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DOI: https://doi.org/10.26512/rfmc.v9i3.

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A Desbanalização do Mal: Sobre Os Sentidos da Crueldade Hoje


[The Debanalization of Evil: on the Meaning of Cruelty Today]

Felipe Catalani∗

Resumo: Trata-se, nesse texto, de testar a hipótese de uma “desbanalização do mal” que
ocorre com a ascensão contemporânea de novas tendências fascistas. Buscamos levar em
conta uma nova crueldade, germinada a partir da experiência de sofrimento social em um
mundo do trabalho já “eichmannizado” (seguindo o argumento do sociólogo Christophe
Dejours), que ganha na “nova direita” (também chamada de “populista”) um encaminha-
mento político.
Palavras-chave: Violência. Novo Radicalismo de Direita. Crise Social.

Abstract: This text is about testing the hypothesis of a "debanalization of evil" that occurs
with the contemporary rise of new fascist tendencies. We seek to take into account a new
cruelty, that has its social ground in the experience of social suffering with the transforma-
tion of labor in the last decades.
Keywords: Violence. New Right-Wing Radicalism. Social Crisis.

∗ Mestre e doutorando em filosofia na Universidade de São Paulo, USP. E-mail: felipecatalani@gmail.com. ORCID:
https://orcid.org/0000-0001-5133-3145.

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Em 2018, quando Bolsonaro estava cepcional mediocridade. Sua ação má


em vias de se eleger e algo como uma não era considerada propriamente uma
massa bolsonarista mostrou a sua cara, “ação”: ela era um trabalho, um zeloso
escutávamos a hipótese de que a mons- cumprimento de um dever. Próximo ao
truosa e inesperada adesão popular ao diagnóstico arendtiano, dizia Günther
Coiso (como se dizia na época, em alu- Anders: “O empregado no campo de
são ao demônio) teria a ver com a ba- extermínio não ‘agiu’, mas, por mais
nalidade do mal, termo que se tornou horroroso que soe, ele trabalhou” (AN-
conhecido com uma das interpretações DERS, 2010, p. 291). Assim, o mal
clássicas do fascismo, a saber, a de Han- havia perdido sua característica funda-
nah Arendt em seu livro Eichmann em mental: a de ser uma tentação. Escrevia
Jerusalém. Penso que para o nosso caso então Arendt em uma célebre passagem
deveríamos inverter os termos. A as- de seu livro:
censão bolsonarista representou, na-
quele momento, uma desbanalização do
mal. Por outro lado, o mal “banalizado” E assim como a lei de países ci-
já havia se tornado algo por assim dizer vilizados pressupõe que a voz
“progressista”: algo que já descrevia a da consciência de todo mundo
nossa normalidade social antes da bruta dita ‘Não matarás’, mesmo que
desnormalização bolsonarista (descrita o desejo e os pendores do ho-
pelo campo oposto como “regressão”). mem natural sejam às vezes as-
Essa hipótese é certamente um pouco sassinos, assim a lei da terra de
excessiva. Tentarei explicar. Hitler ditava à consciência de
Antes de tudo, seria preciso relem- todos: ‘Matarás’, embora os or-
brar o que Arendt quis dizer com a fa- ganizadores dos massacres sou-
mosa tese sobre a “banalidade do mal”. bessem muito bem que o assas-
O termo em si já traz seu aspecto pro- sinato era contra os desejos e
vocativo, pois o mal, geralmente, é o os pendores normais da mai-
contrário do que consideramos “banal”. oria das pessoas. No Terceiro
A banalidade é, tendencialmente, a re- Reich, o Mal perdera a quali-
gra, o mal é a exceção. No caso de Eich- dade pela qual a maior parte
mann, para Arendt, tratava-se de com- das pessoas o reconhecem – a
preender que ele era uma pessoa má qualidade da tentação. Muitos
(“excepcional”, por assim dizer: mons- alemães e muitos nazistas, pro-
truosa) e ao mesmo tempo um sujeito vavelmente a esmagadora mai-
regular: ordinário, banal, normal. Mais oria deles, deve ter sido tentada
precisamente, sua enorme maldade se a não matar, a não roubar, a não
efetivava por meio de sua trivial e inex- deixar seus vizinhos partirem
para a destruição, é claro, em-

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bora muitos possam não ter sa- se referir até mesmo à anticompassiva
bido dos detalhes terríveis), e doutrina moral de Kant, declamando
a não se tornarem cúmplices de cor o imperativo categórico. Ten-
de todos esses crimes tirando tando interpretar a constituição mo-
proveito deles. Mas Deus sabe ral e psicológica desse sujeito, Arendt
como eles tinham aprendido a compreendeu que aquele homem não
resistir à tentação (ARENDT, era um monstro, mas tampouco era
1999, p. 167). ele um mero robô, apesar de sua infi-
nita disposição para a obediência e de
sua incapacidade de imaginação. Ele
Os nazistas alemães (e Eichmann de era, em suma, um conformista exem-
forma exemplar) não eram, portanto, plar, e sua atitude possuía um nexo
simplesmente “monstros” que libera- não totalmente contingente com uma
ram a selvageria que existiria poten- série de aspectos sociais objetivos do
cialmente em todo ser humano, rom- mundo contemporâneo. O aterroriza-
pendo tudo que haveria de construção dor do diagnóstico de Arendt a respeito
humana (os mandamentos que proíbem daquele repetidor de clichês é que, pre-
o “mal”, aquilo que constituiria paz cisamente, não fora nenhuma extraor-
entre as pessoas etc.) para ceder às dinária dose de maldade que tornou
tentações demoníacas, às forças incon- possível algo como o mal total, efeti-
troláveis (“inclinações naturais”, diria vado no mundo terreno, mas tratava-se
Kant...) que agem à revelia da von- de algo cujo caráter ordinário e inex-
tade humana. A “tentação”, como diz cepcional persistia no mundo após os
Arendt, não era aquilo que impulsio- campos de extermínio. Parte significa-
nava o nazista a “pecar”, a agir imo- tiva da obra de Günther Anders fora de-
ralmente, a assassinar e colaborar com dicada também a isso que poderíamos
o extermínio em massa. Naquele con- chamar de uma “transformação estru-
texto, o que constituía a tentação era tural do conformismo”, investigando a
justamente o contrário. Portanto, era continuidade daquilo que havia possi-
resistindo às tentações que se executava bilitado, tanto objetiva, quanto subjeti-
o trabalho de carrasco, pois justamente vamente, eventos como Auschwitz e Hi-
tornado “trabalho”, tal tarefa era um roshima, em um mundo de guerras sem
trabalho como qualquer outro. “Em ódio: em um estado de coisas em que o
nome do trabalho, sempre se poderá va- ódio (e mesmo a frieza, que ainda é um
lorizar uma desgraça. Este o segredo de afeto frente à indiferença) seria consi-
toda ‘colaboração’” (ARANTES, 2014, derado um traço de humanidade.
p. 110). No âmbito da teoria social contempo-
Lembremos como, para o espanto rânea, Christophe Dejours foi um dos
da plateia do tribunal, Eichmann sabia

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autores que extraíram consequências essa participação assume um outro ca-


originais da ideia arendtiana de “ba- ráter diante disso que, por falta de um
nalização do mal”, no entanto focado termo mais preciso, estamos chamando
naquilo que permitia a aceitação, ao de ascensão da “nova direita”. Sem o
mesmo tempo ativa e passiva, de uma teor teológico e de modo bastante ter-
intensificação do sofrimento no mundo reno, vivemos uma peculiar desbanali-
do trabalho. No auge daquilo que zação do mal, de modo que o mal passa a
Nancy Fraser chamou recentemente de ser vivido enquanto mal. Arriscaria dizer
“neoliberalismo progressista” (que os- que essa é a alma do novo inconformismo
cila à esquerda ou à direita, mas que de direita, que possibilita uma reabilitação
perdeu o chão após a avalanche “po- da crueldade em um outro nível. A cruel-
pulista”), as investigações em torno dade, extraída do chão social onde foi
da psicopatologia do trabalho revela- germinada, é levada ao âmbito da polí-
vam, “por trás das vitrines do pro- tica. A política enquanto transgressão,
gresso, um mundo de sofrimento” (DE- a política que desconhece limites (daí
JOURS, 2009, p. 31). No cerne do sua afinidade com a política revolucio-
que parecia ser uma época de luzes pro- nária), ressurge enquanto desbanaliza-
gressistas construídas em torno de um ção de um “mal” já fermentado no seio
consenso no período após a queda do da máquina do mundo. Essa possibili-
Muro de Berlim que apontava para uma dade de viver o mal enquanto mal é ex-
nova (eterna?) paz democrática, uma perimentada enquanto liberação, pois é
certa normopatia, algo eichmanniana se- dada às pessoas a possibilidade de se-
gundo o argumento de Dejours, cimen- rem perversas. Isso constitui sujeito e, de
tava já há algum tempo a desgraceira um modo sui generis, “empodera” (aqui,
concorrencial com seus acirrados ritu- no sentido de uma compensação fan-
ais de seleção e eliminação, acompa- tasmática para uma impotência social
nhados de uma intensificada tolerância real). Reconfigura-se, portanto, a “gra-
ao sofrimento (próprio e alheio). E não mática moral” de um mundo feito de ví-
é apesar do sofrimento que essa norma- timas. Se, por um lado, a política de es-
lidade do mundo (da crise) do trabalho querda, apesar das ilusões retrospecti-
se reproduz, mas por meio dele. Por- vas a respeito de uma era de progresso,
tanto, ainda acompanhando Dejours, já havia se tornado há algumas déca-
essa peculiar banalização do mal não só das o presentismo da política ambula-
bloqueia a conversão do sofrimento em torial, da gestão e do atendimento das
recusa coletiva, como torna-se o cerne vítimas (necessariamente apassivadas),
de uma enorme máquina de participa- por outro lado, a política da nova di-
ção. reita faz a vítima sair da posição de ví-
Ao que as coisas parecem indicar, tima (embora ela continue sendo uma):

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ela não é mais alguém a ser socorrido. e do próprio Estado: uma atitude po-
Mas ela não é somente alguém que sabe lítica irmanada à lógica econômica da
“socorrer-se”, alguém que se vira, pois gangsterização, da rapina em meio a
isso já estava dado no mundo do tra- um salve-se quem puder. Se é verdade
balho da viração. Ao mesmo tempo, que “o fascismo fixa os resultados soci-
como uma espécie de lado B da polí- ais do colapso capitalista” (HORKHEI-
tica dos sem socorro, tal vítima pode MER, 1998), como dizia Horkheimer,
se tornar (também indiretamente, pela não é difícil imaginar que esses resul-
via da indiferença) um carrasco. Um car- tados sociais se aproximem de um es-
rasco “sem papas na língua” e sem mai- tado de anomia, de intensificada ato-
ores rodeios morais, que não apelará, mização social e recrudescimento dos
como Eichmann, ao imperativo categó- indivíduos. Refletindo sobre o colabo-
rico kantiano. racionismo na França ocupada, Sartre
Essa fúria de carrasco impiedosa pos- chegava a conclusões semelhantes: “Na
sui uma relação com o fato de que a verdade, a colaboração é um fato da de-
direita, curiosamente, reabilitou o ele- sintegração, em todos os casos ela foi
mento “agonístico” da política, isto é, uma decisão individual, não uma posi-
seu caráter de enfrentamento (segundo a ção de classe. (...) É nisso que ela se
célebre tese de Carl Schmitt, essa é a es- aproxima da criminalidade e do suicí-
sência mesma do político). Nesse con- dio, que são também fenômenos de de-
texto, podemos extrapolar um pouco e sassimilação” (SARTRE, 1949, p. 46).
arriscar dizer que a política imiscuída Igualmente Marx, pensando a contrar-
no trabalho sujo foi retirada da sua revolução em O 18 Brumário de Luís Bo-
forma neutra do “trabalho” e recolo- naparte, analisava que a sociedade fran-
cada no campo da “ação” (ou segue seu cesa havia se tornado um saco de bata-
rumo no campo dos negócios, em re- tas, e os indivíduos, sem nenhuma re-
gra ilícitos, como aquele mesmo “traba- lação recíproca, eram batatas pressio-
lho” em sua versão clandestina). Aqui nadas umas contra as outras. Também
ecoa a velha relação entre fascismo e em outro contexto, ainda durante a Se-
banditismo. Nesse aspecto, é exemplar gunda Guerra Mundial, escrevia tam-
uma figura como Sara Winter, que in- bém Adorno que “o cimento que unia
tercala militância belicosa e puro desejo os homens foi substituído pela pres-
por dinheiro, lógica política de parti- são que os mantém juntos” (ADORNO,
san disposta a sujar as mãos na guerra e 1993, p. 34). Algo semelhante ocorre
mesquinharia voltada a vantagens pes- por aqui. Olhar para o Brasil contem-
soais. Ela não é um mero “caso pato- porâneo é suficiente para entender que
lógico”, pois exprime-se nela algo que a tese de Thatcher se realizou como um
permeia setores amplos da sociedade mandamento: “que se desfaça a socie-

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dade”. chegada ao poder e vemos uma “trai-


Mas essa situação, na qual o con- ção” depois da outra. Sua própria fa-
flito social se intensifica, não significa mília é o limite, e olhe lá: não seria
necessariamente um retorno dos gran- totalmente improvável um assassinato
des confrontos dramáticos, da política no interior do clã. Assim como Sar-
como luta e decisão: ou melhor, eles re- tre dizia que “a maioria dos colaborado-
tornam, mas em sua versão degradada. res foram recrutados entre aqueles que
O conflito social ocorre como uma coli- chamamos de ‘anarquistas de direita’”
são – quase como uma batida de carro, (SARTRE, 1949, p. 48), também o bol-
ou seja, um conflito entre mercadorias sonarismo vive de um espírito “anar-
que se empurram umas às outras. Daí quizante”, cuja relação obviamente não
que o “ódio” que emerge daí (vincu- é com o anarquismo histórico, mas sim
lado, no caso, à violenta sede por van- com a “anarquia da produção de mer-
tagens, isto é: lucro) pouco tem a ver cadorias” (Marx). Seu elemento caótico
com “impulsos animais” de uma situ- e “transgressor” complementa o verniz
ação desumanizada, muito menos com de disciplina militar e religiosa.
uma terrível “essência humana”, mas Se de fato tiver algum sentido a hi-
sim com um “impulso de coisa”, uma pótese sobre a “desbanalização do mal”
sede própria das coisas, internalizada que estamos testando, seria o caso de
pelas pessoas. Ou seja, não se trata exa- pensar se não está em curso uma mu-
tamente do mesmo ódio do qual care- dança do que entendemos por “traba-
cemos (se é que Walter Benjamin tem lho sujo”, isto é, se hoje, no Brasil, suja-
razão quando diz que a classe operária se as mãos de uma outra forma. No
desaprendeu o ódio), e sim de um que que concerne o ato propriamente dito
não é outra coisa senão sintoma de uma de matar, esquece-se que muito se ma-
desagregação social total. tou durante os governos assim ditos
Pensando por essa linha, o militante “progressistas”. E também se prendeu
fascista (se ainda for possível usar o muito. Entre 2006 e 2016, a população
termo “militante”) não é somente um carcerária no Brasil praticamente do-
“extremista”, como se ele fosse um mi- brou. Mentalmente, o horror aparecia
litante de extrema esquerda com si- sob a forma do trabalho sujo enquanto
nal trocado (alguém que leva as ideias “mal necessário” que sempre encontra
muito a sério, além da conta). O mi- meios de justificação. Já Bolsonaro dá
litante fascista é também um militante sinal verde ao mal “desnecessário”: daí
de si, portanto trata-se de um “enga- o efeito da desbanalização. Uma coisa
jamento” bastante propenso a traições. é a catástrofe ambiental de Belo Monte,
Basta lembrar da movimentação polí- outra a legalização do garimpo. Não se
tica em torno de Bolsonaro desde sua mata como uma tarefa eichmanniana,

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como um mero side effect do desenvol- nista, apocalíptico, mas era uma ló-
vimento, para realizar uma grande obra gica projetiva, própria de seu impulso
estatal, por exemplo; como um dever modernizador): a promessa de Hitler
que se lamenta com o coração partido, era a de que o Terceiro Reich duraria
mas que se crê necessário (pois há um mil anos. Isso é impensável no caso
futuro simulado, uma noção de política de Bolsonaro – ele se reconcilia com o
enquanto projeto). Destrói-se, mata- curso das coisas na medida em que re-
se com certo gosto pela gratuidade do produz a lógica social do colapso. É
ato, dada sua efemeridade e a ausên- como se os governantes tivessem re-
cia de futuro. A violência aparece me- conhecido que a sociedade se tornou,
nos como algo funcionalizado e profis- de fato, ingovernável. O Estado bra-
sionalizado, sob a lógica administrativa sileiro sob o governo Bolsonaro não é
(como em Eichmann ou na SS), e mais nenhum grande Leviatã ultrapoderoso
sob a forma de um banditismo selva- e autoritário, mas sim uma enorme ba-
gem da SA (que representa justamente gunça. Nesse sentido, o bolsonarismo
o período de ascensão do nazi-fascismo, é uma adesão à catástrofe, articulando
de suspensão dos tabus e da “revolta na uma lógica sobrevivencialista e a libe-
ordem” propriamente dita, e não o da ração de impulsos suicidas. A banali-
ordem funcionalizada). Não ocorrerá zação do mal segue um “princípio es-
no Brasil algo como Auschwitz, no sen- tratégico”; Bolsonaro não. Pois justa-
tido de um extermínio altamente raci- mente a lógica projetiva que dá sentido
onalizado, tecnicizado e eficiente, mas à “estratégia” (à administração) perdeu
um deixar matar e deixar morrer. E esse chão. Mas não houve, propriamente,
“deixar morrer” vai desde medidas me- uma ruptura. A máquina de moer gente
nores, como a suspensão da obrigatori- permanece inalterada; o que muda é
edade de cadeirinhas para crianças em o encaminhamento da energia política
carros, até o ato de deixar um vírus fa- produzida pelo sofrimento gerado no
zer seu trabalho. Algo que ocorre como interior dessa máquina.
se fosse um dado da natureza, agência Frente a esse novo “mal”, como fica
do destino, com a expectativa escatoló- então a relação do outro campo político
gica de uma crise purificadora. com toda essa sujeira? Nesse contexto
A diferença entre o que vivemos surgem também panaceias em torno do
agora e o nazismo “tradicional” não é “bem”, que ressoa em afirmações como
somente ornamental (apesar das ence- a de Fernando Haddad, quando ele diz:
nações de um Roberto Alvim), mas diz “eu sou um agente da civilização con-
respeito a seu núcleo histórico. O fas- tra a barbárie” (BEDINELLI, JIMÉNEZ,
cismo europeu vivia um tempo “ascen- 2015). Ou então, como avesso desse
sional”, ele tinha um projeto (extermi- novo “brutalismo” (como o tem cha-

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mado Achille Mbembe), consolida-se – “militar” – “exército” – “violência” (o


certa reação à maldade que se exprime gatilho foi disparado): logo, o termo es-
em uma hipersensibilidade à violência taria vinculado a ideais masculinos de
do mundo, ao ponto de gestos mínimos agressividade e a uma subjetividade an-
aparecerem como potencial de crueldade, drocêntrica. Devido ao “otimismo mi-
em que a reação (disparada por um “ga- litante”, a aula terminou com uma dis-
tilho”, que é potencialmente qualquer cussão sobre se Bloch seria ou não ma-
coisa) é uma fuga da realidade em di- chista.
reção à frágil bondade do próprio eu – No mundo todo há também uma sé-
um eu que, de todo modo, já é narci- rie de mercadorias que se apresentam
sicamente ferido e “sitiado”, para dizer com o selo “cruelty free”. No Brasil,
como Christopher Lasch (tal qual em existe uma marca de sucos chamada
sua análise da subjetividade em uma “Do bem”, cuja publicidade gira em
“era de expectativas decrescentes”). torno da simpatia e do “fazer o bem”.
Conto uma anedota para ilustrar isso Claro, nesse caso trata-se de formas
que parece já ter se generalizado como muito baratas de adquirir mãos limpas,
uma certa atitude. Há alguns anos uma espécie de lava-jato da consciência.
atrás, ainda na Alemanha, frequentei De todo modo, seria necessário apro-
na universidade um curso sobre a obra fundar a compreensão sobre como se
de Ernst Bloch. Os alunos do curso opera, hoje, à esquerda e à direita, a re-
eram predominantemente jovens e de lação entre política e culpa. Deixemos
esquerda. Em algum texto, não me lem- essa tarefa para outro momento. Con-
bro exatamente qual, aparecia o termo cluo aqui com um último caso: ainda
“militanter Optimismus” – otimismo mi- pensando nos alemães, lembro daque-
litante. O que causou um estranha- les que corajosamente têm se lançado
mento geral, pois, apesar do adjetivo no Mar Mediterrâneo, em iniciativas ci-
“militant” ser um termo dicionarizado, vis, para salvar refugiados naufragados
ali aparecia como se Bloch tivesse feito que tentam fazer a travessia entre a Lí-
um neologismo, talvez a partir do fran- bia e a Itália. Em geral, são pessoas co-
cês ou do italiano. Para os alemães era muns que reagem ao intolerável, mas
mais familiar o termo próximo do ideal engajando-se em uma prática que é, por
pragmático americano: “ativista”. Mas excelência, uma política ambulatorial,
não era disso que falava Bloch. Então de socorro das vítimas. Recentemente,
nos pusemos, eu e uma francesa, a ten- mais um desses barcos de iniciativa ci-
tar explicar o sentido dessa exótica pa- vil foi inaugurado e entrou em ativi-
lavra, “militante”. O que foi totalmente dade, tendo sido financiado pelo ar-
em vão, pois rapidamente o debate de- tista Banksy e batizado com o nome da
gringolou para a associação “militante” militante anarquista e autora francesa

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Louise Michel. No site que descreve o tares dos e das ativistas, com sua dieta
projeto e que possibilita os visitantes de “cruelty free”. Mas há aí uma verdade
apoiá-lo financeiramente, há um breve que diz respeito a um fenômeno mais
parágrafo de apresentação, onde faz-se geral, sobretudo quando declaram: “We
questão, no entanto, de informar que answer the SOS call of all those in distress,
toda a tripulação é vegana. Salta aos not just to save their souls – but our own”
olhos a radical assimetria entre, de um (MICHEL, s.d.).
lado, o horror da realidade dos afoga- Resta saber se “salvar a própria alma”
mentos de homens, mulheres e crian- nesta situação é um fenômeno comple-
ças, e, do outro, a informação absolu- mentar àquilo que aqui chamamos de
tamente trivial sobre os hábitos alimen- “desbanalização do mal”.

Referências
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ANDERS, G. Die Antiquiertheit des Menschen I. München: Beck, 2010.
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BEDINELLI, T,. JIMÉNEZ, C. “‘Oposição em SP chega ao ponto de chamar ciclista de comunista’ – A um ano da eleição
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SARTRE, J-P. “Qu’est-ce qu’un collaborateur?”, in: Situations, III. Paris: Gallimard, 1949.

Recibido: 15/12/2021
Aprobado: 17/12/2021
Publicado: 31/12/2021

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