpridas por um es- tudo da cultura: primeiro, a preocupagdo com a individualidade qualitativa, os tragos distintos do material, formas ¢ propdsitos de cada area da criagio ideologica. A especificidade da arte, literatu- ra, ciéncia, técnica, ética, religido, meios de comunicagao nao pode ser ignorada sob pena de uma pasteurizago geral que ignora que cada area tem sua propria linguagem, suas proprias formas, meios, recursos para aquela linguagem, assim como suas proprias leis es- pecificas para a refragdo ideoldgica de uma realidade comum. Nes- sa medida, embora a especificidade de cada uma dessas areas natu- ralmente nao deva obscurecer sua unidade ideologica comum, tam- bém nao deve ser absolutamente o caminho dos estudos da cultura nivelar essas linguagens, ocultando sua pluralidade essencial. Segunda tarefa: a preocupagao com as caracteristicas ¢ for- mas de intercurso social através das quais o sentido dessas lingua- gens se realiza. Terceira tarefa: 0 estudo dos modos pelos quais se dé a reflex3o e a refragdo da realidade nos produtos ideoldgicos, isto é, a que interesses no jogo das lutas entre agentes coletivos, ou melhor, na luta de classes, esses produtos se prestam (Santaella 1985,:50). ‘Como se pode ver, a proposta integrativa ai evidenciada, ao mesmo tempo que da a produgdo processos € produtos culturais a autonomia relativa que eles merecem, reintegra-os na unidade com- plexa e interativa das dimensdes do politico e do econémico, Vem dai, de um lado, a impossibilidade de separagao ¢ isolamento do cultural em relagdo aos outros dominios. Diz Medvedev: “o medo do ecletismo se explica pela ingénua nog4o de que a especificidade ¢ individualidade de um dominio dado, s6 podem ser preservados através de seu absoluto isolamento, ignorando tudo que esta fora dele. No entanto, todo dominio ideolégico adquire sua real indivi- dualidade e especificidade na intervengao viva com outros domini- os” (ibid.:28). De outro lado, as propostas de Medveved também preservam a unidade no respeito a diversidade dentro do proprio dominio do cultural. Isto 6, cada area de produgdo da cultura (que 158 LUCIA SANTAELLA ele denomina de criagao ideolégica) tem potenciais, limites, sos € meios que lhe sdo proprios, assim como leis pecul refracdo ideolégica, mas que sé se definem no confronto, complementaridade com outras areas. , Esse mesmo carater integrativo da teoria é também o cari dominante na obra de Srour. Sem ter conhecido as propostas Medveved, a teoria de Srour incrivelmente se assemelha a um si: matizagao rigorosa e consistente das idéias que, la na Russia, cit décadas antes, Medvedey havia, assistematicamente, langado, nunca ter chegado a conhecer seus resultados. Essas sincronias ti caras a J. L. Borges, parecem evidenciar que a realidade, ela pria, vai criando exigéncias para o pensamento. As teorias vi sempre no encal¢o de problemas que o real histérico desafiadot mente apresenta ao pensamento. E assim que, sem saber que estava dialogando com as de Medvedev, Srour desenvolve-as dentro de um sistema alta coerente é iluminador que aqui também passo a sintetizar. Sem abandonar a triparticao das formagées sociais nas instanci- as ou dimensdes do econdmico, politico e cultural, Srour sinonimizou 0 conceito de modo de produ¢ao com o de estrutura social, entendendo esta como principio de articulagao das rela- gées estruturais, e considerando estas como as relagdes que con- frontam agentes coletives ¢ que sdo mediadas por instrumentos de trabalho particulares. Por nao restringir as estruturas apenas as relagées econémicas, estendendo-as, com inegavel coeréncia, para as relagdes politicas ¢ culturais, o autor redefiniu modo de produgdo como néo restrito 4 produc&o econémico-material, re- cuperando, de forma absolutamente conectada, as condigées de exist€ncias dessa mesma producdo e resgatando a especificidade € autonomia das produgées politica e cultural, Com isso articu- lam-se nao apenas quatro esferas que compéem cada uma das trés dimensées (econémica, politica, cultural), como também intersecciona-se dindmica e dialeticamente 0 jogo de suas inter- intra e sobre determinacées, A reafirmagdo do postulado materi- alista do primado da pratica, como apropriagdo do mundo, isto é, processo de transformagdo de um dado objeto, tornou-se mais complexa ao abracar também a instdncia politica e cultural, res- guardando, certamente, as devidas especificidades e retirando do caminho os entulhos ¢ entraves das concepgées ainda fortemente CULTURA DAS MIDIAS 159 idealistas que negam as condigGes materiais de existéncia social ao politico ¢ cultural (Santaella 1982:35-36). Para que fiquem mais compreensiveis as inter-relacdes dos trés territorios (econémico, politico € cultural) e das quatro esferas que se interseccionam dentro de cada territorio € dos territorios entre si, cumpre aqui nomear essas_ esferas, que, alias, estao linda- mente explicitadas no livro posterior de Srour (1987). Assim te- s 1, No econémico: produgao, troca, conservacao € distribuigdo. 2. No politico: seguranga, administracao, justica, ¢ deliberagao. 3. No cultural: (que agora Srour chama de simbdlico) ideolo- iéncia, arte e técnica. - = ‘eee em conta que todas e cada uma dessas esferas so também esferas produtivas, mediadas por instrumentos de Se particulares, em que se confrontam agentes coletivos das mais di- versas modalidades, isso forneceu 4 teoria de Srour novas bases para a construgdo de uma teoria de classes basicamente simples, mas capaz de abranger a complexidade de todas as fragdes € subfracgGes, camadas e categorias sociais internas as classes de que ndo escapa nenhum ser vivente nas sociedades classistas que lobo. Wane AeA ses. o primado da pratica material como apropria¢ao do mundo, também extensivo a produgao cultural ou simbélica, pde sua teoria em sintonia com o pensamento de Walter Benjamin para o qual as linguagens, sejam clas quais forem, artisticas ou ndo, sio materialmente produzidas de acordo com meios, instru- mentos ¢ técnicas que sao tao historicos quanto as proprias lingua- gens ¢ as instituigdes que as abrigam. Assim, se nos pusermos a ler Srour a luz de Benjamin, ou vice-versa, cada campo de linguagem na produgdo simbdlica trabalha com objetos mattriais e historicos especificos, com instrumentos de trabalho ¢ técnicas de produgao que s4io também materiais e histéricos. Portanto, dentro da propria producdo cultural, seja na esfera especifica da arte, ciéncia, ideolo- gia, técnica ¢ suas inter-relag6es, na medida em que seus oo so materialmente produzidos, teremos também para eles a esfera da produgdo, troca, conservagao ¢ distribuigéo ou difusio. E na medida em que também estZo submetidos as injungdes do politico, esses produtos também devem ser lidos sob 0 enfoque das esferas 160 LUCIA SANTAELLA da seguran¢a, administrago, justiga e deliberacao. UMA QUESTAO PRIMEIRA Sem me prolongar nos aspectos mais estritamente indicatiy das teorias que aqui foram trazidas a baila, quero pér énfase. enriquecimento que elas podem nos proporcionar para a leitura de fendmenos e processos culturais do homem contemporaneo. A\ sociedades e o campo de forgas entre elas se tornaram compl demais para um olhar ¢ espirito desavisados. O mundo ficou de siadamente complicado. Nele nao ha mais lugar para a ino ou ingenuidade, nem mesmo quando guiadas pelas maos santas da’ boas intengdes. De pronto, no fogo cruzado da complexidade, a ingenuidade vira tolice ou imbecilidade. As teorias, quando ade- quadamente rigorosas, nos auxiliam a enxergar, pensar e lutar Pp transformar. Dai a selegao das teorias, aqui apresentadas, como instrumen- tais que me parecem suficientemente condizentes com a comiplexi- — dade do real ¢ promissoras para a andlise de problema nao apenas — do museu, mas de quaisquer outras instituigdes de produgdo, troca, conservagao e/ou distribuigdo (difusdo) de produtos culturais, seja na esfera da ideologia ou divulgagao, na ciéncia, arte e técnica. Os desafios das sociedades modemas so incomensuraveis. _ Parece no haver diivida de que a Revolugao Eletronica ¢ 0 adven= to das sociedades pés-histéricas, pés-industriais, e provavelmente pés-massa, esto nos colocando no limiar de uma reviravolta com repercuss6es antropoldgicas inauditas. O fato de estarmos neste pais (Brasil) desgracadamente defasado e miseravelmente corrom- pido nao nos livra do dever ético de auscultar intelectualmente para onde esto soprando os ventos do planeta. Onde quer que esteja- mos, no museu, na universidade, numa editora ou num jornal, te- mos de abrir a face dos olhos para as aceleradas transformacgdes que estdo se operando em niveis de produgdo, troca, conservacao ¢ difusdo dos produtos culturais. Ha um ano, também num encontro para pensar 0 museu, pro- pus pensd-lo dentro da era na qual ele hoje se insere: a era da infor- matica (Santaella 1988). Nao vou repetir o que ja disse la, De qual- quer modo, parece-me tarefa urgente que, para pens-lo, estejamos munidos de boas teorias — pois “nao ha nada mais pratico do que uma boa teoria” — que nos auxiliem a perceber, de um lado, as CULTURA DAS MIDIAS 161 redistribuigdes ¢ refuncionalizagdes que os novos meios € processos de produgao, troca, conservagao e distribuic¢do cultural impdem aos meios e€ instituigSes mais tradicionais, de outro, a possibilidade de incorporag4o ¢ apropriagdo desses novos meios dentro dos mei- os ¢ instituigdes tradicionais, transformando-os. Termino citando uma frase de Benjamin (1975:19-20) da qual extraio um fragmento de parafrase: Gastaram-se vas sutilezas a fim de se decidir se a fotografia era ou nao arte, porém nao se indagou antes se essa propria invengao nao transformaria o carater geral da arte; os tedricos do cinema sucumbiriam no mesmo erro. Contudo os problemas que a foto- grafia colocara para a estética tradicional nado eram mais que brincadeiras infantis em comparagdo com aquelas que o filme iria levantar. Que n4o nos esquegamos, assim, de levantar aqui a questdo primeira da qual muitas outras decorrerdo: em que medida os no- vos meios de armazenamento da informagao cultural nao sfo capa- zes de transformar substancialmente a concepgéo mesma de mu- seu? Semi6tica e arte: feixes de inteligibilidade H4 muitas estéticas e muitas semidticas. Do lado da estética, a multiplicagao desmesurada ¢ as mudangas cada vez mais fre- qiientes e mesmos intensas nas tendéncias, setores, manifestagdes ¢ caminhos ditos de arte sio notorios. Do lado da semidtica, segundo nos informa Thomas A. Sebeok (1991,:1), nao existe ainda um tratado compreensivel, ¢ nem mesmo um compéndio manuseavel, sobre a historia da semidtica, se é que uma conquista tio monu- mental possa ser realizada por um so autor. Nao ha nada mais labirintico do que o tema da relacdo entre semiética e arte. Erigir um unico tipo de manifestagao 4 condi¢éo de arte e privilegiar com exclusividade apenas uma entre as corren- tes tedricas da semidtica, para poder estabelecer uma relagdo con- vincente entre ambas, seria tentar encontrar uma rapida e enganosa saida do labirinto. Ao invés disso, prefiro comprazer-me nele. Des- confio, no entanto, que ha alguns focos de iluminag4o que podem nos ajudar a pensar no interior do labirinto, compreendendo algu- mas linhas do seu desenho. A semidtica nao é especificamente uma teoria da arte. Tendo por objeto todo ¢ qualquer tipo de semiose (a¢ao do signo), seja essa semiose celular, vegetal, animal, humana, natural, artificial ou estelar, a semidtica, embora inclua, nAo se restringe, conseqiiente- mente, nem mesmo a uma delimitacdo no campo das ciéncias hu- manas. Existe uma semiotica da biologia, das inteligéncias artifici- ais, assim como pode existir uma semidtica cosmologica. Onde quer que haja informagao, processos de transmissfo, recepgao ¢ armazenamento de mensagens (pouco importa se por vias naturais ou artificiais, através do homem, aquém ou além, a partir ou a revelia dele, também pouco importa), isso sera uma questdo semiotica. Inevitavelmente, portanto, a arte é também, ¢ sem nenhuma 164 LUCIA SANTAELLA. divida, uma questo semiotica. Um tipo especial e peculiar d semiose. E nesse sentido que sc pode falar de uma ou va semidticas da arte ou das artes, com a preocupagao de se levar conta que a imensa abrangéncia de campos a que a semidtica aplica é inversamente proporcional aos limites daquilo que ela o poder de desvendar. Isto é: a semidtica esta apta a revelar, fenémenos, t&o-s6 e apenas seus modos de agao signica, 0 que ja uma formidavel empresa, quando se entende signo no sentido mais | amplo possivel como recobrindo desde as formas mais rudimenta= res de informacao até os sistemas hipercomplexos. FOCOS DE ILUMINACAO Alertei o leitor para o fato de que nao irei desenvolver aqui uma entre as alternativas possiveis das semidticas possiveis das artes. Acredito que um primeiro patamar para compreender a rela= ¢4o da semidtica com a arte tem de ser percorrido no interior do labirinto de intersecgdes que ambas sempre travaram e que se tor= nou mais denso a partir do inicio do século XIX. Para isso, existem focos de iluminagao que se acendem nos pontos de jungao entre o surgimento da semidtica como ciéncia, a intensificagao da intersemiose das linguagens e os intrincados caminhos da arte, no decorrer deste ultimo século e meio. a Minha hipotese, portanto, ¢ a de que ha fatores historicos, funcionando como feixes de inteligibilidade, que nos capacitam a explicar porque a crescente emergéncia da semidtica como ciéncia, de um lado, entra em correspondéncia, de outro lado, com a tam- bém crescente intermiose das linguagens que é, por sua vez, coextensiva a dissipacdo dos rigidos sistemas de codificagdo (entre as artes € no interior de cada arte) herdados do Renascimento. S4o os seguintes os fatores que iluminam tanto a trajetoria da semiotica quanto a desconstrugdo dos sistemas artisticos (¢é eviden- te que ha outros fatores ndo sé na diacronia, mas também na sincronia; os escolhidos s4o, contudo, a meu ver, suficientes para 0 que pretendo demonstrar): (1) 0 advento dos meios industriais de reprodugao, de que, no mundo da linguagem, a fotografia foi paradigmiatica; (2) a ascensdo dos objetos utilitarios 4 condi¢do de signos de que, no universo da arte, 0 objet trouvé de Marcel Duchamp era sintomatico; (3) a explosao dos meios ¢ produtos da cultura de massa de que a pop ari ¢ a contracultura, por exemplo, CULTURA DAS MIDIAS 165 foram conseqiiéncias; (4) 0 surgimento de novas tecnologias, me- morias artificiais e sociedades informatizadas de que termo pés- moderno é uma das evidéncias Nao podemos, porém, entrar em comentarios sobre os itens elencados acima, sem que seja antes dissolvido um equivoco que costuma ser freqtiente. Ndo se deve confundir o surgimento gradativo da semidtica como ciéncia, que ¢ fendmeno historicamente bem re- cente (tem pouco mais de um século), com a condi¢ao antropologi- camente semidtica do ser humano, que é simultanea e inseparavel de sua homini ou humanidade, e que vem se acentuando no proces- so civilizatorio, com todas as contradicdes nele implicadas. Isso, no entanto, tem de ser visto em mais detalhes. HOMO SEMIOTICOS O homem é um ser de linguagem. A afirmagao ¢ obvia. Sua compreensdo nem tanto. A evolugdo biologica da espécie humana incidiu, antes de tudo, sobre o desenvolvimento progressivo da cai- xa craniana, isto é, do cérebro. Entre a evolugao privilegiada do sistema nervoso central do homem e a performance quer lhe ¢ espe- cifica, a linguagem simbolica, deve ter havido um ajustamento es- treito de modo a tornar a linguagem ndo t4o sé o produto, mas uma das condigées iniciais dessa evolugao (cf. Monod 1972:148). A cag¢a como ago combinada de um gnupo, a produgao de artefatos, regida por normas reconheciveis, o processo de trabalho como ati- vidade projetiva e disciplinada so desempenhos exclusivos do ho- mem que pressup6e a capacidade simbdlica, sem a qual nenhuma previsdo seria possivel. Ha, sem ditvida, aquilo que poderiamos chamar de linguagem ou de processos de comunicagéo nos animais. O animal registra, associa e até transforma informagdes adaptadas a programas de agdo, assim como tem meios de aferir 0 mundo exterior em repre- sentagGes ajustadas a esses programas. Contudo, nao ha nada no animal que se assemelhe 4 maquinaria combinatéria dos fonemas que rege a complexidade de organizag4o das linguas humanas, nem ha, em qualquer animal, a capacidade projetiva e simuladora do cérebro apta para estabelecer novas combinagdes e associacées criadoras que, aliadas as sutilezas da mao ¢ do corpo, permitem ao homem produzir linguagens para fora do corpo e do cérebro, isto 6, povoar © mundo de signos. 166 LUCIA SANTAELLA Foi a ordem simbolica, inaugurada no homem, como aco cimento unico na biosfera, que abriu caminho para a criagdo de uw novo reino, noolégico, reino dos signos ¢ da cultura, A capacid simbolica é, por sua propria natureza, proliferante. A linguagem no se responsabiliza apenas por produgdes que respondem a cessidade de sobrevivéncia fisica (objetos, vestimentas, arquitetue ras etc.), mas também a necessidades impostas pela sobrevivéncia psiquica. Os rituais, deuses ¢ mitos, o canto, a musica, os jogos, as primeiras inscrigées devem ter a mesma antiguidade do homem, Embora a produgdo ¢ comunicagdo semidticas sejam grandemente devidas 4 estrutura ordenada e ordenadora da lingua, elas nao se restringem a ela. Extravasam-se, Esse extravasamento se acentuou no momento em que o homem buscou transferir para — suportes externos, fora do corpo, sua capacidade para produzir lin- guagens. Iniciou-se ai a longa aventura do olhar e da escuta huma- nas que comegou nas inscrigdes nas grutas, passando por todas as formas de escrituras, codigos imagéticos e notagdes, que se dilatou na invengo de instrumentos, suportes ¢ materiais para a produgao da imagem e do som, e que cresceu desmedidamente' a partir da Revolugao Industrial com suas maquinas capazes de pro-reprodu- zir linguagens, explodindo nas maquinas providas de inteligéncia da Revolugao Electronica. Os seres nooldgicos proliferaram a tal ponto que, no mundo — contemporaneo, estamos convivendo, esbarrando, buscando, dese- jando e nos comunicando com signos em cada canto do nosso coti- diano ¢ em cada milésimo de instante de nossa vida, muito mais do que convivemos ¢ dialogamos com seres carnais. NASCIMENTO DAS TEORIAS SEMIOTICAS Desde sempre a humanidade esteve apta a uma natureza semidtica ¢ nao exclusivamente lingiiistica. Ja no mundo grego, era aguda a consciéncia da diversidade de signos que pululavam no homem e em torno do homem. Por isso mesmo, embrides de uma teoria dos signos podem ser encontrados nos textos dos filosofos gregos e prosseguidos pelos escolasticos. Como explicar 0 fato des- ses primérdios de uma teoria semiotica terem sido subitamente si- lenciados no Ocidente, para so voltarem a emergir com urgéncia no século XX? Provavelmente a divisdo des processos de signos em campos CULTURA DAS MIDIAS 167 estanques, a codificagao dos sistemas artisticos em setores separa- dos (arquitetura, escultura, desenho, pintura, gravura, musica, danca, teatro, literatura) e a exclusividade da linguagem escrita como meio privilegiado para a produgdo e transmissao da cultura, desde o Renascimento até 0 século XIX, serviram para sufocar, por alguns séculos, a emergéncia de uma teoria dos signos que desse conta de uma visao interativa ¢ intercomunicante de todas as linguagens que o homem é capaz de ler, criar, reproduzir e transformar. Porém, o advento de um numero crescente de meios para a producdo de sistemas de signos nao verbais ou hibridos (jornal, fotografia, cinema, quadrinhos, publicidade, out-doors, televisio, video, holografia, imagens digitais...) velo provocar c continua pro- vocando profundos abalos e¢ mutagées no panorama das lingua- gens, subvertendo a hegemonia secular do codigo verbal. Ao mes- mo tempo, no espago da pagina jornalistica e na publicidade, a linguagem escrita foi se descobrindo como um cédigo visual com potencialidade imagéticas, 0 que foi, imediatamente, apropriado e radicalizado pela poesia até a revelagdo inquestionavel da natureza intersemidtica e nado apenas lingiiistica do cédigo escrito. Ainda esta para ser avaliado o carater revolucionario da re- cente entrada da escrita nos suportes eletrénicos. Com 0 videotexto, os processadores de textos ¢ a digitalizagao da tela eletrénica, que abriga e multiplica as possibilidades imageticas da escritura, abri- ram-se as portas de uma nova era para a linguagem verbal cujos efeitos sero tao ou mais reverberantes do que os da civilizagao do papel impresso. Em sintese: 0 mundo, de um século e meio para ca, foi se tornando gritantemente semidtico. Nao ha como ignorar essa evi- déncia. As teorias semidticas s4o contemporaneas as explosées intersemidticas na paisagem do mundo. E por acaso que a semiotica, como ciéncia, comegou a nascer imediatamente apos a invengdo da fotografia, quando as primeiras imagens congeladas de um instante Ja passado (sonvenir da vida transcorrida) comegaram a invadir recantos do nosso cotidiano? ARTE: RUPTURA E IRRUPCOES Evidentemente, a arte nao poderia estar incdlume ou imune as explosdes intersemidticas que abalaram e continuam abalando quais- quer fronteiras rigidas entre as linguagens. Ao contrario, a arte tem 168 LUCIA SANTAELLA funcionado, no ultimo século e meio, simultaneamente como mento detonador ¢ como sonda. Quando falamos em arte, nunca é demais lembrar que aqi que, no Ocidente, costumamos chamar de arte e que, ainda hi historico que foi cunhado e estabelecido como tal na Renas Curioso observar que mais de um século de tremores de terra i interior da propria arte, que desconstruiram os sistemas codificagdo, dissolveram as fronteiras entre as artes e desnortea: ram os processos de valoracdo legados pelo Renascimento, nao fo ainda suficiente para propiciar a reinvengdo da nossa nogao dea (Aprofundar essa problematica seria objeto de um outro trabalho.) E por isso que assistimos hoje a uma espécie de divorcio entre arte” e criagdo. Explicando: embora a cria¢io possa coincidir com 0 que aine | da é designado como sendo arte, tal coincidéncia nem sempre ocor= re. Ha produtos que, sob 0 peso da tradi¢do, séo considerados ar= tisticos sem que por eles perpasse nenhuma pulsagdo criadora. Ha — outros, de outro lado, que, por nado estarem pousados ou circulando — nos circuitos ditos artisticos, podem estar cintilando como “pontos — luminosos” bem na frente dos nossos narizes, sem que se alerte — para sua forga criativa. Felizmente os caminhos da criaco nao transitam obrigatoria- mente pelos corredores das instituigées artisticas ou pelos salées de vernissage, nem dependem exclusivamente do aval ou julgamento ~ dos corretores da arte. Por isso mesmo, um século e meio de abalos — subterraneos e de rupturas no interior de cada forma de arte c nas relagOes entre as artes parece ter estado preparando o terreno de sinestesia dos sentidos humanos para as irrupgdes da hipercomplexidade e intersemiose que, provavelmente, tenderao a — caracterizar os oficios da cria¢do daqui para a frente. Acerca disso, fomos premiados recentemente no Brasil com um artigo de Livio Tragtenberg (1988), brilhante, atento e perturbadoramente licido no seu enfrentamento dos desafios intersemidticos (por ele chama- do de interdisciplinares) que “o desenvolvimento de novos meios € materiais aplicados a atividade artistica impdc ao criador”. E nesse ponto do presente que temos de nos reencontrar com os nds de conjungéo ou feixes de inteligibilidade propostos mais no inicio deste.artigo ¢ que, segundo anunciei, sio capazes de langar CULTURA DAS MIDIAS 169 alguma luz diacr6nica sobre o nascimento da ciéncia semidtica em sintonia com a crescente trajetoria da intersemiose nas linguagens ¢ a também crescente dissolugao das fronteiras fixas entre as artes. Apontei, entdo, para quatro fatores. Na verdade, esses fatores se juntam, em dois grupos de dois com um ponto de partida e um ponto de chegada em cada um deles: 1) na era industrial-mecdnica, da invengdo da fotografia até as clarividéncias de Marcel Duchamp; 2) na era eletroeletrénica, da explosao da cultura de massas até os primérdios de uma cultura informatizada, pos-massa. ‘0 MARCO DECISIVO DA FOTOGRAFIA O primeiro pensador a se dar conta do imenso poder transfor- mador da fotografia foi Walter Benjamin, no seu antologico ensaio sobre A obra de arte na era da reprodutividade técnica (1975). Embora nem sempre absorvidos na sua radicalidade, os efeitos da invengdo da fotografia no mundo da arte, especialmente da pintura, ja foram evidenciados em inumeraveis versGes interpretativas do ensaio benjaminiano. Embutido nas subversdes provocadas no uni- verso artistico, existe um Angulo de visaéo epistemolégico ou mais propriamente semidtico que a fotografia traz consigo que, a meu ver, ndo tem sido suficientemente apreendido, Conforme ja procurei, demonstrar em outros trabalhos (Santaella 1984,1985,:162-166), é possivel extrair da leitura da fotografia como signo uma teoria ilustrada das caracteristicas fun- damentais de todo e qualquer signo. Os artistas foram os primeiros a perceber que, por tras de sua apar€ncia inofensiva, a fotografia estava preparada para exercer subliminarmente muito mais influ- éncia sobre nossa leitura do mundo do que se poderiam, a primeira vista, imaginar. Foi a fotografia que tornou pela primeira vez evidente, colo- cando na face dos nossos olhos,’a irremediavel separagao entre signo e objeto. Fez ruir a ilusdo da representagao, dissolvendo a miragem de uma relacao idilica entre o signo que representa e 0 objeto representado. Depois da fotografia, nossa consciéncia de lin- guagem se tornou maliciosa. Nao ha ingenuidade que resista a evi- déncia da subtrac4o e diferenga que a fotografia pde a nu. Em toda relagao, algo é subtraido. O vao da diferenga: inominavel. Sob as vestes do signo, algo cai. Este algo ¢ tudo aquilo que o objeto ¢, e que se subtrai porque o signo nao pode recobrir. Nao ¢ que nao haja 170 LUCIA SANTAELLA sempre, em maior 0 menor grau, uma revelagdo do objeto signo. Ocorre que aquilo que o signo nao revela é justo o importante: o segredo indevassavel, mistério intransponivel d coisas. A fotografia ¢ paradigmatica porque, mais cedo ou mais tar= de, todas as formas de arte sofreram os efeitos de um espirito deg- confiado e malicioso que comegou a visita-las e desconforta-las. A desconfianga para com as ilusdes da representagao. DUCHAMP: O LEONARDO DA DESCONSTRUCAO Outro nd de conjungao ou feixe de inteligibilidade se apresen- ta quando os objetos industriais, produzidos em série, comegaram a povoar o mundo, evidenciando que o reino das coisas é também um reino de signos. Depois da linha de montagem industrial, as coisas nunca mais foram as mesmas. Perderam a sagrada inocén- cia de objetos tinicos e passaram a funcionar como signos, isto é, réplicas de um prototipo. O primeiro a se dar conta das repercussdes que os objetos como signos trariam para a arte foi Marcel Duchamp. Nas suas enigmaticas contravengdes, Duchamp estava ironicamente eviden- ciando que, assim como qualquer imagem tem seu carater de signo, um objeto, qualquer objeto, também tem sua natureza signica que Ihe é propria. Do mesmo modo que uma palavra muda de sentido, quando se desloca de um contexto para outro, também os objetos encontram nos usos, inevitavelmente contextuais, a consumac¢do de seus significados. Se a fotografia inaugurou, no mundo da linguagem, a era da reprodu¢éo mecanica, provocando a crise da representagio, levada a efeito pelas artes, Duchamp, antecipatoriamente, pds termo a essa era, antevendo 0 esgotamento do dilema entre figurativo vs. ndo- figurativo, no terreno da arte e para além desse terreno, assim como levou 0 questionamento dos suportes das artes até o limite da dissolvéncia. Duchamp n4o foi apenas um artista, mas também um pensador nao verbal da mais alta estatura. Na cra da desconstrugao, desempenhou papel similar, embora em posi¢ao exatamente inver- sa, aquela que o polivalente Leonardo desempenhou para as cons- trugées renascentistas. Sua figura 6, nesse sentido, emblematica porque, depois dele, nao ha instituigdes, espetaculos, promogdes ou eventos artisticos que nao sejam subcutaneamente atravessados CULTURA DAS MIDIAS V7 pelo arrepio imperceptivel de um certo mal-estar. No universo da cultura e das artes, Duchamp, com suas antevisées do futuro, é uma espécie de rito de passagem: ponto terminal do apogeu da era mecAnica-industrial ao mesmo tempo que representa as primeiras sementes do universo eletrénico pés- industrial. E por isso que a arte pop, na sua reagiio ao desmesurado crescimento dos meios ¢ produtos da cultura de massas, nao foi sendo a explicitagdo de uma atividade estética inseparavel da criti- ca que ja estava implicita em Duchamp. Nio € preciso nos demorarmos na descrigdo ou mesmo na mengdo de todas as modalidades criticas das formas de engajemento ou intervengdo artisticas, assim como nos inumeraveis caminhos alternativos que buscaram fazer frente 4 pasteurizagao e homogeneidade da comunicagdo de massas. Passo imediatamente para o presente, no qual parecem estar germinando, no interior dos proprios meios de comunicagfo e entre eles, sob o influxo trans- bordante da teleinformatica, as contradi¢des que deverao funcionar como antidotos contra a uniformizacdo e massificacéo dos meios de comunicagao e informagao. As tecnologias mais recentes de disseminagao da informagao, o carater mais interativo e bidirecional de terminais domésticos de publicagdo e de videotexto, por exemplo, os novos meios computa- dorizados para a producio de imagem, o novo alfabeto de luzes da computagao grafica que redimensiona, em bases radicalmente iné- ditas a nossa nogao de escritura, sio inaugurais de uma era pos- massa, hipercomplexa ¢ intensamente intersemidtica, cujo limiar estamos comegando a atravessar. Os efcitos que esses fatores pode- r4o provocar nos processos de producdo da arte sao imprevisiveis. Na ponta do iceberg, aparecem os cacoetes do pastiche, esquizofrenia das citagdes, batizados de pos-moderno. O que esta imerso e ainda invisivel so podemos adivinhar: provavelmente um outro salto de transformag4o com repercussées muito mais inten- sas do que foram aquelas da era industrial, O presente s6 nos deixa pressentir. Ao futuro cabe nos confirmar ou desmentir. O homem e as maquinas Assim como os utensilios, as ferramentas sao também artefa- tos. Conforme estipula a etimologia da palavra, derivada do adjeti- vo latino ufensilis, que significa “proprio para o uso”, utensilios sao produzidos com a finalidade precipua de serem usados. Dife- rentemente dos utensilios, entretanto, as ferramentas sAo artefatos projetados como meio para se realizar um trabalho ou uma tarefa. Funcionam, por isso mesmo, como extensdes ou prolongamentos de habilidades, na maior parte das vezes manuais, 0 que explica porque as ferramentas so artefatos de tipo engenhoso. Sua cons- trugdo pressup6e o ajustamento e integracdo do desenho do artefa- to ao movimento fisico-muscular humano que 0 artefato tem a fina- lidade de amplificar. Nesse sentido, maquinas sao uma espécie de ferramenta, visto que sdo também projetadas como meio para se atingir um certo propésito. Diferentemente das ferramentas, contu- do, as maquinas apresentam um certo nivel de autonomia no seu funcionamento. Definir 0 que sio maquinas nao é simples. Num sentido muito amplo, a palavra se refere a uma estrutura material ou imaterial, aplicando-se a qualquer construcdo ou organiza¢do cujas partes estAo de tal modo conectadas ¢ inter-relacionadas que, ao serem colocadas em movimento, o trabalho é realizado como uma unida- de. E nesse sentido que se pode comparar o corpo ou o cérebro humanos a maquinas. Numa acepgdo um pouco mais especifica, no termo maquina esta implicado algum tipo de forga que tem o poder de aumentar a rapidez e a energia de uma atividade qualquer. Isso é 0 que acontece até mesmo nos tipos mais rudimentares de mAqui- nas como uma antiga e pesada catapulta medieval usada para se atirar pedras. Essa catapulta era constituida basicamente de uma alavanca muito forte com um receptaculo para as pedras, numa extremidade, e de cordas torcidas de modo a puxar a alavanca para tras sob forte pressao, até ela ser repentinamente solta, disparando o missil. 196 LUCIA SANTAELLA A transmissio ou modificagao na aplicagao do poder, forga ou movimento, caracteristicas do funcionamento das maquinas, velo ganhar um novo impulso com 0 aparecimento dos motores. Ha va- rios tipos de motores, a vapor, de combustao, pneumatico, hidrau- lico, elétrico. Todos eles tem em comum a capacidade de transfor- mar uma energia dada em energia cinética, mecanica. Depois da invengao dos motores, a palavra maquina, num sentido mais lite- ral, passou a se restringir a equipamentos que dispdem de algum tipo de motor. Foram os motores que trouxeram um novo impulso- para 0 ideal de autonomia no funcionamento das maquinas, de modo que, elas passaram a ser basicamente entendidas como um conjun- to de partes ou corpos sdlidos, de um lado, ¢ de um gerador de energia cinética, mecdnica, de outro, que transmite forga € movi- mento entre essas partes de um modo predeterminado e com finali- dades predeterminadas. L O pensamento sobre as relagdes, e mesmo sobre a analogia, homem-maquina nao ¢ recente. Ja aparecia em Aristoteles, esteve na base da concepgio dualista do ser humano em Descartes, tendo ocupado de uma forma ou de outra a mente de muitos fildsofos. Embora 0 estudo histérico ¢ comparativo das reflexdes filos6ficas sobre as maquinas seja de grande interesse, ndo sera esse o cami- nho que minhas considerac6es tomaréo a seguir, visto que meu objetivo é mapear os trés principais niveis que detectet na relagao homem-maquina: (1) o nivel muscular-motor, (2) o nivel sensorio (3) 0 nivel cerebral. : f Esses trés niveis sao histéricos, quer dizer, 0 muscular prece- de o sensério que, por sua vez, precede o cerebral. Isso nao quer dizer, entretanto, que 0 aparecimento de um novo nivel leve ao de- saparecimento do anterior. Ao contrario, um nivel nao anula o ou- tro, mas permite a convivéncia, ¢, por vezes, instaura até mesmo o intercdmbio ou colaborag4o com o nivel anterior. AS MAQUINAS MUSCULARES Se, antes da Revolugdo Industrial, as relagdes entre homem e maquina eram ainda incipientes, limitando-se a truculentos artefa- tos, do tipo de uma catapulta, ou a instrumentos, tas como 0s de tortura, o reldgio e alguns instrumentos de medida e de pesquisa como 0 telescépio, a partir do século XVIII ¢ inicio do XIX, esse cendrio comegou a passar por profundas e crescentes modificagées. CULTURA DAS MIDLAS 197 “O século XIX foi marcado pelo signo da Revolugdo Industrial cujo emblema era a maquina a vapor, capaz de converter a energia quimica do carbono em energia cinética e finalmente em trabalho mecanico. Qualquer motor tem como input alguma energia no me- canica ¢ como output algum trabalho mecanico” (Marcus 1995). As maquinas, que a Revolugo Industrial introduziu, maravi- Iharam nossos antepassados porque eram capazes de substituir a forga fisica do homem. Primeiramente pela utilizago do vapor, e, mais tarde, pela utilizacdo da eletricidade, a energia da maquina foi posta a servigo dos misculos humanos, livrando-os do desgaste (Schaff 1991:22). A Revolugdo Industrial foi uma revolugdo ele- tromec4nica, caracteristica esta inscrita na natureza de suas ma- quinas cuja poténcia n4o poderia ir além da imitago dos gestos humanos mais grosseiros ¢ repetitivos, enfim, dos movimentos mecanicos. Trata-se de maquinas servis, tarefeiras, que trabalham para o homem, ou melhor, substituem o trabalho humano naquilo que este tem de puramente fisico ¢ mecnico. Além disso, tal subs- titui¢do ndo se da em igualdade de condigdes, pois a maquina é capaz de acelerar os movimentos, intensificando a realizacao das tarefas. Toda maquina comega pela imitagdo de uma capacidade hu- mana que a maquina se torna, entdo, capaz de amplificar. E nesse sentido que ja existiam maquinas bem antes da Revolugdo Industri- al. Uma alavanca, por exemplo, é uma maquina na medida em que seu ponto de apoio, ao se aproximar do objeto a ser movimentado, converte-se em um amplificador de forga. Além dessas maquinas dedicadas a ampliar a forga, existiram também engenhos voltados para a mecanizagdo da locomogao. “O movimento de grandes pe- sos arrastados sobre troncos gigantes foi um precursor do veiculo de rodas, que traduziu 0 poder proprio ao homem de locomover-se — um poder ampliado no seu devido tempo mediante a incorpora- ¢4o de motores de toda espécie” (Beer 1974:25). As duas caracteristicas acima, ja presentes nos rudimentos de qualquer maquina, seriam aquelas que definiriam o perfil das pri- meiras maquinas industriais: a substituigao amplificada da forga fisica humana ¢ a mecanizagdo da locomogio. E justamente esse tipo de funcionamento que esteve na base das primeiras nogées de robé, maquina a imagem e semethanga dos musculos humanos, pronta para trabalhar para o homem ou em seu lugar. 198 LUCIA SANTAELLA Embora tenha sido um invento da Revolugdo Industrial, as maquinas musculares sobrevivem até hoje sob miltiplas aparénci- as, nao estando, nem de longe, confinadas nas fabricas, nas indus= trias. Infelizmente, a similaridade entre homem ¢ maquina € toma- da muito ao pé da letra, o que impede o reconhecimento das multi- does de robés musculares que tomam conta do nosso cotidiano, sem que tenham necessariamente a forma humana, sem que tenham a nossa aparéncia. Dentro dessa idéia de uma maquina capaz de aumentar ou mesmo substituir fungdes fisico-musculares, sao TOo- bés mAquinas tais como 0 elevador, o automével, uma batedeira de bolo, um liquidificador, um aspirador de pd, ¢ outros tantos utensi- lios que facilitam a vida doméstica. Exigéncias muito mais complexas do que as dos pequenos robés domésticos, contudo, so aquelas que a necessidade de preci- sdo na mecanizagao das ferramentas apresenta para a industriali- zacao da produgao. E por isso que, junto com a amplificag4o da forca e mecanizag4o do movimento, uma outra capacidade humana que precisou ser imitada foi a da precisdo. Para sustentar uma fer- ramenta, uma prensa inicia uma cadeia evolutiva que, finalmente, engendra um instrumento mecanico que, além de imitar, amplifica a capacidade de precisdo (idid.:25). : es Os problemas apresentados pela precisao mecanica das ferra- mentas so os seguintes: “como se pode controlar a seqiiéncia das atividades precisas; como se pode acoplar uma pega de trabalho a pega seguinte ¢ como se pode intervir nessa seqiiéncia? Esse tipo de flexibilidade no elaborado processo de fabricar objetos pertence a capacidade humana”, pois implica uma atividade de controle da mais alta ordem cuja execugdo requer “nao apenas as ferramentas altamente enervadas dos dedos ¢ cuidadosamente controladas dos arcos reflexos do sistema nervoso auténomo, mas requer também um cérebro”. E em razio disso que as industrias, nos paises de economia ¢ tecnologia avangada, exigiam, até ha algum tempo, 0 trabalho integrado das maquinas ¢ dos homens. Corpos e cérebros humanos adaptaveis 4 mecanizagao acelerada das maquinas de que Charles Chaplin nos deu uma espléndida caricatura em Tempos modernos. i Nio foi, entretanto, preciso esperar muito para que o jogo da civilizag4o transformasse os Jempos modernos num documento histérico. As conquistas notaveis da ciéncia e da técnica iriam CULTURA DAS MIDIAS 199 promover o advento de uma maquina totalmente nova, tao nova € complexa a ponto de ir se afastando cada vez mais da idéia de uma maquina, conforme sera discutido mais adiante. Trata-se do com- putador, dispositivo com habilidades que apresentam alguma simi- laridade com as habilidades do cérebro. Ao serem acoplados 4 produgao industrial, os computadores nos deram o primeiro exemplo verdadeiro de dispositivos capazes de controlar maquinas, transformando o cenario da produgao na medida em que permitiram o aparecimento de fabricas inteiramente automatizadas, nas quais os operarios sao substituidos por robés que eliminam com éxito crescente o trabalho humano na produgao e nos servigos (Schaff 1991:22). De fato, as fabricas modernas contam com ilhas de mAquinas computadorizadas que fabricam outras maquinas, Demac (1990:211) nos diz que, muito brevemen- te, essas ilhas estardo conectadas num arquipélago de agentes pro- dutores intercomunicantes. Antes do advento do computador, as maquinas nao passavam de robés acéfalos, puramente musculares. O computador veio lhes trazer um pouco de cérebro para seus mus- culos embrutecidos. Essa passagem, entretanto, do nivel muscular ao cerebral nao se deu diretamente, Foi mediada pelo advento de um outro tipo de maquina, operativa no nivel mais propriamente sens6rio, que iria introduzir uma outra ordem de questées. AS MAQUINAS SENSORIAS Ainda no contexto da Revolugao Industrial, distinta das ma- quinas substitutivas do esforgo muscular humano, uma outra espé- cie de maquinas comegou a aparecer. Trata-se das maquinas que funcionam como extensées dos sentidos humanos especializados, quer dizer, extens6es do olho ¢ do ouvido de que a camera fotogra- fica foi inaugural. O funcionamento de tais maquinas esta ligado de mancira tao visceral a especializagao dos sentidos ou aparelhamen- tos da visao e da escuta humanas que a denominagao de aparelhos lhes cabe muito mais ajustadamente do que a de maquinas. Enquanto as maquinas musculares so engenhosas, os apare- lhos ou maquinas sensOrias séo mAquinas construidas com o auxi- lio de pesquisas ¢ teorias cientificas sobre o funcionamento dos sentidos humanos, muito especialmente o olho. Sao, por isso mes- mo, maquinas dotadas de uma inteligéncia sensivel, na medida em que corporificam um certo nivel de conhecimento tedrico sobre 0 200 LUCIA SANTAELLA funcionamento do érgao que elas prolongam. Sao também maquinas: cognitivas tanto quanto so cognitivos os Orgdos sensorios. Se 08 sentidos humanos funcionam como janelas para o mundo, canais de passagem, meios de conexdo entre 0 mundo exterior e 0 nal ie se algumas fungées cerebrais ja comegam a ser executadas nos ni- | veis do olho e do ouvido, todos esses papéis também se incorpo aparelhos. : a Ehaenatt as maquinas musculares foram feitas para traba-_ thar, os aparelhos foram feitos para simular 0 funcionamento de um Orgao sensorio. S4o, de fato, conforme os caracteri ZOU. McLuhan i (1972), prolongamentos ou extensdes dos orgdos dos sentidos, six mulando seu funcionamento. Mas, ao simular esse funcionamento, 4 os aparelhos extensores se tornaram capazes de produzir € Tepro- duzir entidades inauditas que ices provocar modificag6es pro= a propria paisagem do mundo. : : aan as are tarefeiras imitam ¢ amplificam os po- » deres da musculatura humana, acelerando o ritmo do trabalho, os — aparelhos séo maquinas de registro, que ndo apenas fixam, num — suporte reprodutor, aquilo que os olhos véem ¢ os ouvidos escutam, mas também amplificam a capacidade humana de ouvir ¢ ver, Ins- taurando novos prismas e perspectivas que, sem os aparelhos, oO mundo nao teria. Enfim, enquanto as maquinas musculares produ- zem objetos, os aparelhos produzem ¢ reproduzem signos: imagens e€ sons. : Se, depois do advento das maquinas musculares, 0 mundo comegou a ser crescentemente povoado de objetos industrializé depois do advento dos aparelhos, ele comegou a ser crescentel povoado, hiperpovoado de signos. Ao funcionarem como prolo gamentos da visdo e audigdo, os aparelhos extensores dos senti¢ amplificam a capacidade humana de produzir signos, isto po! os aparelhos nao sao apenas extensbes do processamento sen eles sAo também maquinas de registro ¢ reprodugdo ou gravagac daquilo que os sentidos captam. Uma fotografia, por exemplo, uma imagem, uma visdo do real, Tegistrada num suporte, 0 ni vo, que, além de duradouro, funciona como uma matriz de copias. Nesse sentido, os outputs ou produtos signicos dos apare- lhos séo também formas de meméria extra-somatica da visao € ¢ pres ha divida de que os registros fixados pelos aparelho: CULTURA DAS MIDIAS 201 visuais € auditivos sAo signos roubados ao mundo, quer dizer, capturados da realidade para dentro de uma c4mera ou gravador ¢ devolvidos ao mundo como duplos, imagens ¢ ecos daquilo que existe. Os aparelhos sao, por isso, maquinas paradoxalmente usurpadoras e doadoras. De um lado, roubam pedagos da realida- de, de outro, mandam esses pedagos de volta, cuspindo-os para fora na forma de signos. Entretanto, além de duplicadores, og apa- relhos so também reprodutores, gravadores ad infinitum dos frag- mentos que registram. Além de replicantes sao, sobretudo, proliferantes, dotados de um alto poder para a proliferagao de sig- nos. Os aparelhos funcionam, assim, como verdadeiras usinas para a produgdo de signos. E por essas razées que, nao obstante as gran- des diferengas nos modos de registro, difusao, distribuigao e recep- ¢4o que separam a fotografia do cinema e que separam, mais ainda, ambos da videografia e esta da holografia, todos esses aparelhos so regidos por denominadores comuns, entre eles, principalmente: (1) 0 fato de serem verdadeiras usinas signicas e (2) o carater vicario dos signos que produzem, o cordao umbilical que liga esses signos indissolivel e servilmente a realidade. De fato, é tal a dependéncia que os signos produzidos pelos aparelhos tém do real que toda a reflexiio teérica ¢ critica sobre os aparelhos, com excegao daquela levada a efeito por McLuhan, des- locou-se quase por completo da relagéo dos aparelhos com o ser humano para uma fixa¢ao nas relagdes que os signos produzidos por esses aparelhos estabelecem com a realidade, centralizando-se em temas tais como fidelidade, infidelidade, imitagao, copia, simu- lacro, falseamento, verossimilhanga ete. Nao é pot acaso que os aparelhos ou maquinas sensérias nao suscitaram e continuam nao suscitando discussées sobre a robotizacdo das faculdades huma- nas. Tal discussao a nivel tedrico e exccugo a nivel pratico teria de esperar pelo advento do computador que, inicialmente, de modo timido, mas agora de maneira cada vez mais frontal tem nos desa- fiado com revolugdes inéditas que ndo param de crescer em pro- porg¢Ges e complexidade. AS MAQUINAS CEREBRAIS Se a Revolugdo Industrial tornou dominante, por todo 0 sécu- lo XIX, a metafora da maquina a vapor, a Revolucdo Eletrénica viria colocar em primeiro plano, na segunda metade do século XX, 202 LUCIA SANTAELLA a imagem do computador com todas as metaforas dele derivadas. Entre estas, a mais usual é a de que o cérebro ¢ um computador ¢ vice-versa. A raiz dessa metafora, segundo Marcus (1995), reside no fato de que nds, de fato, temos no nosso corpo a estrutura essen= cial de um computador, e isso desempenhou um papel decisivo na invengaio dos computadores. Do mesmo modo, a assimilagao dos seres vivos 4 imagem da maquina a vapor tambem esteve enraizada no fato de termos a esséncia de uma maquina a vapor na nossa estrutura viva. Assim, a invengado da — deve grandemente a A do nosso coragao como uma bomba. ome ele imitar a vida através de um artefato tem intrigado a humanidade desde tempos imemoriais (ver Cohen 1966). Assim, por exemplo, enquanto os mecanismos de um relogio, na idade pré-industrial, ainda se limitavam primariamente a imitagao do movimento, os aparelhos ou maquinas sensorias Ja passaram a imitar o funcionamento dos drgdos dos sentidos. Comegou aia in- vestigag4o de processos humanos internos, nem sempre observaveis, que iria culminar no aparecimento, em meados do século XX, de um modo muito abstrato de se compreender mecanismo, quer dizer, mecanismo entendido no sentido computacional, tal como foi en- gendrado por Alan Turing, naquilo que ficou conhecido como a maquina de Turing. Diferentemente de uma maquina meramente fisica, Turing inventou uma maquina teorica, cujos propésitos sao essencialmente teéricos. Trata-se de uma maquina que visava ilu- minar as nogées de calculabilidade em geral, permitindo reduzir todos os métodos de calculo a um conjunto subjacente, simples € basico de operagdes. No seu todo, essa maquina é composta por um certo numero de estados, sendo capaz de ler simbolos localiza- dos em quadrados numa fita infinita. Alguns quadrados podem es- tar vazios. As operagées basicas sao desempenhadas pela maquina em resposta a uma combinagao de: (1) 0 estado em que a maquina est ¢ (2) 0 simbolo que ela esta lendo, naquele momento, no qua- drado. A tabela para a maquina ¢ aquilo que lhe diz o que fazer numa dada situagdo, de uma maneira semelhante a um programa de um computador comum (Brown 1989:81-82). gett O que estava sendo incubado na maquina Turing nao era ape- nas mais uma tecnologia industrial, nem mesmo uma maquina para a replicagao senséria do mundo, mas uma ferramenta intelectu- al diretamente relevante para o desvelamento dos misterios da CULTURA DAS MIDIAS 203 inteligéncia. A diferenga entre um dispositivo, por mais extrema- mente complexo que seja, e um computador digital, visto como uma variante de uma maquina Turing, esta no fato de que o compu- tador ndo é simplesmente uma complicada rede de impulsos elétri- cos, nem apenas um dispositivo que caminha mediante estados dis- tintos como um autémato de estados finitos, mas é um dispositivo que processa simbolos. Com o computador digital deu-se por in- ventado um meio para a imitacdo e simulacao de processos mentais (Pylyshyn 1984:49-86, ver também Meunier 1991). Newell ¢ Simon (1981:64-65) nos fornecem uma descrigdo sintética dos passos evolutivos que, desde meados do século XX, 0 computador digital foi tomando rumo a realizagao cada vez mais plena da computacdo como transformacao regrada de expressdes formais vistas como cédigos simbélicos interpretados. A légica formal ja havia nos familiarizado tanto com os simbolos, tratados sintaticamente, como matéria-prima do pensamento, quanto com a idéia de se poder manipula-los de acordo com processos formais cuidadosamente definidos. A maquina Turing fez 0 processamento sintatico dos simbolos ser verdadeiramente maquinal, afirmando a universalidade potencial de sistemas simbolicos estritamente defi- nidos. O conceito de armazenamento de programas para computa- dores reafirmou a interpretabilidade de simbolos ja implicita na maquina Turing. O processamento de listagens trouxe a tona as capacidades denotativas dos simbolos, definindo 0 processamento de simbolos de uma maneira tal que permitia a independéncia da estrutura fixa da maquina fisica subjacente. Newell e Simon com- pletam esse panorama, afirmando que, por volta de 1956, todos esses conceitos ja estavam disponiveis, junto com 0 hardware para implementa-los. Os primeiros computadores, nos anos 40, pesavam toneladas, ocupavam andares inteiros de grandes prédios e exigiam, para se- rem programados, a conex4o de seus circuitos, por meio de cabos, em um painel inspirado nos padrées telef6nicos. Eram verdadeiros brutamontes, dinossauros mantidos em isolamento do mundo dos leigos. Nos anos 50, os cabos ainda existiam, mas j4 estavam reco- thidos para dentro da maquina, cobertos por uma nova pele de pro- gramas e dispositivos de leitura, Mas foi sé nos anos 70 que o uso das telas foi generalizado e, desde ento, tela e teclado tornaram-se partes tao integrantes do computador a ponto de confundirem-se 204 LUCIA SANTAELLA com ele. A grande revolugao, entretanto, s6 viria com 0 advento do computador pessoal, uma inova¢ao imprevisivel que transformaria a informatica num meio de massa para a criagdo, comunicagao € simulag4o. Hoje, um computador concreto, a prego relativamente acessivel e que qualquer pessoa pode possuir, é constituido por uma infinidade tal de dispositivos materiais, cada vez mais miniaturizados, e de camadas justapostas de programas que s¢ tor- nou impossivel estabelecer quaisquer fronteiras sobre onde comega e onde acaba um computador. Cada vez mais a comunicagdo com a maquina, a principio abstrata e desprovida de sentido para o usuario, foi substituida por processos de interagao intuitivos, metaforicos e sensério-motores em agenciamentos informaticos amaveis, imbricados ¢ integrados aos sistemas de sensibilidade e cogni¢do humana. Enfim, o proprio computador, no seu processo evolutivo, foi gradativamente humanizando-se, perdendo suas feigdes de maquina, ganhando no- vas camadas técnicas para as interfaces fluidas ¢ complementares com os sentidos ¢ o cérebro humano até o ponto de podermos hoje falar num processo de coevolugdo entre o homem ¢ os agenciamentos informaticos, capazes de criar um novo tipo de coletividade nao mais estritamente humana, mas hibrida, pos-humana, cujas fron- teiras esto em permanente redefinigao. E justamente esse novo ecossistema sensorio-cognitivo, que esta langando novas bases para se repensar a robdtica no mais como maquinas que trabalham para o homem, mas como a emergéncia de um novo tipo de humanidade. Na medida em que sistemas cibernéticos vao se integrando a sistemas psiquicos, na medida em que redes neurais artificiais vio se ligando a redes neurais biolégicas, é um conjunto cognitivo inau- dito que se configura, ¢ a dimens&o do cérebro e mente que se move na diregdo de uma cultura bioeletrénica. Segundo Roy Ascott (1995:5), no inicio do século XI, o ser humano ja tera se movido para além de uma sociedade informacional, para além das frontei- ras de um espaco eletrénico. O homem se reencontraré com a natu- reza, mas uma natureza radicalmente revista pela geracao de um ambiente holistico de mente ¢ materia, de sistemas auto-organizativos e materiais inteligentes, ambiente tio espiritual quanto material constitutivo de uma condig’o humana pés-bioldgica numa cultura de complexidade criativa. Enquanto as primeiras maquinas, engendradas no cerne da CULTURA DAS MIDIAS 205 industrializagao, as musculares, foram maquinas puramente imitativas ¢ grosseiramente fisicas, as segundas maquinas, as sen- sdrias, por serem menos rudes e mais sutis, ja comegaram a perder a natureza de maquinas para se converterem em aparelhos produ- tores de signos, extensores dos érgdos dos sentidos. Ja no terceiro nivel da relagdo entre homem e maquina, que chamo de nivel cere- bral, é a propria nogao de maquina que esta sendo definitivamente substituida por um agenciamento instavel ¢ complicado de circui- tos, Orgdos, aparelhos diversos, camadas de programas, interfaces, cada parte podendo, por sua vez, decompor-se em redes de interfaces. De fato, dentro deste novo universo, a palavra maquina deixou de ser a palavra de ordem, para ser substituida pelas conexdes mais fluidas das interfaces, através das quais os computadores vao crescentemente se potencializando para novas interagdes com seu meio ambiente fisico ¢ humano em sistemas inteligen- tes de gerenciamento de bancos de dados, médulos de compreen- sdo da linguagem natural, dispositivos de reconhecimento de for- mas ou sistemas especialistas de autodiagndstico ¢ interfaces de interfaces: telas, icones, botées, menus, dispositivos aptos a conectarem-se cada vez melhor aos. médulos cognitivos ¢ senso- riais humanos. (Lévy 1993:107) ___ Tudo isso, no entanto, s6 se tornou possivel gragas ao grande sintetizador que é o modelo digital, capaz de conectar, num mesmo tecido eletrénico, a imagem, o som ¢ a escritura, e, com isso, capaz de conectar, dentro de sua rede, o cinema, a radiotelevis4o, o jorna- lismo, a edigdo, as telecomunicagées e, certamente, a informatica. Por ser, em si mesma, um principio de interface, a codificagdo digi- tal, com seus bits de imagens, textos, sons, imbrica, nas suas tra- mas, nosso pensamento ¢ nossos sentidos. E o grande processador leve, movel, maleavel ¢ inquebrantavel. Se as maquinas musculares amplificam a forga e o movimen- to fisico humano e as mAquinas sensorias dilatam o poder dos sen- tidos, as maquinas cerebrais amplificam habilidades mentais, notadamente as processadoras ¢ as da memoria. Bancos de dados sdo hipermemérias ¢ 0 universo de circuitos ¢ interfaces da sintese digital é um universo, antes de tudo, transductor e processador de signos. Gragas 4 capacidade do computador para transformar em impulsos eletrénicos toda informag¢ao de dados, voz ¢ video, nesse

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