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JEAN Sea ‘PROFESSOR DA UNIVERSIDADE DE GENEBRA NL F A INVENCAO DA LIBERDADE 1700-1789 FULVIA MARIA LUIZA MORETTO SUMARIO 1. O Espaco HUMANO DO SECULO XVIII PH Agice sentir... PAs experincias da liberdade .. O fausto eo luxo ...... ‘Um barroco jubilante Ocstilo rocalha .......... . A invengio decorativa . 1. Cenatios diversificados . Ordem evariedade ...... 2. As pragas eas moradas IL FILOSOFIA E MITOLOGIA DO PRAZER ~B> A jurisdigéo do sentimento - 61 Reinado ficticio da mulher - 64 O Olimpo dos tetos A representagio A feliz ilusao . Des divertimentos da corte ao prazer negro. De balango ao cadafalso . 90 AGIR E SENTIR t preciso restituir o século XVIII & sua lenda. A Europa burguesa, jé no inicio do século XIX, sonhou com a imagem de um século XVIII elegante ¢ frivolo, de costumes livres, de espirito vivo, entregue culpada ¢ deliciosamente a uma festa despreocupada. A idade de ferro da indastria ¢ das revoltas democriticas via desaparecer atras de si uma idade de ouro coberta de fitas de mascaras, uma época da “dogura de viver”, em que a propria morte € a propria guerra, com suas rendas, ndo eram (pensava-se) nem a verdadeira morte, nem a verdadeira guerra. elas, ao mesmo tempo, a nostalgia de uma felicidade-sem interdigdes ¢ a acusagao de leviandade fatal; ter-se-ia desejado conservar algo daquela floragao_ desvanecida, todavia, todos julgavam-se obrigados a reconhecer que, como verme no fruto, nelas penetrara o gosto do nada, do qual se iria aproveitar o “apts subversive ASS ea eee ae Os parques de Watteau, 0s toucadores de Boucher, o Carnaval de Guardi aparecem como as imagens de uum paraiso ja secretamente trabalhado pela melancolia de sua préxima destruicao, ja mortalmente ferido por uma falta inseparavel de seus prazeres. Os pensadores oficiais da boa sociedade do século XIX deploram a corrupgo moral do século precedente; porém, essa mesma sociedade usa méveis “Luts XV", coleciona as estampas libertinas, veste, em seus divertimentos, culotes de cetim, peruca, espada, meia mascara... O depésito de acessérios do século XVI oferece um repertério de signos que remetem todos ao amor facil, & sedugo picante, as derrotas perfumadas. Evidentemente, nos bailes pomposos da oT sociedade burguesa, tratase apenas de um simulacro; sob pretexto de uma ressurreicdo estética, de uma volta imagindria 4s boas maneiras, apresenta-se a cocasidéo para esquecer por uma noite as regras repressivas da moralidade vitoriana. Para os homens positivos que no seguem mais as aulas de Ovidio, a imagem falsificada de um século XVIII ftivolo renova 0 alibi estético que o devaneio da era “humanista”, entre os séculos XV € XVIII, procurava nos mitos pagios. E um mundo ficticio ao qual se pode pedir, como num jogo, os papéis ficticios de um escandalo que, com a distincia, tornou-se inoperante. Viuse flutuar, até mesmo entre os historiadores sérios, uma representago do século XVIII tio falsa em relagdo a este ultimo quanto podiam sélo os Alexandres e as Vénus da épera rococé em relagao aos deuses e aos herdi@ da Antigdidade. Devolvamos a esse século sua complexidade, sua gravidade, seu gosto pelos grandes principios e pela tébula rasa; atrés de todos os nossos empreen- dimentos atuais, atrés de todos os nossos problemas, encontramos sua presenga. Nés somos historiadores: ele produziu, ou pelo menos impés, a n artes, uma época de revolusao decisiva, esté aberto as experiéncias; aos exage- +08, aos conflitos. A vor do eritico e do filésofo, em matéria de arte, comega a se fazer ouvir (as vezes de maneira desastrada). Pois ninguém se contenta mais, ‘em debater os meios escolhidos pelo artista, todos se interrogam sobre prios fins de sua atividade: sobre a(ossibilidadede ‘que reconheca os para o deleite nfo é mais suficiente; 0s homens do século XVIII querem reservar- Ihe seu dominio inaliendvel, situar tal prazer no projeto de um completo desa- brochar da humanidade do homem. O fato.de a arte levantar mais uma questio inquieta sobre sua fungio nao deixaré de ter conseqtiencias a longo prazo. Nao que se deva admitir uma influéncia imediata das teorias estéticas sobre os artistas; os Salons e o Ensaios sobre a pintura de Diderot, o Enquiry de Burke, ‘© Laocoon de Lessing etc., além do que dizem de uma arte ja realizada, evocam uma arte no realizada, uma figura possivel do género criador que os artistas da gerago seguinte tentario alcangar através de suas obras ¢ de suas vidas. Diderot jé observava: a linguagem do teérico ¢ freqilentemente to vaga que as obras de arte mais diferentes podem reivindicar um mesmo enunciado de principios. “Imaginai como é freqiiente ¢ facil para dois interlocutores ter pensado e dizer coisas totalmente diferentes usando as mesmas expresses.” Todo mundo invoca a natureza no Século das Luzes, porém cada um a com- preende a sua maneira. A natureza segundo Hogarth nfo ¢ a natureza segundo Chardin... A historia das teorias estéticas do século XVIII no nos permitiria definir a figura real de sua arte; havia tantas coisas, naquela arte, diante das quais 0 tedrico permanecia cego, mas havia também tantas exigéncias, na teoria, as quais o artista nao sabia clevar-se. Os fildsofos de um lado, os historiadores ‘pelar simplesmente da arte de outro, estudaram segundo suas respectivas predilegdes a evolugo das idéias ou a floragio das obras. E uma legitima divisto do trabalho, mas nada resolve se 0 que desejamos entrever é a figura viva do século XVII. A. tarefa que se impSe aqui consistiria em ndo interpretar nem a arte nem 0 pensamento isoladamente, mas ~ considerando sua origem comum, histérica ¢ social ~ decifrar a relagio complexa de uma arte em vias de liberacio e de ‘uma reflexiio exigente que procura compreendéla, guié-la, inspiréla. rém, ndo terd a época fornecido pelo A libertinagem, & qual tinhamos a tentacdo de reduzir o espirito do século, no Ihe é estranha. Ela representa uma das experiéncias possiveis da liberdade; deriva de uma insubinissio a principios sem a qual, de outro lado, o trabalho sério da reflexio nio se teria podido desenvolver. Esse século (pelo menos em seus mais qualificados representantes) desejava ser livre, tanto para buscar a felicidade como para conquistar a verdade. Livre goro mas também livre exame libeinSslaliSenatiad ‘Segundo intmeros testemunhos, a dissipago dé como desculpa a neces- sidade de fugir do tédio, do desalento, do nada; sentir, ¢ sentir profundamente, uma forma de ter acesso & consciéncia de nossa existéncia. As livres-iniciativas do pensamento produzem 0 mesmo resultado: quem quer que pensa, mesmo confusamente, pronur de degvanescer-se se a atividade do pensamento chegasse a faltar. Escolher a reflexio em lugar de escolher a libertinagem significa simplesmente tornar-se menos dependente dos objetos exteriores, significa procurar a propria felicidade na combinacao das idéias em lugar de procuréla nos prazeres imediatos da vida sensivel... No inicio do século, a filosofia de John Locke traz o enunciado tedrico dessa atitude vivida. Ao contrario de Descartes, que afirmava que a alma pensa sempre, que possui idéias inatas ¢ que, por conseguinte, esta sempre certa de sua existéncia, Locke afirma que a alma somente tem idéias como conseqiiéncia de suas sensagdes, que somente pode haver pensamento baseado em material fornecido pela experiéncia sensivel: longe de poder contar com as idéias inatas, a alma sé tem consciéncia de existir no momento em que sente ou ainda quando a reflexdo compara ativamente as marcas deixadas pelas sensagSes. Nada, portanto, ¢ mais varidvel do que nossa consciéncia de existir, € como nossa felicidade esta ligada ao sentimento da existéncia, nada ¢ mais necessério do que procurar variar nossas sensaées, multiplicar nossos pensamentos. ‘Uma alma ociosa é como aniquilada. Felizmente, nossa impaciéncia natural, nossa inquietude (uneasiness) nunca nos deixario em repouso: estaremos perpetuamente incitados a fugir do mal-estar da vacuidade, a perseguir, por entre sensagdes ¢ pensamentos efémeros, uma plenitude e uma intensidade pre Ser esis eve osama ia implicitamente um “eu existo” que correria o risco 15 16 Esse estilo de vida ¢ 0 de todas as atividades sem fim de que o século XVIIL os oferece o espeticulo: que se trate da procura do prazer, da expansio do comércio, da exploragfo da natureza, nenhuma posse pode algum dia ser considerada definitiva, pois a posse inscrevese no instante €0 instante esgota-se logo. Além do que foi atingido, a inquietude ja percebe um novo chamado, e possa vida nele procura seu novo comeo, sua confirmacio. Para fugir do tédio, os homens precisam adquirir paixdes; essa é, jé no primeiro capitulo, a ligao de um livro que exercerd uma duravel influéncia sobre a estética do século XVII, as Réflexions critiques sur la Poésie et la Peinture (1718) do Abade Du Bos: “A alma tem suas necessidades, como as tem corpo; e uma das maiores necessidades do homem é a de ter 0 espitito ocupado. O tédio que segue em ‘breve a inagao da alma é um mal tdo doloroso para o homei que ele. ‘empreende ‘uitas vezes os mais penosos trabalhos a fim de poupar a si mesmo a afligio de ser por ele atormentado... Na realidade, a agitagdo em que as paixées nos ‘mantém, mesmo durante a solidio, é tao viva que qualquer outro estado é um estado de langor ao lado dessa agitagio. Assim, correnios instintivamente atris das coisas que podem excitar nossas paixdes, embora tais coisas nos impresses = hos custam muitas vezes noites inquietas e dias doloros Desde 0 inicio desse século “racionalista”, a rardo teorizadora aceita reconhecer, na ordem da poesia e das belas.artes, © imperioso dominio da Pabtio. Sem duvida, as imagens passionais de 1718 nao tém a veeméncia daquelas que se levantaréo na alma romantica. Contudo, de repente, passa-se a atribuir a obra de arte uma funglo psicolégica em que predomina o valor da emosao € da intensidade; a obra define-se pot seu efeito subjetivo: arrancar uma alma a atonia do écio, provocar, por meio de acontecimentos figurados, através de uma simulacgo bem sucedida, um instante de efervescéncia emotiva, Na tradigio do humanismo profano, a arte dirige-se ao individuo amador ou “connaisseur”. Panofsky demonstrouo perfeitamente: desde a invengio da Perspectiva, o quadro oferece-se a uma consciéncia singular, a um espectador Privilegiado, senhor do “ponto de vista” a partir do qual se organiza 0 espago Pictbrico. Ainda que a consciéncia sinta doravante sua propria durago como luma sucesso de instantes descontinuos, separados por estados de aniquila- mento, ela néo cesar de ocupar uma posicio central e privilegiada; porém, vélaemios recorrer, na arte, a um aumento de emogdes que lhe permitiré intensificar e estimular a felicidade momentinea do despertar sensivel. A arte no deveria, por conseguinte, tornarse mais expressiva, mais veemente, mais delicada, nao deveria expressar eloqientemente a agitacdo, o prazer, a pertur baco, a fim de perturbar, de agradar, de agitar? A imagem portanto correr 0 isco de ser solicitada por seu valor “falante”, pelos efeitos morais de seu contetido narrativo; pedirselhe a composi¢éo do simulacro de um instante patético, de uma cena picante, a fim de inspirar ao espectador, pelo poder da simpatia, um impeto andlogo, uma resposta enternecida ou atertorizada. Uma pintura da instantancidade, da expresso fugitiva, esforcase por oferecer narrativas resumidas: ‘Mais du tableau Vimpresson plus prompte Reunéeen un seul moment Ce que le vers ne dit que suceessivement! (La Moree, Fables 1, XV) A expressividade amplificada, nos quadros de historia, tefitara eliminar 0s inconvenientes da imobilidade e expressar 0 Amago do ficontecimento pelo movimento que se desenvolve entre um passado ainda legivel e um futuro iminente. Uso “impuro” da imagem, que encontrar seu aspecto exemplar na ilustragdo ou na gravura anedética. Porém o homem esclarecido, reivindicando o direito de contradizer todas as autotidades, adquire um sentido da oposigio através do qual sabe também tomarse seu préprio contraditor: 0 século traz também uma critica as suas tentagdes, as suas formulas favoritas, ¢ traz as veres a vontade determin: riéncia do contritio.. 1. Mas do quad a impressto mais pronta/ Reine num nico momento/ O que 0 verso dis apenat sucessivamente (NT) WwW 18 AS EXPERIENCIAS DA LIBERDADE ntre 0 momento das festas galantes ¢ o aparecimento nos campos de batalha da bandeira tricolor com a divisa A liberdade ou a morte, a histéria do século XVIII pode ser encarada como a cena na qual um movimento de liberdade arde, estoura e expandese numa cintilacao tragica. Nao que tal historia, “amigas de um reinado de liberdade: ao longo do século, submetida a experiéncia ao mesmo tempo no (0 gosto da vida livre toma ora ° freio ora a forma de um apelo & moralidade renovada, € em alguns homens (um Fielding, um Restif). perceber'sed uma confusa ‘mistura dessas duas tendéncias. Essa reivindicagio desperta e toma uma maior consciéncia de si mesma a partir de uma situagdo em que as forcas adversas ‘opdem a liberdade uma recusa contundente. A exigéncia de liberdade se faz sentir na frustracZo. A historia do século nasce de um combate, as vezes de um. didlogo, entre os atos do poder autocritico e as réplicas dos homens indéceis. No plano politico, como no plano moral ou religioso, nada mais parece justificar a relagdo arbitraria entre a autoridade e os stiditos obedientes. Como diré Kant, os homens das Luzes resolveram no mais obedecer a uma lei externa: querem ser aut6nomos, submetidos a uma lei que percebem reconhecem em si mesmos. A industria emergente e as grandes concentragées urbanas criam novas formas de sujeicao e novos problemas politicos e administrativos; a exigéncia libertitia nao se impotia com essa acuidade se, precisamente, o ataque a liberda- de nao aparecesse em toda parte: nas insoléncias dos ricos, na falta de habili- dade dos governantes, no recurso ao aparato opressivo do poder. Descobrese que a extrema liberdade de alguns atenta contra liberdade de todos. Entre 0 crepasculo guerreiro de Luis XIV ¢ © holocausto napolednico, a hist6ria do stculo pode ainda ser lida como o advento, no sangue, da idéia de nagao. Evidentemente, os fildsofos teriam desejado dar outra diresio a0 curso da historia. O desejo de libertacZo, a impaciéncia diante dos entraves incitam a projetar no possivel, no papel, a imagem especulativa da liberdade reivindi- cada. “O homem nasceu livre", proclama Rousseau; mesmo assim, é preciso que a independéncia do individuo natural nfo Ihe seja roubada quando entra na sociedade e se torna um cidadao. Ora, “em toda parte esta escravizado”: 0 problema consiste em encontrar um sistema social em que as exigéncias da cordem e da liberdade nao sejam contraditérias. Problema cuja dificuldade nao escapa nem a Rousseau nem a seus contempordneos ¢ cuja solugio, todavia, deveria, na opiniio de todos, estar ao alcance de uma nova “arte social”. Este termo € significativo: € ele caracteristico de uma época em que a palavra Arte ainda ndo se estreitara, especializara, purificara. E arte todo método que tenda a aperfeigoar um dado natural, de forma a nele introduzir uma maior ordem, uum maior prazer, uma maior utilidade. Assegurando a transmutaggo da independéncia natural em liberdade civil, conciliando a seguranga do individu ‘ea autoridade do Estado, o legislador daria o exemplo da arte suprema. A razio esclarecida de um Locke, de um Montesquieu, ja se oferecera para regulamentar a composigio das forgas entre o poder do principe (que tende espontaneamente para a tirania) os apetites dos individuos (que se éntrecruzam de maneira andrquica). O interesse, bem compreendido, teria imposto freios aos soberanos € 208 povos, teria sugerido compromissos, teria inspirado respeito pelas leis. Mas quem escuta a vor da razio? Quem conhece seu interesse? Nem os déspotas, nem a “gentalha” exasperada pelos abusos, nem mesmo os burgueses conquistadores. Para as testemunhas continentais, a Inglaterra parecia ter assegurado a liberdade civil por um sabio sistema de separacio dos poderes. Porém, na segunda metade do século, a imagem cobicada toldara-se, e todos olhavam de Longe o ideal federal congregar os colonos da América na tolerancia ena moderaglo. A arte suprema da sociedade ira pois realizar-se entre homens que to pouca importincia dio a nosso fausto? Na aventura do século, as belasartes nao trazem apenas um testemunho ‘obliquo, apoiado em uma série de documentos: elas fazem parte da aventura. © status da arte e do artista sofre uma transformacko que, se nao se faz sentir imediatamente na forma visivel das obras, no seré por isso menos decisiva a longo prazo. s dos artistas e das tentativas dfilosofiaD ), abre caminho e se impée uma idéia de mi segundo a qual a obra de arte tornase o ato por exceléncia da consciéncia livre. Os poetas, 05 miisicos, os pintores - transportados por um novo espirito, intimados por um novo piblico ~ toram-se os depositirios leitos e as vezes 08 profetas do valor de uma liberdade comprometida em qualquer outro lugar. De certo modo, essa transferéncia de responsabilidade 19 mede o fracasso da liberdade nos campos de batalha da realidade éspera, seu retiro no dominio do imaginério e da interioridade. ‘Nem sempre se inte fato: fam as obras, apreciam-nas segundo os critérios de seus gostos e de ‘suas culturas. A sociologia da arte coloca aqui questdes indispensdveis: havera ‘grupos socials excluidos do circuito da produgio e da contemplacio da arte? Que relacdo mantém a obra com o mundo mudo que permanece na ignorincia da linguagem da cultura? Nao esqueramos que © patrono que adquire uma pintura, uma estitua, um edificio pode destinarlhes uma fungio varivel: pode reservados para seu deleite privado; pode, pelo contrario, convidar as multidées para admirar maravilhas em que a gléria do artista 10s do que o prestigi colegio que o amador retine apenas para o proprio prazer opGemse a Igreja ou a praca principal, abertas aos olhares de um povo. que saberé reconhecer nelas os simbolos da prépria fé, o espago da vida comum: realizam-se uma apropriagio, uma identificagao coletiva... Analisar a funglo da arte é perguntar a si que ¢ ela falada? disso, a quem é ela falada? ‘a obra fol Se tiver disponibilidade, um pintor pode lo prazer de criar, desprezar o gosto do publico contemporineo, renunciar a vender suas obras € ‘entregarse ao julgamento da posteridade. (Temos muitos motivos para crer que 0 caso é muito raro no século XVIIL) Se, em compensagio, um arquiteto quer apenas agradar a si mesmo, seus planos permanecerso em suas pastas. ‘Somente hé monumentos que subsistem se o projeto teve a aprovagio de um. ‘patrono que o confrontou e o preferiu a outros projetos antes de arcar com as despesas. A historia da arquitetura no século XVIII é, como outrora, a resultante de um duplo impulso: a evolusio da linguagem arquitetbnica, depois a vontade 20 A JurIsDICAO DO SENTIMENTO ‘como se inventasse o prazer. Fez dele tanto um objeto de reflexao séria ‘quanto de experiéncia leve; isola, conferelhe uma evidéncia desusada; fem arte, suprime ou afrouxa os lagos de dependéncia que haviam sido estabelecidos pela tradicio entre o prazer ¢ © discernimento racional, entre 0 prazer € a edificagao da alma. Que prazer, na vida moral, deve sempre ser conseqiiéncia de uma agéo virtuosa, que em arte ele esteja subordinado inspegio de um julgamento prévio so afirmagées agora repostas em causa pelos proprios doutos. O prazer vinha,em segundo lugar; ele vai obter a primazia; faltathe apenas ser justificado; ¢ ele que justifica tudo. O deleite de que falava Poussin era a conseqiiéncia de um ato racional. Porém, apresentase ‘uma arte que desejaria que sua qualidade deleitivel fosse apreendida por uma intuicéo imediata, na perturbagio e no deleite. “A sensibilidade, em lugar de ser algo de negativo, de inferior, de preparatério, tornase essencialmente positiva” (Victor Basch). Em tudo 0 que tem de confuso, nossa emogdo nao é somente a primeira resposta diante da obra de arte, ela é a resposta decisiva, Um tedtico, © Pe. André, mesmo reprovando-a, analisa muito bem essa primazta do sensivel: “Quando o prazer precede a percepcio clara e distinta das perfeigées do objeto que nos impressiona, concordo que entio tal objeto nos agrade porque nos da prazer ou em conseqiiéncia do prazer de cuja existéncia nos preveniu. Ea maneira pela qual as coisas sensiveis nos solicitam a.amédlas; elas comegam por se fazerem sentir antes de se fazerem reconhecer.. Entram assim no coracio gracas as trevas”. Mas, enquanto o Pe. André cré que tais coisas “muito perderiam se fosscm examinadas pela razio", um outro teérico, o Abade Du Bos, esforca-se por justificar 0 encanto com o qual uma 0 século XVIII descobre todas as interrogagées suscitadas pelo prazer, ¢ é 61 62 bela obra seduz antes de qualquer reflexio. A “decisio do sentimento” precede © raciocinio, ¢ este somente interviré “em nosso julgamento sobre um poema ou sobre um quadro em geral para explicar a decisto do sentimento, para explicar que erro o impede de agradar e quais sio os atrativos que o tornam. capar de interessar". O papel explicativo reservado ao raciocinio permanece muito importante, mas é um papel auxiliar, a posteriori. A razio vem, mais tarde, legitimar um prazer primogénito. Na opiniso dos tedricos, nenhum perigo ha nisso, pelo menos entre os homens de gosto, pois a volipia sensivel, por uma espécie de instinto, somente desperta em presenca das obras ou dos seres nos quais a razilo souber encontrar em seguida algumas perfeigbes. Assim se exprimiam, na mesma época, alguns moralistas que nao julgavam exagerar ‘que o homem nascera para o prazer e para a felicidade, acrescentando imediatamente que sé a virtude é capaz de assegurat os prazeres mais duradou- ros, a mais constante felicidade. Sim, procurai a volipia, mas distingui bem vosso interesse, vossas vantagens a longo prazo! A moral julgava retomar dessa forma seus direitos ¢ tornar-se sedutora, aconselhando ao mesmo tempo a gozar a investir na duracio. Esta rivalidade entre o julgamento ¢ a sensibilidade-encontra uma conciliagao ideal na teoria de uma beleza complexa: a perfeita harmonia faz com que coexistam uma ordem destinada a satisfazer 0 espirito e uma variedade de detalhes e de nuangas capazes de despertar a feliz surpresa dos sentidos. stes dois principios da estética classica, so interpretados como qualidades que soliciam simultaneamente a atividade Rd ada QABiBilidade. Através de certos elementos do objeto artistico (simetria, clareza ete.), 0 julgamento é 0 primeiro a ser favorecido. Através de outros aspectos (ornamentos, extravagincias encantadoras), 0 prazer resulta de uma imediata perturbacao. . Vive-se no prazer, no século XVII? Vive-se no pensamento do prazer, € isso nao € exatamente a mesma coisa. O prazer e seu reinado fugidio sio um tema de debate, de reflexto, de representagio fabulosa. Fazse um balango ¢, ao final dos célculos, alguns técnicos pensam que para o homem a soma dos ales é mais considerivel do que a soma dos prazeres. As obras com que nos rodeamos tendem entio a compensar uma falta, a capturar, em imagem, um bbem que se esquiva. 2A reabilitagao do prazer vai permitirjustificar melhor o luxo, legitimar os valores terrenos, os livres movimentos da consciéncia aventurosa. No prazer, a criatura reivindica a primazia e toma a si mesmo como fim... ao admit Analisando as imagens ¢ as teorias do prazer, o sociélogo constataré mais ‘uma ver uma curiosa ambivaléncia. Para a sociedade feudal, onde tudo deveria ter sido submetido a Deus através da hierarquia das suseranias temporais, a procura do prazer é um sinal de devassidio. Quando 0 nobre se torna um “voluptuoso” e se isola em seu prazer; quando os prazeres, cessando de ser para ele um divertimento ocasional, chegam a constituir a unica finalidade da cexisténcia, esté renegada toda a estrutura espiritual que justificava o privilégio da categoria social: o privilégio tornase abuso, a raca e © sangue tornam-se supersticiio e, no deslumbramento dos prazeres, 0 mito solar da realeza pulveriza-se e apaga-se. Para o burgués, em compensacio, 0 prazer nao implica nenhum esquecimento de um dever ou de uma fungio: é um ato de posse pelo qual 0 homem afirma o interesse dominante que o leva para as riquezas deste mundo. O gosto pelo prazer, o amor a si mesmo so os primeiros principios admitidos por uma moral onde tudo doravante parte do homem (sob o olhar de um Deus abstrato ou de uma Natureza generosa). Em lugar de ser 0 residuo de um poder que escapa, 0 prazer é o dado fundamental pelo qual se constréi um novo conceito de vida social. Pois o “principio de prazer”, aqui, deseja ser expansivo; assegura'se que ele cresce ao se propalar, que esta sempre interes- sado na felicidade alheia, que & compativel com 0 esforgo e com o trabalho. Uma razio a mais para que os homens permutem servigos lucrativos sob a benévola protegao de um governo responsivel pela igualdade e pela seguranca. Portanto, nada ha de mais oposto do que esses dois significados do prazer. Li, tilkimo festim do libertino que marcou encontro com o “homein de pedra”, cembriaguer solitéria e sem futuro esbarrando na morte, condenado a atordoar- se na repeticio ou a deslizar no tédio: “Depois de mim, o dilivio”. Aqui, a experiéncia primitiva de um bem que antes de tudo somente é nosso para que melhor possamos sentir que ele deve tornar'se o quinhao de todos; cessando de ser estigmatizado como um pecado, ele se torna a medida natural do justo ¢ do injusto. Nesta acepgio, o prazer nao é dissipagio; pelo contritio, esti ligado ao despertar do ser, ele € a energia conquistadora através da qual a consciéncia se apreende, se concentra, se consagra a0 mundo e aos outros. Para alguns, que invocam Epicuro, ele apareceré. mesmo como a iinica autoridade que possa ser validamente substituida as figuras ultrapassadas da Autoridade. “Goza, nao hi outra sabedoria; far gozar, nfo hé outra virtude” (Genancou) Esquematizando um pouco ¢ atribuindo a cada grupo social uma psico: logia particular, distinguiriamos um prazer crepuscular sobre um fundo de noite iminente e de desespero (que caracterizaria a conscincia aristocritica) € um prazer otimista, “auroral”, prestes a tudo abrigar sob sua lei (que seria a norma Sonhada pela fragio mais emancipada da burguesia). Sob estes dois aspectos, 0 prazer tem um avesso, € constatamos que este avesso nada tem de frivolo: para alguns é 0 nada, cuja obsesso acentuar-se entre os “sentimen- tirios” do préromantismo; para outros, é a esperanga de um mundo recons. truido segundo a Natureza e a Razio. 63,

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