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TIVE UMA IDEIA

 Era uma menina cheia de graça, tinha tanta, tanta graça que, muitas vezes,
ficava submersa na desgraça. Chamava-se Rosarinho Nariz de Arminho e
sonhava inventar uma roda voadora que andasse sempre a rodar pelos céus
abertos como correm, nas pistas, os carros de corrida.
 A Rosarinho Nariz de Arminho tinha os cabelos compridos, a boca grande e os
olhos rasgados como buracos negros nos lençóis de flanela. E, a cada instante,
dizia: “Tive uma ideia.”
Quando a Rosarinho Nariz de Arminho dizia “tive uma ideia”, todas as orelhas
de meninos e animais se arrebitavam na expectativa de uma grande invenção.
 Numa manhã brilhante, a Rosarinho Nariz de Arminho, depois de anunciar a
sua iluminação, agarrou numa almofada, depois noutra e noutra ainda,
recolheu todas as almofadas da casa e disse: “Esta é a minha jangada e vou
partir para o alto mar.”
 Já, nas inquietas águas do Tejo, a jangada navegava, quando um grupo de
golfinhos, todos muito aprumados e arrumadinhos, por ela passou, saboreando
aquela água tão suave como leite.
 - Conheço-vos, vocês são aqueles golfinhos que voltaram ao Tejo porque
apareceu um vírus que assombrou a cidade e as pessoas foram obrigadas a
fechar-se em casa. Os automóveis ficaram arrecadados nas garagens, os
aviões parados nos aeroportos e, nos comboios e nos carros elétricos, só
viajavam fantasmas. Agora as águas deste rio estão muito mais limpas e
transparentes - disse, muito despachada, a Rosarinho Nariz de Arminho.
 - Tínhamos tantas saudades deste rio! Adoramos nadar no Tejo e olhar as
casas dependuradas nas colinas da cidade - respondeu o golfinho mais sedoso
da família.
 - Tive uma ideia, vocês nadam ao lado da minha jangada e acompanham a
minha viagem - propôs a espevitada Rosarinho Nariz de Arminho.
 - Aproveitaríamos a tua ideia se estas águas não estivessem tão gostosas e
claras. Queremos ficar aqui, não queremos voltar já para o mar. E tu, menina,
toma cuidado, que, no mar, há tubarões carnívoros e raias gigantes que te
podem fazer mal! - agradeceu e avisou a mãe-golfinho que pensava, sempre
receosa, nos seus filhos descuidados.
 E a Rosarinho Nariz de Arminho continuou a comandar a sua jangada em
direção ao alto mar. O vento soprava, cada vez mais forte, e as ondas do mar
subiam e desciam, incomodadas com aquela grande ventania. Mas a
Rosarinho Nariz de Arminho estava encantada com a animada montanha-russa
que ora a erguia até ao céu, ora a atirava para o precipício. “Esta ideia foi
mesmo boa”, pensava a menina.
 Porém, enquanto a Rosarinho Nariz de Arminho se embebia no melhor dos
mundos, surgiu um tubarão-azul que lhe abriu a enorme boca e a deixou  um
pouco encolhida.
 - Eu sou um tubarão-azul, gosto mais de lulas do que de meninas, mas, se
encontrares um tubarão-branco daqueles que medem muitos metros de
comprimento, vais desejar não teres tido esta ideia luminosa de viajares
sozinha numa pequena jangada, sulcando o mais alto dos mares - disse,
preocupado, o belo tubarão-azul.
 - Não te inquietes, tubarão-azul, eu tive uma ideia. Trouxe um frasquinho de
tinta invisível que roubei de um livro que conta a história de Alice no País das
Maravilhas, vou bebê-lo e tornar-me invisível - respondeu, com ar decidido, a
Rosarinho Nariz de Arminho, e, se bem o disse, melhor o fez.
 E assim continuou a intrépida menina naquele vaivém de ondas, desejando
que aparecesse o tubarão-branco e que uma aventura ainda mais emocionante
acontecesse.
 Então, lá longe, muito longe daquele cais onde a Torre de Belém a vira partir,
apareceu uma figura enorme, branca como uma alma penada, faminta e
terrível, que, em volta da jangada, rodou três vezes, rodou três vezes tenaz e
voraz, e, com uma violenta cabeçada, atirou a jangada para o alto, tão alto que
entrou dentro de uma nuvem cinzenta que viajava inchada e pesada à espera
de despejar a sua carga sobre uma terra carcomida e seca.
  A Rosarinho Nariz de Arminho, pequenina e invisível, agarrou-se às bordas da
jangada com todas as suas unhas e dentes, aproveitou para tomar um banho
de água doce e deliciou-se com aquela sensação maviosa de andar nas
nuvens e olhar o mundo com os olhos-caleidoscópios da imaginação.
 O dia passou, chegou a noite e a nuvem cinzenta libertou-se da carga que a
incomodava e lá foram, jangada e Rosarinho Nariz de Arminho, cair sobre uma
seara macia, tão macia que fazia lembrar as almofadas da casa da avó.
 E, nesse instante, um turbilhão de vozes, ou melhor, uma voz de trovão ecoou
pelas paredes da sala e ribombou dentro da cabeça da menina.
 - Que desarrumação vejo eu aqui? Rosarinho, vai já colocar essas almofadas
nos lugares onde as encontraste! Mas que ideia, que ideia!

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