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A Desbalização Do Mal
A Desbalização Do Mal
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Felipe Catalani∗
Resumo: Trata-se, nesse texto, de testar a hipótese de uma “desbanalização do mal” que
ocorre com a ascensão contemporânea de novas tendências fascistas. Buscamos levar em
conta uma nova crueldade, germinada a partir da experiência de sofrimento social em um
mundo do trabalho já “eichmannizado” (seguindo o argumento do sociólogo Christophe
Dejours), que ganha na “nova direita” (também chamada de “populista”) um encaminha-
mento político.
Palavras-chave: Violência. Novo Radicalismo de Direita. Crise Social.
Abstract: This text is about testing the hypothesis of a "debanalization of evil" that occurs
with the contemporary rise of new fascist tendencies. We seek to take into account a new
cruelty, that has its social ground in the experience of social suffering with the transforma-
tion of labor in the last decades.
Keywords: Violence. New Right-Wing Radicalism. Social Crisis.
∗ Mestre e doutorando em filosofia na Universidade de São Paulo, USP. E-mail: felipecatalani@gmail.com. ORCID:
https://orcid.org/0000-0001-5133-3145.
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bora muitos possam não ter sa- se referir até mesmo à anticompassiva
bido dos detalhes terríveis), e doutrina moral de Kant, declamando
a não se tornarem cúmplices de cor o imperativo categórico. Ten-
de todos esses crimes tirando tando interpretar a constituição mo-
proveito deles. Mas Deus sabe ral e psicológica desse sujeito, Arendt
como eles tinham aprendido a compreendeu que aquele homem não
resistir à tentação (ARENDT, era um monstro, mas tampouco era
1999, p. 167). ele um mero robô, apesar de sua infi-
nita disposição para a obediência e de
sua incapacidade de imaginação. Ele
Os nazistas alemães (e Eichmann de era, em suma, um conformista exem-
forma exemplar) não eram, portanto, plar, e sua atitude possuía um nexo
simplesmente “monstros” que libera- não totalmente contingente com uma
ram a selvageria que existiria poten- série de aspectos sociais objetivos do
cialmente em todo ser humano, rom- mundo contemporâneo. O aterroriza-
pendo tudo que haveria de construção dor do diagnóstico de Arendt a respeito
humana (os mandamentos que proíbem daquele repetidor de clichês é que, pre-
o “mal”, aquilo que constituiria paz cisamente, não fora nenhuma extraor-
entre as pessoas etc.) para ceder às dinária dose de maldade que tornou
tentações demoníacas, às forças incon- possível algo como o mal total, efeti-
troláveis (“inclinações naturais”, diria vado no mundo terreno, mas tratava-se
Kant...) que agem à revelia da von- de algo cujo caráter ordinário e inex-
tade humana. A “tentação”, como diz cepcional persistia no mundo após os
Arendt, não era aquilo que impulsio- campos de extermínio. Parte significa-
nava o nazista a “pecar”, a agir imo- tiva da obra de Günther Anders fora de-
ralmente, a assassinar e colaborar com dicada também a isso que poderíamos
o extermínio em massa. Naquele con- chamar de uma “transformação estru-
texto, o que constituía a tentação era tural do conformismo”, investigando a
justamente o contrário. Portanto, era continuidade daquilo que havia possi-
resistindo às tentações que se executava bilitado, tanto objetiva, quanto subjeti-
o trabalho de carrasco, pois justamente vamente, eventos como Auschwitz e Hi-
tornado “trabalho”, tal tarefa era um roshima, em um mundo de guerras sem
trabalho como qualquer outro. “Em ódio: em um estado de coisas em que o
nome do trabalho, sempre se poderá va- ódio (e mesmo a frieza, que ainda é um
lorizar uma desgraça. Este o segredo de afeto frente à indiferença) seria consi-
toda ‘colaboração’” (ARANTES, 2014, derado um traço de humanidade.
p. 110). No âmbito da teoria social contempo-
Lembremos como, para o espanto rânea, Christophe Dejours foi um dos
da plateia do tribunal, Eichmann sabia
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ela não é mais alguém a ser socorrido. e do próprio Estado: uma atitude po-
Mas ela não é somente alguém que sabe lítica irmanada à lógica econômica da
“socorrer-se”, alguém que se vira, pois gangsterização, da rapina em meio a
isso já estava dado no mundo do tra- um salve-se quem puder. Se é verdade
balho da viração. Ao mesmo tempo, que “o fascismo fixa os resultados soci-
como uma espécie de lado B da polí- ais do colapso capitalista” (HORKHEI-
tica dos sem socorro, tal vítima pode MER, 1998), como dizia Horkheimer,
se tornar (também indiretamente, pela não é difícil imaginar que esses resul-
via da indiferença) um carrasco. Um car- tados sociais se aproximem de um es-
rasco “sem papas na língua” e sem mai- tado de anomia, de intensificada ato-
ores rodeios morais, que não apelará, mização social e recrudescimento dos
como Eichmann, ao imperativo categó- indivíduos. Refletindo sobre o colabo-
rico kantiano. racionismo na França ocupada, Sartre
Essa fúria de carrasco impiedosa pos- chegava a conclusões semelhantes: “Na
sui uma relação com o fato de que a verdade, a colaboração é um fato da de-
direita, curiosamente, reabilitou o ele- sintegração, em todos os casos ela foi
mento “agonístico” da política, isto é, uma decisão individual, não uma posi-
seu caráter de enfrentamento (segundo a ção de classe. (...) É nisso que ela se
célebre tese de Carl Schmitt, essa é a es- aproxima da criminalidade e do suicí-
sência mesma do político). Nesse con- dio, que são também fenômenos de de-
texto, podemos extrapolar um pouco e sassimilação” (SARTRE, 1949, p. 46).
arriscar dizer que a política imiscuída Igualmente Marx, pensando a contrar-
no trabalho sujo foi retirada da sua revolução em O 18 Brumário de Luís Bo-
forma neutra do “trabalho” e recolo- naparte, analisava que a sociedade fran-
cada no campo da “ação” (ou segue seu cesa havia se tornado um saco de bata-
rumo no campo dos negócios, em re- tas, e os indivíduos, sem nenhuma re-
gra ilícitos, como aquele mesmo “traba- lação recíproca, eram batatas pressio-
lho” em sua versão clandestina). Aqui nadas umas contra as outras. Também
ecoa a velha relação entre fascismo e em outro contexto, ainda durante a Se-
banditismo. Nesse aspecto, é exemplar gunda Guerra Mundial, escrevia tam-
uma figura como Sara Winter, que in- bém Adorno que “o cimento que unia
tercala militância belicosa e puro desejo os homens foi substituído pela pres-
por dinheiro, lógica política de parti- são que os mantém juntos” (ADORNO,
san disposta a sujar as mãos na guerra e 1993, p. 34). Algo semelhante ocorre
mesquinharia voltada a vantagens pes- por aqui. Olhar para o Brasil contem-
soais. Ela não é um mero “caso pato- porâneo é suficiente para entender que
lógico”, pois exprime-se nela algo que a tese de Thatcher se realizou como um
permeia setores amplos da sociedade mandamento: “que se desfaça a socie-
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como um mero side effect do desenvol- nista, apocalíptico, mas era uma ló-
vimento, para realizar uma grande obra gica projetiva, própria de seu impulso
estatal, por exemplo; como um dever modernizador): a promessa de Hitler
que se lamenta com o coração partido, era a de que o Terceiro Reich duraria
mas que se crê necessário (pois há um mil anos. Isso é impensável no caso
futuro simulado, uma noção de política de Bolsonaro – ele se reconcilia com o
enquanto projeto). Destrói-se, mata- curso das coisas na medida em que re-
se com certo gosto pela gratuidade do produz a lógica social do colapso. É
ato, dada sua efemeridade e a ausên- como se os governantes tivessem re-
cia de futuro. A violência aparece me- conhecido que a sociedade se tornou,
nos como algo funcionalizado e profis- de fato, ingovernável. O Estado bra-
sionalizado, sob a lógica administrativa sileiro sob o governo Bolsonaro não é
(como em Eichmann ou na SS), e mais nenhum grande Leviatã ultrapoderoso
sob a forma de um banditismo selva- e autoritário, mas sim uma enorme ba-
gem da SA (que representa justamente gunça. Nesse sentido, o bolsonarismo
o período de ascensão do nazi-fascismo, é uma adesão à catástrofe, articulando
de suspensão dos tabus e da “revolta na uma lógica sobrevivencialista e a libe-
ordem” propriamente dita, e não o da ração de impulsos suicidas. A banali-
ordem funcionalizada). Não ocorrerá zação do mal segue um “princípio es-
no Brasil algo como Auschwitz, no sen- tratégico”; Bolsonaro não. Pois justa-
tido de um extermínio altamente raci- mente a lógica projetiva que dá sentido
onalizado, tecnicizado e eficiente, mas à “estratégia” (à administração) perdeu
um deixar matar e deixar morrer. E esse chão. Mas não houve, propriamente,
“deixar morrer” vai desde medidas me- uma ruptura. A máquina de moer gente
nores, como a suspensão da obrigatori- permanece inalterada; o que muda é
edade de cadeirinhas para crianças em o encaminhamento da energia política
carros, até o ato de deixar um vírus fa- produzida pelo sofrimento gerado no
zer seu trabalho. Algo que ocorre como interior dessa máquina.
se fosse um dado da natureza, agência Frente a esse novo “mal”, como fica
do destino, com a expectativa escatoló- então a relação do outro campo político
gica de uma crise purificadora. com toda essa sujeira? Nesse contexto
A diferença entre o que vivemos surgem também panaceias em torno do
agora e o nazismo “tradicional” não é “bem”, que ressoa em afirmações como
somente ornamental (apesar das ence- a de Fernando Haddad, quando ele diz:
nações de um Roberto Alvim), mas diz “eu sou um agente da civilização con-
respeito a seu núcleo histórico. O fas- tra a barbárie” (BEDINELLI, JIMÉNEZ,
cismo europeu vivia um tempo “ascen- 2015). Ou então, como avesso desse
sional”, ele tinha um projeto (extermi- novo “brutalismo” (como o tem cha-
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Louise Michel. No site que descreve o tares dos e das ativistas, com sua dieta
projeto e que possibilita os visitantes de “cruelty free”. Mas há aí uma verdade
apoiá-lo financeiramente, há um breve que diz respeito a um fenômeno mais
parágrafo de apresentação, onde faz-se geral, sobretudo quando declaram: “We
questão, no entanto, de informar que answer the SOS call of all those in distress,
toda a tripulação é vegana. Salta aos not just to save their souls – but our own”
olhos a radical assimetria entre, de um (MICHEL, s.d.).
lado, o horror da realidade dos afoga- Resta saber se “salvar a própria alma”
mentos de homens, mulheres e crian- nesta situação é um fenômeno comple-
ças, e, do outro, a informação absolu- mentar àquilo que aqui chamamos de
tamente trivial sobre os hábitos alimen- “desbanalização do mal”.
Referências
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ANDERS, G. Die Antiquiertheit des Menschen I. München: Beck, 2010.
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BEDINELLI, T,. JIMÉNEZ, C. “‘Oposição em SP chega ao ponto de chamar ciclista de comunista’ – A um ano da eleição
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[https://brasil.elpais.com/brasil/2015/10/02/politica/14438228608 54536.html]: acessado em [30/08/2020].
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Recibido: 15/12/2021
Aprobado: 17/12/2021
Publicado: 31/12/2021
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