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Introdução

Este material visa elencar alguns critérios mínimos para que uma discussão avance da
dimensão da erística, que é o duelo de opiniões em que os interlocutores buscam apenas
“ganhar” uns dos outros, para uma dimensão mais construtiva, em que a tese e a antítese, isto
é, o argumento e o contra-argumento, detenham fundamentos mais sólidos, que vão além da
subjetividade, ou seja, que tenham bases científicas.

O elemento qualitativo aqui em questão, isto é, o caráter científico dos dados, não é uma
exclusividade das ciências aplicadas, mas refere-se ao método de obtenção das informações. O
que garante a cientificidade de um dado, isto é, o que torna uma informação um fato verídico
(ainda que temporariamente), não é a legitimidade daquele que fala, mas o método pelo qual a
informação foi constituída. O método científico é como um conjunto de regras para garantir que
uma pesquisa seja bem conduzida e os resultados sejam os mais precisos possíveis. Uma
característica do método científico é o universalismo da forma e do conteúdo, por exemplo, um
pesquisador brasileiro pode apresentar sua pesquisa e seus resultados em variados países que
mesmo assim será compreensível e aceito por eles, já que teve rigor científico.

Compreende-se que em uma discussão corriqueira esse tipo de rigor é relativamente


inviável, afinal, ninguém anda com estatísticas no bolso, nem com uma lista bibliográfica;
todavia, é possível elencar um conjunto mínimo de critérios que já garantem um bom
andamento da discussão, para que ela possa seguir um caminho construtivo. Para se entender a
importância disso, tome-se como exemplo uma reunião de pessoas para discutir sobre a
construção de uma casa, em que cada um entrará com um material. Enquanto alguns entram
com cimento, água, areia e pedra, outros entram com galhos, folhas secas e estopa; essa casa
seria bem consolidada se se aceitassem todos os itens na sua composição? É evidente que não,
e é justamente isto que se quer mostrar aqui. Se um argumento tem fundamentos questionáveis,
não científicos, subjetivistas, parciais, aleatórios, não é possível obter uma informação
fidedigna.

E o direito de opinião, como fica? Como se disse até aqui, esse texto visa qualificar os
debates; se a opinião em questão tiver fundamentos válidos, baseada em fontes honestas,
científicas, com credibilidade, não há qualquer problema com essa opinião. Mas geralmente o
conceito de opinião está descolado do paradigma científico, ficando vinculado à
individualidade, à subjetividade e conveniência. Porém, para cumprir com o objetivo deste
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texto, para que se qualifiquem as discussões, pretende-se mostrar que se deve buscar o máximo
possível da precisão científica, mobilizando informações de fonte honesta, acadêmica, oriundas
de um rigor científico. Isso significa que nem toda opinião deve ser aceita? Se se pretende uma
discussão objetiva, produtiva, construtiva, sem vieses e conveniências, sim, nem toda opinião
deve ser aceita; ela pode até ser apresentada e debatida, mas uma vez demonstrada sua
inviabilidade para a produção de conhecimento legítimo, ela deve ser descartada
imediatamente. A imagem abaixo (imagem I) ilustra um pouco o que se quer dizer aqui.

A: região que expressa a melhor maneira de pensar, de


conduzir uma discussão ou análise sobre qualquer
objeto. É o rigor metodológico na consolidação das
informações utilizadas nesta região que garante sua
cientificidade, sua veracidade. É a região que deve ser
buscada.
E: extremo oposto da região A. Aqui as informações
são consolidadas a partir de fontes não confiáveis, de
pesquisas sem metodologia e rigor científico. São as
opiniões subjetivas, largamente relacionada aos afetos
individuais, à valores particulares e a conveniências. É
a região da qual deve-se afastar.
Imagem I

Colocadas as apresentações iniciais, o texto segue apontando os critérios mínimos para


tornar as discussões mais construtivas, sem que seja necessária a apresentação de estatísticas,
referências bibliográficas ou quaisquer autoridades legitimadoras, uma vez que esses critérios
já estão suficientemente consolidados.

Este texto é resultado da leitura e análise de inúmeros textos aceitos pela literatura
acadêmica das Ciências Humanas. Todavia, longe de ser um trabalho acabado e definitivo, ele
apenas traz algumas questões relevantes, deixando em aberto que se faça discussões,
produtivas, sobre seu conteúdo e sua forma.
3

A dimensão coletiva dos temas em discussão

Os objetos de discussão aqui sugeridos não são temas banais, como a questão de se
Nescau é melhor do que Toddy, ou se feijão é por cima ou por baixo do arroz. Os objetos aqui
são temas geralmente complexos, tomados como controversos e polêmicos, em que as
deliberações sobre eles necessariamente têm implicações coletivas significativas, podendo ter
expressão política, tornar-se ou alterar uma lei. Por isso é imprescindível que as discussões se
utilizem de argumentos de maior qualidade.

É preciso lembrar que nenhum objeto de discussão, assim como seus desdobramentos,
deve estar descolado da realidade da qual emerge e na qual existe. Por exemplo, se se vai
discutir sobre a questão da redução da maioridade penal, é preciso ter em mente uma variedade
de dados: origem da criminalidade, condição do sistema educacional, desigualdade social,
pressões de estereótipos de gênero, classe e etnia, efeitos práticos de curto e longo prazo,
orçamento disponível para aplicabilidade e manutenção, interesses envolvidos, etc. Essa é uma
questão importante para que a discussão não seja conduzida por conveniências subjetivas, mas
que seja conduzida de forma objetiva.

Religião

Desde Maquiavel se fala da separação entre Estado e Religião; isto significa que esta
não deve interferir nas deliberações e ações daquele. A laicidade do Estado implica na liberdade
dos particulares para praticar quaisquer formas religiosas, mas isso não significa que elas,
quaisquer que sejam, devam participar da prática política. Um Estado orientado por princípios
religiosos é uma autocracia religiosa, uma teocracia, ou seja, uma manifestação histórica do
Período das Trevas da existência humana, em que o Estado fora orientado pelo dogmatismo
mais obscurantista já criado pelo ser humano. A despeito disto, a explicação que se segue para
evitar a religião, enquanto elemento fundador de argumentos, é bem mais pragmática.

Muitas pessoas fundamentam suas formas de pensar, agir, falar e decidir em suas
religiões. Mas estas variam histórica e culturalmente, promovendo entendimentos de
sociedades com leis e normas variadas, de acordo com cada religião dominante em cada época
e lugar. Esse caráter variado das expressões religiosas contrasta com o universalismo que
caracteriza a Ciência. Em função disso, não passam de uma expressão da subjetividade,
portanto, não servem de fundamento para quaisquer argumentos que se pretendam válidos. Uma
4

observação deve ser feita aqui, e com muito cuidado: o fato de que Religião exista em pontos e
tempos distintos não sugere que ela tenha um caráter universalista como se pede aqui. Religião
é um fato social1, é comum à humanidade em função das características que lhes são próprias,
como a de projetar a consciência coletiva2. E a característica dela enquanto fato social é a de
ser múltipla e vária, descumprindo, portanto, as exigências do caráter universalista solicitado.

Os indivíduos podem cultuar as divindades que quiserem, podem seguir os dogmas que
lhes apetecerem, desde que, na deliberação de um tema com implicações coletivas, esses
elementos sejam silenciados, e operem somente argumentos com outro tipo de embasamento.
É preciso argumentar além da barreira das religiões, utilizando conceitos universalistas.

Observe-se a estrutura do argumento: a multiplicidade e variedade religiosa é o que


impede que se tenha homogeneidade na análise, deliberação e resolução de um tema. Por isso
um argumento não pode se basear em critérios religiosos.

Natureza Humana

Não é incomum que se recorra à retórica “é da natureza humana” para justificar algum
ponto de vista; todavia, esse conceito muitas vezes já está vinculado ao anterior, de modo que
a religião se torna parâmetro para natureza humana. Uma vez que já se estabeleceu que Religião
não fundamenta conceitos, não é possível, portanto, aceitar essa relação. Ou seja, a espécie
humana não é “assim ou assado” porque assim dizem os livros religiosos.

Também não é incomum recorrer à natureza humana para justificar os comportamentos


do homem e da mulher. Todavia, já é suficientemente sabido que, primeiro, macho e fêmea
(arquétipos de referência para o comportamento do homem e da mulher) são designações
relacionadas aos aparatos fisiológico-reprodutores dos animais (inclusive da espécie humana),
e que homem e mulher são constructos sociais, isto é, são definições culturalmente
consolidadas, sem qualquer relação necessária com os aparatos fisiológico-reprodutores. Tanto
que, um casal de homem e mulher trans pode ter filhos e cumprir tranquilamente com aquilo
que o aparato fisiológico-reprodutor, a natureza humana, possibilita. E os estereótipos de
homem e mulher variam histórica e geograficamente, de modo que comportamentos,

1
Fato social refere aos hábitos e maneiras de agir e de pensar que determinam a forma como os indivíduos se
comportam em uma sociedade. Segundo Durkheim, os fatos sociais estão expressos em regras, valores e normas
sociais e obrigam os indivíduos a agirem de acordo com os padrões culturais.
2
Consciência coletiva é toda objetivação simbólica e material - expressa nos fatos sociais - daquilo que as
sociedades, consciente, mas principalmente, inconscientemente, “elegeram” como paradigmas e referências.
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vestimentas, valores, trejeitos, etc., variam consideravelmente, não havendo qualquer traço
inato. Ou seja, não é a dimensão natural, exclusivamente, que condiciona e caracteriza a espécie
humana.

Outro mito já superado é a do homo economicus: este afirma que é da natureza humana
a predisposição pela competição, pelo individualismo e egoísmo. Uma análise de organizações
sociais antigas, do período pré-modernidade, mostra organizações diferenciadas, não
fundamentadas na ideia de lucro, de caráter comunitário que presavam pela redistribuição do
produto das atividades de caça, coleta e criação (a proporção aqui não está em discussão),
organizadas segundo a lógica da reciprocidade, do “dar, receber e retribuir”. A própria
percepção de individualidade, de um ser portador de valores particulares, é um produto da
modernidade, portanto, não é uma condição inata da espécie humana, mas um comportamento
típico da estrutura social moderna.

Não raro, parte-se da atribuição de algum valor inato (bondade e maldade3) ao ser
humano: desde o “homem é o lobo do homem”4 ao “o homem é bom por natureza, é a sociedade
que o corrompe”5. Independente do mérito de cada teoria, o fato é que ambas partem de
elucubrações sobre um “estado de natureza” que não são mais que isso, elucubrações,
especulações. Ao observar-se a espécie humana e seu potencial para dar origem à Madre Teresa
de Calcutá, a Mahatma Gandhi, a Jesus Cristo, e ao mesmo tempo a Hitler e Mussolini, vértices
opostos, evidencia-se uma característica da natureza humana: a do potencial de ser. Isto
significa que o ser humano não é um ou o outro, mas é os dois em estado de latência; qual se
manifestará mais, ou menos, depende do contexto, das condições materiais e simbólicas, das
experiências e dos gatilhos acionados na psique individual. É sempre bom lembrar que o ser
humano é um animal espicaçado (do nascimento à morte) por pulsões, e pulsões não possuem
valores intrínsecos; soma-se a isso que a Moral, mediadora do que se pode ou não fazer em
sociedade (e a fonte caracterizadora do que é bom e mau), é uma categoria apreendida ao longo
da vida, e não instantaneamente ao nascer. Bondade e maldade, enquanto valores absolutos e
enquanto condição inata, não podem se aplicar a uma espécie que abarca em si o potencial de
praticar as duas coisas.

3
Não entrarei no mérito da discussão filosófica sobre bondade e maldade, mas é importante salientar que cabe tal
discussão: o que significa ser bom ou mau? Quais práticas e por que elas se caracterizam como tais? Etc.
4
Frase conhecida de Thomas Hobbes.
5
Frase conhecida de Jean Jacques Rousseau.
6

Resumindo, a natureza humana não se define pela religião, pela economia, pelo que a
fisiologia impõe ou por valores inatos, mas pelo seu caráter elementar: o de tratar-se de um ser
social (quer dizer que é pela dimensão cultural que a sociabilidade humana progride, e não pela
dimensão da sua natureza fisiológico-reprodutora). Então, é preciso ficar atento para qualquer
discussão que parta desse tipo de retórica; é preciso perguntar ao interlocutor o que ele entende
por natureza humana e confrontá-lo caso se parta de alguma dessas narrativas.

Individualismo e Meritocracia

É padrão que os erros conceituais estejam entrelaçados. Baseada no mal-entendido sobre


o conceito de natureza humana, há uma narrativa que tenta fazer do interesse individual o motor
do processo civilizatório. Como já se disse acima, essa predisposição individualista não é
condição inata da espécie humana, mas é uma conduta incutida, culturalmente no processo de
transformação da comunidade em sociedade. Ou seja, essa narrativa não se sustenta nem pode
servir de fundamento para demais discussões.

Outro erro padrão do individualismo é a crença no apriorismo do pensamento próprio.


A ideia da existência de um indivíduo dotado de pensamentos próprios, inatos, não-ideológicos,
é uma mentira. A existência humana, desde os primórdios, desde o processo de hominização-
humanização, sempre foi uma coletividade. Não há sociedades de um homem só nem há
registros que corroborem a existência de indivíduos isolados (com pensamentos próprios) que,
posteriormente, tenham decidido se juntar. A espécie humana é um ser coletivo por natureza
(aqui temos uma noção de natureza humana correta); não há pensamento que tenha se
constituído descolado de uma realidade material. O conjunto de informações que constituem o
pensamento de cada um é produto das experiências materiais e intelectuais; ele é um
pensamento próprio no sentido de ser uma singularização existencial, mas não como condição
inata. Geralmente, quem tenta refutar essa ideia não consegue explicar as origens do
pensamento inato sem recorrer a uma entidade divina, uma existência supranatural ou a um
conceito de natureza humana equivocado, logo, não consegue encontrar bases sólidas para sua
refutação, de modo que não se pode aceitá-la.

Há também a narrativa que apresenta o indivíduo como protagonista da sua própria


história, afirmando que os resultados de suas ações (sucessos e fracassos) são exclusivamente
mérito próprio. Pela dimensão da natureza humana, essa narrativa tem duas vertentes: a que
considera alguns naturalmente melhores do que os outros, o que não encontra respaldo
7

científico6, e outra que afirma que todos são iguais, e só não tem sucesso quem não se esforça.
Embora a segunda vertente tenha o mérito de considerar todos iguais, o que são em potencial
(enquanto espécie), ela erra ao considerar a objetivação dessas potencialidades uma mera
questão de vontade. Há uma distinção entre, por um lado, ter o potencial para alguma coisa, e
por outro, que se passe por experiências que façam desabrochar essas potencialidades em
concretudes. Faça-se a seguinte analogia: Imagine sementes de plantas, todas com potencial
para crescer e florescer; agora considere que algumas são plantadas em solo fértil e regadas
com frequência, outras regadas esporadicamente, e outras são plantadas em solo ruim, algumas
regadas e outras não; pode-se dizer que vicejarão da mesma forma? É claro que não; a variedade
de solos e regas são analogias para a multiplicidade de experiências pela qual passa cada
indivíduo7.

Em resumo, a sociedade não é formada por seres que detêm uma forma apriorística e
particular de ser e pensar, mas ao contrário, as particularidades se dão a partir de suas
experiências. Além disso, não há nenhuma predisposição inata ao individualismo ou egoísmo,
e por fim, os sucessos e fracassos não são resultados exclusivos da ação individual, as
capacidades de deliberação e enfrentamento das adversidades estão condicionadas pelas
experiências vividas.

Propriedade Privada

Em muitas discussões o conceito de propriedade privada aparece de forma inconteste,


como se fosse um direito natural. Cabe salientar que isso também é uma inverdade. Discussões
sobre os direitos naturais são uma obra do jusnaturalismo8, mas suas elucubrações sobre o
direito à propriedade privada não se sustentam diante de análises de sociedades pré-modernas,
em que a organização social, política e econômica se fundamentava na reciprocidade.

6
Pelo menos enquanto condição inata isso é uma falácia, mas distinções neuro motoras, sensitivas e intelectivas
estão relacionadas ao meio que circunscreveu o surgimento e desenvolvimento deste indivíduo, desde sua gestação.
Por exemplo, uma criança gestada em uma pessoa que se alimenta bem, não tem vícios e tem um cenário de
estabilidade psicológica e social difere de uma criança gestada em uma pessoa com dependência química e
alcóolica ou que habite um cenário de constante violência física ou psicológica. Todavia, como se pode ver, essas
variações não são inatas, mas são resultado de um cenário material e simbólico previamente dado.
7
O exemplo das sementes pode ser adequado considerando que as sementes oriundas dessa variedade já plantada
e sujeita a múltiplos e variados fatores, também será de qualidade variada, não significando que isso seja inato
delas, mas sim, resultado da semeadura.
8
Em que os mais eminentes são John Locke, Thomas Hobbes e Jean Jacques Rousseau.
8

A lógica da propriedade privada como direito natural surge dentro da transformação


paradigmática no processo de derrocada do feudalismo e emergência do capitalismo, e com o
Iluminismo, qual permeou todo o pensamento liberal. Portanto, é uma ideia coetânea às
transformações materiais e simbólicas do processo supracitado.

Não se está discutindo, no momento, os méritos ou deméritos da propriedade privada,


mas somente a percepção da sua existência enquanto direito natural inconteste, isto sim,
questionável de imediato.

Moralismo

É comum que as discussões se deem baseadas nos valores que os interlocutores prezam;
todavia, esse tipo de discussão opera meramente na esfera do ideal e do subjetivo, uma vez que
estão descoladas da materialidade do tema e das possibilidades resolutivas, e uma vez que
representam afeições particulares dos interlocutores, suas idiossincrasias, sem que se considere
o interesse e o impacto coletivo.

Em muitos casos esses valores estão delimitados justamente pela religião ou por algum
mal-entendido sobre o conceito de natureza humana. Como já se observou acima, nenhum
destes termos pode ser critério válido no debate construtivo. E ainda que o caso não seja este,
os valores individuais não devem suplantar análises objetivas sobre o tema. Por exemplo, a
discussão sobre a “saidinha no dia das mães” no caso Richthofen. Se se fizer a análise
exclusivamente pela dimensão moralista, uma pessoa que teria tramado a morte dos pais não
deveria ter o direito de fruir desse benefício. Mas a análise deve se distanciar do caso específico;
é preciso analisar o objetivo do benefício, os critérios, a evolução da envolvida, a função da
penalidade, as circunstâncias do crime, fatores sociais e psicológicos, etc. Tudo isso porque o
benefício não é direcionado para alguém especificamente.

Ainda há a questão da distinção entre moral e moralismo. Moralismo é uma exacerbação


inexplicada, salvo pela conveniência e pelos afetos, de certos valores; além das vezes em que a
conduta contrasta com o discurso, por exemplo, pessoas que condenam o furto para satisfazer
a fome, mas estão tranquilas com a sonegação de impostos. Por essas e outras que as discussões,
para serem de maior qualidade, devem ser realizadas sem se recorrer à retorica moralista.
9

Cultura

Paradoxalmente, em discussões pouco construtivas, ocorre que há um mal-entendido


sobre o conceito de cultura na argumentação dos interlocutores, tomando a cultura como algo
inato não no sentido de fenômeno natural da espécie humana, mas no sentido de especificidade
da própria manifestação cultural de cada povo, região ou lugar como inalteráveis ou sui
generis9. Inúmeras análises sobre esse conceito mostram justamente o contrário; primeiro,
mostram sua variabilidade conforme os contatos entre povos distintos; segundo, mostram sua
variabilidade ao longo do tempo em função das transformações materiais; terceiro, não são
fechadas, completas ou atemporais.

Cultura é, portanto, um constructo social que se transforma em função da


complexificação das relações sociais e culturais, varia ao longo da história, logo, não é algo
imutável nem inconteste. Aliás, cultura é um conceito complicado, muitos antropólogos
debatem este tema, o que demonstra sua complexidade e delicadeza no tocante a sua
mobilização como retórica descuidada.

É comum os discursos “é da cultura do brasileiro” ser preguiçoso, ou ser espertalhão,


ter o típico “jeitinho brasileiro” de resolver as coisas. Esse tipo de narrativa naturaliza condutas
culturais e não explica as origens das mesmas. Há a cultura do machismo, por exemplo; usar
dessa constatação como uma justificativa para os assédios é um erro. Utiliza-se dessa noção
para explicar o fenômeno e entender onde agir para resolver o problema.

Explicar ou justificar

Não é incomum que em discussões pouco construtivas, os interlocutores confundam,


propositalmente ou não, a explicação com a justificativa. Explicar um fenômeno social, como
a criminalidade, por exemplo, não tem por intenção “aliviar a barra” de algum criminoso em
específico ou mesmo em geral. Mas tem o objetivo de realizar uma análise estrutural do
problema, para que se descubra a origem dele. Também tem intenção de que os envolvidos
sejam julgados na proporção mais justa da sua responsabilidade, uma vez que, muitas vezes,
são compelidos aos delitos; isso não é uma justificativa para os crimes, mas uma explicação

9
Cultura é uma condição inata da humanidade enquanto fato social, ou seja, é pelas características próprias do ser
humano que ele produz cultura, todavia, ela não é inata no sentido de cultura pronta, acabada e cimentada. A
cultura de cada povo é uma manifestação simbólica que envolve inúmeros fatores: geográficos, organizacionais,
de ordem produtiva, etc., portanto, dependem também dessas condições sócio-históricas.
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que busca uma resolução para a produção da criminalidade e não foca apenas na punição dos
criminosos.

Pode-se observar uma relação íntima entre a justificativa a subjetividade e o


dogmatismo, e entre a explicação, a objetividade e a ciência, isto se a explicação se basear em
dados fidedignos, com rigor científico e metodologias adequadas.

Naturalização do contingencial

De tudo que se apresentou até aqui, percebe-se que a questão problemática é a


naturalização do que é contingencial. Isto é, inúmeros fenômenos sociais, contingencias por
essência, isto é, obra de um conjunto de encontros aleatórios, aparecem posteriormente como
naturais, como se sempre tivessem existido ou como se sempre tivesse sido assim.

É comum no dia-a-dia que não se preste atenção nos conceitos utilizados, e é justamente
sobre isso que trata este texto. Qualificar os debates perpassa pela observação dos conceitos
utilizados na discussão, e a naturalização daquilo que é contingencial é bastante recorrente na
retórica geral, eis a importância de chamar atenção para isso.

A concretude de um fenômeno ou objeto depende da observação do número de relações


subjacentes a eles; em termos marxistas, ela depende do número de determinações que levam
o fenômeno a termo. Qualquer discussão, que tome os objetos discutidos a partir da sua
imediaticidade, está comprometida; quanto mais se conhece o objeto e as determinações que
fazem parte dele, mais concretude ele apresenta, e tanto mais adequada é a análise do mesmo.

Conclusão

Como se pretendera no começo, formulou-se um pequeno texto com intenção


pedagógica e até mesmo provocativa. É imprescindível qualificar os diálogos diante dos
constantes ataques ao conhecimento lógico, racional e metodológico. O obscurantismo é um
método que deve ser constrangido a todo instante, para que desapareça, que fique recluso nos
obscuros salões daqueles que fazem, deliberadamente, da ignorância o seu totem.

Apontou-se, com o mínimo de argumentação lógica, as causas do porquê não se pode


partir de certos termos para sustentar argumentos válidos, como a questão da multiplicidade e
variedade das religiões, como a questão do mal-entendido sobre o conceito de natureza humana,
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ou ainda pela retórica do individualismo, da meritocracia e do moralismo; apontou-se também


a questão da naturalização do contingencial, inclusive no tocante ao conceito de propriedade
privada. Por fim, falou-se também da mobilização de conceitos mal-entendidos de cultura e na
confusão entre explicação e justificativa.

O presente texto espera ter sido claro na argumentação, evidenciando os pontos de modo
a validá-la por si só. Esclarece-se que não se trata da opinião do autor, mas da apresentação de
argumentos consolidados nas ciências humanas. Evidentemente que o processo de diagnose
social perpassa por evoluções metodológicas que podem estar além do escopo de conhecimento
do autor, de modo que, refutações são bem vindas, desde que se apresentem com a devida
clareza, lógica, e que sejam consolidadas por metodologias válidas nas ciências.

Enfim, não se poderia esgotar em poucas páginas, e sem tornar o texto demasiado
cansativo, outros cuidados neste processo de qualificação do debate. Mas, tomando-se alguns
desses cuidados, já há alguma melhora no nível dos debates.
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Referências Bibliográficas

Os títulos que seguem colaboraram, parcial ou integralmente, na elaboração deste texto, todavia
não esgotam as fontes que, possivelmente, não venham a ser mencionadas.

BOAS, Franz. Raça, Língua e Cultura. In: A Mente do Ser Humano Primitivo, pp. 104-112.

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CASTRO, Celso. Franz Boas e o Novo Método da Antropologia. In: Textos Básicos de
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POLANYI, Karl. A Grande Transformação.

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