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, Sorel BCE € Viktor As vezes, fico daqui olhando para a minha mulher, sem que ela se aperceba da minha presenga. Ela adora ficar ali sentada perto da janela do canto. ‘Acho que esta escrevendo agora uma carta para a mie. Da primeira vez que entrou nesta sala, disse: “Esta tudo bem, € aqui mesmo que eu quero ficar”. Nos tinhamos conhecido dias antes. Houve uma conferéncia de bispos em Trondheim a que ela as- sistiu como representante de uma folha eclesidstica qualquer, Nos encontramos durante um almogo ¢ contei-Ihe a respeito daqui, da residéncia do pastor ¢ seus jardins. Ficou tao interessada, téo interessa- da, que resolvi Ihe propor uma visita pela manha. Viajariamos logo que a conferéncia terminasse. No caminho, perguntei-lhe se queria casar comigo. Nao respondeu, mas quando entramos nesta sala virou-se para mim e disse: ~ Esta tudo bem, é aqui MW Digitalizado com CamScanner 12 mesmo que eu quero ficar! Desde entio temos leva- do uma vida tranquila aqui neste lugar. Eva, natu- ralmente, j4 me contou seu passado. Fez o vestibu- lar e entrou para a universidade, ficou noiva de um médico ¢ viveu com ele durante varios anos, escre- veu dois pequenos livros, ficou tuberculosa, rom- peu o noivado ¢ mudou-se de Oslo para uma peque- na cidade no sul da Noruega, onde comegou a tra- balhar como jornalista. (procura e puxa da estante um livro pequeno). Este aqui ¢ 0 seu primeiro livro, gosto muito dele. Escteveu aqui: “Todos precisam aprender a viver. A cada dia, me esforgo um pou- quinho. A dificuldade principal esta em saber quem eu sou ¢ onde estou. E como procurar na escuridao. Se alguém me amasse como sou, talvez, finalmente, me pudesse encontrar”. (termina a leitura) Se ao menos uma vez, uma tnica vez, eu conseguisse di- zer a ela que a amo de todo o coracdo, fazé-la sent como é amada, sem restrigdes de qualquer espécie. Mas eu nao consigo dizé-lo, nem fazé-la acreditar, me faltam as palavras certas. Digitalizado com CamScanner PRIMEIRA CENA Digitalizado com CamScanner Eva Escrevi esta carta pra mamie! Posso ler alto pra vo- c#? Ou vou incomodar? Viktor Nao, nfo, faz favor, entra e senta aqui. Vou acen- dera luz. A gente nota, agora, que, realmente, 0 ou- tono chegou pra valer. Espera, falta apenas desligar 0 rAdio, esto transmitindo um concerto... Eva Se quiser ouvir concerto até o final, eu volto mais tarde, ndo tem importéncia. Viktor Quero mesmo & que voce leia a carta. 7 Digitalizado com CamScanner 18 Agnes me disse também que vocé devia estar em Ascona, tirando umas férias entre duas séries de concertos. Telefonei para o Paulo e pedi-lheo ende. Tego. (pausa) Vocé gostaria de vir ficar conosco aqui em Bindal, durante alguns dias ou algumas se. manas, como quiser e se puder? Para que vocé nao fique logo com medo e diga que no, devo dizer que nossa residéncia é muito espagosa. Vai ter o seu préprio quarto, completamente separado e todo 0 conforto. O outono jd comegou, as Atvores jé come- ¢aram a amarelar, ainda falta bastante para as tem- Pestades chegarem ¢ teremos assim ainda muitos dias claros e serenos para gozar. Temos aqui um piano de cauda, muitissimo bom, no qual poderé ensaiar durante o tempo que quiser. Nao acha bom deixar de dormir em hotéis por algumas semanas? Mamie, meu amor, diga que vem. Vamos tratar de vocé e mima-la de todas as maneiras possiveis € imaginaveis. oie Ja faz tanto, tanto tempo que oe se viu pela tl ima vez. Sete anos, em outubro! ude afetuosas de Viktor e de sua filha, Eva. 2 (Charlotte chega mais cedo do que se esperava. Sao onze horas da manhi, o carro dela sobe pela estrada coberta de folhas caidas e para diante da Porta da re- sidéncia, Nesse momento, Eva esta descendo a escada da casa, para e observa pela janela, sem ser vista, a maneira como a mie lentamente sai do automével, como ela depois fica indecisa junto A mala do carro. Ha um momento de imobilidade.) Eva (a entrada da casa) Mamie, mamae querida, seja muito bem-vinda. Que bom voce ter chegado, quase nao posso acredi. tar que é verdade. Vocé vai ficar bastante tempo, lo €? Oh, meu Deus, como suas malas so pesa das. Trouxe as suas pautas? Oh, que bom, fico con- tente, me dard algumas ligdes, promete! Mamie querida, vocé parece cansada. Mas, claro, fez a lon- ga viagem de carro. O Viktor, no momento, nao es- td em casa. Nés no pensdvamos que vocé chegasse to cedo. : e Digitalizado com CamScanner Charlotte Eu estive com Leonardo no seu ultimo dia. Softia dores terriveis, apesar das injegdes que Ihe davam de duas em duas horas. As vezes ele chorava, mas nao era por medo da morte, apenas por chorar, porque doia muito. O dia passou, veio a noite. Per- to do hospital havia uma construgdo qualquer, um barulho tremendo, eram_as perfuratrizes, os com- pressores, as marteladas, sei 14. O sol parecia que escaldava, Nao havia persianas, gelosias, nada. Pobre Leonardo, ainda por cima preocupado por cheirar mal. Tentamos obter um outro quarto, mas muitas enfermarias estavam fechadas para repara- cées. A noite, 0 barulho da construcdo paroy : quando o sol desceu o horizonte pude cae ae janela. O calor parecia uma parede do lad para tudo quieto, nao se movia uma fol oa Seatou- chegou. Era um velho amigo de Leonardo, 20 se na cadeira junto a cabeceira da cam: j4 nao faltava muito, que ele iria ser injetado de meia em meia hora, para poder dormir sem dores. professor fez uma festa no rosto de Leonardo ¢ contou-Ihe que ia a um concerto de Brahms naque- la noite, mas que depois do concerto voltaria. Leo- nardo perguntou qual era a obra que iam tocar ¢ quando soube que se tratava do concerto duplo com Schneiderhahn e Starker pediu para o profes- sor falar com Janos, dar-lhe um abrago ¢ dizer-Ihe que queria que ficasse com 0 seu celo Coltermann, que ha muito tinha pensado nisso. O professor foi embora ¢ a enfermeira entrou para dar a injegao em Leonardo, Ela achava que eu devia comer qualquer Digitalizado com CamScanner 22 coisa, mas nao tinha fome, estava enjoada com Gheiro. Leonardo adormeceu durante alguns min. fos. Ao acordar pediu que eu saisse. Depois, che, mou a enfermeira da noite, que chegou logo com mais uma injegdo. Mais alguns momentos, ela saiy ¢, no corredor, me disse que Leonardo falecera, Fi. quei com ele a noite toda. (pausa) Lembrei os de. zoito anos que fomos amigos, os treze anos que vi- vemos juntos, sem uma palavra azeda entre nés, um gesto brusco. Ha dois anos que ele sabia que ia morrer, que nao havia mais esperancas. Com a fre- quéncia que podia, ia visita-lo em sua casa, perto de Napoles. Era bom e atencioso ¢ ficava satisfeito com os meus sucessos. Falavamos, dizfamos as nos- sas piadas, e tocdvamos um pouco de misica de ci mara, Ele quase nunca mencionava sua doenga eeu nada perguntava, ele ndo gostaria. Um dia me fitou longamente e depois riu: “No préximo ano, a esta altura, jd ndo estarei neste mundo, mas de uma ma- neira ou de outra estarei sempre contigo, senp pensando em ti”. Foi um pensamento carinhoso = Leonardo, mas ele gostava sempre de ser me Be Pat teatral. (pausa) No posso afirmar que an eras sofrendo com a sua morte. Sua morte ore S Pio. e desejada. E claro que as vezes sinto m va Mas uma pessoa nio se deve enterrar Wir Acha que eu mudei muito nestes eee Leo nos vimos? E, pintei o cabelo, evidenteere | os, nardo nao queria me ver g) risalha, mas fo tou a mesma, no acha? Esta roupa comprei em Zuc rique. Queria uma coisa bem confortavel para a longa viagem de carro, passei por uma rua, a Bah. nhofstrasse, vi-o na vitrine, entrei, provei, assentava lindamente ¢ era surpreendentemente barato, Nao acha lindo? Eva E, mamie querida, lindissimo. Charlotte Agora tenho que desfazer as malas. Olha, esta aqui, vocé me ajuda? Est pesadissima e estou com uma dor horrivel nas costas por causa da viagem. Vé se consegue arranjar uma prancha de madeira para por por baixo do colchao. Preciso dormir em col- chao duro, vocé sabe. Eva A prancha jé esté debaixo do colchio. Colocamos ontem. Charlotte Maravilhoso... (contém-se) O que é que ha, Eva, meu amor? Esta chorando. Espera ai, vamos ver. Nao esta triste, minha menina, esta? Fui eu que dis- se alguma bobagem, vocé sabe como é que eu falo! Eva Estou chorando apenas de alegria por vé-la nova- mente, 23 Digitalizado com CamScanner Charlotte E, muito ber . 2 mM, entdo me da abraco forte, daqueles que ow etande abr, era pequenii eg tee, VOCE me darts Um poate ina. Fico aqui falando a dava quand + © tempo todo. E voce? Conte MAS de ming FS rt~—”r—C“EEN™— | Eva Eu me sinto bem, obrigada. Muito bem. Charlotte Ser4 que vocés no vivem aqui isolados demais? Eva / Temos o trabalho da pardquia, Viktor ¢ eu. Charlotte Sim, é claro, evidentemente. ssado, fize No ead ‘Ars Foi um "we Eva s : ws it las. uma matinée m oe composicdes e falei a respeit com mendo sucesso- 24 Charlotte Voce néo vai se esquecer de tocar um pouguinho pramim. A nao ser, é claro, que ndo se sinta dispos, ta. Eva E claro que eu quero, Charlotte Toquei em cinco concertos para estudantes em Los Angeles, no Music Hall deles. Trés mil criangas de cada vez. Toquei e falei, também, sobre aquilo que tocava. Nao imagina 0 sucesso. Mas terrivelmente extenuante, Eva Mamie, ha uma coisa que preciso contar pra vocé. Charlotte Sim? O que é Eva Helena esté aqui. (pausa) Charlotte (indignada) Voce devia ter escrito que ela estava aqui. Nao é Justo, nao é justo voeé me colocar diante de um fato ‘consumado, Eva Se contasse que ela vive aqui, vocé nio teria vindo. 25 Digitalizado com CamScanner Charlotte Claro, teria vindo da mesma maneira. Eva Tenho certeza que nao viria. Charlotte ‘Jando chega a morte de Leonardo? Era necessério trazer aqui a pobre Lena, também? Eva Lena mora aqui hé dois anos. Eu escrevi contando a vocé que Viktor e eu tinhamos decidido pedir a Lena para vir morar conosco, Eu escrevi... Charlotte Essa carta nunca recebi. Eva Ou, se calhar, no se preocupou em lé-la. Charlotte (recuperando a calma) Isso ai foi uma acusacao infundada, vocé nao acha? Eva Acho, Charlotte Nao vou aguentar vé-la. Pelo menos, nao hoje. 26 Eva Mamie, minha querida mamée, Lena ¢ uma pessoa maravilhosa. Tem dificuldade em falar, mas jé prendi a entender o que ela diz. Posso ficar junto ¢ traduzir. Ela ‘esta com tanta vontade de te ver. Charlotte : Meu Deus, mas ela estava tio bem naquela clinica de repouso. Eva Mas eu tinha saudades dela. Charlotte ' Tens certeza de que cla esté melhor aqui? Eva Ela est melhor aqui, sim. E assim tenho alguém de quem tomar conta. Charlotte Ela ficou pior? Quer dizer, ela?... Ela?... Piorou? Eva E claro que esta pior. E da doenga. Charlotte Entdo, vamos, vamos dar um abrago nela. Eva Vocé tem certeza que quer isso mesmo? = Digitalizado com CamScanner Charlotte (sorri) Acho que é terrivel, desagradavel, Mas n§o t escolha. fenho Eva Mamie! Charlotte Sempre tive dificuldade em entender as pessoas que no tomam consciéncia de seus motivos, Eva E comigo, isso? Charlotte Entenda como quiser. Agora vamos. Charlotte Lena, minha menina, me da um abrago, da. E um grande beijo. Eu mesmo ponho 0s teus bracos, as- sim, & volta do meu pescoco. Isso, assim mesmo. Tenho pensado em ti constantemente. Todos os dias, Helena (tenta dizer qualquer coisa) Eva Helena diz que esta com dor de garganta, meio gri- pada, Nao quer te contaminar. Charlotte (dé-lhe mais um beijo) Deixa, eu nunca tive medo de bacilos. Hé vinte anos que nao apanho nem resfriado. Teu quarto € espléndido, E que vista maravilhosa, a mesma que tenho do meu quarto. Helena (tenta dizer qualquer coisa) 29 Digitalizado com CamScanner Eva Lena pede para que eu Ihe tire os dculos. Ela quer que vocé a veja como deve ser. Charlotte Mas eu estou te vendo, minha filha. Helena (tenta dizer qualquer coisa) Eva Ela quer que prenda sua cabega entre as mos ¢ a olhe bem de frente. Charlotte Est bem assim? Helena Sim. Charlotte Estou tdo contente em saber que Eva esta tomando conta de vocé, Eu ndo sabia de nada. Pensava que ainda estavas na casa de repouso. Estava até com vontade de dar uma passada por Ié antes de viajar. Mas assim é muito melhor, ndo € verdade? Helena E.. Charlotte Agora vamos ficar juntas uma porgdo de dias... 30 Helena (feliz) Sim. Charlotte Tem dores? Helena Nao, Charlotte Esté com um cabelo lindo. Helena (tenta dizer qualquer coisa) Digitalizado com CamScanner va Em sua hy P te. . ear aan tendo atualmente um livro muitissimo bom a Estou 4 . Se quiser, posso ler u ietja revolugao francesa. , i respeito da podemos Sentar NO terrago € eu leio, alto pi : esta bem? Ficaria satisfeita? onra, mame... Helena sim. Charlotte E daremo: tive neste lugar. Helena Sim. s uma volta de carro, também. Nunca es- Charlotte ; Tenho pensado tantas vezes em voce... Helena (diz qualquer coisa ¢ ri) Charlotte O que é que ela diz? Eva ada, nfo i ansé Lena diz que vocé deve estar muito ¢ 32 deve se esforgar mais por hoje. Acha que seu dia deve ter sido muito longo. Charlotte Lena nao tem relégio? Eva Claro que tem. Esté aqui, perto da cama. Charlotte Toma, toma aqui meu reldgio de pulso. Foi um ad- mirador que me deu, Achava que eu nunca sabia chegar na hora, E Lena, ela janta conosco? Eva ‘Nao, eu costumo dar-lhe a refeigéo principal du- rante o dia. Alids, esta fazendo regime. No tempo em que ela estava na clinica comia demais. Helena (diz qualquer coisa) Eva Lena diz que... Charlotte Espera, eu entendi o que Lena quis dizer: ha uma borboleta na janela! Acertei? 33 Digitalizado com CamScanner Charlotte (sozinha) Por que razao estou me sentindo como se estivesse com febre? Por que razdo sinto vontade de chorar? Idiotice, idiotice pura. Sentir vergonha. E isso. £ ter aconsciéncia pesada. Sempre, sempre a consciéncia pesada. Tanta pressa pra chegar aqui. Que é que eu pretendia afinal? Que é que eu desejava, assim, de- sesperadamente, ainda que nao ousasse reconhecé- lo perante mim mesma? Bem, agora € tomar uma ducha e dormir um pouco, uma hora, ao menos me deito na cama, e fecho os olhos. E depois ponko = vestido bonito e desco para o jantar. Eva en obrigada a reconhecer que sua cone ainds © a bem conservada. Nao vale a Pee a m com rato! sao mais de quatro horas da tar oor Bra Putz, e ela 14, olhando pra mim, mos, sen- abeca entre as des, E eu, segurando sua ¢ ‘a seus masculos 40 tindo como a doenca aro os diabos, ¢& sem jobres musculos. pescogo, Pp poder levanté-la ¢ trazé-la para a minha cama, dar- Ihe consol como fazia quando ela tinha trés anos. Esse corpo, estracalhado, mas doce, é o da minha Lena... Nada de choro, agora. Pro inferno com as lagrimas. J4 so quatro ¢ quinze. O melhor é tomar a ducha, pra mudar de idéias. E encurtar a visita, também. Quatro dias dé pra aguentar. Quatro, aguento. Depois, vou pra Africa como, alids, era minha intengéo. Mas déi. Dor. Dor. Espera. Déi, sim, déi como no segundo andamento da sonata de Bartok. (murmura e resmunga para si mesma). E is- so, claro. Acelerei demais 0 compasso, evidente. O certo é comecar tan-tan e depois vem uma pequena onda de dores, sofrimentos. Lento, lento, mas sem lagrimas, porque nao ha mais lagrimas ou elas nun- ca existiram. Assim, isso mesmo. E se na pratica der certo, ent4o, a visita aqui ao lugar nao tera sido to- talmente em vao. Vamos, agora é s6 enfiar o meu vestido vermelho e 0 escolho por maldade, ja que Eva acha que eu devia pér qualquer coisa mais con- dizente apés a morte ainda tio recente de Leonar- do. Meu corpo, esse, pelo menos, ndo tem nada de errado. Talvez nao seja assim de uma elegancia es- pléndida, mas ¢ um corpo bem feito e regular. Quando chegar a Africa, vou... Ou talvez va para Greta e faga uma visita ao Harold. (ri) E, ele é um porco de primeira, o meu bom Harold, mas sabe fa- zer boa comida ¢ sabe viver como poucos. Vou tele- 35 Digitalizado com CamScanner Roite. j Pore - quatro horas wie, Vai me far, e i : estou ser ene St SOU to maldose St (de rene cases Pre fom raiva? Eva e Vigne Me que) ara mim e mostr, apenas te) 7 ‘ara Nas 18, Por me verem aqui. Viktor é de Tag ficado age Car, te. Foi sorte da Eva, Paz assim tao agrad. cha nao funcionar! lavel. Bem, a E nfo é que essa chorona B0Fa sé falta a ge 86 falta g funciona mesmen Eva Mie estranha e incompreensivel est ai, sem divi- da! Vocé devia ter visto quando Ihe contei que a Lena estava vivendo aqui conosco. Devia ter visto 0 sortiso dela. Como é possivel? Pode imaginar como & que ela conseguiu arranjar um sorriso pra aquela hora, apesar da surpresa e do medo? E depois, dian- te da porta do quarto de Lena, como ela se recom- pds: uma atriz antes de entrar em cena, com um medo diabdlico, mas composta, controlada. O es- petaculo foi magnifico. Acho que minha mie é to- talmente fria, nao tem sentimentos. Afinal, o que é que ela veio fazer aqui? O que é que ela esperava de- pois de sete anos sem nos vermos? Sim, 0 que é que ela esperava? Alids, 0 que € que eu esperava? Sera que a gente nunca chega mesmo a perder as espe- rangas? Viktor Nao creio. 37 Digitalizado com CamScanner ‘Viktor ‘Gerd que agente nunca vai deixar de ser mace filha? Hy So poucas as que conseguem: sé-lo. Eva : como se fosse um fantasma que de repente cai em bre a porta ima da gente, quando uma pessoa al rao quarto da infancia, Isto, quando a gente ja fi ueceu que, apesar de tudo, hd muito tempo se esq de tud« ainda existe uma porta para quarto da infancia. Acha que ja sou adulta? Viktor Nao sei o que significa ser adulta... Eva Nem eu tampouco. Viktor Ser adulto, certamente, é poder dominar seus so- thos, suas esperangas. A gente ndo deseja mais. Eva Vocé acha? Viktor A gente nao tem mais surpresas. Eva Puxa, vocé, sentado ai de cachimbo na boca, como parece inteligente e cheio de bom-senso. Voce é adulto, completamente adulto. Viktor Acho que nao. Ainda nao parei de ter surpresas to- dos os dias. Eva Surpresas? Surpresas com o qué? Viktor Contigo, por exemplo, Além disso, sempre tenho sonhos ¢ esperancas muito pouco razodveis. E uma espécie de desejo, também, nem isso falta... Eva Desejo? Viktor Desejo de ter vock. Eva Ah, que palavras bonitas, maravilhosas, no so? Quero dizer, s4o palavras que nada tém a ver com a realidade. Eu sempre fui criada com palavras bo- nitas, cresci com elas. A palavra “dor”, por exem- plo, Mamie jamais se sentiu desgragada, ou miseré- 39 Digitalizado com CamScanner vel, ou infeliz. Nao. Ela “sentiu uma q da”. Voce também, vocé tem um montag Qofun- vras dessas. Pra voc é uma especie de gare Pala Profissional. Se vocé diz que me des ™ com saudades de mim, quando est4 prowl’ sta ji ' 2 recis na minha frente, ai, eu s6 posso ficar joo eamente no é? desconfiada, Viktor Vocé sabe muito bem aonde eu quero chegar Eva Nao, nao sei, ndo. Se soubesse, vocé jamais teria essa idéia de dizer que sente saudades de mim, Viktor (sorri) E verdade. Eva Isso mostra que eu sou no minimo tio esperta quanto vocé, talvez mais esperta, 0 que no fundo também nao quer dizer muita coisa. Eagora euvou é pra cozinha ver se a vitela esta Coane bem. Mr mde sempre achou que sou ruim pra ae ae E uma glutona de primeira. Uma ce ih ali tando a noite inteira ela falar com um § eae americano a respeito de molhos ¢ on smo oot" Ficaram realmente exaltados, tanto tro. 40 Viktor Eu acho que vocé... Eva ..- faz uma comida maravilhosa, Obrigada, meu amor. Também nao posso esquecer de fazer café sem cafeina para a minha querida mamie, Jé me perguntei muitas vezes por que razio ela softe tanto de ins6nia. Acho que sei o motivo. Se essa mulher tivesse um sono normal sua vitalidade derrubaria meio mundo. Sua insénia é a maneira da propria natureza ajusté-la a proporgdes mais ou menos su- portaveis. (sai e volta novamente) Vocé vai ver como ela se vestiu bem para o jantar. Repara s6 na perfeicao do traje que, de uma forma muito discre- ta, nos ird relembrar que ela, apesar de tudo, é uma viliva 86 e inconsolavel. Digitalizado com CamScanner Eva Mamée, querida, que vestido maravithosot Charlotte Ache que ele me cai bem? Eu nfo queria acreditar empre pensei que o vermelho era uma cor quenao me ficava bem, mas um dia encontrei uma velha amiga, Samuel Parkenhurst, ¢ ele disse: “Charlotte, acabo de chegar da apresentacdo da colecao do ou. tono da Dior e havia 14 um vestido vermelho feito de propésito pra vocé’’, Pedi a ele para o mandar vir... E de fato cai em mim como uma luva. Ah, es- tou com uma fome de lobo. Eva Espero que goste. Fiz vitela asada. Voce gostava. Charlotte ae Maravilhoso. Basta pensar em como é bo 42 rear comida feita em casa depois de tantas refeigdes em hotéss. Viktor Muito bem. Entdo, saiide. Seja muito bem-vinda, aqui, ao nosso lar, querida Charlotte. Muito bem. vinda mesmo, de todo o coragio, que se sinta A sua vontade e fique durante muito tempo. Digitalizado com CamScanner Charlotte (em inglés) Al6, é vocé Paul. Sim, est incomodando, sim. Aca- bamos de nos sentar 4 mesa pra jantar. Nao, esta- mos jantando. Sim, é isso mesmo. Aqui neste pais a gente janta as cinco da tarde. Fala um pouco mais alto, O telefone esté com muito ruido. Onde é que vocé esta, afinal? Em Nice? O que é que vocé esta fazendo em Nice? Olha, nao vai jogar fora o meu dinheiro, 14. O que é que vocé disse? (com ar de ne- g6cios) Sim, esta bom, aceito, mas cles ndo pensem que vai ser como da iltima vez. Diz a eles que 0 ca- ché pode ser 0 mesmo, mas Ifquido, fora a sua co- missdo ¢ as despesas de viagem. Além disso, vao ter que pagar as minhas despesas do hotel, Da iltima vez, foi uma loucura. Era tudo to caro, quase que fiquei arruinada, Além disso, vao ter que marcar os ensaios para um hordrio mais razodvel. (olha na agenda) Eu vou chegar de Munique, vamos ter que ai ensaiar sabado ¢ domingo pela manhi, isso se Var- viso insistir em fazer dois ensaios, Nao estou dis- posta a correr de um lado para 0 outro, as ligagdes so terriveis, a gente fica sentada o dia inteito nos aeroportos, nao estou para isso. Deixa ver, vou pre- cisar dos meus dculos. Com os diabos, onde & que eu os deixei? Eva, por favor, quer ver se deixei meus éculos em cima da mesa junto a janela? Obrigada, meu amor. Agora, vamos ver. A velhota, aqui, ja esté de culos em cima do natiz. Nao, nio da pé. Nessa €poca quero estar livre, vocé sabe muito bem. Nao insista. No vou mudar nada. Eu jamais faria uma coisa dessas. Escrevi aqui livre, livre, li- vre. Quanto é que eles esto dispostos a pagar, vocé disse? Droga, era s6 o que faltava! Esta bem, pron to, se eles aceitarem marcar o diabo desse concerto para quarta-feira, que seja feita a vontade do desti- no. Mas diga a eles para arranjar um toalete direito, bem perto do palco, pra da proxima vez nao ter que fazer num vaso de flores. f, eu sei, eu sei... Um pa- lacio barroco... Que Deus te abengoe, Paul. Trinta e trés graus!? Tome cuidado, nao trabalhe demais. Lembre-se que ja ndo somos mais jovens. Eu te amo, adeus. (desliga) Era o meu agente, ele é tio querido, Atualmente, & 0 anico amigo que tenho heste mundo. Nao, obrigada, conhaque nio. Um Pouco de uisque, sim, mais tarde, Posso ajudar a ti- rar a mesa?... Digitalizado com CamScanner Viktor Prometemos te encher de mimos, nao foi? Charlotte (senta-se a0 piano) ‘Ah, mas éum instrumento antigo finissimo! E que std afinado! (toca um Pouco) som maravilhoso! E sah estou me sentindo realmente de ‘bom humor. Fiquei preocupada sem necessidade. Eva mame? © que & que voce quer dizer com isso, Charlotte (com as lagrimas nos olhos) ‘sim, minha menina, 0 que € que vocé acha? Nao en- tende que eu estava preocupada com 0 nosso reen- contro depois de sete anos. Estava com um medo forrivel e ndo pude dormir a noite toda por causa disso. De manha estive quase pra telefonar desmar- cando a visita, € bom que saiba. Eva Mas mame... Charlotte Voct acha por acaso que sou de pedra?... Obrigada, duas colheres de agiicar, por favor. Este café sem cafeina é realmente uma porcaria, mas 0 que ¢ que a dormir. Es- uma pessoa nao é obrigada a fazer pari 46 Digitalizado com CamScanner tou vendo que vocé gosta dos preltidios de Chopin, Nao quer tocar um pouco pra mim, por favor? Eva Agora no, mamie, } Charlotte | Eva, ndo seja infantil, vocé me daria uma grande alegria se tocasse um pouco pra mim. Viktor Eva, meu bem, vocé mesma disse anteontem que es- perava que sua mae Ihe pedisse para tocar, jd se es. queceu? Eva Se vocés fazem questo absoluta... Mas estou muito longe de... Quer dizer, eu apenas dou um jeito, sem técnica nenhuma, Nao tenho dado atengo a colo- cagdo das mios tal como esté indicado nas pautas desta edicdo... Nao teria condigdes nem de tentar. Charlotte Querida, agora j4 ouvimos todas as desculpas. $6 falta comegar a tocar, v4 em frente... Eva (toca Prelidio Nv 2, em a-moll, de Chopin) Charlotte Minha querida Eva, menina minha, meu amor. Eva Isso € tudo 0 que vocé tem pra me dizer? Charlotte Nao, ndo, é que eu fiquei tio emocionada. Eva (animada) Gostou? Charlotte Gostei de vocé. Eva Nao entendo o que quer dizer. Charlotte Toca um pouco mais dos outros prelidios, agora que est ficando tao agradavel. Eva Quero saber o que & que fiz de errado. Charlotte Nada. Eva Mas vocé nao gostou do meu jeito de tocar esse pre- lddio, nao é? 49 Digitalizado com CamScanner Charlotte Cada um deve ter sua Propria interpretacao, Eva E, éclaro, €isso mesmo. E agora quero saber qual ¢ a sua. Charlotte De que servird isso? Eva (inamistosa) E s6 porque estou pedindo. Charlotte JA esté sendo agressiva, Eva Estou triste, triste por notar que vocé acha que nao Wale nem a pena dizer pra mim o que pensa do pre. Idio que acabei de tocar. Charlotte Oh, ndo, néo seja por isso, Se é isso que voce quer... (calma) Vamos esquecer, entdo, o lado puramente técnico que, alids, nao esteve mau de todo, se bem que vocé devia se interessar um pouco mais pela co- locacdo digital de Cortot que em si ja representa uma certa ajuda para a interpretacdo. Mas, tudo bem, a gente deixa de lado essa problemitica ¢ pas- saa falar apenas da interpretagao, a Sim? Charlotte Chopin nao é sentimental, Eva! Tem sentimentos fortes, mas ndo € muito sensivel. Hd uma distinen grande entre sentimentos sentimentalidade. ° prehidio que vocé tocou, fala de uma dor controla. da, nao de fantasias. Vocé precisa estar calma, aten- ta, com reagdes prontas € nitidas. A temperatura, podiamos dizer € de febre alta, mas a expressio é de contengdo masculina, Repara s6 nestes primei- ros compassos. (aponta e toca) Déi, mas nao de- monstro. Depois, vem um certo alivio. Mas logo desaparece 0 alivio e vem 0 tormento, 0 mesmo tor. mento, nem a mais, nem a menos. O autocontrole é total, sempre. Chopin era orgulhoso, sarcistico, temperamental, atormentado, rispido, e muito més- culo. Quer dizer, jamais um velho piegas. Este se- gundo preliidio precisa ser tocado quase em pleno. Nunca de forma cortejante. Deve parecer errado, como se fosse uma conquista corajosa e bem suce- dida. Assim, escuta 86, isso... Assim... (toca a com- Posigao novamente) Eva Entendo. Charlotte (quase se humilhando) No fique aborrecida comigo, Eva, por favor. BI Digitalizado com CamScanner Eva Porque razao eu devia estar aborrecida? Pelo con, trario. Charlotte Durante os tiltimos quarenta e cinco anos da minha vida tenho andado as voltas com esses preliidiog terriveis. E eles continuam a esconder pra mim uma porgio de segredos que nao compreendo. Man nao vou desistir. Eva Quando era crianga te admirava demais, uma lou- cura. Depois, fiquei cansada, cansada de vocé e de seu piano, uma porgio d tindo que a admiragao p ainda que de maneira difer Charlotte (sarcastica) le anos. Agora, estou sen- or voce comeca a voltar, rente. A esperanca € a tiltima a morrer, Eva (séria) Vi 52 E isso. E isso mesmo.., ‘iktor Achei a anilise de Charlotte simplesmente seduto- Ta, mas a interpretacao d le Eva mais atraente. Charlotte (ri feliz) : Por essa sua apreciagao, Viktor, voce me a beijo! \erece Viktor (constrangido) Estou dando apenas minha opiniio, Digitalizado com CamScanner 54 Eva ‘Venho aqui visitar 0 cemitério todos os sdbados. Se © tempo esta ameno como hoje, fico sentada um pouco neste banco junto da campa e deixo os pen- samentos correr 4 vontade. (pausa) Erik morreu afogado um dia antes de completar quatro anos. Existe um poco antigo aqui no jardim, a tampa es- tava pregada, mas ele arranjou um jeito de levanté- Ia e acabou caindo. Conseguimos retird-lo quase em seguida, mas jé foi tarde, estava morto. Viktor sofreu muito. Havia qualquer coisa de especial en- tre Erik ¢ 0 pai. Botei luto durante um bom bocado de tempo, mas de uma maneira superficial. Por dentro, bem no fundo da minha alma, eu sabia des de 0 inicio que ele continuaria a viver, que conti nuariamos a viver os dois, bem chegados um ao ou- tro. Preciso apenas me concentrar um pouco, um Pouquinho s6, € 14 est ele perto de mim. As vezes, Justamente quando estou para adormecer posso _, sua respiragio contra © men rosto. Depois, un mao. Voce acha oe é ca oxen: entender se ac icidade? Talver © Dov coisa completamente natt- assim. Para mim = > uma vida diferente, mas a _. ost podemos entrar em contatoum com ‘Nao ha fronteiras. Nenhum muro intrans~ Sezes, evidentemente, comego a pensar lidade no mundo em que © meu meni- i i as ao mesmo tempo compreen- i er 0d dé para descrever essa reali- Saat que é um mundo de sentimentos libera~ Gos, Viktor sofre muito mais do que eu. Diz que nao acredita mais em Deus j4 que Deus deixa as Griangas morrer, deixa que elas se queimem e ardam atéa morte, que fiquem doidas, que sejam baleadas ‘ou morram de fome. Tento explicar-Ihe que nao existe diferenca alguma entre criangas e adultos, ja que os adultos so criangas obrigadas a viver fanta- sias de adultos. Pra mim, o ser humano é uma criagio indescritivel, tal qual um pensamento in- compreensivel. E no ser humano existe tudo, do mais alto ao mais baixo, precisamente como na vi- da, O ser humano é a imagem de Deus ¢ em Deus tudo existe, tudo, como se fossem forgas enormes. E assim se criaram os diabos e os santos, os profe- tas © os feiticeiros, os artistas € os destruidores. Tudo existe, lado a lado, penetrando-se mutuamen- como é a real Digitalizado com CamScanner 55 te. E como se fossem monstros gigantescos que a toda hora se transformam, entende o que eu quero. dizer? Da mesma maneira deve existir também nma quantidade ilimitada de realidade. N&o apenas aquela realidade que entendemos com os nossos sentidos obtusos, mas sim um montéo de realidades girando a volta umas das outras, por dentro e por fora. Claro que € apenas 0 medo e o pretensioso bom-senso que nos fazem acreditar em fronteiras, Nao existem fronteiras. Nao existem, nem para os pensamentos, nem para os sentimentos. E a angis- tia que fixa as fronteiras, vocé também nfo acha? Quando vocé toca os compassos lentos da sonata de Beethoven para hammarklaver também deve sen- tir como se estivesse girando num mundo sem fron- teiras, dentro de um movimento gigantesco que vo- cé mesma jamais poderd reconhecer ou pesquisar. £ tal e qual como Jesus. Ele rompeu as leis e as fron- teiras com 0 sopro de um sentimento novo, um sen- timento do qual ninguém ainda tinha ouvido falar, 0 sentimento do amor. E evidente que as pessoas fi- caram com medo, desesperadas, exatamente como ficam quase sempre aterrorizadas e tentam fugir quando um grande sentimento as subjuga. Isto, apesar de passarem o tempo todo se arruinando com saudades de seus sentimentos ressequidos e mortos. 10 Charlotte Fico horrorizada quando a escuto raciocinar. Uma excentricidade, € 0 que é, Nao tem nada a ver com 0 bom-senso. Ah, € as certezas dela! Tudo esta claro. Convive com o seu menino, resolveu todos os problemas do mundo, ndo existem mais perguntas, Viktor (sorri) Sim, sim, eu sei. Charlotte Voce nao pode deix4-la andar por ai desse jeito. Viktor Como assim? Charlotte Acho que ela na realidade é tremendamente infeliz. E que, de repente, um dia, € capaz de reconhecer a crueza da verdade e fazer uma loucura qualquer. 57 Digitalizado com CamScanner r Viktor Vocé acha mesmo? Charlotte Sim, é isso mesmo, sinceramente. Viktor E ela que esta Id em cima com a Lena? Charlotte Esta preparando-a para a noite. Viktor Entao, por favor, senta aqui um momento, querida Charlotte, ¢ escuta. Vou tentar te explicar 0 que é que penso da minha mulher. Charlotte Muito bem, estou escutando, Viktor Quando pedi a Eva para casar-se comigo, sua res- Pesta pedi foi a de que ndo me amava. Pergun- fisg.ta amava outro, Me respondeu dizendo que ae amado qualquer pessoa, que se sentia Patines (Pausa) Eva e eu vivemos aqui du- aera ne Sempre muito atenciosos um com - Trabalhavamos muito, famos ao exterior 58 sninhas férias, até que nascelt Erik. Jé tinha- passar miniimas esperancas de ter um filho nosso € mos perdido sv Pyocado a respeito de adocio... falavames com a gravidez, Eva passou por (pausa) Tntjaformagdo. Ficou alegre, terna © ex: tH. Ficou também preguicosa, esquecia seus trovethos na pardquia e o piano. Podia far senta- wrabags seguidas naquela cadeira, com as pesna a hovdtto em cima da outra cadeira, olhando a parjroria da luz do sol nas montanhas ¢ no fiorde. De repente, nos sentimos muito felizes... Deseullpe por dizer isso, mas a verdade & que nos sentimos muito felizes na cama. Sou vinte anos Seti velhio do que Eva e achei que isso, realmente, estava comegando a plantar-se como um pesadelo Sobre nosso convivio, vocé compreende?... Eu achava que ela podia um dia olhar em volta e dizer, assim: afinal, que espécie de vida é esta, é assim que tem que ser? Mas depois tudo se transformou, ficou tudo diferente. Foram alguns... (pausa) Foi formi- davel, algumas... (pausa) Charlotte, vocé vai me desculpar, mas continua a ser um pouco dificil di- zer... (pausa) Bem, foram alguns anos de muita feli- cidade, Voce devia ter visto Eva naquela época. Nao devia ter perdido a ocasiao, nao. Charlotte Recordo, sim, aqueles anos antes e depois do nasci- 59 Digitalizado com CamScanner mento de Erik. A essa altura, andava tocando as sonatas e concertos para piano de Mozart, Nag tinha um tinico dia livre. Viktor Nao, isso mesmo. Insistimos vérias vezes para voog vir aqui, mas lamentavelmente voc nunca tinha tempo disponivel. Charlotte Nao. Viktor Quando Erik morreu afogado, o clima de pesadelo comecou a pesar ainda mais sobre o nosso convi- vio. Para Eva, enfim, a situagdo era especial. Charlotte Especial? Como assim especial? Viktor Os seus sentimentos vivem corroidos por dentro, pelo menos &0 que parece. Ficou mais magra, mais ossuda, ¢ também desequilibrada quanto ao hu- mor... Pode ter, por exemplo, enormes explosdes de raiva, Mas no acho que esteja sendo excéntrica ou tenha um comportamento estranho. E se ela sente que seu filho vive junto dela, talvez assim seja. Ela muito disso. Receia me ferir... Mas aquilo la nao fala Marece verdade, Acredito nela. que diz pa Charlotte ‘sim, & claro. Voce é pastor. Viktor ‘Aquela pequena fé que tenho sobrevive s6 porque ela quer. Charlotte Desculpe se o melindrei. Viktor Nao faz mal, Charlotte. Ao contrario de vocé ¢ de Eva, eu sou uma pessoa difusa e insegura. A culpa é toda minha. Digitalizado com CamScanner i Charlotte ‘Nao acha que esta n de pilulas para dormit calmo, silencioso, apenas a cl tra o telhado. Dois mogadon ser suficientes. Eva Nao precisa mais nada? ite eu devo tomar um bom par 77 E, acho que sim. Aqui € tio huva batendo leve con- dois valium devem Charlotte Nio, est dtimo. O biscoito da qualidade certa, a a- gua mineral, um gravador, cassetes, dois romances policiais, algodao para tampar os ouvidos, uma fai- xa para tampar os olhos, um travesseiro extra € 0 meu cobertozinho de viagem. Quer provar do meu chocolate suico, fresquinho, de Zurique? Faz favor, tire dois pedagos. Eva Obrigada, mame, mas no gosto muito de choco- late. Charlotte ‘Ah, €. Estranho. Se nfio me engano, quando crian- ga, voce era doida por doces. Eva Helena gostava de balas. Eu nao, Charlotte Melhor assim. Fica o chocolate todo pra mim. Eva Entao, boa noite, mamae. Charlotte Boa noite, filhinha querida, e obrigada pela recep- cdo. A noite esteve otima. Viktor é realmente uma pessoa maravilhosa. Precisa cuidar bem dele. Eva E 0 que eu faco. Charlotte So felizes? Esta tudo bem com vocés? Eva (paciente) Mamie querida. Viktor é meu melhor amigo. Nao sei como seria minha vida sem ele. 6 Digitalizado com CamScanner Charlotte Ele disse que vocé ndo 0 amava. Eva Ele disse isso? Charlotte E claro que disse. Por qué? Eva ‘Apenas me surpreende um pouco. Charlotte Era segredo? Nio. Charlotte Mas vocé no gostou que ele tivesse dito. Eva Viktor no costuma fazer confidéncias. Charlotte Estavamos falando de vocé. Eva “4 Se quiser saber de mais alguma coisa pode pergun- tar diretamente a mim. Prometo ser o mais sincera possivel. Charlotte Olha, minha filha, espero que vocé realmente nio vé fazer disso um caso especial, Nao ha nada de. mais em uma velha mae mostrar um pouco de ew. riosidade pela sorte da filha. Falamos de vocé com © maior carinho, pode ficar certa, eu garanto Eva Gostaria de saber por que & que vocé nao pode dei- xar as pessoas em paz. Charlotte Acho até que te deixei em paz tempo demais, Eva (sorri) Bem, ai talvez vocé realmente tenha razio. Charlotte E agora nao vamos falar mais de coisas tristes, Se- nao, nao vou dormir a noite inteira, apesar das pilulas, Eva Podemos falar disso noutra ocasiao, Charlotte Isso mesmo. Me dé um abrago e promete nao ser ma para a sua velha mamie. Digitalizado com CamScanner de um autor novo, Adam Kretzinsky. Jé ouviste fa- | Eva jar dele? | Prometo. | Eva | Charlotte cae | Eu te amo, entende? } Charlotte Eva (gentil) . Encontrei-me com ele em Madrid, Um cara doido. Eu te amo, também. Mal pude me defender. Alids, no me defendi de Charlotte jeito nenhum. Boa noite, querida Eva, Deixa me dizer que ndo tem graga nenhuma viver a ) por ai sempre sozinha. Fico cheia de inveja s6 de "bon noite, mamBe: ver os dois, voce e Viktor, juntos. | te Charlotte ¥ Ele ficou doido por mim e disse que eu era a mulher é.. mais bonita da sua vida, O que & que eu podia fa- Charlotte zen? Agora que Leonardo faleceu me sinto terrivelmente Eva Py 7 ' #6. Podes entender? Diga o que vocé quer com o café da manha. Ev Charlotte Sim, eu entendo. Ah, no se preocupe comigo, deixa pra la. Charlotte Eva Nao, no, néo. Daqui a pouco estou chorando de M : 7 a 7 " as eu quel i autocompaixéo e nao foi isso que combinamos. quero te encher de mimos. N6s combinamos que seriamos fortes esta noite. Charlotte Se insiste, ja que é assim... Estes dois romances aqui nao sdo nada maus. Séo a Digitalizado com CamScanner Eva Café forte, leite quente, duas fatias de siemio com queij, uma torada com mel Nf assim? Charlotte E um copo de suco de laranja. Eva Puxa, como € que eu fui me esquecer disso? Charlotte Posso realmente... Eva No, mame, vocé vai ter o seu suco. Boa noite! Charlotte Boa noite, querida. 12 Charlotte (sozinha) Acho que é melhor dar uma olhada nas minhas contas: (apanha um pequeno -livro de anotagdes) Preciso nao esquecer de dar a procuracio ao Bram- mer para ele movimentar o dinheiro do Leonardo. A casa também esta valendo uma nota. £ incrivel. : Vocé nunca se importou com essas coisas, nem re- 69 Digitalizado com CamScanner 70 cursos, nem dividas. Vocé estava acitha das preocy. paces terrenas, deixava todos os problemas para g sua Charlotte, “Vocé, Charlotte, que ¢ assim tao in. teligente, que sempre teve 0 dom de saber mexer com 0 dinheiro, vocé passa a ser meu ministro da fazenda.” Uma vez ficaste zangado comigo e me chamaste de avarenta, Eu sou avarenta, por acaso? Cuidadosa com o dinheiro, claro. E o sangue do meu avo, sangue de fazendeiro, esperteza de fazen. deiro. Trés milhdes, setecentos ¢ trinta ¢ cinco mil, citocentos ¢ sessenta ¢ seis francos. Vocé, Leonar. do, vocé jamais poderia imaginar que tinha tanto dinheiro. Quem poderia imaginar? E tudo vocé deu em testamento pra mim, sua velha Charlotte. Alias, eu também tenho um pouco. Tudo junto faz mais de cinco milhGes. O que é que vou fazer com tanto dinheiro? Comprarei um carro novo, bonito, para Viktor Eva. Eles ndo podem andar por ai com aquele calhambeque que esté 14 em baixo no jar- dim. Est caindo aos pedagos. E um perigo de vida. Na segunda-feira irei com eles até 0 centro e vamos Procurar um carro. Vai levantar a moral deles. Ea minha, também, (boceja) Estou comecando a me sentir calma € com sono. Vou ler um pouco o livro de Adam e depois apago a luz. Aqui, realmente o si- léncio é absoluto. A chuva parou, Muito bem. (Ié) “Ela Ihe ofereceu a sua flor vermelha da virgindade com uma dignidade muda. Ele aceitou sem entu- esar de ter estado a tarde inteira de olhar siasmo, aPemr nos seios firmes dela e na penugem fixo nos Peder eu pubis, na parte que ficava acima clara ¢ fort’ {amo todo a repetr pra ele que vent, spesar de tudo ainda 0 amava, queseeg sae uoluta ainda vottaria pra‘cara sy on mona as Ia ele. As suas cartes.” Lone ane nhosas, cheias de amor, dvertidas 6 ate ee humo. fades. Cartas, onde contava a repeite earn inn teressantes viagens, dos Pedacos felizes. Nos ficdva- ranged semedos, Teitos dois imponentes idee lendo suas cartas duas, trés vezes, ¢ achando que ao Podia existir pessoa mais maravilhosa do one vocé, Que, qua; Charlotte (tranquila, surpresa) Eva, vocé me odeia?! Eva Nao sei. Estou meio desorientada, $6 sabia, isso sim, que, depois de sete anos de auséncia, voct ia chegar e me alegrei, fiquei satisfeita, com essa wvinda. Nao sei que idéias eu tinha, Talvez achasse que vocé devia sentir-se sé ¢ triste. Nao sei. Achava talvez que jé era adulta, que podia olhar de frente 76 Digitalizado com CamScanner Pra vocé, pra mim mesma, pra doenca de Helena, bra minha inncia, Agora entendo sacs existe ¢ aos, um grande caos. (pausa) Boa Loft ° : ) fe, mani Nao faz sentido nenhum continuarmos fe) rae. Passado. $6 pode nos massacrar ainda ne absurdo, lando do ais, B um Charlotte Yost joga um montio de acusagses © depois vai embora! E assim? Eva De qualquer maneira ja é tarde demais, Charlotte Tarde demais pra qué? Eva Nada podera ser modificado, (Através do silencio, de repente, escuta-se um som abafado, queixoso, quase desumano. Charlotte olha aterrorizada para sua filha, Eva diz: dou, vou lé acima num i ma coisa”. Sobe no ¢scuro, conhece o caminho, nao recisa acender a luz. LA fora a lua continua brilhan- do intensamente. Esté tudo tranquilo, imével, nem em 0 véo de um Passaro, Eva imediatamente. Acende a beceira. Helena esta senta- travesseiros grandes ! ae i 5c a onvulses agitam seu pescogo ¢ ae om umn cinto. As Cor *Os olhos estdo bem oi Morde 0s labios. Os bem fe bros. Morr’ Menta acordé-la, com ¢ dado. ¢ olhos se abrem; lentamente, ela re «; fidade. Tenta dizer qualquer coisa, mas coher mediatamente. Eva perguntalne se est com on ue nao, agradece, fe Ta we Lape AS convulsdes ea pane dormers parece tranquilo. Eva sind fica setae ae tela durante algum tempo. Ap: perto dela, mais uma olhada.) se que ara quas xu inha de cal yeixu! mesin! a # encostada nos Digitalizado com CamScanner anco, um vestido de ve- sn vestido 1ong0, t0d0 rae je que deixava en- ‘bonitos, Voce estava descalca feito trangas com o cabelo. Gostaya de olhar era transparente & fria, vocé podia ver na dgua due or 1d bem no fundo, as plantas e os as pede rcabelo ficava molhado. As maos, também. ‘Como sua aparéncia era sempre muito fina, eu tam- fam queria ser fina, Ficava pedantissima, com rou- pa, E angustiada, sempre sem saber se vocé gostaria ea minha aparéncia. Me achava feia, magra ¢ ossu- da, Olhos grandes, de vaca no pasto. Labios gran- des, também feios. Sem pestanas, nem sobrance- Ihas. Os bracos eram compridos demais e os pés, além de grandes, tinham os dedos abertos. Real- mente... Me achava um monstro. Mas vocé quase nunca mostrou se preocupar com a minha aparén- cia, Uma vez disse: “Esperava que vocé fosse um rapaz”. E soltou uma gargalhada, depois, pra que eu no ficasse triste. Mas fiquei, claro. Chorei uma semana inteira, em segredo. As lagrimas te repug- navam... As dos outros. Mais tarde, um dia, de re- pente, desceram tuas malas de viagem enquanto vo- cé falava no telefone numa lingua estrangeira. En- trei no meu quarto e pedi a Deus que fizesse alguma coisa que impedisse a tua viagem. Alguma coisa: que a avé morresse, que houvesse um terremoto ou que os motores de todos os avides parassem. Mas. Digitalizado com CamScanner 81 Voce viai, a sempre, Enti, uma lufada d s todos falavam ao once 10 Pela casa an Titam maci: ii ar ten minha eabera, Ele podia fe » fumando o i ae u Seu antigo it do 0 ambiente de fumo, As veves aan cues ; algui o brilho ficévamos conversando um instan- novo 0 Mrizo cle me afagava um pouco com a sua te, Ov equenina e palida, Também acontecia ficar mio, Jp no sofa de couro conversando com tio Otto eee do conhaque. Ficavam os dois murmuran-

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