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Revista Critica de Ciéncias Sociais n* 7/8 Dezembro 1981 JOSB-AUGUSTO FRANCA (*) A FIGURA DO CAMPONES EM ARTES E LETRAS DE OITOCENTOS A imagem do camponés, do trabalhador rural, persona- gem da mais funda realidade dum pais agr cola, s6 com a desco- berta romantica desse pais, ou da paisagem e dos seus costu- mes, entra em cena — tardiamente portanto, j4 no quarto decénio do século, ¢ algo tangencialmente, por via literéria € por via artistica sempre mais restrita. ‘No primeiro momento conhecido, os dois caminhos sobre. puseram-se e temos documentos disso. Trata-se de Garrett vendo, no segundo salio trienal da Academia de Belas Artes de Lisboa, um pequeno quadro de Augusto Roquemont represen- tando ¢O Péroco da aldeia pedindo o Folar> (Camara Munici pal de Matosinhos) ¢ declarando por isso este apétrida imigra- do em 1828 «artista portugués legitimo» e exemplo desejavel de todos os outros. Nesse mesmo ano, o escritor comecava a publicar as «Viagens na minha Terra (1843) ‘Nas paginas de Garrett e nas pequenas telas de Roque- mont € 0 pitoresco que conta, mas a observacao do poeta desen- volvese literariamente no gosto da frase, no capricho da fantasia em que as cenas se constroem, com emocio de diletan- te procurando o efeito proprio. Pouca gente nesse gosto: bar- queiros e campinos que discutem abstractamente os valores das fainas respectivas, a avé de Joaninha, puro espirito na casinha portuguesa do Vale de Santarém... O pintor, mais severo no seu trabalho, antes descreve sobriamente o que vé, sem sombra de imaginacdo. Objectos, gentes e gestos, t4o vivos, sem discricdo, nas «Viagens», esto presentes passiva- mente no «Folar*; 0 prior que abengoa, os camponeses que (*)_ Faculdade de Citncias Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. 102 J. Augusto Franga acomodam 0 presente, outros, da familia, que olham enleva- dos; nenhum deles trabalha porque é dia’ santo. Quando Ro- quemont pinta uma procissao, 0 vidtico ou 0 peditério na mis- sa, sempre o mundo rural é surpreendido em situagao de pausa, alheioa o labor dos dias; ¢, no fontandrio, o trabalho & também lazer e festa. Os costumes abrandam-se nesta observagao exterior, em- bora sensivel e sincera, dum estrangeiro que escolheu pais para viver ¢ morrer ¢, bom retratista, se habituara a analisar expres- s6es, Os seus quadros, insdlitos numa produgio nacional mes- quinha que a recente Academia nao sabia animar, entusiasma- ram, porém, uma nova geragdo de aprendizes da escola que procurava algo para além do ensino ali ministrado. O jovem ‘Toms da Anunciacko procurou entao o estrangeiro pedindo- lhe conselhos e mesmo, se possivel, ligdes particulares — mas Roquemont foi vago na resposta, e desinteressado. Na verdade, © problema nao era seu e, se uma pintura portuguesa pretendia hascer com novos rumos, a prépria sensibilidade dos artistas devia encontréla, Os seus quadros eram apenas um exemplo temético, nfo um modelo que ele nao saberia dar, na sua Adiscreta passividade. De Garrett, perdido ou ganho em outras acees, também nada mais havia de sair, por via regionalista, e 0 Herculano do «Péroco da Aldeia», oito anos depois, tinha apenas a dizer do seu préprio sentimentalismo religioso e liberal, tanto lamen- naisiano quanto possivel, A aldeia era somente o lugar simples para 0 exercicio da religiao auténtica, entre gente simples para quem o trabalho se confundia com as avé-marias. A sua ima- gética_€ pobre, sento inexistente, sem figuracio possivel. Em Castilho, proclamando em Thibur «A Felicidade pela Agricultura», em 1849, nao hé que procurar personagens nisti- cas: a felicidade proposta, através dum associativismo ingénuo, niio se interessa pelo camponés real, tal como no presente cabralista se concretizava, mas por um imagindrio ser social, num mundo melhor, sendio no melhor dos mundos que era 0 dos cegos. Durante muitos anos ainda a literatura seria inca- paz de pér em ficcio a realidade do presente no seu dominio rural: as classes pobres, confundidas na cidade e no campo, conforme os cendrios, cram constituidas por comparsas ou servidores vistos em funcio das outras classes e que s6 pela fidelidade se destacavam, despersonalizando-se. Pelo contrario, os anos finais de 40 ea década seguinte tiveram expresso figurativa numa pintura que entretanto crescera e, incapaz de tomar as vias da Histéria (que o roman- ce e o teatro por seu lado tomavam, justamente com Garrett e Herculano), se punha a explorar os costumes do pais. E mais © Camponés em Artes e Letras 103 05 costumes que a paisagem, porque também para este género Ihe faltava o gosto formal abstracto ¢ lirico necessario, E de 1855 um dos quadros emblematicos do romantismo nacional, «Cinco Artistas em Sintra» (Museu Nacional de Arte Contempordnea), que retine os varios elementos que Ihe carac- terizam a pintura: o retrato, a paisagem ¢ a cena de género rural. 0 retrato adquire aqui um significado especial porque as figuras representadas sao os prdprios artistas surpreendi- dos (ou pousando) no seu prabalho, e entre eles o pintor que, retratando os companheiros, se retrata a si também. Trata-se de Cristino da Silva e com ele esto Metrass, José Rodrigues, Vitor Bastos ¢, pintando, 0 Anunciacdo que vimos pedir conse- Ihos a Roquemont, doze anos atras. Nao os obteve, mas 0 seu caminho tragou-se face & natureza, neste quadro representada por um lugar privilegiado na topografia romantica: a serra de Sintra, com o Palacio da Pena no horizonte brumoso. Anunciacdo esta, entio, pintando a paisagem ali vista, como que simbolizando o empenho dos artistas da sua geracéo — mas outras personagens rodeiam, que compdem a cena e The acrescentam 0 pitoresco. Seis camponeses vieram vé-lo pintar e trés deles, garotos mais A vontade, debrucamse para a «pochade» que parece fazer. Um velho arrima-se ao cajado, uma jovem sorri, com uma filhita pela mao: é uma familia saloia que, na sua curiosidade, se deteve ali, pousando com propositada naturalidade. A mesma com que, nas figuracdes do S. Carlos, os coros se alinham... A nota, porém est dada, € a mensagem transmitida: artistas, paisagem e campénios formam um emblema de nova situacao mental e sensfvel, mas € rigorosamente simbélico 0 seu discurso. ‘Da mesma maneira, mas com fria distincia aristocratica, © Visconde de Meneses’pintaré camponeses em pose, como diletante que era 0 proprio Anunciacdo, de resto, quase sempre metera nas préprias paisagens habitantes dos lugares, homens, mulheres € também bichos que desde sempre The interessaram até se tornar no animalista famoso que passaré especialmente & historia, Na «Paisagem da Amora» (M.N.AC.), quad-o bem conhecido, por exemplo, vemos uma camponesa com a sua vaca, detida em conversa com um homem, e, mais adiante, numa curva do caminho, dois pastores com o seu rebanho. A imagem teatralizada de Cristino, outras duas, da mes- ma data, hd que juntar: de José Rodrieues (um ‘dos seus retratados), que nos oferece um grupo de «rabeauista ceo» ¢ dois meninos famélicos pedindo esmola — revresentacio da miséria rural, no dobrar duma azinhaga (M.N.AC.). 0 éxito que o quadro teve, no seu sentimentalismo imediato, foi subli- 104 J. Augusto Franga nhado por um texto de Rodrigo Paganino, préximo autor dos «Contos do Tio Joaquim» (1861), obra exemplar de narrativas misticas dentro do mesmo diapasio lacrimoso. ‘Nao se trata duma cena de trabalho, mas do seu reverso ou complementaridade, de incapacidade de trabalho, que a todo ‘© camponés pode acontecer, Mas ao camponés outra coisa acontece, ¢ esta na regra do seu destino: a emigracao — e outro quadro, por acaso do mesmo ano de 1855, de Anténio José Patricio (pintor da mesma geracao que em breve morreria), mostra uma velha mae chorando, uma noiva olhando e uma irmizita acenando para um barco que Ihes leva um ente que- rido a caminho dos Brasis («A Despedida», MN. © acaso das trés datas coincidentes ndo deve passar despercebido, porque cle condensa trés imagens significativas, da pintura em questo tanto quanto da encenacao dos seus figurantes — como documento dum viver dramatico, ou duma marginalidade do quotidiano que thes caberia. Dramatica também ¢ a «imagerie» que Anténio Alves Teixeira, 0 «Vizela>, nos deixou pelos mesmos anos ¢ até pouco depois (morreria novo em 1863): um «Viitico», uma «Extrema Uncdo», 0 «Enterro dum Pobre», série de peque- nas cenas rurais lembradas da sua miserdvel infancia minhota —e ainda inspiradas por Roquemont (Escola Superior de Belas Artes do Porto). Outro tipo de sistema de imagens, ¢ numa produgio abundante e apreciada, também iniciado pelos anos 50, vem- snos de Leonel Marques Pereira (M.N.A.C.) e do portuense Francisco José Resende (Museu Nacional de Soares dos Reis) que, falecidos tarde, j4 nos anos 90, prolongaram o seu formu- lario folclérico romantico por tempos naturalistas. Resende desenhava mal, mas punha mais emocdo nas cenas populares observadas que Leonel, mais etnogréfico, mais documentalista ao calcorrear o pais como desenhador do Arquivo de Engenha- ria Militar de cujas rigidas obrigagdes as pinturinhas das festas e romarias 0 compensavam. Mas os tipos rurais de um ede outro eram sempre, como que fatalmente, fixados em situagdes de écio, significando a alegria do bom povo das aldeias, sempre o' mesmo, fora do tempo e, na verdade, do espaco, como fora de penas e temores. Sao, em todos os casos, bilhetes postais por vezes graciosos, face diurna dos dramas do Vizela ¢ do Patricio, ‘So também, em certa medida, imagens do universo que Kilio Dinis comecou a descrever em 1866, em volta das suas (MNS.R.), 20 fundo, um © Camponés em Artes ¢ Letras 107 homem ceifa, uma mulher apanha as hastes cortadas no meio do deserto amarelo; na «Salmeja> (M.N.AC.), dois homens, carregam um carro de bois de palha seca ao sol: neste pintor que definitivamente estuda e entende a paisagem portuguesa sempre ela ¢ animada por uma presenga humana que inter- rompe ou evita o discurso Ifrico de que o artista era modesta- mente incapaz. A carrcira de Silva Porto acabou, em 1893, com um reba- nho de ovethas que um pastor de cajado conduz, um burro ao fundo e uma camponesa (M.N.S.R.). Antes, na «Volta do Mer- cado» (M.NA.C.), outros campénios regressam de um dia de feira que ¢ trabalho e festa, num grupo cerrado, com seus burros, seus cestos ¢ seus guarda-séis. A paisagem proposta em 1880 tornava-se pintura de cos- tumes e de género, tendente ao pitoresco, em composigces retrabalhadas no atelier conforme esbocos «sur natures, mas também segundo ideias representativas do proprio viver rural. E 0 mesmo acontecerd a arte do seu dilecto discfpulo e conti- nuador Carlos Reis, que morreria velho, em 1940. Alguém disse de Silva Porto que era realista ndo como Zola, mas como Jiilio Dinis — e o propositado clogio tinha, na verdade, razo de ser. Ou mais uma ver justificacao... Tgualmente a tera o iiltimo grande pintor do século, Ma- Ihoa, pintando «Clara», a bela mocoila das «Pupilas», que lava roupa no ribeiro, em 1903, e tendo ja pintado 0 Joao Semana, na sua mula alded. Desaparecera ento o escritor ha trinta anos, ou mais, mas a sua inspiracio permanecia, temética e sentimentalmente. José Malhoa é 0 verdadeiro cronista da aldeia que Jilio Dinis também fora, mas a sua aldeia, em ver de ideal, é utépi- ca: estd em parte alguma e em toda a parte onde haja sol e gente, no Minho ou no Douro, na Beira ou nesta Estremadura colorida que o pintor escolheu para morrer em 1933, depois de longamente a pintar. A-crénica de Malhoa acompanha todo o acontecer da aldeia — e tem a correspondéncia imediatamente literdria que compete ao naturalismo posto em cena, como a todo o acade- mismo. Assim que se viu nela uma verdadeira codisseia niistica nacional». Disse-o Fialho de Almeida, mas foi, mais uma vez, Ramalho Ortigéo quem sublinhou, literariamente, 0 valor documental duma pintura que assim,’quadro apés qua- dro ¢ ano apés ano, durante mais de meio século duma enorme producéo, esteve afenta a mais profunda realidade portuguesa. ‘Uma profundidade que, porém, importa descobrir para além dos seus aspectos mais evidentes, subordinados & formu. lagio da «pintura de costumes», procurando neles os sinais 108 J. Augusto Franga ocultos do seu viver mitico. Esses sinais estio presentes, nao diremos que inocentemente, mas naturalmente, na pintura de Malhoa. Ele conta 0 que vé e's6 isso, ndo passivamente mas metendo no seu fazer um franco amor ao que se lhe oferece aos olhos, isto é, a0 especticulo — e espectaculo é tudo, no quadro do paganismo catdlico da vida rural portuguesa. Semeadores, mondadores, ceifeiros, debulhadores, empa- dores, podadores, vindimadores, pisadores... — a lista € de Ramalho em 1906 e diz. respeito & prépria faina que os homens animam., Depois, o inventério aponta (ou nao chega a apontar) ‘9s grandes acontecimentos domésticos, do baptizado ao mor- t6rio, do derrico & emigragao, da matanca do porco a prova do vinho novo, ¢ todos os feitos da religiao festiva ou martiriza- dora, com romarias e sermées terrificantes, procissdes e pro- messas dolorosamente cumpridas. E ainda coisas do viver social, em feiras de pequeno negécio e em caciquismos politi- cos também negociaveis por padres e candidatos. Tudo isso em cenas animadas, altamente coloridas, com dramas e praze- res bem vincados — em que o sexo tem papel evidente, num sensualismo carnal que o bom sol cobre, e da filhos que assim mesmo se criam... A bebedeira (e é celebérrimo o quadro que a descreve) ou a penhora dos pobres bens, a espera de vez no barbeiro que vem & aldeia, ou a passagem do comboio, so instantaneos do quotidiano —e os seus actores, homens de enxada, mocas casadoiras, padres gordos e ebrasileiros» ricacos, sfio os ele- mentos da'mitologia rural que ininterruptamente se descreve. E com uma tal densidade que o pintor foi a vinica firura indiscutivel da «intelligentsia» portuguesa desde os anos 80 do século XIX aos anos 30 do século XX, através de regimes libe- rais ou conservadores, repiblicas ou ‘ditaduras. Uma socieda- de, em suma, que teve em José Malhoa o seu elo de ligagao estrutural. E isso pelo poder da imagem visual, nunca até entio reconhecido, numa cultura artistica pobre — e que se encontrava, pelo génio local do pintor, definitivamente avan- tajado sobre as possibilidades manifestadas (ou manifesté- veis) pela imagem literaria, se excluirmos Stilio Dinis. A popularidade de Mathoa equivale & de Tilio Dinis — sem falar na popularissima «Rosa do Adro» de 1870, e sem falar também no Sousa Pinto que, emigrado em Franca, explo- rava saudades minhotas. Entre Mathoa e ili Dinis existem as mesmas e perma- nentes razées de uma documentacio sentimental que empresta a0 homem do campo uma simpatica e cristd animalidade, na qual as ideias da cidade invejosamente se retemperam. Mas no sem que tal visio deixe de ser uma ideia da propria © Camponés em Artes e Letras 109 cidade governante, autora de tais imagens literarias ou pictu- rais e sua leitora ou compradora, (© mito da «Cidade e das Serras», do nacionalismo fines- secular, exprime-se, aqui ¢ ali, por um longo discurso clara- mente ideolégico na sua necesséria retérica sentimental. A diferenca esta em que, de 1870 para 1900-1930, 0 com- promisso urbano se acentuou’e, com ele, a incapacidade de o assumir. A um tergo do século XX, porém, a cidade ser inevi- tavel — e 0 mundo rural de Malhoa, solarmente idealizado, mas documentado também no seu dramatismo humano, foi o iiltimo sobressalto de citadinos ainda de proxima raiz rastica, nostdlgicos dela e aterrorizados por um futuro urbanizad Mas, na tltima década de Oitocentos, temos dois sinais ideolégicos importantes a registar, no ‘dominio literirio. Assim, entre 1891 ¢ 93, um prosador falou, a propésito, d’

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