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AU eM e DISSE Re sioies Nit ROLES O nome de Roger Chartier felt efor Bayon cosaalcCuele} O autor coloca-se entre os mais conhecidos, lidos, debatidos Cate Cele-pattseetCelo ce} 1a atualidade. Tem suas obras icadas em varios paises clo teOR Bee R Er). sem cessar, a dar conferéncias, a expor suas idéias, a partilhar suas reflexGes, de maneira clara, Poteau s)catLerecotce Frente a este perfil, que dizer, oom er tcneosceer tel eiererecre ch celd ornare riley de maneira definitiva, a esta Nova Historia Cultural Pitaronaret neces rtittects x ellt Beyartintarete tats aos pesquisadores, que passat também a descobrir novas fontes, ou entao descobriram ser possivel retornar aos mesmos documentos, mas com o olhz iluminado por outras questoes. Nesta medida, Chartier associa ao seu perfil de pesquisador atento uma reflexao te6ric inovadora, nao muito freqiiente entre os historiadores A BEIRA DA FALESIA BONERS UAE Bt UO Ae eae PIU oza} eee ee ed José Carlos Ferraz Hennemann eer tara ors ferns ete CLL tg Cat Reena U ee inio Carlos Guimaries cle) ec ore ety ome earner aldo Valente Canali José Augusto Avance eatin cs ren ics Maria Cristina Le, Geraldo F. Huff, presidente Editora da Universidade /UFRGS ® Av. Joo Pessoa, 415 -90040-000 - Porto Alegre. RS - Fone/fax (51) 3316-4082 ¢ 3316-1090 - E-mait editora@ uirgs.br; vendas.editora@ utrgs. br PRC ae ire eae ee acer Oc ree co POM EMSINCote MCs Coie tos Rec MN MOTE CMN Cre M Re nL WAU uror Rie nce la de Mello; suporte editoriat. Fernando Piccinini Schmitt, Gabriel Bolognesi tio (bolsista), Luciane Leipnitz ¢ Silvia Aline Otharan Nunes (bolsista) * Adminis : Najdra Machado (coordenadora), Jos Brito Filho, Laerte Balhinot Dias, Mary Cine Lima € Norival Hermeto Nunes Sauccdo: suporte administrative, Ana Maria D'Andrea dos Santos, Erica Fedatto, Jean Paulo da Silva Carvalho, Joao Batista de Souza Dias e Marcelo Wagner Scheleck * Apoio: Idalina Louzada c Laércio Fontoura. HAW DADA Ap Warne tans ROGER CHARTIER Tradugao PATRICIA CHITTONI RAMOS Editora Oren rae dh rd © de Roger Chartier 1* edicao: 2002 Titulo original em francés: Au bord de la falaise:L’ histoire entre certitudes et inquiétude. Direitos reservados desta edi¢ao: Universidade Federal do Rio Grande do Sul Capa e projeto grafico: Carla M. Luzzatto Ilustracdo da capa: Diego Velasquez, “Las hilanderas”, leo sobre tela, Museo de Prado, Madrid; manipulado eletronicamente. Traducdo: Patricia Chittoni Ramos Revisdo: Rosangela de Mello Editoracao eletrénica: Fernando Piccinini Schmitt Roger Chartier € historiador. Diretor de estudos na Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales - EHESS. Conhecido por seus trabalhos de histéria cultural ¢ especialista em histdrias do livro e da leitura, publicou e dirigiu inimeras obras. C486b Chartier, Roger A beira da falésia: a hist6ria entre incertezas e inquie- tude / Roger Chartier, trad. Patricia Chittoni Ramos. — Porto Alegre : Ed. Universidade/UFRGS, 2002. 1. Hist6ria — Filosofia. 2. Histéria - Sociologia. L. Titulo. CDU 930.23:101 930.23:304 Catalogacdo na publicacdo: Monica Ballejo Canto — CRB 10/1023 ISBN - 85-7025-623-X Sumario Introducao geral / 7 PRIMEIRA PARTE Percurso Introducado / 21 1. Hist6ria intelectual e histéria das mentalidades / 23 2.O mundo como representac¢ao / 61 3. A hist6ria entre narrativa e conhecimento / 81 A. Figuras retéricas e representacées histéricas / 101 SEGUNDA PARTE Leituras Introducao / 119 5. “A quimera da origem”. Foucault, o Iluminismo e a Revolucao Francesa / 123 6. Estratégias e taticas. De Certeau e as “artes de fazer” / 151 7. Poderes e limites da representacao. Marin, 0 discurso e a imagem / 163 8. O poder, o sujeito, a verdade. Foucault leitor de Foucault / 181 TERCEIRA PARTE Afinidades Introdugao / 201 9. A hist6ria entre geografia e sociologia / 203 10. Filosofia e histéria / 223 11. Bibliografia e histéria cultural / 243 12. Histéria e literatura / 255 Fontes / 273 Indice de autores citados / 275 Introdugao geral “A beira da falésia”. Era com essa imagem que Michel de Certeau caracterizava 0 trabalho de Michel Foucault.' Ela me parece designar lucidamente todas as tentativas intelectuais que, como a nossa, colo- cam no centro de seu método as relagGes que mantém os discursos € as praticas sociais. O empreendimento é dificil, instavel, situado a beira do vazio. E sempre ameagado pela tentagao de apagar toda diferen¢a entre légicas heter6nomas mas, no entanto, articuladas: as que orga- nizam os enunciados € as que comandam os gestos e as condutas. Seguir assim “a beira da falésia” também permite formular mais seguramente a constatacao de crise ou, no minimo, de incerteza fre- qiientemente enunciada hoje em dia acerca da historia.’ Aos clas oti- mistas e conquistadores da “nova historia” sucedeu, com efeito, um ' Michel de Certeau, “Microtechniquces et discours panoptique : un quiproquo”, in Michel de Certeau, Histoire et psychanalyse entre science et fiction, Paris, Gallimard, 1987, p.37-50. *Em lingua francesa, trés publicacSes coletivas situam a disciplina historica: Histoire socia- le, histoire globale? Actes du. colloque des 27-28 janvier 1989, Christophe Charle (ed.), Paris, Editions de la Maison des sciences de l'homme, 1993, Passés recomposés. Champs et chantiers de Uhistoire, Jean Bouticr ¢ Dominique Julia (ed.), Paris. Editions Autrement, 1994, e LHistoire et le mi dhistorien en France 1945-1995, Francois Bédarida (ed.), com a colabo- racio de Maurice Aymard, Yves-Marie Bercé e Jean-Francois Sirinelli, Paris, Editions dela Maison des sciences de l’homme, 1995. Cf., também, Gérad Noiriel, Sur la “crise” de Uhestoire, Paris, Belin, 1996. Em lingua inglesa, ver Joyce Appleby, Lynn Hunt e Margaret Jacob, Telling the Truth about History, New York e Londres, W.W. Norton and Company, 1994. tempo de dtividas e de interrogacées. Para esse humor inquieto e, as vezes, impertinente, varias razGes: a perda de confianga nas cer- tezas da quantificacao, o abandono dos recortes classicos, primeira- mente geograficos, dos objetos histéricos, ou ainda, o questionamen- to das nogées (“mentalidades”, “cultura popular’, etc.), das catego- rias (classes sociais, classificacdes socioprofissionais, etc.), dos mo- delos de interpretacao (estruturalista, marxista, demografico, etc.) que eram os da historiografia triunfante. A crise da inteligibilidade histérica foi mais rudemente senti- da porque sobreveio em uma conjuntura de forte crescimento do numero de historiadores profissionais e de suas publicagoes. Ela teve um duplo efeito. De inicio, fez a histéria perder sua posicao de disciplina federalista no seio das ciéncias sociais. Na Franca, mas também fora dela, fora em torno dos dois programas sucessivos dos Annales (aquele comandado pelo primado da histéria econdédmica e social dos anos 1930, aquele identificado 4 antropologia histéri- ca dos anos 1970) que se realizara, senao a unificacao da ciéncia social com que sonhavam no inicio desse século a sociologia dur- kheimiana e o projeto de sintese histérica de Henri Berr, pelo menos uma interdisciplinaridade, cuja pedra angular era dada pela histéria. Hoje nado ocorre mais o mesmo. Em segundo lugar, 0 tem- po dos questionamentos foi também o da dispersao: todas as gran- des tradicoes historiograficas perderam sua unidade, todas se frag- mentaram em propostas diversas, freqiientemente contraditérias, que multiplicaram os objetos, os métodos, as “hist6rias”. Diante do refluxo dos grandes modelos explicativos, uma pri- meira e forte tentagao foi a volta ao arquivo, ao documento bruto que registra o surgimento das palavras singulares, sempre mais ri- cas e mais complexas do que pode delas dizer o historiador. Desa- parecendo por detras das palavras do outro, o historiador esforga- se para escapar 4 postura que lhe viria de Michelet e que, segundo Jacques Ranciére, consistiria na “arte de fazer os pobres falarem ca- lando-os, de fazé-los falarem como mudos”.* Tal vontade de apaga- SJacques Ranciére, Les Mots de l'histoire, Essai de poétique du savoir, Paris, Editions du Seu- il, 1992, p.96. mento por detras das palavras, dadas a ler em sua propria literalida- de, pode parecer paradoxal em um momento em que, bem ao con- trdrio, a histéria é habitada por uma reivindicacdo, por vezes alta- mente proclamada, da subjetividade do historiador, da afirmacao dos direitos do eu no discurso histérico e das tentagdes da ego-historia’. No entanto, a contradic¢ao é apenas aparente. De fato, dar a ler tex- tos antigos nao é, de acordo com as palavras de Arlette Farge, “reco- piar o real”. Pelas escolhas que faz e pelas relacées que estabelece, o historiador atribui um sentido inédito as palavras que arranca do siléncio dos arquivos: “A apreensdo da palavra responde 4 preocu- pacao de reintroduzir existéncias e singularidades no discurso his- torico, de desenhar a golpes de palavras cenas que sao igualmente acontecimentos”.* A presenga da citacao no texto hist6rico muda assim totalmente de sentido. Ela nao é mais ilustragao de uma regu- laridade, estabelecida gracas a série e 4 medida; indica agoraa irrup- cao de uma diferenca e de uma variacao. O retorno ao arquivo levanta um segundo problema: o das re- lac6es entre as categorias manipuladas pelos atores e as nocdes em- pregadas no trabalho de andlise. Por longo tempo, a ruptura entre ambas pareceu a propria condicao de um discurso cientifico sobre © mundo social. Essa certeza nao existe mais. Por um lado, os crité- rios € os recortes classicos que por muito tempo fundamentaram a histéria social (por exemplo, a classificac¢do socioprofissional ou a posicao nas relacdes de producao) perderam sua forca de evidén- cia. Os historiadores tomaram consciéncia de que as categorias que ‘Maurice Agulhon, Pierre Chaunu, Georges Duby, Raoul Girardet, Jacques Le Goll, Michelle Perrot, René Rémond, Essais d‘ego-histoire, Pierre Nora (ed.), Paris, Gallimard, 1987. Para um exemplo americano, Pensar la Argentina. Los historiadores hablan de histo- na y politica, Roy Hora e Javier Trimboli (ed.), Buenos Aires, Ediciones El Cielo por Asalto, 1994. * Arlette Farge, Le Cours ordinaire des choses dans la cité du XVIIF siécle, Paris, Editions du Seuil, p.9. Ver também Arlette Farge, Le Gotit de Uarchive, Paris, Editions du Seuil, 1989, € 0 texto fundador de Michel Foucault, “La vie des hommes infames”, Les Cahiers du che- min, 29, 1977, p.12-29, reeeditado em Michel Foucault, Dits et écrits, 1954-1988, edicdo estabelecida sob a direcao de Daniel Defert e Francois Ewald, com a colaboracdo de Jacques Lagrange, Paris, Gallimard, 1994, t. III, p.237-253. manejavam tinham elas préprias uma histéria, e que a histéria so- cial era necessariamente a histéria das razées e dos usos destas.° Por outro lado, as hierarquizagdes habituais, fundadas sobre uma con- cepcao fixa e univoca da atividade profissional ou dos interesses so- ciais, pareceram nao dar totalmente conta da labilidade das relacoes e das trajetérias que definem as identidades. Por isso, a atencdo atribuida as categorias € ao léxico dos ato- res, ea énfase dada as interagées e as redes que delineiam solidarie- dades e antagonismos. Por isso, também, nas formulacdes radicais do linguistic turn A americana, a perigosa reducdo do mundo social a uma pura construcao discursiva, a meros jogos de linguagem. oO desafio lancado por uma nova histéria das sociedades, da qual a mi- crostoviaitaliana pode ser considerada como uma modalidade exem- plar, consiste, portanto, na necessaria articulacdo entre, de um Jado, a descricdo das percep¢oes, das representacoes € das racionalidades dos atores e, de outro, a identificacao das interdependéncias desco- nhecidas que, juntas, delimitam € informam suas estratégias. Dessa articulacao depende a possivel superacao da oposicao classica entre as singularidades subjetivas e as determinacées coletivas. Por essa razio, uma atenc&o particular deve ser dada ao conjunto das nocées (“configuracao”, “habitus social”, “sociedade dos individuos”) que, para Norbert Elias, permitem pensar de uma maneira nova, libera- da da heranca da filosofia classica, as relacdes entre 0 individuo eo mundo social. A articulacdo entre as propriedades sociais objetivas e sua inte- riorizacao nos individuos, sob forma de um habitus social que coman- da pensamentos € acoes, leva a considerar 0s conflitos ou as negocia- c6es, cujo desafio continua sendo sua capacidade para fazer com que se reconheca sua identidade.’ E do crédito concedido (ou recusa- do) 4imagem que uma comunidade produz de si mesma, portanto de seu “ser percebido”, que depende a afirmacao (ouanegacao) de 8 Alain Desrosiéres, La Politique des grands nombres. Histoire de la raison statistique, Paris, Editions La Découverte, 1993, ¢ Eric Brian, La Mesure de UEtat. Administrateurs et geomelres au XVIIF siécle, Paris, Albin Michel, 1994. 7 Pierre Bourdieu, La Distinction. Critique sociale du jugement, Paris, Editions de Minuit, 1979. 10 seu ser social. O porqué da importancia da nocao de representacao, que permite articular trés registros de realidade: por um lado, a8 representacoes coletivas que incorporam nos individuos as divises do mundo social e organizam os esquemas de percepcao a partir dos quais eles classificam, julgam e agem; por outro, as formas de exibi- cdo e de estilizagao da identidade que pretendem ver reconhecida; enfim, a delegacio a representantes (individuos particulares, ‘ies tuicdes, insténcias abstratas) da coeréncia e da estabilidade da iden- tidade assim afirmada. A histéria da construcao das identidades so- ciais encontra-se assim transformada em uma histéria das relacées simbélicas de forca. Essa histéria define a construcao do mundo $0- cial como 0 éxito (ou o fracasso) do trabalho que os grupos efetu- am sobre si mesmos — € sobre 0s outros — para transformar as pro- priedades objetivas que sio comuns a seus membros em uma per tenga percebida, mostrada, reconhecida (ou negada). Conseqiien- (cmente, ela compreende a dominacao simbélica como o processo pelo qual os dominados aceitam ou rejeitam as identidades impos- tas que visam a assegurar e perpetuar seu assujeitamento. Ela inscre- ve, assim, no processo de longa duracdo de redugao da violéncia e de contencao dos afetos, tal como descrito por Elias, a importancia crescente assumida, na Idade Moderna, pelos confrontos que tém por quest6es e instrumentos as formas simbélicas. O retorno dos historiadores ao arquivo situa-se, sem diivida al- guma, em um movimento mais vasto: o interesse renovado pelo tex- to. Os historiadores perderam muito de sua timidez ou de sua inge- nuidade diante dos textos candénicos de seus vizinhos — historiadores da literatura, das ciéncias ou da filosofia — e isso, no préprio momen- to em que, nessas outras histérias, as abordagens sociohistéricas ou contextualistas encontravam uma nova vivacidade apés a dominagao sem reservas dos procedimentos estruturalistas ¢ formalistas. Para citar apenas um exemplo, os postulados classicos ¢ domi- nantes da hist6ria da filosofia (ou seja, a definicgao da legitimidade das questées ¢ dos autores a partir de sua atualidade na atividade filosofi- ca contemporanea, a existéncia de um fundo comum de problemas c de respostas independente de qualquer formulacao especifica, a autonomia dessa philosophia perennis em relacao a toda inscric¢ao his- tdrica) sao hoje em dia fustigados por outros modos, igualmente le- gitimos, de pensar a relaco da filosofia com a historia, Em uma tipo- logia que se tornou classica, Richard Rorty coloca assim, a0 lado das reconstrucdes racionais da filosofia analitica, voluntariamente anacro- nicas e a-hist6ricas, és outros modos de escrever a hist6ria da filoso- fia, todos trés plenamente hist6ricos € todos trés tidos por pertinen- tes: a Geistesgeschichte, definida como a historia das questocs propria- mente “filos6ficas” e da constituicéo do cénone dos “filésofos” que as formularam, a “historia intelectual”, entendida no sentido de uma histéria das condicdes mesmas da atividade filoséfica, enfim, as recons- trucées histéricas, que atribuem o sentido dos textos a seu contexto de elaboracao e a suas condicdes de possibilidade.* Esta ultima pers- pectiva é evidentemente a mais proxima das praticas hist6ricas classi- cas, na medida em que acentua a descontinuidade das praticas filosé- ficas, diferenciadas pelo lugar social ou pela instituicao de saber onde sAo exercidas, pelas mutacées das quest6es e dos estilos de investiga- cao legitimos, pelos géneros e formas do discurso, pelas eantiguxandes intelectuais que dio aos mesmos conceitos significagoes diversas. Essas trés vias tém seus equivalentes na historia das ciéncias, na hist6ria da arte ou na hist6ria da literatura. Iustram uma forma de retorno aos textos (ou, mais geralmente, as obras) que as inscreve nos lugares e meios de sua elaboracao, que as situa no repertorio especifico dos géneros, das quest6es, das convengoes proprias a um dado tempo, e que focaliza sua atencdo nas formas de sua circula- cao ¢ de sua apropriacao. Nisso, elas marcam claramente que, no momento em que certas dividas assaltaram a disciplina, as aborda- gens historicas reencontram todos seus direitos em outro lugar: na filosofia, na critica literaria, na estética. ® Richard Rorty, “The Historiography of Philosophy : Four Genres”, in Philosophy in His- ‘ers Essays Gait £ riguviography of Philosophy, Richard Rorty, J.B. Schneewind e Quentin Skinner (ed.), Cambridge, Cambridge University Press, 1984, p.49-75 (traducao fran- cesa “Quatre maniéres d’écrire l'histoire de la philosophie”, in Que peut faire la philoso- phie de son histoire?, Gianni Vattimo (ed.), Paris, Editions du Seuil, 1989, p.58-94). : ® Alasdair McIntyre, “The Relationship of Philosophy to its Past”, in Philosophy in History, op. cit., p.31-48. 12 Entre os historiadores, um dos efeitos da atencdo renovada pe- los textos foi atribuir novamente um papel central as disciplinas de crudigado. Por muito tempo relegados a posicao ancilar de ciéncias auxiliares, esses saberes técnicos, que propoem descricdes rigorosas ¢ formalizadas dos objetos e das formas, tornam-se (ou tornam-se novamente) essenciais, j4 que os documentos nado sio mais conside- rados somente pelas informagées que fornecem, mas s4o0 também es- tudados em si mesmos, em sua organizacao discursiva e material, suas condicoes de producao, suas utilizagGes estratégicas. A paleografia e a diplomatica transformaram-se, assim, em _uma historia dos usos so- ciais da escrita, brilhantemente ilustrada pelos trabalhos de Arman- do Petrucci e de seus alunos." Jé a analytical bibliography, tal como pra- ticada sobretudo, mas nao exclusivamente, no mundo anglo-saxao, ampliou-se em uma ambiciosa “sociologia dos textos”, segundo a ex- pressao de D. F. McKenzie," que lembra, contra a tirania das aborda- gens estritamente lingtiisticas, que as determinacées em curso no pro- cesso de constru¢ao do sentido sao plurais. Elas dependem das estra- tégias de escritura e de edicaéo, mas também das possibilidades e im- posigoes proprias a cada uma das formas materiais que sustentam os discursos, ¢ das competéncias, das praticas e das expectativas de cada comunidade de leitores (ou de espectadores).!2A “sociologia dos tex- tos” assim compreendida nao se afasta da reflexao feita sobre a noc4o de representacao, ja que, seguindo a distincdo proposta por Louis Marin, as proprias formas dadas aos textos (tanto na oralidade quan- " Armando Petrucci, La scrittura : Ideologia e reppresentazione, Piccola Biblioteca Einaudi, Turim, Einaudi, 1986 (tradugao francesa Jeux de lettres. Formes et usages de Vinscription en htalie XF-XX siécles, Paris, Ectitions de 1’ Ecole des hautes études en sciences sociales, 1993), e Le scritture ultime: Ideologia della morte e strategie dello scrivere nella tradizione occidentale, Turim, Giuilio Einaudi editore, 1995, "'D. F. McKenzie, Bibliography and the Sociology of Texts, The Panizzi Lectures 1985, Lon- dres, The British Library, 1986 (traducdo francesa La Bibliographie et la sociologie des tex- ies, Paris, Editions du Cercle de la Librairie, 1991). '*A titulo de tentativa para relacionar em uma mesma histéria uma obra, suas formas € “performances”, seus puiblicos e suas significacdes, ver Roger Chartier, “George Dan- din, ou le social en représentation”, Annales, Histoires, Sciences Sociales, 2, marc¢o-abril 1994, p.277-309, reeditado em Roger Chartier, Culture écrite et société. L’ordre des livres (XTV-XVIIF siecle), Paris, Albin Michel, 1996, p.155-204. 13 to na escrita, no manuscrito e no impresso) pertencem a dimen “reflexiva” de toda representagao, aquela pela qual um ispost _ matcrial apresenta-se como representando algo —no caso, ‘ian i te Qs historiadores sabem bem hoje em dia que tam D a dutores de textos. A escritura da histéria, mesmo oe Hate ‘ smo a mais estrutural, pertence ao gen a COI one compartilha as categorias fundamentais. ee exes e narrativas de histéria t¢m em comum uma mesma —, che zer agir seus “personagens”, uma mesma maneira le ~ ae poralidade, uma iene pen tae oe - 6 ram-se classicas pelas obras de Miche! Paul Ricoeur! Eles a de inicio, que jcnmeenenaa eo déncia fundamental de toda historia, ae que sea on Ste as técnicas da mise en intrigue’, o repudio i ; ae absolutamente o abandono da narrativa. O que € ee maneira de dizer que os historiadores, assim como 0S ar sempre fazem 0 que pensam fazer e que as rupioas cage! = amen te reivindicadas mascaram com freqténcia continui . es igi i Porém, o problema mais essencial é outro € pode ser as m for mulado: por que, duradouramente, a historia ignorou sua per cm a A classe das narrativas?'> Esta era necessariamente ocult acm a os regimes de historicidade que postulavam uma coe cia sem distancia entre os fatos hist6ricos € os —_ a “unhen o encargo de justifica-los. ‘aa seja ee Et oe i rse dé como conhecimen si mesix licao his- cotriets soma alema, quer se queira “cientifica”, a ieee = podia recusar-se a se pensar como uma narrativa. A narraca "nao podia ter nenhum estatuto Sgaeen visto oe oo ° cas ae Y ida as disposicées e as figuras da a ret . ‘ eesti pane o lugar lo desenvolvimento dos proprios aconecimen- tos, ou era percebida como um obstaculo maior a um con Heri ‘histoi is, Gallimard, 1975. Michel de Certeau, Liicriture de Uhistoire, Paris, c yeni Rinoeny Tenaps et récit, 3 vol., Paris, rey — 1983-1985. icao de uma trama, de uma intriga. (N. de T. ; . mPraneois Hartog, “L'art du récit historique”, in Passés recomposes. Champs et chantiers de Uhistoire, op. cit., p. 184-193, 14 to verdadeiro. Somente com a contestacdo dessa epistemologia da coincidéncia e com a tomada de consciéncia da distancia existente entre o passado € sua representacéo (ou, para dizer como Ricoeur, entre “o que, um dia, foi”, e que nao é mais, e as construcdes discur- sivas que pretendem assegurar a représentance ou a liewtenance* desse passado) "° podia desenvolver-se uma reflexao sobre as modalidades, 10 mesmo tempo comuns ¢ singulares, da narrativa de histéria. Essa consciéncia aguda da dimensio narrativa da histéria lancou um sério desafio a todos aqueles que recusam uma posi¢ao relativista ii Hayden White, que nao vé no discurso de histéria senao um livre jogo de figuras ret6ricas, sendo uma expressao dentre outras da in- vencao ficcional. Contra essa dissolucio do estatuto de conhecimen- to da historia, freqiientemente considerada nos Estados Unidos como uma figura do pés-modernismo, deve-se sustentar com forca que a hist6ria € comandada por uma intenc4o e por um principio de ver- dade, que o passado que ela estabelece como objeto é uma realidade exterior ao discurso, e que seu conhecimento pode ser controlado. Alembranga é mais do que titil em uma época em que as fortes tentacoes da histéria identitaria correm 0 risco de embaralhar toda distincgdo entre um saber controlado, universalmente aceitavel, e as reconstrucdes miticas que vem contirmar memérias e aspiracdes particulares. Como escreve Eric Hobsbawn: “A projecao no passado de desejos do tempo presente ou, em termos técnicos, o anacronis- mo, € a técnica mais corrente e mais cémoda para criar uma histé- tia propria a satisfazer as necessidades de coletivos ou de ‘comuni- dades imagindrias’ — conforme a expressao de Benedict Anderson ~ que estado longe de serem exclusivamente nacionais”.!7 Mas pode-se resistir a essa deriva, mortal para a funcao refe- rencial da histéria, somente pela reafirmacdo, por mais necessaria * Représentance, o que tem a funcdo de representar; Lentenance, 0 que substitui, (N, de T.) “Paul Ricoeur, Temps et récil, op. cit., t. 1, p. 203-205. "Eric J. Hobsbawm, “L’historien entre la quéte d'universalité et la quéte d’identité”, Diogdne, 168, outubro-dezembro 1994, niimero especial “La responsabilité sociale de Vhistorien”, p.52-86 (citagdo p.61). Eric Hobsbawm faz referéncia ao livro de Benedict Anderson, /magined Communities. Reflections on the Origin and Spread of Nationalism, (1983), edicao revista, Londres e New York, 1991. que seja, das exigéncias, das disciplinas e das virtudes do exercicio critico? Nao se deveria antes, considerando que 0 saber, histdrico ou nao, nao pode mais ser pensado como a pura coincidéncia ou a simples equivaléncia de um objeto e de um discurso, empreen- der uma refundacdo mais essencial? E para isso que tendem Joyce Appleby, Lynn Hunt € Margaret Jacob quando pleiteiam uma new theory of objectivity (entendida como an interactive relationship between an inquiring subject and an external object [uma relacdo reci- proca entre um sujeito conhecedor e um objeto exterior] e pensa- da como nao exclusiva da pluralidade das interpretacdes) e quan- do adotam uma posicao epistemoldgica, qualificada de practical realism, segundo a qual people’s perceptions of the world have some cor- respondance with that world and that standards, even tough they are his- torical products, can be made to discriminate between valid and invalid assertions® [as percepcoes do mundo dos atores tém alguma cor respondéncia com esse mundo e onde critérios, mesmo que sejam historicamente construfdos, podem ser estabelecidos para distin- guir entre as afirmacées admissiveis e as que nao o sao]. Paul Ricoeur, por sua vez, indica as condicdes de possibilidade de um “realismo critico do conhecimento histérico”. Para ele, elas se devem, por um lado, 4 inscricao do sujeito historiador ¢ do obje- to hist6rico no mesmo campo temporal: “E o mesmo e unico siste- ma de datacdo que inclui os trés acontecimentos que constituem 0 comeco do periodo considerado, seu fim ou sua conclusao, € o pre- sente do historiador (mais precisamente, da enunciacao hist6rica)”. Elas remetem, por outro lado, 4 pertenca do historiador e dos ato- res, cuja histéria ele escreve a um campo de praticas e de experién- cias suficientemente comum e compartilhado para fundar a “depen- déncia mesma do ‘fazer’ do historiador em relacao ao ‘fazer’ dos agentes historicos”: “F primeiramente como herdeiros que os histo- riadores se colocam em relacao ao passado antes de se colocarem como mestres artesdos das narrativas que fazem do passado. Essa '8 Joyce Appleby, Lynn Hunte Margaret Jacob, Telling the Truth about History, op. cit., p.259 e¢ 283. nocdo de heranca pressupde que, de um certo modo, o passado se perpetua no presente e assim © afeta”.'® Sem divida, é paradoxal que um historiador como eu, que en- contra inspiracao nos pensamentos da ruptura e da diferenca, evo- que deste modo 0 procedimento hermenéutico e fenomenolégico dle Paul Ricoeur. Mas é dessa tensao que depende hoje a compreen- sio do passado, ou do outro, para além das descontinuidades que scparam as configuracées histéricas. Todavia, a constatac4o nao basta para dotar a histéria do estatu- to de conhecimento verdadeiro. Resta uma questao que, parece-me, nao responde completamente nem as tentativas para fundar uma new theory of objectivity, nem as propostas que visam a assegurar o “realismo critico do conhecimento histérico”: ou seja, quais sao os critérios gra- cas aos quais um discurso histérico, que € sempre um conhecimento sobre tracos e indicios, pode ser considerado como uma reconstru- cdo valida e explicativa (em todo caso, mais valida e explicativa do que outras) da realidade passada que ele constituiu como seu objeto? A resposta nao é simples — e hoje menos ainda do que no tempo em que as certezas bem ancoradas da objetividade critica e de uma epistemo- logia da coincidéncia entre o real e seu conhecimento protegiam a historia de qualquer inquietude quanto a seu regime de verdade. Isso nao ocorre mais. Fundar a disciplina em sua dimensao de conhecimento, e de um conhecimento que é diferente daquele for- necido pelas obras de ficgao, € de uma certa maneira seguir ao lon- go da falésia. Os historiadores perderam muito de sua ingenuidade ede suas ilus6es. Agora sabem que 0 respeito ds regras e as opera- oes proprias a sua disciplina € uma condicao necessdria, mas nao suficiente, para estabelecer a histéria como um saber especifico. Talvez seja seguindo o percurso que leva do arquivo ao texto, do texto a escritura, ¢ da escritura ao conhecimento, que eles poderao acei- tar o desafio que lhes é hoje lancado, Uma tltima consideracao. Sempre me pareceu que o trabalho de todo historiador est4 dividido entre duas exigéncias. A primeira, "Paul Ricoeur, “Histoire et rhétorique”, Diogéne, p.9-26 (citacdes p.24 € 25). classica e essencial, consiste em propor a inteligibilidade mais adequa- da possivel de um objeto, de um corpus, de um problema. E por essa razo que a identidade de cada historiador lhe é dada por seu traba- lho em um territério particular, que define sua competéncia propria. Em meu caso, esse campo de pesquisa é o da historia das formas, usos e efeitos da cultura escrita nas sociedades da primeira modernidade, entre o século XVI e 0 século XVII. Mas ha também uma segunda exigéncia: aquela que obriga a histéria a travar um didlogo com ou- tros questionamentos — filos6ficos, sociolégicos, literdrios, etc. Somen- te através desses encontros a disciplina pode inventar quest6es novas e forjar instrumentos de compreensao mais rigorosos. Por isso, a organizacao deste livro. Sua primeira parte demar- ca, por meio de uma série de reflexdes historiograficas e metodol6é- gicas, os deslocamentos que transformaram os modos de pensar € de escrever a hist6ria nestes Ultimos vinte anos. A segunda segue em companhia de pensamentos fortes, de obras densas, que foram pre- ciosos pontos de apoio para 0 trabalho dos historiadores. Nestes tl- timos anos, trés nocées sustentaram a reflexao das ciéncias huma- nas € sociais: discurso, pratica, representacdo. Resgatar a obra de Michel Foucault, a de Michel de Certeau ¢ a de Louis Marin permi- te precisar melhor seus contornos € definir com mais acuidade sua pertinéncia. Enfim, a Ultima parte da obra é consagrada 4s relacdes que a historia manteve e mantém com varias disciplinas que sao suas vizinhas proximas. Trata-se de compreender como os historiadores preferiram certos corporativismos e, conseqientemente, negligen- ciaram as propostas ou as questées vindas de outros horizontes. Acompanhando a historia dessas aliancas € ignorancias, nosso obje- tivo é duplo: retornar as escolhas que marcaram duradouramente a pratica da hist6ria na Franca, mas mostrar igualmente (a partir do exemplo dos lacos entre critica textual ¢ historia cultural) que se inventam hoje em dia novos espagos intelectuais. PRIMEIRA PARTE Percurso Introdugio Os quatro textos que compG6em a primeira parte deste livro foram redigidos e publicados em datas e em contextos muito diferen- tes. Reuni-los hoje responde a uma dupla intencdo. Por um lado, tra- tase de indicar meu percurso a partir da tradicdo historiogrdfica a qual pertenco — a da hist6ria sociocultural 4 maneira dos Annales. Entre o texto critico apresentado em Cornell em 1979 e publicado em 1983, que pretendia submeter a exame as divisGes e nocdes demasiado sim- ples sobre as quais tinha vivido a histéria das mentalidades, e o publi- cado em 1994, que tenta fazer o levantamento das principais razées que abalaram as certezas dos historiadores, tanto na Franga como fora dela, um caminho foi tracado. Ele é marcado pela ampliacao dos ho- rizontes historiograficos, pelo apagamento das fronteiras entre tradi- oes nacionais, pelo desencravamento da histéria, agora mais ampla- mente aberta as interrogacées das disciplinas que sao suas vizinhas. Situando em um campo de estudo particular, aquele que une textos, livros e leituras, os novos questionamentos definidos, o ensaio intitu- lado “O mundo como representacao” queria mostrar os ganhos que se pode esperar tanto da manipulacao dos conceitos que nao perten- ciam ao repert6rio classico da historia das mentalidades — por exem- plo, os de representacao ou de apropriacdo — quanto do cruzamento de abordagens e de técnicas por muito tempo disjuntas. Por outro lado — € esta é uma segunda intencao —, os quatro ensaios aqui reunidos permitem, pelo menos espero, determinar os principais debates que atravessaram a disciplina histrica nestes ul- timos vinte ou trinta anos. Os desafios foram numerosos e diversos, da “reviravolta linguifstica” 4 americana ao retorno ao politico, cris- talizado na ocasiao do Bicentendrio da Revolucao Francesa, da “re- viravolta critica” pleiteada pela redacdo dos Annales ao questiona- mento do estatuto de conhecimento da histéria. As discuss6es tra- vadas em torno dessas propostas, as vezes perturbadoras, transfor- maram profundamente os modos de pensar, de trabalhar e€ de es- crever dos historiadores. Elas fizeram surgir novos objetos; obriga- ram a reformular questées classicas (por exemplo, a da objetivida- de do discurso histérico); levaram a correlacionar de maneira iné- dita as formas da dominacao, a construcao das identidades sociais e as praticas culturais. Com 0 desaparecimento das antigas certezas, tais como organizadas pelos paradigmas dominantes dos anos 1960, a historia pareceu entrar em crise. Penso que 0 diagndstico nao € totalmente exato. Questionando as evidéncias que pareciam mais solidamente estabelecidas, o trabalho hist6rico encontrou uma nova vitalidade e articulou de modo inventivo as reflexoes tedricas ou metodoldgicas com a produgao de novos saberes. 1. Histdria intelectual e historia das mentalidades . Definir a histéria intelectual nao 4 tarefa facil, e isso por varias raz6es. A primeira manifesta-se no proprio vocabulario. Em nenhum outro campo da historia, de fato, existe uma tal especificidade nacio- nal das designag6es utilizadas e uma tal dificuldade para aclimaté-las, até mesmo simplesmente para traduzi-las para outra lingua e outro contexto intelectual.’ A historiografia americana conhece duas cate- gorias, cujas relacées sao, alids, pouco especificas e sempre problema- licas: a de intellectual history, surgida com a New History do inicio do século e constituida como designacao de um campo particular de pesquisa com Perry Miller; a de history of ideas, construida por Arthur Lovejoy para definir uma disciplina tendo seu objeto proprio, seu programa e seus métodos de pesquisa, seu lugar institucional (em particular, gracas ao Journal of the History of Ideas, fundado em 1940 por Lovejoy). Ora, nos diferentes paises europeus, nenhuma dessas duas designacoes passa: na Alemanha, Geistesgeschichle permanece dominan- te; na Italia, Storia intellectuale nado aparece, nem mesmo em Cantimo- ri. Na Franga, historia das idéias quase nao existe, nem como nocio. nem como disciplina (e foram de fato historiadores da literatura, tal ' Ver as primeiras paginas do arti ix Gil “ i ‘ igo de Felix Gilbert, “Intellectual 2 its Ai Methods”, Daedalus, Historical Studies Today, winter 1971, p.80-97. Binerpits Aisne como Jean Ehrard, que reivindicaram, alids, com dtividas € prudén- cia, 0 termo), ¢ histira intelectual parece ter chegado tarde demais para substituir as designacgoes tradicionais (histéria da filosofia, historia lite- aria, histéria da arte, etc.) e nao teve forga conura um novo vocabula- s historiadores dos Annales. historia das rio forjado essencialmente pelo: mentalidades, psicologia histérica, historia social das idéias, histéria sociocul- tural, etc. A recfproca desse fechamento 6, alids, verdadeira, ja que historia das mentalidades exporta-se mal, parece mal assegurada em outras linguas que nao o francés e parece ser a origem de intimeras confusdes, o que leva a nao traduzir a expresso e a reconhecer assim a irredutivel especificidade de uma maneira nacional de pensar as questées. As certezas lexicais das outras historias (econdmica, social, politica), a historia intelectual opGe, portanto, uma dupla incerteza do vocabulario que a designa: cada historiografia nacional possui sua propria conceitualizagao e, em cada uma delas, diferentes nocoes, dificilmente distinguidas umas das outras, entram em competi¢ao. Mas, por detrds dessas palavras que diferem, as coisas sao se- melhantes? Ou ainda, o objeto que designam tao diversamente é unico e homogéneo? Nada parece menos certo. A titulo de exem- plo, duas tentativas taxinémicas: para Jean Ehrard, a hist6ria das idéias recobre trés historias — “historia individualista dos grandes sistemas do mundo, historia dessa realidade coletiva e difusa que €éa opiniao, historia estrutural das formas de pensamento ¢ de sen- sibilidade”;? para Robert Darnton, a historia intelectual (intellectu- al history) compreende the history of ideas (the study of systematic thou- ght usually in philosophical treateses ), intellectual history proper (the stu- dy of informal thought, climates of opinion and literacy movements), the social history of édeas (the study of ideologies and idea diffusion) and cul- tural history (the study of culture in the anthropological sense, including world-views and collective mentalités® [a histéria das idéias (o estudo a 2 Jean Ehrard, “Histoire des idées et histoire littéraire”, in Problémes et méthodes de l'histoire Société Whistoire littéraire de la Uittéraire. Colloque 18 novembre 1972, Publications de la France, Paris, Armand Colin, 1974, p.68-80. and Cultural History”, in The Past Before Us: Contemporary His- (ed.), Cornell University Press, 1980, p.337. 3 Robert Darnton, “Intellectual torical Writing in the United States, M. Kammer 24 dos pensamentos si Ati d os Pensa ee geralmente em tratados filoséficos) cities P eee (o estudo dos pensamen- resem at ead entes de opinido e das tendéncias literdrias) deteen Megeee oe (o estudo das ideologias e da difusao das alien wane u tural (0 estudo da cultura no sentido antro- pelogic See im do mundo eas mentalidades coletivas) J. re emedbesems sun essas definicoes dizem, no fundo, he a ao at ue @ canbe da hist6ria dita intelectual reco- Sola nis tenn st jun 0 das formas de pensamento e que seu Shimieedh aah precisao a priori do que aquele da histéria so- Para além i 6 covamesfetnds, a ums mancinweomn, oun deeermiecanen — t , o, em um determin mer ni ost historiadores oo este territério imenso secdlea es de observacao assim constituidas. - das no centro de Sposigoes intelectuais ao mesmo sala ine. oe f cssas maneiras diversas determinam cada uma seu ob- _ ei s conceituais, sua metodologia. No entanto py eel a explicitamente ou nao, uma iepnesentia. ele ocupare daguele ampo historico, do lugar que ela pretende Snape chxado aos outros ou recusado. A incerte- music enmaa cao ° vocabulario de designacao remetem Chen odo prdpeaen ea ses utas interdisciplinares cujas configura- fig © to padean de ee de forcas intelectuais e cujo obje- ee gemonia, que é primeiramente hegemo- eremos enta i toe po aqui algumas das oposig6es que mode- eae ee ira original a histdria intelectual france- falta de roventigneden ciente de um duplo limite: por um lado, na ca caaeatien a nao poderemos restituir plenamen- de mitodo: por outs _ pu politicas subjacentes aos confrontos stim or Eeeealenne ne io a nossa posicao pessoal, privilegiare- tonne dam amen t Seaadann particular, aqueles travados em Sena oon € hoje, desequilibrando talvez assim o OS PRIMEIROS “ANNALES” E A HISTORIA INTELECTUAL No século XX, a trajetoria da hist6ria intelectual a Franca - Bite é duplo sentido de suas mutacoes tematicas ou mero’ nee eo cd iscipli a hit 5 d5es no campo disciplinar deslocamento de suas posi¢ ip ot is era externo: aqui da por um discurso que the qu amplamente comandat eee Sea istori uerras i i es que, entre as duas le mantido pelos historiador See eete i isti SCLeV' toria. Deve-se, t distinta de escrever a Nis formularam uma maneira ae ee ir dai der como a historia tir dai e tentar compreen deren i bvre e Marc Bloch, pensaram imeiro plano, Lucien Febvre € ; nales e, em primeiro Pp. . Mar h am ist6ria i rta, nao para ii a intelectual. O fato importa, © que devia ser a histori ie apeun a S i alquer, mas porque es! d celebracao retrospectiva qui : ae historia das idéias tornow-se progressivamentc to enue . a toriadores, na propria medida em que SS « nS _eman i i i nte sem dtivida, tornava~ : signada, muito abusivame ase donee de inicio intelectualmente nos anos 1930, em seguida instituc: 4 4 mente apés 1945. a ae vex Para Febvre, pensar a historia intelectual é pee gir Aquela que se escreve em sua época. Desse Laas de ter a n imeiros uublica Rev inui é gid s primeiros resumos Pp tinuidade é grande entre 0 a ése histori i Berr, antes de 1914, e aqueles q de synthése historique de Henri ‘ : not 6 erra Mundial. nte e apés a Segunda Gu concede aos Annales dura aaa 0 : na revista de , Ss ecensdes que consagra, I exemplo, as duas longas s re em 1907, ao livro de L. Delaruelle sobre Budé e, em 1909, ao S " , - Droz sobre Proudhon. Af se encontram ae duas ee : 5 do os prépri ntos de seus gra: ‘ Ges 0 os proprios fundame: cdes que fornecerat LO Ee odeae Te Jais em 1942. Primeiral 4 ser o Luther em 1929 e o Rabe frame. Pe idéins icionai 5 istoria das 1 ira i nais de que se serve a duzir as categorias tradicio see (Renascen¢a, Humanismo, Reforma, ete.) os occa meee &s eres contraditérios, frequentemente omnpeins . on to actos = : . * . 6vei m ou de um meio: esig: ; re moveis de um home: eS F echitak e classificatorias encerram contra-sensos € traem a . eee p 3/ inuities and Discontinuities”, Review, vol. I, n. el, “The Annales: Continuities and © ces: < nt ee ane 1978, p.9-18 ¢ “Histoire et sciences sociales: tes paradigme: , inverno- pe _ Annales’, Annales E.S.C.,, 1979, p-1360-1376. 26 psicolégica e intelectual antiga: “Assim, por exemplo, designando com o proprio nome de reforma, no inicio desse século [o século XVI], 0 esfor¢o de renovacao religiosa, de renascimento cristao de um Lefévre e de seus discipulos, j4 nao deformamos, interpretan- do-a, a realidade psicolégica de entao?”> Livrando-se dos rétulos que, pretendendo identificar os pensamentos antigos, na verdade os tra- vestem, a tarefa dos “historiadores do movimento intelectual” (como escreve Lefévre) é, antes de tudo, reencontrar a originalidade, irre- dutivel a toda definicao a priori, de cada sistema de pensamento, em sua complexidade e seus deslocamentos. _ O esforco para pensar a relacdo entre as idéias (ou as ideologi- as) e a realidade social através de categorias distintas daquelas da influéncia ou do determinismo € a segunda preocupacao expressa por Febvre antes mesmo de 1914. Testemunha disso é este texto de 1909 acerca do proudhonismo: Nao ha, no sentido préprio, teorias “criadoras” — porque assim que uma idéia, por mais fragmentaria que seja, foi realizada no dominio dos fatos e de maneira tao imperfeita quanto possivel - nao € a idéia que conta con- seqtientemente e que age, é a instituicdo situada em seu lugar, em seu tem- po, incorporando-se uma rede complicada e mével de fatos sociais, pro- duzindo e sofrendo alternadamente mil aces diversas e mil reacdes.° Mesmo que 0s procedimentos de “encarnac4o” das idéias sejam sem duvida mais complexos do que Febvre deixa supor aqui, resta que ele afirma claramente sua vontade de romper com toda uma tradi- cao de hist6ria intelectual (figura invertida de um marxismo simpli- ficado) que deduzia de alguns pensamentos voluntaristas a totalidade dos processos de transformacdo social. Para ele, o social nao pode- ria de modo algum se dissolver nas ideologias que visam a modela- lo. Estabelecendo assim, nesses textos de juventude, uma dupla dis- * Lucien Febvre, “Guillaume Budé et les origines de I'humanisme frangais. A propos Wouvrages récentes”, Revue de synthése historique, 1907, rctomado em Pour une histoire a bart entire, Paris, SEVPEN, 1969, p. 708. “Lucien Febvre, “Une question d'influence: Proudhon et les syndicalismes des années 1900-1914”, Revue desynthése historique, 1909, retomado em Pour une histoire a pari entiére, up. cit, p.785. tdncia, de um Jado, entre as manciras de pensar antigas € as nocoes, na maioria das vezes muito pobres, com as quails OS historiadores pre- tendiam cataloga-las; de outro, entre esses pensamentos antigos eo terreno social onde eles se inscrever, Lucien Febvre indicava 0 ca minho a seguir para uma anilise histGrica que tomaria por tance as descricdes dos fatos de mentalidade tais como os construiam en- tho os socidlogos durkheimianos ou os etndélogos que seguiam a tri- évy-Bruhl. . m aoe anos mais tarde, contra uma historia das idéias que Febvre percebe como imobilizada em suas abstragoes, o tom tornou- se mais critico e mais mordaz. Em 1938, ele maltrata assim os histo- riadores da filosofia: De todos os trabalhadores que retém, precisado ou nao por algum or teto, o qualificativo genérico de historiadores, nao existe quem Sint : que de alguma maneira ao nosso ver — salvo, com bastante | req ° em aqueles que, aplicando-se a repensar por sua conta sistemas a - varios séculos de idade, sem a menor preocupagao de estabel - su a relagao com as outras manifestacdes da €época que os viu Sl acha: ~ se assim fazendo, muito exatamente, o contrarlo do que rec ama método de historiadores. E que, diante dessas criacoes de paauee eel dos de inteligéncias desencarnadas — e depois vivendo sua propria vida fora do tempo e do espaco, urdem estranhas cadeias, de anéis ao mo tempo irreais e fechados oo Contra a histéria intelectual do tempo, a critica é, portanto, dupla. Por isolar as idéias ou os sistemas de pensamento das condicdes que autorizaram sua producao, por separa-los radicalmente das formas da vida social, essa historia desencarnada institui um universo de abstra- cdes onde o pensamento parece nao ter limites Ja que nao ot de- pendéncias. Explicando —com admiracao —o livro de Etienne Gi son, La Philosophie au Moyen Age, Febvre retoma, em 1948, esta act cr tral para ele: “Nao se trata de subestimar 0 papel das idéias na his e tia. Menos ainda de subordindo a ac4o dos Interesses. Trata-se de mostrar que uma catedral gética, os mercados de Ypres... € uma des- sprue my ‘ 9 7 Lucien Febvre, “Leur histoire et la notre”, Annales d histoire économique et sociale, 1928, retomado em Combats pour U'Histoie, Paris, Armand Golin, 1953, p.278. 28 sas grandes catedrais de idéias como as que Etienne Gilson nos des- creve em seu livro —sao as filhas de um mesmo tempo. Irmas que cres- ceram em um mesmo lar”.* Sem explicita-la ou teoriza-la, Febvre su- gere aqui uma leitura que postula, para uma dada época, a existéncia de “estruturas de pensamento” (a express4o nao aparece em Febvre), clas proprias comandadas pelas evolugées socioecondmicas, que or ganizam tanto as construcoes intelectuais quanto as produgoes artis- licas, tanto as praticas coletivas como os pensamentos filosficos. Arquitetura e escolastica: a letra mesma da observacao de Feb- vre convida a aproxima-la do livro muito contemporaneo de Erwin Panofsky, Gothic Architecture and Scolasticism (objeto de uma série de conferéncias em 1948 e publicado em 1951).° Com efeito, ambos, de maneira paralela, e muito provavelmente sem influéncia recipro- ca, tentam na mesma €poca criar os meios intelectuais que permi- (am pensar este “espirito da época”, este Zeitgeist que, por exemplo, fundamenta todo o método de Burckhardt mas que, para Panofsky ¢ para Febvre, é, bem mais do que o que explica, justamente o que deve ser explicado. Fazendo isso, cada um a sua maneira, distancia- se das nocoes que até entao subentendiam implicitamente os traba- lhos de histéria intelectual, ou seja: 1. 0 postulado de uma relacao consciente e transparente entre as intengdes dos produtores intelectuais e seus produtos; 2. a atribuicado da criacdo intelectual (ou estética) apenas a in- ventividade individual, portanto, sua liberdade — idéia que funda o motivo mesmo, tao caro a uma certa historia das idéias, do precursor; 3. a explicagao das concordancias determinadas entre as dife- rentes produc6es intelectuais (ou artisticas) de um tempo, seja pelo jogo dos empréstimos e das influéncias (outras palavras mestras da hist6ria intelectual), seja pela referéncia a um “espirito da época”, conjunto compésito de trac¢os filoséficos, psicoldgicos e estéticos. “Lucien Febvre, “Doctrines et sociétés, Etienne Gilson et la philosophie du XIV’ siécle”, Annales E.S.C., 1948, retomado em Combats pour U'Histoire, op. cit., p.288. “Erwin Panofsky, Architecture gothique et pensée scolastique, precedido por L’Abbé Suger de Saint-Denis, traducao c posfacio de Pierre Bourdieu, Paris, Editions de Minuit, 1967. 29 Pensar de outro modo essas diferentes relagoes (entre a obra e seu criador, entre a obra e sua época, entre as diferentes obras de uma mesma época) exigia forjar conceitos novos: em Panolsky, os de habitos mentais (ou habitus) e de forcas formadoras de habitos (Aabit-forming forces); em Febvre, o de aparelhagem mental. Em am- bos os casos, gracas a essas Novas NOCOEs, tomava-se uMa distancia dos procedimentos habituais da histéria intelectual e, por essa ra- 740, seu proprio objeto se encontrava deslocado. Em seu Rabelais, publicado em 1942, Febvre nao define a apa- relhagem mental, mas carateriza-a assim: Acada civilizacdo sua aparelhagem men tal; mais do que isso, a cada época de uma mesma civilizacdo, a cada progresso, seja das técnicas, seja das ciéncias que a carateriza - uma aparelhagem renovada, um pouco mais desenvolvida para certos empregos, um pouco menos para outros. Uma aparelhagem mental que essa civilizagao, que essa época nao esta garan- tida de poder transmitir, integralmente, as civilizacdes, as épocas que vao Ihe suceder; ela podera conhecer mutilacdes, retrocessos, deformacoes significativas. Ou, ao contrario, progressos, enriquecimentos, complica- cées novas. Ela vale para a civilizagao que soube forja-la; vale para a €po- ca que a utiliza; nao vale paraa eternidade, nem para a humanidade: nem mesmo para © curso restrito de uma evolugao interna de civilizacdo.!° O que queria dizer trés coisas: primeiramente, seguindo o Lévy-Bruh]l de La Mentalité primitive (1922), que as categorias do pensamento nao siio nem universais nem redutiveis Aquelas operacionalizadas pelos homens do século XX; em seguida, que as maneiras de pensar depen- dem, antes de mais nada, dos instrumentos materiais (as técnicas) ou conceituais (as ciéncias) que as tornam possiveis; enfim - contra um evolucionismo ingénuo — que nao ha progresso continuo e necessario (definido como uma passagem do simples ao complexe) na sucesso das diferentes aparelhagens mentais. Para compreender o que, para | Febvre, designa a propria nocao de aparelhagem mental, dois textos podem ser evocados: por um lado, o tomo primeiro de LEncyclopédie francaise, publicado em 1937, sob 0 titulo L’Outillage mental. Pensée, lan- 4 © Lucien Febvre, Le Probléme de Vincroyance au XVF siécle. La religion de Rabelais, 1942, ree- dicdo, Paris, Albin Michel, col. L’Evolution de YHumanité, 1968, p.141-142. 30 gage, manthématique, por outro, o segundo livro da segunda parte de Rabelais. O que define nessas paginas a aparelhagem mental é 0 estado da lingua, em seu léxico e sua sintaxe, as ferramentas ¢ a linguagem cien- tifica disponiveis, e também este “suporte sensivel do pensamento” que é 0 sistema das percepcées, cuja economia varidvel comanda a estrutu- ra da afetividade: “Aparentemente tao proximos de nds, os contempo- raneos de Rabelais ja estao muito longe por todas suas pertengas inte- lectuais. E sua prépria estrutura nao era a nossa”"" (0 grifo é nosso). Em uma determinada época, o cruzamento desses diferentes suportes (lin- guisticos, conceituais, afetivos) comanda “modos de pensar ¢ de sen- tir” que recortam configuracGes intelectuais especificas (por exemplo, sobre os limites entre 0 possivel e o impossivel ou sobre as fronteiras entre o natural e o sobrenatural). A tarefa primeira do historiador, assim como do etndlogo, € entao resgatar essas representacées, em sua irredutivel especificida- de, sem recobri-las com categorias anacr6nicas, nem medi-las pela aparelhagem mental do século XX, posto implicitamente como.o resultado necessdrio de um progresso continuo. Também aqui, Febvre reencontra Lévy-Bruhl para alertar contra uma leitura err6- nea dos pensamentos antigos. Prova disso € a similitude entre a in- trodugao de La Mentalité primitive Ao invés de substituirmos em imaginacdo os primitivos que estudamos, e de fazé-los pensar como nés pensariamos se estivéssemos em seu lu- gar, o que sé pode levar a hipoteses no maximo provaveis e quase sem- pre falsas, esforcemo-nos, ao contrario, para nos prevenir contra nossos prdprios habitos mentais e tratemos de descobrir os dos primitivos por meio da andlise de suas representacées coletivas e das ligagées entre es- sas representacdes!? e as primeiras paginas de um livro publicado por Febvre em 1944, Amour sacré, amour profane. Autour de UHeptaméron: A esses ancestrais, atribuir candidamente conhecimentos de fato — e por- tanto materiais de idéias — que possuimos todos, mas que eram impossi- ” Bid., p. 394. * Lucien Lévy-Bruhl, La Mentalité primitive, 1922, reedicao, Paris, Retz, 1976, p.41. veis de adquirir mesmo pelos mais sabios dentre eles; imitar om oe missiondrios que outrora voltavam maravilhados das ilhas”: pois to tos os sclvagens que tinham encontrado acreditavam em sie um peq passo a mais, e eles seriam verdadciros cristaos; dotar tam ém ma " temporaneos do papa Leado, com uma generosidade sem limite, a : cepgdes do universo € da vida que nossa ciéncia nos forjou € que os 7 que nenhum de seus elementos, ou quase, jamais habitou ° mr od ‘ um homem da Renascenga -, podem-se contar infelizmente os historia- dores — falo dos mais influentes, que recuam diante de uma tal oa cao do passado, uma tal mutilacao da pessoa humana em sa evo) ape " isso, sem duvida, por nao se ter levantado a questao acima, a — a inteligibilidade. Na verdade, um homem do século XVI deve ser gi vel nao em relacdo a nés, mas emi relacao a seus contemporaneos. Anocio de aparelhagem mental tal como empregada i Feb- vre apresenta, todavia, um certo ntiimero de diferencas em relagao aos conceitos, no entanto proximos, avan cados na mesma época por Panofsky. Em primeiro lugar, a propria palavra pele (ou a expressao “aparelhos mentais”, as vezes empregada por Fe wre), que sugere a existéncia quase objetivada de uma pandplia de — tos intelectuais (palavras, simbolos, conceitos, etc.) 4 disposicao 0 pensamento, contrasta com a maneira como Panofsky define oO ha bito mental, conjunto de esquemas inconscientes, de principios in- teriorizados que dao sua unidade as maneiras de pensar = uma época seja qual for o objeto pensado. Nos séculos XII € x H, por exemplo, so os principios de esclarecimento € de conciliacao os contrarios que constituem um modus operandi escolastico, cujo cam- po de aplicacao nao se limita 4 construcao teoldgica. Dessa primei ra decalagem resulta uma segunda. Em Febvre, a aparelhagem ante Jectual que os homens podem manipular os homens de uma epoca € pensada como um estoque dado de “materiais de idéias” (per re tomar sua expressao). Conseqiientemente, 0 que diferencia as men- talidades dos grupos sociais é, antes de mais nada, a utilizacao mais ou menos extensa que fazem dos “instrumentos disponiveis: & mais eruditos empregarao a quase totalidade das palavras ou dos concei- 4 sak . 3 Lucien Febvre, Amour sacré, amour profane, Autour de U'Heptaméron, 1944, reedicao, Pa- ris, Gallimard, col. Idées, 1971, p.10. 32 tos existentes, os mais desfavorecidos nao utilizarao senao uma par- te infima da aparelhagem mental de sua €poca, limitando assim, em relacéo a seus préprios contemporaneos, o que lhes é possivel pen- sar. A énfase em Panofsky é distinta (e paradoxalmente mais social). Com efeito, para ele, os habitos mentais remetem a suas condigées de inculcacao, portanto, a estas “forgas formadoras de habitos” (habit- forming forces) — por exemplo, a instituicao escolar em suas diferen- tes modalidades — préprias a cada grupo. Ele pode entao compre- ender, na unidade de sua producao, as homologias de estrutura exis- tentes entre diferentes “produtos” intelectuais de determinado meio, e também pensar as variagées entre os grupos como diferencas en- tre sistemas de percepcao e de apreciacao, eles préprios remetendo a diferencas nos modos de formac¢ao. E dessa concep¢ao que se apro- xima Marc Bloch quando, no capitulo de La Société féodale intitula- do “Maneiras de sentir e de pensar”, hierarquiza niveis de lingua e universos culturais em funcao das condigées de formagao intelec- tual."* No entanto, aqui falta, como em Febvre, a andlise (central em Panofsky) dos mecanismos através dos quais categorias de pensamen- to fundamentais tornam-se, em um determinado grupo de agentes sociais, esquemas interiorizados € inconscientes, estruturando todos os pensamentos ou acdes particulares. Apesar dessa limitacao, de natureza teérica, fica bem claro que a posicao dos historiadores da primeira geracao dos Annales pesou muito na evolucao da histéria intelectual francesa. De fato, ela des- locou o préprio questionamento: o que € importante compreen- der nao é mais as audacias do pensamento, mas bem mais os limi- tes do concebivel. A uma histéria intelectual das inteligéncias sem limites e das idéias sem suporte, é oposta uma hist6ria das repre- sentacées coletivas, das aparelhagens e das categorias intelectuais disponiveis e compartilhadas em uma época dada. Em Lucien Febvre, é um tal projeto que funda o primado concedido ao estu- do biografico. Luther em 1928, Rabelais e Des Periers em 1942, Marguerite de Navarre em 1944: casos onde determinar como, para "Mare Bloch, La Société féodale, 1939, reedicao, Paris, Albin Michel, col. L’Evolution de V’Humanité, 1968, p.115-128. 33 os homens do século XVI, se organizam a percepcao € a represen- tagao do mundo, como se definem os limites do que € entao possi- vel pensar, como se constroem relagées proprias a época entre re- ligido, ciéncia e moral. Assim, 0 individuo é devolvido a sua épo- ca, ja que, seja ele qual for, nao pode se subtrair as determinagoes que regulam as maneiras de pensar ¢ de agir de seus contempora- neos. A biografia intelectual a Febvre é, portanto, na verdade, his- (6ria social, visto que situa seus herdis como testemunhas €, ao mesmo tempo, como produtos das imposigoes que limitam a livre invencao individual. O caminho estava assim aberto (uma vez aban- donado o gosto particular de Febvre pela biografia) para uma his- téria dos sistemas de crencas, de valores e de representacécs pr6- prios a uma época ou grupo, designada na historiografia francesa pela expressao, tanto mais globalizante quanto seu sonteddo no- cional permanece vago, de “historia das mentalidades”. E ela que devemos examinar agora. HISTORIA DAS MENTALIDADES/HISTORIA DAS IDEIAS A partir dos anos 1960, a nogao de mentalidade impdc-se na historiografia francesa para qualificar uma historia que nao estabe- lece como objeto nem as idéias nem os fundamentos socioecond- micos das sociedades. Mais exercida do que teorizada, essa hist6ria das mentalidades “4 francesa” repousa sobre um certo niimero de concepc¢édes mais Ou menos comuns a seus praticos.!° Primeiramen- te, a definicao da palavra: “a mentalidade de um individuo, mesmo sendo um grande homem, é€ justamente o que ele tem de comum com outros homens de seu tempo”, ou ainda “o nivel da historia das 18 xeorges Duby, “L’histoire des mentalités”, in L’Histotre et ses méthodes, Paris, Galli- snarl, bibliotheaue de la Pléiade, 1961, p.937-966; Robert Mandrou, “histoire des mentalités”, in Encyclopedia Universalis, vol, VIIL, 1968, p.436-438; Georges Duby, His- toire sociale et histoire des mentalités. Le Moyen Age”, 1970, in Aujourd "hui UHistoire, Paris, Editions Sociales, 1974, p.201-217; Jacques Le Goff, “Les menialités. Une histoire ambigué”, in Maire de Phistoire, Paris, Gallimard, 1974, t. U1, p.76-94; Ehilippe Ariés, “L’histoire des mentalités”, ¢ Roger Chartier, “Outillage mental’, in La Nouvelle Histoire, Paris, Retz, 1978, p.402-423 e p.448-452. 34 mentalidades € aquele do cotidiano e do automatico, é 0 que esca- Pa aos sujeitos individuais da hist6ria porque revelador do contei- do impessoal de seu pensamento” (as duas definiges sao de Jacques Le Goff). E assim constituido como objeto histérico fundamental um objeto que € 0 contrdrio mesmo daquele da historia intelectual classica: a idéia, construgdo consciente de uma mente individuada, opde-se termo a termo a mentalidade sempre coletiva que regula, sem que eles o saibam, as representacées e julgamentos dos atores sociais. A relacdo entre a consciéncia e 0 pensamento é, portanto, estabelecida de uma nova maneira, proxima daquela dos socidlogos da tradicéo durkheimiana, enfatizando os esquemas ou 0s contet- dos de pensamento que, mesmo que sejam enunciados sobre o modo individual, dependem, na verdade, dos condicionamentos incons- cientes e interiorizados que fazem com que um grupo ou sociedade compartilhe, sem que seja preciso explicitd-los, um sistema de repre- sentacoes € um sistema de valores. Outro ponto de acordo: uma concepedo muito ampla do cam- po recoberto pela no¢ao de mentalidade que engloba, como escre- ve Robert Mandrou, “o que é concebidoe sentido, o campo da inte- ligéncia e do afetivo”. Por isso, a aten¢ao dedicada tanto as catego- rias psicoldgicas (e provavelmente) quanto as categorias intclectuais, portanto, mais uma decalagem entre uma histéria das mentalidades identificada a psicologia hist6rica e a historia intelectual em sua de- finicdo tradicional. Muito presente em Febvre, leitor atento de Charles Blondel (Introduction &@ la psychologie historique, 1929) e de Henri Wallon (Principes de psychologie appliquée, 1930), e em seus su- cessores (0 livro de Mandrou, Introduction é la France moderne, 1500- 1640, publicado em 1961, nao tem 0 subtitulo Essai de psychologie his- lorique?), essa identificacao funda a propria obra de Ignace Meyer- son, cuja importancia foi central para a transformacao do campo dos "CE seus trés artigos: “Méthodes et solutions pratiques. Henri Wallon et la psycholo- gic appliquée”, Annales d'histoire é nomique et sociale, 1931, “Une vue d'ensemble. His- toire et psychologie”, Encyclopédie Francaise, 1938, ¢ “Comment reconstituer la vie affec- tive d’autrefois? La sensibilité et Phistoire", Annales d histoire sociale, 1941, retomado em Combats pour Uhistoire, op. cil., p.201-238. opsicap iat: estudos gregos."” Para além mesmo do projeto de reconstituicao dos sentimentos e das sensibilidades proprios aos homens de uma €po- ca (que é, grosso modo, o projeto de Febvre), sao as categorias psico- logicas essenciais, aquelas em acao na construcao do tempo e do espaco, na produc¢ao do imagindrio, na percepcao coletiva das ati- vidades humanas, que s4o postas no centro da observacao € apreen- didas no que tém de diferente de acordo com as épocas historicas. Por exemplo, a nogao de pessoa tal como abordada por Jean-Pierre Vernant, seguindo Meyerson: Nao ha, nao pode haver pessoa-modelo, exterior ao curso da histéria humana, com suas vicissitudes, suas variedades conforme os lugares, suas transformacoes conforme o tempo. A investigacdo nao tem, pois, de es- tabelecer se a pessoa, na Grécia, € ou nao é, mas buscar 0 que € a pessoa grega antiga, em que ela difere, na multiplicidade de seus tracos, da pes- soa de hoje.'® A partir de uma posicao intelectual semelhante, Alphonse Dupront propunha em 1960, no Congresso Internacional das Ciéncias His- téricas, em Estocolmo, constituir a histéria da psicologia coletiva como disciplina particular no campo das ciéncias humanas, e isso, dando-lhe uma extensdo maxima ja que recobrindo “a histéria dos valores, das mentalidades, das formas, das simbolicas, dos mitos”.!” Na verdade, através de uma tal definicio da psicologia coletiva, era uma reformulacao total da historia das idéias que era sugerida. Um dos objetos maiores da histéria da psicologia coletiva €, com efeito, constituido pelas idéias-forcas € pelos conceitos essenciais que habi- tam o “mental coletivo” (a expressao é de Dupront) dos homens de uma €poca. As idéias, apreendidas através da circulacao das palavras que as designam, situadas em seus enraizamentos sociais, pensadas em sua carga afetiva e emocional tanto quanto em seu conteido intelec- 17 Ignace Meyerson, Les Fonetions psychologiques et les oeuvres, Paris, Vrin, 1948, reedicao, Paris, Albin Michel, 1995. '8 Jean-Pierre Vernant, Mythe et pensée chez les Grecs. Etudes de psychologic historique, Paris, Maspero, 1965, p.13-14. '’ Alphonse Dupront, “Problémes et méthodes d'une histoire de la psychologie collec- tive”, Annales E.S.C., 1961, p.3-11. 36 tual, tornam-se assim, exatamente como os mitos ou os valores, uma destas “forcas coletivas através das quais os homens vivem seu tempo”, portanto, um dos componentes da “psique coletiva” de uma civiliza- cao. Aqui, ha como que uma conclusio da tradigao dos Annales, tan- to na caracterizacio fundamentalmente psicolégica da mentalidade coletiva quanto na redefini¢ao do que deve ser a historia das idéias, ressituada em uma exploracao global do mental coletivo. E claro, enfim, que como a histéria das mentalidades (conside- rada como uma parte da historia sociocultural) tem por objeto o co- letivo, o automatico, o repetitivo pode e deve fazerse contavel: “A his- tria da psicologia coletiva necessita de séries, sendo exaustivas, pelo menos o mais amplas possivel”.”* Vé-se, deste modo, o que ela deve 4 histéria das economias e€ das sociedades que, no horizonte da grande crise dos anos 1980, depois naquele do imediato pés-guerra, consti- tuiu o setor “pesado” (pela quantidade de investigacGes e pelos éxi- tos de alguns cmpreendimentos) da pesquisa histdrica na Franga. Quando, nos anos 1960, a histéria cultural emerge como o dominio mais freqiientado € mais inovador da historia, ela o faz retomando, para transp6-las, as problematicas ¢ as metodologias que garantiram o sucesso da hist6ria socioecondémica. O projeto é simples, claramen- te enunciado a posteriori por Pierre Chaunu: O problema consiste em usar realmente 0 terceiro nivel [ou seja, 0 afe- tivo e o mental (R. C.)] em beneficio das técnicas de uma estatistica re- gressiva, em beneficio, pois, da andlise matematica das séries e da dupla interrogacao do documento, primciramente em si, depois em relacao a sua posicao no seio da série homogénea na qual a informagao de base esta integracla e posta. Trata-se de uma adaptacao tao completa quanto possivel dos métodos aperfeicoados ha varios anos pelos historiadores da economia, ¢ depois por aqueles da quantidade social.” Dessa primazia concedida a série ¢, portanto, a coleta € ao tra- tamento de dados homogéneos, repetidos e comparaveis a interva- ” Thid., p.8. “1 Pierre Chaunu, “Un nouveau champ pour Vhistoire sérielle: le quantitadf au troisiéme niveau”, in Mélanges en Vhonneur de Fernand Braudel, Toulouse, Privat, 1973, LHL, p.105-125. 37 los regulares, dependem varios corolarios, e primeiramente 0 privi- légio dado a conjuntos documentais macicos, amplamente represen- tativos socialmente e que autorizam sobre um longo periodo a cole- ta de dados multiplos. Dai, a releitura e a reutilizagao de fontes clas- sicamente utilizadas em histéria social (por exemplo, os arquivos notariais); dai, também, a invencao de novas fontes proprias a res- gatar os modos de pensar ou de sentir. Para além da similitude me- todolégica, essa “hist6ria serial do terceiro nivel” (para retomar a expressao, que discutiremos posteriormente, de Pierre Chaunu) compartilha com aquela das economias e das sociedades uma du- pla problematica. A primeira é a das duragées: como articular, com cfeito, o tempo longo de mentalidades que, no nivel do maior nu- mero, s40 pouco moéveis € pouco plasticas, com o tempo curto de bruscos abandonos ou de transferéncias coletivas de creng¢a e de sen- sibilidade? A questao (levantada, por exemplo, acerca da descristia- nizacao da Franca entre 1760 e 1800) reproduz a interrogacdo cen- tral de La Méditerranée. como pensar a hierarquizacao, a articulacao ca complexidade das diferentes duragées (tempo curto, conjuntu- ra e longa duracao) dos fendmenos histéricos?” Asegunda heran¢a problematica da hist6ria cultural reside na maneira de conceber as relacGes entre os grupos sociais € os niveis culturais. Fiéis 4 obra de Ernest Labrousse e a “escola” francesa de hist6ria social, os recortes feitos para classificar os fatos de mentali- dade resultam sempre de uma andlise social que hierarquiza os ni- veis de fortuna, distingue os tipos de rendas, classifica as profissoes. E, portanto, a partir dessa grade social e profissional, dada de ante- mao, que pode ser operada a reconstituigao dos diferentes sistemas de pensamento e de comportamentos culturais. De onde, uma ade- quacao necessdria entre as divisdes intelectuais ou culturais e as fron- teiras sociais, quer sejam aquelas que separam o povo e os notaveis, os dominados e os dominadores ou aquelas que fragmentam a esca- la social. Essa primazia quase tiranica do social, que define previa- “ Fernand Braudel, La Méditerranée et le monde méditerranéen a Uépoque de Philippe Il, 2.ed.., Paris, Armand Colin, 1966, t. I, p.16-17, e “Histoire et sciences sociales. La longue du- rée”, 1959, in Ecrits sur U'Histoire, Paris, Flammarion, 1969, p.41-83. 38 mente variac6es culturais que em seguida se trata apenas de carac- terizar, é o traco mais nitido dessa dependéncia da histéria cultural em relagao a hist6éria social que marca a historiografia francesa do pos-guerra (pode-se alias observar que essa dependéncia nao existe em Febvre ou Bloch, mais sensiveis seja as categorias compartilha- das por todos os homens de uma época, seja aos usos diferenciados do equipamento intelectual disponivel). Foi sobre esses fundamentos metodolégicos, manifestos ou in- conscientes, que a histéria das mentalidades desenvolveu-se na his- toriografia francesa nos Ultimos quinze anos. Ela respondia, com efeito, bem mais do que a historia intelectual, as novas tomadas de consciéncia dos historiadores franceses. Dentre estas, trés antes de tudo sdo mais importantes. Em primeiro lugar, a consciéncia de um novo equilibrio entre a histéria e as ciéncias sociais. Contestada em seu primado intelectual ¢ institucional, a historia francesa reagiu anexando os terrenos € os questionamentos das disciplinas vizinhas (antropologia, sociologia) que questionavam sua dominacao. A aten- cdo deslocou-se entao para 0s objetos (os pensamentos e gestos co- letivos diante da vida e da morte, as creng¢as e rituais, os modelos educativos, etc.) até entao prdprios a investigacao etnolégica e para novas questdes, amplamente estrangeiras a histéria social, dedica- da antes de tudo a hierarquizar os grupos constitutivos de uma socie- dade. Tomada de consciéncia, também, de que as diferenciagoes sociais ndo podem ser pensadas somente em termos de fortuna ou de dignidade, mas que s4o ou produzidas, ou traduzidas por varia- ¢6es culturais. A distribuicdéo desigual das competéncias culturais (por exemplo, ler e escrever), dos bens culturais (os livros ou os quadros), das praticas culturais (das atitudes diante da vida aquelas diante da morte) tornou-se assim 0 objeto central de multiplas in- vestigacoes, conduzidas de acordo com métodos quantitativos € vi- sando, sem questiond-la, a dar um conteudo outro a hierarquizagao social. Enfim, uma outra tomada de consciéncia coletiva reconhe- ceu que, para abordar esses novos dominios, as metodologias classi- cas nao bastavam: eis a razdo, como j4 vimos, do recurso 4 andlise serial onde as disposigGes testamentarias, os motivos iconograficos 39 cos contetidos impressos substituiram os pre¢os do trigo; razao tam- hém do trabalho sobre a ou as linguagens, da lexicometria a seman- tica hist6rica, da descric¢éo dos campos semanticos a andlise dos enun- ciados.” Por transpor procedimentos e problemas que eram os da hist6ria socioeconémica, ao mesmo tempo que operava um deslo- camento do questionamento historico, a histéria das mentalidades (parte ou totalidade da hist6ria sociocultural) pode ocupar a dian- tcira do palco intelectual e parecer (como sugeria implicitamente Alphonse Ducront) reformular — e, portanto, desqualificar — a ma- Neira antiga de fazer a histéria das idéias. : Mas essa reformulacao também foi feita no interior do campo da historia intelectual e chegou a posi¢Ges totalmente contraditérias com aquelas dos historiadores das mentalidades. Aqui, a obra funda- mental, alids, bem acolhida pelos Annales, € a de Lucien Goldmann. No ponto de partida, seu projeto subentende uma mesma distancia em relacdo as modalidades tradicionais, biogrdfica e positivista, da hist6ria das idéias. Como em Febvre, como na histéria das mentalida- des, trata-se antes de tudo de construir a articulacdo entre os pensa- mentos € o social. Extraido de Lukacs, o conceito de “visto do mun- do” é o instrumento que autoriza essa apreensao. Definido como “o conjunto de aspiracées, de sentimentos e de idéias que retine os mem- bros de um mesmo grupo (na maioria das vezes, de uma classe social) € 08 opée aos outros grupos”,”® ele permite uma tripla operacao: atri- buir uma significacao € uma posicdo sociais definidas aos textos lite- rarios e filos6ficos, compreender os parentescos que existem entre obras de forma e de natureza opostas, discriminar no interior de uma obra individual 0s textos “essenciais” (0 adjetivo é de Goldmann), cons- titufdos como um todo coerente, ao qual cada obra singular deve ser relacionada. Em Goldmann, o conceito de visio de mundo tem, pois, o encargo das funcées que séo aquelas da aparelhagem mental em 2 Cf R. Robin, Histoire et Linguistique, Paris, Armand Colin, 1973. ™ Lucien Goldmann, Le Dieu caché. Etude sur la vision tragique dans les Pensées de Pascal et dans le thédtre de Racine, Paris, Gallimard, 1955, e o artigo de Robert Mandrou, “Tragi- au XVII siécle. A propos de travaux récents”, Annales E.S.C., 1957, p.305-313. *® Lucien Goldmann, op. cit., p.26. 40 Febvre c, simultaneamente, do habitus em Panofsky (e Bourdieu). O Dieu Caché dava uma aplicacao, discutivel mas exemplar, dessas pro- postas, construindo os Pensées de Pascal e nove tragédias de Racine, de Andromaque até Athalie, como © corpus expressando com a maior coeréncia “uma visdo trégica do mundo”, identificada ao jansenismo, e relacionando essa consciéncia coletiva a um grupo particular, o dos oficiais de toga privados de seu poder, portanto, de seu poder social, pela construcao do Estado absolutista. Seja qual for a validade historica dessa andlise, ela trazia uma idéia essencial, totalmente oposta a um dos postulados da historia das mentalidades, ou seja, que sio os “grandes” escritores ¢ filéso- fos que exprimem com mais coeréncia, através de suas obras essen- ciais, a consciéncia do grupo social ao qual pertencem; sao elas que atingem “o maximo de consciéncia possivel do grupo social que ex- pressam”. De onde a primazia concedida aos textos maiores (defi- nidos, de maneira nova, por sua adequacao a uma visio do mundo) e seu corolario: a desconfianga, sendo a rejeicao, das abordagens quantitativas no campo da histéria cultural. Bem antes das reservas atuais, baseadas em uma concep¢ao antropolégica da cultura, foi na tradicao da historia intelectual 4 Goldmann que surgiram os primei- ros alertas contra as ilusdes da quantificacao. “Uma histéria sociol6é- gica da literatura deve privilegiar o estudo dos grandes textos”, es- creveu Jean Ehrard,”* 0 que queria dizer, por um lado, que é na sin- gularidade desses textos que se mostram mais claramente, mais com- pletamente, as idéias compartilhadas; por outro, que as contagens das palavras, dos titulos, dos motivos, dos temas sao, no sentido pro- prio, “insignificantes”, isto é, incapazes de restituir as significacées complexas, conflituais e contraditorias, dos pensamentos coletivos. Acoleta contavel do superficial, do banal, do rotineiro nao é repre- sentativa, e a consciéncia coletiva do grupo (que é “inconsciéncia” coletiva para a maioria) se da a ler unicamente no trabalho, imagi- nativo ou conceitual, dos poucos autores que a elevam a seu mais alto grau de coeréncia e de transparéncia. * Jean Ehrard, op. cit., p.79. 41

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