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CANUDOS, A GUERRA DO SEM FIM

Roteiro de Aninha Franco, Cleise Mendes e Paulo Dourado


Texto de Aninha Franco e Cleise Mendes
Música de Cacau Celuque e Tom Tavares

Salvador, julho de 1993


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CANUDOS, A GUERRA DO SEM FIM

Roteiro de Aninha Franco, Cleise Mendes e Paulo Dourado


Texto de Aninha Franco e Cleise Mendes
Música de Cacau Celuque e Tom Tavares

PERSONAGENS

ANTÔNIO CONSELHEIRO - Antônio Vicente Mendes Maciel, líder espiritual sertanejo,


fundador de Canudos.

JOÃO ABADE - Uma espécie de prefeito de Canudos, encarregado de receber os recém


chegados e zelar pelo bem-estar dos moradores da cidade.

ANTÔNIO BEATINHO – Mistura de sacristão e soldado do Bom Jesus; auxiliar dos rituais
religiosos, mantém Conselheiro informado sobre tudo que acontece no arraial.

CHICO EMA - Dirige a rede de espionagem dos canudenses entre as tropas militares e nas
cidades vizinhas a Canudos.

BEATAS DE VESTIDO AZUL - Encarregadas da limpeza do santuário e da igreja, bem


como de acender as velas e as fogueiras para as horas da reza.

PAGEÚ - Ex-praça de linha, nascido em Pageú, comandante-em-chefe dos jagunços.

Antônio CALIXTO do Nascimento - Chefe dos 600 homens da Guarda Católica de Canudos.

Antônio VILA NOVA - Comerciante de Canudos.

JOÃO GRANDE - Guerreiro de Canudos.

JOAQUIM TRANCA-PÉS - Guerreiro de Canudos.

PEDRÃO - Guerreiro de Canudos.

SANTINHA - Mulher de Canudos.


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MARIÁ MIJA-CARNIÇA - Personagem ficcional, cumpre uma tradição nordestina de


ofender o inimigo, mijando sobre seu cadáver.

JOAQUIM SEM-TELHA - Nome ficcional para personagem real, registrado por Euclides da
Cunha em Os Sertões.

DEVOTOS, DEVOTAS - Seguidores de Conselheiro.

MÉDICO do Exército - Enlouquece na Primeira Expedição contra Canudos.

Major FEBRÔNIO DE BRITO - Chefe da Segunda Expedição contra Canudos.

Coronel MOREIRA CÉSAR - Chefe da Terceira Expedição contra Canudos.

Coronel Pedro Nunes TAMARINDO - Torna-se chefe da Terceira Expedição com a morte de
Moreira César.

Domingos JESUÍNO - Guia da Terceira Expedição contra Canudos.

General ARTUR OSCAR - General de brigada, chefe da quarta expedição contra Canudos.

VARGAS NEVES – De serviço em Canudos, na Quarta Expedição.

Coronel GOUVEIA – De serviço em Canudos, na Quarta Expedição.

PRAÇAS – De serviço em Canudos, na Quarta Expedição.

ARCEBISPO DA BAHIA

SECRETÁRIO DO ARCEBISPO

LUIZ VIANA - Governador da Bahia durante a guerra.

EUCLIDES DA CUNHA - Jornalista, enviado do jornal Estado de São Paulo a Canudos,


autor de Os Sertões.

LÉLIS PIEDADE - Jornalista baiano, correspondente do Jornal de Notícias em Canudos.

SENHORINHAS, SENHORA, RAPAZES DA CIDADE

MISSIONÁRIO - Padre italiano enviado em missão a Canudos, pouco depois de sua


fundação.

PADRES – Acompanhantes do missionário italiano.


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JOÃO EVANGELISTA - Coronel sertanejo que vendeu madeira a Conselheiro e não


entregou, provocando os fatos da Primeira Expedição.

ARLINDO LEÔNI - Juiz de direito de Juazeiro, na época da Primeira Expedição.

COLETORES DE IMPOSTOS da República, que provocam a ira de Conselheiro.

CORO DA IMPRENSA - Jornalistas e cidadãos que exigiam do governo a destruição de


Canudos.

JORNALISTAS

DASDÔ - Sertaneja, vendedora de rapaduras na feira.

ZEFINHA – Sertaneja adolescente.

CIGANA

TONHO DAS COBRA - Vendedor de cobras domesticadas na feira.

RIOBALDO - Um vaqueiro.

ATORES MAMBEMBES

CANTADORES

MULHERES DA FEIRA

PENITENTE CARECA

ROMEIROS, ALIMENTADORAS DE ALMAS - personagens habituais do Nordeste.

QUELÉ e QUELEMÉM - Cegos tocadores de rabeca na feira.

GUARDAS
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I - PRÓLOGO

1. O Encontro das Procissões

Seca, tal e qual milhares de outras que flagelaram o Nordeste. Os homens pobres e os
animais dos homens pobres morrem à míngua. Duas procissões caminham uma ao encontro
da outra. Nelas, as pessoas invocam a chuva.

DEVOTOS 1 - Virgem Santa dos Remédios/ que a todos remediais,/ nós, que somos
pecadores,/ cada vez pecamos mais.// Rainha de eterna glória,/ mãe de Deus, doce e clemente,/
dai-nos água que nos molhe,/ dai-nos pão que nos sustente.

DEVOTOS 2 - Compadecei-vos, Senhora/ de nossos prantos e dores,/ morremos todos de


sede/ porque somos pecadores. //Pedimos a vós, Senhora/ dona da terra e do mar,/ refrigério
para o corpo,/ graça para vos amar.

As procissões se encontram e trocam as imagens. No momento da troca, com foguetões,


orações e discursos, cai um meteorito em local próximo, provocando barulho e fumaça. Um
grupo de penitentes diz o Credo enquanto o outro invoca o Messias.

2. A Invocação do Messias

DEVOTOS 1 – Uma estrela cai do céu majestoso!


DEVOTOS 2 – “Creio em Deus Pai, todo poderoso!”
DEVOTOS 1 – A nós, Senhor, vossa graça eterna!
DEVOTOS 2 – “Criador do céu e da terra!”
DEVOTOS 1 – Sede bem-vindo, divino brilho!
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DEVOTOS 2 – “Creio em Jesus Cristo, um só seu filho!”


DEVOTOS 1 – Escutai, Salvador, o nosso canto!
DEVOTOS 2 - “Concebido por obra e graça do Espírito Santo!”
DEVOTOS 1 - Contemplai o nosso estado!
DEVOTOS 2 - “Foi crucificado, morto e sepultado!”
DEVOTOS 1 - Pelo poder de Deus e da Virgem Maria!
DEVOTOS 2 - “Desceu ao inferno e ressuscitou no terceiro dia!”
DEVOTOS 1 - Mandai vosso filho amado, pra nossa alma ter repouso!
DEVOTOS 2 - “Sentado à direita do Pai, todo poderoso!”
DEVOTOS 1 – Vinde nos guiar pelos caminhos tortos!
DEVOTOS 2 - “Ele há de vir julgar os vivos e os mortos!”
DEVOTOS 1 - Vinde enxugar nosso pranto!
DEVOTOS 2 - “Creio no Espírito Santo!”
DEVOTOS 1 - A estrela anunciou o Salvador que já vem!
DEVOTOS 2 - “Creio na Vida Eterna, amém!”

Terminada a invocação, Conselheiro, que está entre os devotos, afasta-se e fala para si
mesmo.

ANTÔNIO CONSELHEIRO - Olho para a terra, tudo é caótico e deserto. Olho para o céu,
dele desapareceu toda a luz... Bem-aventurados os que sofrem. A vida na terra é um
purgatório. É preciso deixar todas as vaidades. Não manchar o corpo com o veneno da
embriaguez, não manchar o rosto com o sacrilégio de um sorriso. Um mesmo destino aguarda
tanto o sábio quanto o louco, porque no acúmulo da sabedoria acumula-se tristeza, e quem
aumenta a ciência, aumenta a dor. Tudo é poeira, vaidade, vento que passa. Sai caminhando.
Ouvem-se os primeiros ruídos da feira.
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II. A FEIRA

As procissões transformam-se numa grande feira com vendedores, cantadores, equilibristas,


romeiros, penitentes, etc. Enquanto a feira se forma, dois violeiros cantam o desafio,
entremeando as cenas seguintes.

1. O Desafio

CANTADOR UM - Dá licença pra contar/ a história de Conselheiro/ que nasceu no Ceará/


mas salvou o mundo inteiro,/ que o sofrimento é do homem/ não é só do brasileiro./ Mas
porém a salvação/ Deus manda pra todo o povo/ que seguir o credo novo/ desse filho do
sertão. //

CANTADOR DOIS - Sei da história diferente/ e não tiro meu chapéu./ Chamava Antônio
Vicente/ e mais Mendes Maciel./ O crime aprendeu em casa/ com a família cruel;/ aprendeu a
exploração/ quando inda estava no berço,/ foi esse o triste começo/ desse filho... do sertão.

CANTADOR UM - Construiu muitas igrejas/ lá na Vila de Aporá,/ Inhambupe, Bom


Conselho,/ Mocambo, Massacará.,/ Consertou os cemitérios/ para os mortos descansar/
Pombal, Tucano, Missão,/ Cumbe, Timbó, Esplanada,/ e o povo todo ajudava/ esse filho do
sertão.//

CANTADOR DOIS - Da família excomungada/ herdou maldade a granel;/ a tia, harpia


danada,/ de nome Helena Maciel,/ de mulher só tinha o nome/ pois era o pior dos home;/ na
tocaia e no facão,/ castigava sem clemência;/ essa é a descendência/ desse filho do sertão. //

CANTADOR UM - Primeiro, ele andou sozinho/ pra alcançar a penitência/ mas de caminho
em caminho/ levou a sua influência/ e o povo de toda parte/ vem lhe fazer reverência./ Deus
lhe deu esta missão/ de vagar feito mendigo,/ andarilho e sem abrigo,/ esse filho do sertão.//
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CANTADOR DOIS - Me conte a história direito/ desfaça logo o mandu:/ a mulher do seu
beato/ foi raptada em Ipu;/ na garupa de um sargento,/ não teve arrependimento/ não teve
remorso não;/ foi feliz, enrabichada/ e deixou a ver estrada/ esse filho do sertão//

CANTADOR UM - O Bom Jesus Conselheiro/ também vai lhe perdoar,/ mas o dia do juízo/
já está para chegar./ Quem tiver olhos que veja/ e lute para salvar/ a nossa grande nação./ Vai
crescendo em sua glória/e ainda vai entrar na história/ esse filho do sertão.

CANTADOR DOIS - Ele pode entrar na história,/ que isso é terra de maluco/ mestiçagem,
algaravia/ de mulato e mameluco./ Se fosse país decente/ resolvia no trabuco/ no fuzil e
mosquetão,/ ou devia estar no hospício/ que o fanatismo é o vício/ desse filho do sertão. //

CANTADOR UM - Quem fala mal deste santo,/ é lume que não clareia,/ é como brasa que
esfria,/ é como rastro na areia/ em dia de ventania;/ ao toque da sua mão/ vira leite a água da
fonte/ e a pedra vira pão;/ é bendito o que semeia/ este filho do sertão. //

2. O PROFETA E A PENITENTE

Enquanto os cantadores fazem o desafio, atravessa a cena uma mulher com a cabeça quase
raspada, carregando uma cruz de madeira, vestindo um saco com buracos para os braços e
para cabeça.

ZEFINHA - Ela ainda tá andando?

DASDÔ - Ainda... Só pára quando chegar em Monte Santo. Vai subir o calvário da Igreja de
Santa Cruz.
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PROFETA (Vestido de andrajos, com latas velhas penduradas na roupa) - Cíceros,


Conselheiros,/ Canudos por onde sopra o pai-divindade/ ou por onde transborda/ a eterna
orfandade?/ Homem não deve chorar,/ nem carpir, jeremiar.../ A policia prenderá. // Até
quando Cíceros,/ Conselheiros e virgens/ e a terra seca, de Deus viúva,/ e a prece oca/ que dá
vertigem,/ que engana a boca,/ mas não traz chuva? // Homem não deve chorar,/ nem carpir,
jeremiar.../ A polícia prenderá // Os sinos serenamente,/ as sinas doentemente/ ecoam no
vento,/ as cenas, os atos/ de um palco ao relento. // E a besta viajando/ no sangue aguado dos
crentes,/ ao deus-dará?/ E a besta que range dentes,/ quem prenderá?

3. Crentes e Descrentes

Um grupo de mulheres com pedras nas cabeças atravessa a feira em busca de Antonio
Conselheiro, cantando, enquanto feirantes, trabalhando, respondem.

CRENTES - Ele veio lá do céu/ pra trazer a salvação / fartura de água e comida/ e consolo de
oração.

DESCRENTES - O sol assou o miolo/ desse bando de iludidas;/ vão beber é chumbo grosso,/
e urubu vai ter comida.

CRENTES - Quem for no rastro do Santo,/ quem seguir o Bom Jesus/ vai achar rios de leite/
e montanhas de cuscuz.

DESCRENTES - Ô gente doida de pedra!/ Cês vão ver qual é o cuscuz,/ é pirão de
carabina,/ macaxeira de arcabuz.

Uma das mulheres descrentes é Dasdô, vendedora de rapadura, farinha, mel e outras
delícias.
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DASDÔ (Logo depois de desacatar as crentes) - Mas todo santo dia é doido que me chega
nessa feira. Deus faz e espalha, aí vem o Diabo e ajunta tudo no mesmo lugar...

ZEFINHA - A senhora acha que ele também é doido?

DASDÔ - Ele quem, criatura?

ZEFINHA - Esse que tá todo mundo falando... O tal do Conselheiro. O vigário disse que ele é
perigoso.

DASDÔ - Eu não sei de nada, menina. Pode ser e pode não ser. Eu é que não vou largar o
meu que-fazer pra ir atrás de senhor ninguém.

4. Histórias de Cobra

Tonho Das Cobra assusta Dasdô com Nicuri, sua cobra de estimação.

TONHO DAS COBRA - Trouxe Nicuri pro mode você dá um beijinho...

DASDÔ – Desafasta, cobreiro de uma peste! Sai daqui com essa injúria! Coisa peçonhenta!

TONHO DAS COBRA - Nicuri né cobra não, Dasdô, Nicuri é moça. Quem transformou ela
em cobra foi Conselheiro, não sabe?

DASDÔ - Deixe de arrelia, homem! Larga disso de vender cobra. Se cobra prestasse não
tinha botado o mundo a perder... Por causa de uma delas é que a gente tá aqui, penando...

Tonho Das Cobra descobre um amigo, e vai falar com ele. Dasdô se acalma.
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TONHO DAS COBRA - Quer comprar Nicuri, Riobaldo?

RIOBALDO - Quero não! Tô chispando! Vou avisar o patrão que a boiada dele trovejou no
mundo. Está tudo no despostismo.

TONHO DASCOBRA - Vige! Vai correndo, homem!

5. João Grande e A Cigana

João Grande passa, fala com Tonho Das Cobra e vai comprar farinha em Dasdô. Chega
uma cigana.

CIGANA - Deixa eu ler tua sorte, Seu João!

JOÃO GRANDE - Tenho dinheiro não, cigana.

CIGANA (Pegando a mão de João) - Precisa não, deixa eu ver tua estrela.

DASDÔ - Ele já disse que não quer, criatura!

CIGANA (Ignorando Dasdô) - Vai ter fama de coragem.../ Ser o rei da valentia.../ Ser herói
da tua história.../ fazer comprida viagem.../ pelo sertão da Bahia...

JOÃO GRANDE - E é?

CIGANA (Assustada com alguma coisa que vê na mão de João) - Tô vendo um dragão de
ferro.../ um dragão cuspindo fogo.../ fogo na cidade inteira.../ o sino... a torre da igreja.../ o
canhão... a matadeira...

JOÃO GRANDE (Assustado) - Deixa de bestagem, mulher! Que é que tu tá vendo?


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CIGANA (Fugindo) - Sei não, João, sei não....

DASDÔ - Liga não, João! (Dasdô avista o cego Quelemém, que está andando pela feira com
sua rabeca) - Zefinha, vai buscar o cego Quelemém!

6. O Cego Quelemém

Zefinha traz o cego Quelemém para perto de Dasdô e João Grande.

DASDÔ - Tome aqui uma rapadura, Quelemém, e cante pra mim a história de Joana
Imaginária.

JOÃO GRANDE - Eu prefiro a de Roberto, o Diabo.

ZEFINHA - E como é a história?

JOÃO GRANDE - Roberto, o Diabo, era filho de um duque muito rico. Mas de tanta gente
que ele matou, começou a latir e andar de quatro pés. Aí, ele se arrependeu e foi de cidade em
cidade beijando os pés dos parentes dos mortos.

DASDÔ - Nada disso! Tome aqui sua rapadura, Quelemém, e cante a de Joana...

QUELEMÉM - Lá vai! (Cantando) - Joana fazia santos/ de barro, de imagem vária,/ a todos
dava alegria/ e o povo a conhecia/ por Joana Imaginária. // Veio o Santo Conselheiro/ em sua
sina cigana/ de ensinar o evangelho/e entre as imagens dos santos/ viu a imagem de Joana. // Se
a memória não me engana,/ Joana amou, foi amada,/ por este santo andarilho/ e da união
consumada/ eles tiveram um filho. // Porém logo o Conselheiro/ ouviu do céu o apelo/ pra
missão que o aguardava/ e Joana ficou no zelo/ dos santos que imaginava. // Joana ficou
cuidando/ dos santos de barro puro/ e o santo seguiu andando,/ a lei de Deus ensinando,/ que
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este era seu futuro. / Com os pés de barro na estrada/ ele deixou sua amada,/ os santos a
imaginar,/ pra seguir sempre sozinho/ para nunca mais voltar...//

Quelemém está acabando de cantar a história, entra uma carroça com três atores de feira
fazendo muita confusão. Os três param no meio da feira e anunciam a função.

7. Teatro de Feira

ATOR - Aceitamos rapaduras, mel de arapuá e doce de banana. Aceitamos farinha e carne-
seca...

ATRIZ 1 - Atenção, senhoras e senhores, quem quiser assistir o drama O Dia Em Que
Antonio Conselheiro Matou a Mulher, a Mãe e Não Foi à Feira, ponha os pagamentos aqui
na carroça.

ATRIZ 2 - Quem não gostar do drama, tem o pagamento de volta.

ATRIZ 1 - Mas temos certeza de que todo mundo vai querer pagar outra vez por esse drama
que é o maior espetáculo do sertão...

ATOR - Não quisemos apresentar ele no Teatro São João, na Bahia, apesar da insistência do
Presidente da Província...

ATRIZ 2 - Não quisemos apresentar ele na Capital Federal, apesar da insistência do


Imperador D. Pedro II...

ATRIZ - ...que lá não tem mel de arapuá nem farinha dessa qualidade... Vamos, povo do
sertão! O sertanejo é antes de tudo um forte! Olhe que essa frase um dia ainda vai ficar
famosa...
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Os feirantes colocam algumas coisas na carroça e a função começa.

ATRIZ (que faz a mãe de Conselheiro) - Conselheiro, meu filho, eu preciso contar uma coisa
que anda atormentando meu coração de mãe.

ATOR (que faz Conselheiro) - Abra seu coração, minha mãe.

ATRIZ 2 - Brasilina, sua mulher, anda te traindo.

ATOR - Não, não pode ser minha mãe. Brasilina é uma mulher contente e é por isso que o
povo maledicente fica inventando essas coisas.

ATRIZ 2 - Pois você não acredita em mim, nem no povo, vai acreditar em seus olhos. Diga
que vai viajar essa noite e fique de tocaia pra ver o que acontece...

ATOR (aproximando-se da outra atriz) - Brasilina, eu vou viajar agora pra Fortaleza e volto
amanhã de noite, mais tardar, depois de amanhã...

ATRIZ 1 (que faz Brasilina) - Está certo, Antonio.

Antonio sai e Brasilina fica costurando, quando aparece a atriz/mãe de Conselheiro, vestida
de homem e a chama, como se estivesse na porta de casa.

ATRIZ 2 (que faz a mãe de Conselheiro) - Brasilina, meu amor, abre a porta faz favor...

ATOR (Saindo detrás da carroça, onde estava escondido) - Então, é verdade? (Mata as
duas atrizes, e se aproxima para ver quem é o amante da mulher, descobrindo que é a
própria mãe) - Meu Deus! É minha mãe! Eu matei minha mãe!
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O público bate palma, dá vaia, grita e João Grande ameaça agredir os atores, que fogem.

JOÃO GRANDE (Para os atores em fuga) - Cambada de herege! Vocês vivem na lei do
cão! Essa gente não presta! Ai de quem riu do Santo Conselheiro! Do Santo Antonio
Aparecido!

RIOBALDO (Bêbado) - Que santo coisa nenhuma! É corno! E vocês todos que gostam tanto
dele, só podem ser cornos também! É tudo corno!

João Grande dá um soco no bêbado e a briga toma conta da feira, até que chega
Conselheiro, seguido de alguns fiéis, faz um sinal, a briga acaba e ele prega.

8. A Prisão de Conselheiro

CONSELHEIRO - Paz, paz! Que ofensa gravíssima comete aquele que diz de outrem aquilo
que ele não fez... Não murmurem do próximo, se ele comete alguma falha, use para com ele de
caridade. A murmuração é tão contra Deus e contra o próximo que, ainda que não fosse
proibida, devia ser abandonada de toda criatura, pela grande vileza que a todos causa...

Durante a pregação, que todos ouvem, aproximam-se três guardas.

GUARDA UM - Você é Antonio Vicente Mendes Maciel?

ZEFINHA (Embevecida, ainda) - Inhô, não. Ele é o Santo Antonio Aparecido.

GUARDA DOIS - Então é ele mesmo!

GUARDA TRÊS - Vamos evitar confusão, Antonio. Você está preso porque matou sua mãe
e sua mulher em Quixeramobim...
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Confusão. Alguns homens que seguem Conselheiro avançam em direção aos guardas.
Conselheiro os detém com um sinal.

CONSELHEIRO - Eu vou. Nada fiz, nada temo. Aquele que me levou, haverá de me trazer.
Dentro de um ano, a contar de hoje, eu estarei com vocês! Orai e vigiai...

GUARDA TRÊS - Vamos embora, Antonio. Deixa de conversa, homem!

GUARDA DOIS (Para os fiéis, inconformados) - Ele não disse que volta daqui a um ano?
Se vocês esperarem...

Enquanto os guardas levam Conselheiro, anuncia-se a Proclamação da República.

III. A CONSTRUÇÃO DA CIDADE

1. Queima dos Editais da República

Anunciada a réplica, vê-se ao longe surgir Conselheiro, seguido de fiéis. Os primeiros que o
vêem, avisam aos outros, e em breve junta-se o povo disperso.

DEVOTOS - Venha ver, gente! O nosso Conselheiro voltou! Viva o Bom Jesus! Ele disse
que voltava! Ele sabia! Milagre! Voltou. Ele agora está livre do crime inventado! Louvado
seja!

ANTONIO CONSELHEIRO (Faz um sinal com a mão e todos se calam) Nosso Senhor
Jesus Cristo disse : Ai daquele por quem vem o escândalo! Melhor seria para ele ser lançado
com uma pedra no pescoço no fundo do mar, do que dar ocasião ao escândalo! Pois o
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casamento civil, que zomba de um sacramento da igreja, é um escândalo permitido e legalizado


pela besta republicana!

Principia um tumulto. Entram dois coletores; enquanto um fixa as tábuas onde estavam
escritas as disposições da República, o outro as lê para o povo.

COLETOR UM - O Governo da República faz saber a todos os cidadãos deste município que
deverão declarar todos os bens que possuam por herança, assim como os lucros com a venda
de produtos, para efeito de cobrança de impostos.

DEVOTO - Impostos?

ANTONIO CONSELHEIRO - Povo de Bom Conselho, esta é mais uma lei infame, imposta
por um governo ilegítimo! Esta ousadia ofende ao pai que está no céu! Vamos purificar com
o fogo mais esta afronta republicana! Vamos queimar estas tábuas amaldiçoadas!

Conselheiro e a multidão arrancam as tábuas pregadas nas paredes e as queimam.

ANTONIO CONSELHEIRO - A República é um grande mal para o Brasil! O governo da


República quer exterminar a religião... A religião é a obra-prima de Deus... Todo poder
legítimo vem de Deus. Devemos obedecer ao Papa e ao Imperador e aos verdadeiros ministros
de Deus...

EUCLIDES DA CUNHA – “O acontecimento repercutiu na capital, de onde partiu numerosa


força policial para prender o rebelde e a sua turba, alcançando-os em Masseté. Trinta praças
bem armados vieram atacar os penitentes ingênuos, mas deram de frente com jagunços
terríveis, foram desbaratadas e recuaram. Mas Conselheiro não se iludiu com o recuo. Arrastou
os fieis pelas trilhas sertanejas e endireitou rumo firme, em cheio para o norte. (Os Sertões) ”

2. A SANTA MADRE IGREJA CATÓLICA


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Conselheiro ruma para Canudos com a sua gente, enquanto um arcebispo, gordo e feliz,
expede uma circular.

ARCEBISPO - Circular, com c Alcivando, circular é com c, pois bem, Circular A Todo O
Clero Brasileiro. Chegou ao nosso conhecimento que pelas freguesias, freguesias é com s
Alcivando, (Soletrando para Alcivando) fre - gue - sias, pois bem, freguesias desse
arcebispado, anda um indivíduo chamado Antonio Conselheiro, pregando ao povo doutrinas
supersticiosas, perturbando as consciências e enfraquecendo a autoridade da igreja. V.
Reverendissima não deve consentir em sua freguesia semelhante abuso, abuso com s
Alcivando, e a partir de agora eu vou entregar a sua ortografia a Deus, pois bem, não consinta
em sua freguesia semelhante abuso, proibindo os paroquianos de se reunirem para ouvir tal
pregação... mas nem Deus cuida de sua ortografia, Alcivando? Pregação é com ç!

3. FUNDAÇÃO DE BELO MONTE

Conselheiro, seguido de muita gente, encontra o lugar certo para fundar Canudos.

ANTÔNIO CONSELHEIRO - É aqui. Chegou o fim da longa caminhada. É aqui o lugar.


Aqui plantaremos a semente do Império do Belo Monte. Neste lugar sagrado, Deus é nosso
imperador. O lugar é aqui, livre do governo insensato dos homens. O anti-Cristo desgoverna o
Brasil, mas a peste republicana não nos alcançará. Crescei e edificai! Casas e igrejas! Moradas
do corpo e moradas da alma! Vamos erguer torres para o céu e plantar cemitérios na terra.
Aqui, em Canudos, vamos erguer o Império do Belo Monte e começaremos por construir uma
igreja nova, um templo de pedra que resistirá ao tempo e aos homens. Depois disso, haverá 4
incêndios, os três primeiros eu apagarei, o quarto será entregue ao Bom Jesus...
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JOÃO GRANDE (Aproximando-se) - Com a vossa licença, meu Pai. Estou carregado de
pecados, cheio de crimes nas costas e não sei se tenho muita serventia pra vossa obra de fé,
mas conte com a força dos braços desse vosso escravo!

ANTONIO CONSELHEIRO - Todos tem serventia aos olhos de Deus, João!

PEDRÃO (Aproximando-se) - A bênção, meu Pai. Eu também tô fugindo da Lei, mas quando
ouvi vossas palavras, senti que ainda tem tempo pra eu entrar no céu. Tô pronto pra trabalhar
de sol a sol pelo Bom Jesus!

ANTONIO CONSELHEIRO - Deus aceitará o seu trabalho, Pedro!

JOÃO ABADE (Aproximando-se) - Eu era chamado João do Cão, João Demônio, João
Canhoto, João Besta-Fera! Era um homem perdido, cheio de maldade, mas a vossa palavra me
mudou!

ANTONIO CONSELHEIRO - De agora em diante você será João, João Abade, soldado do
Bom Jesus.

PAGEÚ (Aproximando-se) - Eu também já mandei muito cabra safado pros infernos, meu
santo, mas agora estou aqui com todo meu bando pra defender vosmicê até a morte!

ANTONIO CONSELHEIRO - O arrependimento do pecador é agradável a Deus, Pageú!

VILA NOVA (Aproximando-se) - A vida toda só atinei em ganhar dinheiro, ganhei e perdi e
ganhei de novo, mas aí eu ouvi vossa pregação e vi que tinha mais coisa nesse mundo do que
ganhar dinheiro, e estou aqui em busca da salvação de minha alma, meu Pai!l

ANTONIO BEATINHO - Belo Monte vai precisar de todos, agora. Bons e maus, justos e
injustos!
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4. CHEGADA DOS DEVOTOS

Homens e mulheres iniciam a construção da cidade, enquanto dezenas de novos devotos


chegam a Canudos, trazendo tudo que tem. Chico Ema aproxima-se de João Abade, e
anuncia a chegada dos fiéis.

CHICO EMA - Tá chegando aí um bando de gente com as trouxas nas cabeças.

JOÃO ABADE - É pra deixar entrar! Pedrão, leve as cabras pro curral!

ANTONIO BEATO - Estão chegando muitos braços pra trabalhar!

VILA NOVA - E muita boca pra comer!

JOÃO ABADE - Que é isso, homem? Quer correr com nosso Senhor Jesus Cristo? Não
somos nós que vamos negar uma mão de farinha, um naco de carne-seca e uma sede d' água
pra essa gente!

Conselheiro, seguido de Beatinho, anda entre os recém chegados e eles se ajoelham, choram,
rezam.

DEVOTOS (Gritando) - Acabaram nossas dores! Vamos ter trabalho e comida! Belo Monte
é a estrada pra esperança! Acabou a fome!

Uma mulher se ajoelha diante de Conselheiro e beija sua mão.

DEVOTA - Meu santo Conselheiro! Meu Jesus Cristinho! Nosso Senhor Jesus Cristo!
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ANTONIO CONSELHEIRO (Levanta a mulher) - Não, eu não sou Deus, Deus é outra
pessoa. Sai, enquanto os fiéis entoam um bendito.

5. A Missão

Surge um missionário capuchinho, seguido de dois padres, e logo são rodeados pelos
canudenses, homens armados, inclusive. Abrem caminho até Conselheiro.

MISSIONÁRIO - Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo!

ANTONIO CONSELHEIRO - Para sempre seja louvado!

MISSIONÁRIO - Eu sou Frei João Evangelhista de Monte Marciano. Este é o vigário de


Cumbe, que retorna à sua velha casa fechada aqui em Canudos. E este é o Frei Caetano.

ANTONIO CONSELHEIRO - Cheguem em boa paz! Estamos construindo esta igreja como
o rei Salomão construiu o templo em Jerusalém, para que o Senhor possa ouvir as orações do
seu povo.

MISSIONÁRIO - E é esse o povo eleito? É estranho, mas eu só posso ver aqui homens
armados, como se fosse para uma guerra...

ANTONIO CONSELHEIRO - Estes homens armados são para minha guarda, porque V.
Reverendíssima deve saber que a polícia já me atacou e quis me matar num lugar chamado
Masseté. No tempo da monarquia eu me deixei prender, mas hoje ninguém me prende, porque
não reconheço a República.

MISSIONÁRIO - O senhor, se é católico, compreende que a igreja condena todas as revoltas


e aceita todas as formas de governo!
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A multidão se movimenta, inquieta, um canudense grita " A república é o anti-Cristo!”, e o


outro "A república é Satanás!"

CONSELHEIRO (Faz um gesto com a mão e todos ficam quietos) - O povo de Belo Monte
não sabe ouvir um enviado de Cristo? Que ele fale.

MISSIONÁRIO - Do bispo ao mais humilde dos católicos, todos obedecem às leis da


República. Se só o senhor não quer se sujeitar, sua doutrina é uma doutrina errada.

ANTONIO BEATINHO - Doutrina errada tem o Reverendo e não nosso Conselheiro.

Novo tumulto entre os devotos e novo gesto de Conselheiro para acalmá-los.

CONSELHEIRO - Eu não atrapalho a santa missão, mas também não desarmo minha gente.
Eles vão ouvir a sua pregação, mas vão armados.

Logo depois de começada a missão, Antonio Beatinho e Chico Ema correm em direção à
João Abade.

JOÃO ABADE - Que foi?

ANTONIO BEATINHO - Seu João, acho que esse padre, além de republicano, é maçom e
protestante!

CHICO EMA (Revoltado) - Ele tá fazendo cada sermão excomungado da peste. Disse que se
a gente não obedecer o governo, vai ser preso todo mundo.

JOÃO ABADE - Oxente! Esse padre tá pensando que o céu é perto?


23

PEDRÃO (Chegando) - Acho bom a gente tomar providências com a arenga desse pregador
do governo.

JOÃO ABADE - Que é que ele disse agora?

PEDRÃO - Tá assustando o povo! Disse que veio a mando do Arcebispo! Que cada família
tem que voltar pra sua terra, arriar as armas e ir embora.

JOÃO GRANDE - Se importe não, Pedrão. Deus não juntou seu povo aqui pro demônio
separar...

JOÃO ABADE (Para João Grande) - E vocês ouviram isso mesmo, João Grande?

JOÃO GRANDE - Ouvi tudo. Disse que amanhã não quer ninguém rezando de bacamarte,
pistola, garrucha, espingarda. Nem de facão, pode? Acho melhor avisar ao Santo.

JOÃO ABADE - Mas nem carece!

(Toca um apito e todas as pessoas que assistiam a missão se aproximam dele. O missionário
e os padres, perplexos, acompanham a multidão.

JOÃO ABADE - Aqui no sertão, Reverendo, a gente tem que rezar de terço e trabuco, com
um olho no padre e outro nos macacos. Para a multidão - Viva o Bom Jesus Conselheiro!

A multidão se dispersa aos gritos de "Viva o Bom Jesus Conselheiro" e "Salve o Divino
Espírito Santo". Os padres saem com medo.

MISSIONÁRIO (Distante, olhando Canudos) - Malditos sejam!


24

6. O “BEIJA” DAS IMAGENS

Antonio Beatinho toma de um crucifixo, contempla-o, aconchega-o ao peito, prostra-se,


beija-o e entrega-o ao fiel mais próximo, que repete a cena; Beatinho inicia o mesmo ritual
com outras imagens e as passa aos fiéis mais próximos. Beijos estalados e um vozear
crescente de pedidos balbuciados à meia voz. Isso cresce até o delírio coletivo. De repente, o
tumulto cessa. Todos se quedam ofegantes, olhares presos à porta do Santuário, de onde
surge Conselheiro para pregar.

ANTONIO CONSELHEIRO - Em 1896 há de rebanhos mil correr da praia para o sertão,


então o sertão virará praia e a praia virará sertão. Em 1897 haverá muito pasto e pouco rastro
e um só pastor e um só rebanho. Em 1898 haverá muitos chapéus e poucas cabeças. Em 1899
ficarão as águas em sangue e o planeta há de aparecer no nascente. Há de chover uma grande
chuva de estrelas e aí será o fim do mundo. Em 1900 se apagarão as luzes. Deus disse no
Evangelho: eu tenho um rebanho que anda fora deste aprisco e é preciso que se reúnam porque
há um só pastor e um só rebanho. Na nona hora, descansando no Monte das Oliveiras um dos
seus apóstolos perguntou: - Senhor, para o fim desta idade que sinais vós deixais? Ele
respondeu: muitos sinais na lua, no sol e nas estrelas. Há de aparecer um anjo mandado por
meu pai terno, pregando sermão pelas portas, fazendo povoações nos desertos, fazendo igrejas
e capelinhas e dando seus conselhos. Em verdade vos digo: quando as nações brigam com as
nações, o Brasil com o Brasil, a Inglaterra com a Inglaterra, a Prússia com a Prússia, das ondas
do mar D. Sebastião sairá com todo o seu exército. Desde o princípio do mundo se encantou
com todo seu exército e o restituiu em guerra. E quando encantou-se afincou a espada na
pedra, ela foi até os copos e ele disse : Adeus Mundo. Até mil e tantos. A dois mil não
chegarás. O fim desta guerra se acabará na Santa Casa de Roma e o sangue há de ir até a junta
grossa!”
25

IV. ANTECEDENTES DA GUERRA

CORO DA IMPRENSA (Ao som de telégrafos, vozes, gritos, gargalhadas etc) - Milhares
de fanáticos reunidos em Canudos./O governo ignora o perigo da aglomeração./Fanáticos
imolam criancinhas./Conselheiro quer a volta do rei.

Dois homens conversam, um juiz do interior e um coronel sertanejo.

JOÃO EVANGELISTA - Seu Doutor Juiz, a cidade de Juazeiro está em polvorosa. Dizem
que os jagunços de Conselheiro vão invadir a cidade pra levar uma madeira que ele comprou,
pagou e ainda não recebeu.

ARLINDO LEÔNI - Eu já soube dos boatos, Coronel, e enviei um telegrama ao Governador


da Bahia, pedindo providências! Passa o telegrama para o coronel

JOÃO EVANGELISTA Lendo muito mal o telegrama - Exmo. Governador da Bahia.


Notícias alarmantes. Fanáticos preparam-se para assaltar Juazeiro. População amedrontada
abandona cidade. Solicito providências enérgicas.

ARLINDO LEÔNI - E o governador respondeu a mim, um juiz de direito, que não podia
mobilizar forças baseado em boatos!

O juiz e o coronel continuam a conversar, enquanto em outra parte, dois homens, lendo
jornais, conversam.

HOMEM UM - Está claro que o governo da Bahia não tem dado importância nenhuma ao
banditismo que está assolando o sertão. Antonio Conselheiro é um homem perigoso.
26

HOMEM DOIS - Seus jagunços-devotos são um verdadeiro exército de 1.000 homens,


armados até os dentes, que arrasaram com uma diligência policial em Masseté há algum tempo.
O Governador está brincando com fogo.

HOMEM UM - Brincando, em? Ele está é cuidando de seus interesses!

LUIZ VIANA (ditando para um funcionário)- Doutor Arlindo Leôni, informo a V. Exa. que
requisitei ao comandante do distrito 100 praças de linha para defender a cidade de Juazeiro do
ataque esperado por V. Excia. Eles seguem em trem expresso, sob o comando do Tenente
Pires Ferreira. Governador do Estado da Bahia, Luiz Viana.

V. A EXPEDIÇÃO PIRES FERREIRA

As últimas palavras de Luiz Viana são abafadas pela chegada da primeira expedição. Os
homens do exército entram marchando, relaxam e se preparam para dormir, deixando o
vigia. Surgem os canudenses com a Bandeira do Divino à frente, ladeada por uma grande
cruz de madeira (nos braços fortes de um crente) alta como um cruzeiro. Mulheres com
imagens, pedras nas cabeças, palmas ressequidas tiradas dos altares, rosários de coco e,
entre elas, homens armados de velhas espingardas, chuços de vaqueiros, foices, varapaus,
todos rezando e cantando e apitando (apitos de taquara). Atacam e matam o vigia. Os praças
começam a sair das casas de cuecas e armas nas mãos. Nos embates corpo a corpo, os
sertanejos levam a melhor. Afastados, são fuzilados em massa pelo exército. Depois de
algum tempo, os sertanejos se retiram com a Bandeira do Divino e a cruz de madeira à
frente, e os praças não os seguem.

MÉDICO do Exército (Enlouquecido) - Jesus estava muito calmo, mas em seus olhos havia
remelas e nas suas mãos havia sangue. Eu olhei dentro da íris do olho de Deus e lá, sentado ao
lado direito do Pai, estava Conselheiro julgando vivos e mortos com seu dedo de espinhos.
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(Tenta levantar um cadáver) - Levanta-te, eu te ordeno! Levanta-te! Ressuscita! (Dois praças


levam-no e começa a retirada do exército, ao som do comentário de Euclides.)

EUCLIDES DA CUNHA – “Depois do combate de Uauá, onde morreram 150 jagunços e 10


soldados, o médico enlouqueceu e a tropa voltou para Juazeiro. Eram a imagem da derrota. A
população alarmou-se. E as linhas do telégrafo transmitiram ao país inteiro o prelúdio da
guerra sertaneja.”

CORO DA IMPRENSA (Ao som dos telégrafos, gritos etc) - Fanáticos Vencem Força do
Exército. República Ameaçada. Governador da Bahia Ajuda Fanáticos. É Preciso Destruir
Canudos.

LUIZ VIANA (Cercado de jornalistas) - Considerando-se o melancólico final da expedição


Pires Ferreira, projetar o envio de nova força pode ser mais perigoso ao bem-estar da região
do que o próprio Antonio Conselheiro. Basta dizer a V.Exa. que os praças derrotados em
Uauá saquearam e queimaram todo o povoado.

CORO DA IMPRENSA (Ao som dos telégrafos, gritos etc) - Fanáticos Vencem Força do
Exército. República Ameaçada. Governador da Bahia Ajuda Fanáticos. É Preciso Destruir
Canudos.

EUCLIDES DA CUNHA – “E seguem para Canudos sob o comando do Major Febrônio de


Brito 543 praças, 14 oficiais e 3 médicos, todos certos da vitória. Estava firmada, de antemão,
a derrota dos fanáticos.”

VI. A EXPEDIÇÃO FEBRÔNIO DE BRITO

Durante a fala de Euclides, vê-se a tropa partindo para Canudos. O relatório de Febrônio de
Brito acontece durante as batalhas.
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FEBRÔNIO DE BRITO - Em 17 de janeiro de 1897, modifiquei o plano de ataque por causa


dos acidentes do terreno, além do número de bandidos, muito maior do que imaginávamos.
Canudos estava fortemente defendida pelos jagunços.

(Enquanto Febrônio relata, vê-se a tropa avançando e, de repente, ser atingida pela direita,
pela esquerda, misteriosamente, sem que se veja um só sertanejo. Os soldados, então, atiram
a esmo, em grande desordem, contra o inimigo invisível. )

FEBRÔNIO DE BRITO - Dia 18, tivemos 25 baixas, 5 mortos e 20 feridos e conseguimos


ficar a menos de 1 légua de Canudos. Dia 19, marchamos contra Canudos mas, de repente,
fomos cercados por mais de 4.000 bandidos, surgidos não se sabe de onde. Respondemos com
artilharia e fuzilaria, matando centenas deles, e os selvagens se recompuseram como por
milagre! Nossos soldados já não se alimentam há três dias. Os feridos se multiplicam. A
munição está quase esgotada. Os bandidos, que não estão mal armados, como se dizia, vêm
morrer agarrados à artilharia. Nunca vi em toda minha vida tamanha ferocidade. Começo a
inevitável retirada.

Em Canudos, Antonio Beatinho e as mulheres, comandadas por Santinha, recolhem os


mortos e feridos.

SANTINHA - Vamos, minha gente. Vamos enterrar nossos mortos, senão eles não têm paz.

MARIÁ MIJA CARNIÇA (Virando um cadáver de barriga pra cima) - Ai, meu Deus, é
Zezinho da Égua Mansa. Tão bom pai, tão bom filho, tão bom cristão. (Falando com o morto)
- Zequinha, se eu soubesse quem foi o miserável que fez isso, eu mijava na carniça dele pra te
desagravar...

Os sertanejos continuam no recolhimento de cadáveres. O exército retira- se.


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FEBRÔNIO - Matamos 700 jagunços! A retirada foi quase perfeita. Não deixamos um só
ferido ou uma arma em poder do inimigo. Chegamos a Monte Santo em 20 de janeiro de 1897.
Os soldados estão esgotados, maltrapilhos, famintos. Não nos disseram a verdade. Posso lhe
garantir que o número de homens de Antonio Conselheiro é superior a 5.000.

Canudenses acocorados, de armas na mão.

CHICO EMA - Não sei porque não deixam a gente em paz nesse fim de mundo.

PEDRÃO - Mas o Santo avisou que a gente ia ser perseguido, que essa batalha é mais velha
que o mundo, a batalha contra Satanás!

JOAQUIM TRANCA-PÉS - Me diga uma explicação, Pedrão, que coisa é “república”?

PEDRÃO - Veja bem, Tranca-Pés, de saber, saber, eu não sei não, mas o Santo explicou que
republicano é protestante, é contra Deus, é contra a igreja. Fazem casamento sem padre, dizem
que quem manda nos cemitérios é a prefeitura! É essa safadeza ...

JOAQUIM TRANCA-PÉS - E monarquia era quando tinha o imperador Dão Pedro?

CHICO EMA - E a princesa Isabel, que libertou os escravos ...

JOAQUIM TRANCA-PÉS - E agora o rei é o tal do presidente? E os deputados?

PEDRÃO - Tô enrolado no xale da doida, Tranca-Pés. O que eu sei mesmo é que regime bom
pra se viver na terra, tem que ser igual ao regime do céu.

CHICO EMA - Ô, e é assim, é?

PEDRÃO - É. No céu, Deus é rei de todos os anjos, e nossa senhora é a rainha.


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JOAQUIM TRANCA-PÉS - Mas deve de ser mesmo!

PEDRÃO - E é, Tranca-Pés, agora você imagine essa tal de república no céu, com Deus
presidente, anjo deputado, anjo senador, tudo brigando e se xingando... ( Riem)

EUCLIDES DA CUNHA – “Os vitoriosos por antecipação chegaram a Monte Santo sem um
homem válido. Mesmo os que carregavam os feridos mancavam, os pés varados de espinhos,
fardas em trapos, capotes em pedaços que mal escondiam a nudez. Entraram no arraial como
uma turma de retirantes batidos pelo sol, fugidos da miséria. E a população recebeu-os em
silêncio.”

VII – EXPEDIÇÃO MOREIRA CÉSAR

CORO DA IMPRENSA ( Ao som dos telégrafos) - Ao Grito de “Viram Canalhas O Que É


Ter Coragem” , Fanáticos Derrotam Exército Republicano. A República Corre Perigo.
Canudos, A Nova Vendéia. Governador da Bahia, Indiferente Ao Massacre. Fanáticos
Chamam Exército Republicano de Fraqueza do Governo. É Preciso Destruir Canudos. (Lento)
Moreira César, Herói Nacional, Segue Para Canudos Com 1200 Homens. ( Repetir)

ALGUÉM DO CORO DA IMPRENSA - Coronel Moreira César, orgulho da República


Brasileira, aqui está um telegrama com mais de 500 assinaturas de honrados cidadãos baianos!

MOREIRA CÉSAR - (Lendo) “Coronel Moreira César, herói do exército brasileiro! Venha e
salve a república!” ( Ao povo) O pedido ser atendido em 48 horas!

A tropa se arrasta sob o sol. Moreira César, de uniforme branco, está à frente. Durante o
percurso, tem um ataque epilético e é afastado do comando por algum tempo. Chico Ema
entra correndo em Canudos e é interpelado por Mariá.
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CHICO EMA - Os "cão danado" estão voltando. Saíram de Monte Santo com o Corta-
cabeça na frente, todo enfatiotado. São mais de mil homens, tudo bem armados, bem fornidos,
doidos pra acabar com a gente.

MARIÁ MIJA CARNIÇA - Não fica assim não, homem de Deus, que nós temos o Bom
Jesus conosco e eu hei de mijar na carniça de um por um que passar por aquela estrada.

Moreira César reassume o comando e continua a avançar rumo Canudos.

MOREIRA CÉSAR - Daqui por diante, temos duas estradas: a que passa pela Serra do
Cambaio, mais curta e perigosa, cheia de grutas naturais que favorecem os bandidos, e outra,
cinco vezes mais comprida, que passa pelo Cumbe. É por ela que nós vamos.

Em Canudos, as mulheres se reúnem e começam a rezar o “Rio Jordão”.

DEVOTAS - Estavam no Rio Jordão ambos os dois. Chegou o Senhor São João. Levanta-te,
Senhor! Lá vêm os nossos inimigos! Deixai vir, João! Que todos vêm atados de pés e mãos,
almas e corações. Com dois, eu te vejo, com três eu te ato. O sangue, eu te bebo. Coração, eu
te parto. Vocês todos hão de ficar humildes e mansos como a sola dos meus sapatos. Diz três
vezes esta frase, batendo com o pé direito. Deus quer, Deus pode, Deus acaba tudo quando
Deus e eu quisermos. Salve Rainha!

A tropa sofre um pequeno ataque, não se sabe de onde. Morre um praça e seis ficam feridos.
Moreira César ordena um ataque. Avança e encontra uma espingarda de matar passarinho e
um ferrão dos conselheiristas. Usa a espingarda, que dá um tiro fraco.

MOREIRA CÉSAR (Ri, arrogante) As armas dos jagunços acabaram.


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Os praças riem. Em Canudos, Pageú se aproxima das mulheres que rezam, com alguns
homens.

PAGEÚ (Passando pelas mulheres) - As mulheres ficam rezando, os homens vêm comigo.
Homem rezador não presta e nem prestou. Quero todos os homens do lado do armazém de
Vila Nova. O Corta Cabeça tá vindo, minha gente.

DEVOTAS - Santo Amanso amansadô, que amansou os leões brabos, amansai o coração do
Corta Cabeça que vem brabo comigo, com todos os diabos...

PAGEÚ (Passando pelas mulheres) - Quem vai amansar aquele miserável é bala! Aquilo é
tão excomungado que o pai negou-lhe a bênção..

A marcha da tropa é interrompida por um homem.

PRAÇA - Coronel, esse homem quer falar com o senhor.

MOREIRA CÉSAR - Que se aproxime!

JESUÍNO (Aproximando-se de Moreira César) - Tenho a honra de falar com o Coronel


Moreira César?

MOREIRA CÉSAR (Nervoso) - Se for rápido!

JESUÍNO - Eu sou Jesuíno, Capitão da Guarda Nacional, às ordens de V. Excelência. Venho


me apresentar e me oferecer como guia de vossa corajosa expedição. Conheço essa terra
palmo a palmo.

MOREIRA CÉSAR (Interessado) - Ah sim! Um guia. Em boa hora. E o preço pelo trabalho?
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JESUÍNO - Um fuzil e munição quando o combate começar.

MOREIRA CÉSAR - Mas o senhor não é combatente!

JESUÍNO - Sou mais que um combatente Coronel, porque sou movido pelo ódio. Não
entrego a alma a Deus enquanto não mandar para o inferno o negro Pageú, acoitado pela corja
de Conselheiro.

MOREIRA CÉSAR (Irritado outra vez) - Isso aqui não é lugar para vingar afrontas pessoais.
A honra da República está em jogo. Esses homens que o senhor está vendo, vieram combater
selvagens que nunca viram, nesse chão desgraçado onde nunca pisaram, deixando para trás
filhos, esposas, famílias. E o senhor quer fazer um duelozinho particular?

JESUÍNO - Felizes de vossos soldados, Coronel, que tiveram família pra deixar. A minha foi
massacrada pelo negro Pageú e seus jagunços.

MOREIRA CÉSAR (Sensibilizado) - Então, mexa-se homem! E não erre a pontaria!

A tropa se aproxima de Canudos. Pára.

MOREIRA CÉSAR - Homens, estou doente! Há vários dias que não me alimento. Mas
Conselheiro está ali nos esperando. Vamos almoçar com ele.

Gritos, bravos. A infantaria larga mochilas, cantis, bornais e todas as peças do equipamento,
exceto as armas e munição, que a cavalaria atrás recolhe, e avança sobre Canudos.

MOREIRA CÉSAR - Deem dois tiros de canhão em direção a Canudos. Sou um homem
educado. Quero avisar a Conselheiro que cheguei para o almoço e trouxe convidados.
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Os praças riem, dão gritos, aclamações. Ouvem-se dois tiros de canhão. Alguns casebres
caem. Fumaças negras de incêndio. Soldados se aproximam dos casebres. Aparece um
conselheirista, perto. Todos atiram sobre ele, que sequer apressa o passo. Em determinado
momento, ele senta para acender o cachimbo. Os soldados continuam atirando. De repente, o
conselheirista se levanta e sai andando até desaparecer.

MOREIRA CÉSAR - Vamos tomar Canudos sem dar mais um só tiro! À baioneta! Avançar!

Na arrancada, Moreira César é atingido por uma bala. Inclina-se, desmaia e é retirado pelos
praças, que começam a recuar, perseguidos pelos conselheiristas.

PRAÇA - O Coronel Moreira César morreu. Eu é que não vou ficar aqui pra morrer também.

OUTRO PRAÇA - Eles têm o corpo fechado. Conselheiro fechou o corpo deles todos. Vocês
viram aquele jagunço que ficou rindo das balas da gente? É corpo fechado.

PRAÇA - Nós estamos desgraçados. Não vai ficar um pra contar a história.

OFICIAL ( Ao Coronel Tamarindo) - Coronel Tamarindo, quais são as ordens?

TAMARINDO (Assumindo o comando) - Vamos recuar para o Alto do Mário.

EUCLIDES DA CUNHA - “Chegados ao Alto do Mário, ficaram perto da artilharia. Eram


uma multidão amedrontada sem coisa alguma que recordasse a força militar de horas antes. A
expedição era agora aquilo: um bolo de homens, animais e fardas entupindo uma dobra da
montanha.”

OFICIAL ( Ao Coronel Tamarindo) – E agora, Coronel Tamarindo, quais são as ordens?

TAMARINDO - É tempo de murici, cada um cuide de si.


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Toca o sino da igreja e das paredes e janelas dos casebres saem dezenas de conselheiristas
avançando sobre os praças com ferrões de boi, espingardas de chumbo, chuços, enquanto a
tropa desaparece no labirinto de Canudos. Os soldados ficam apavorados. Ouve-se uma
cantoria em Canudos

CANUDENSES - Avança, fraqueza do governo/que aprendeu a continência/ que aprendeu


obediência/ mas não sabe passar fome. // Avança fraqueza do governo/ que essa é a sapiência/
que essa é a diferença/ de quem nasceu pra ser homem.

O sino da igreja repica e começa a fuzilaria. A tropa começa a fugir ao som de tiros, vaias e
assobios dos conselheiristas. De vez em quando, cai um homem morto.

OFICIAIS (Tentando impedir a fuga da tropa) - Meia volta! Alto! Meia volta! Covardes!
(Para os corneteiros) - Toquem meia volta! Desgraçados! Covardes desgraçados!

(Toma um tiro. Os conselheiristas perseguem os praças, vaiando-os, matando-os. Eles


deixam tudo: armas, munição, cantis, embornais, e alguns começam a tirar as roupas (até
ficar de cuecas) para correr melhor. Ouve-se Euclides da Cunha entre as vaias, assobios,
relinchar de cavalos, etc.)

EUCLIDES DA CUNHA – “A retirada era a fuga. Oitocentos homens desapareciam em fuga,


abandonando as espingardas, arriando as padiolas em que se estorciam feridos, jogando fora as
armas e as peças do equipamento, desarmando-se, correndo, correndo ao acaso, correndo em
grupos, em bandos erradios, correndo pelas estradas em busca da salvação.”

As últimas palavras de Euclides se misturam à Oração do Anjo Custódio, dos canudenses,


comemorando a vitória.
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CANUDENSES - As 12 palavras ditas e retornadas são os 12 apóstolos acompanhando nosso


senhor Jesus Cristo. As 11 palavras ditas e retornadas são as 11 mil virgens cantando no céu.
As 10 palavras ditas e retornadas são os 10 mandamentos da lei de Deus. As 9 palavras ditas e
retornadas são os 9 meses que o Menino Deus andou no ventre da Virgem Santíssima. As 8
palavras ditas e retornadas são os 8 mil coros de anjos. As 7 palavras ditas e retornadas são os
7 sacramentos. As 6 palavras ditas e retornadas são os 6 círios bentos acesos em Belém e
queimados em Jerusalém. As 5 palavras ditas e retornadas são as 5 chagas de Nosso Senhor
Jesus Cristo. As 4 palavras ditas e retornadas são os 4 evangelistas. As 3 palavras ditas e
retornadas são as 3 pessoas da Santíssima Trindade. As 2 palavras ditas e retornadas são as 2
tábuas da lei que Deus entregou a Moisés. A primeira palavra dita e retornada é a Santa Casa
de Jerusalém onde Nosso Senhor comeu com os apóstolos a ceia larga. Seja tudo pela sua
glória eterna, amém.

VIII - CENAS URBANAS

Na esquina da linda e elegante Rua Chile do final do século XIX, projetada em slide, um
homem lê o jornal A Bahia, quando é abordado por um amigo..

AMIGO - Quais são as novidades?

LEITOR - Canudos. Está em todos os jornais. Canudos faz mais sucesso do que Paris. Onde
já se viu?

AMIGO - Irritado, em? A irritação é por causa da morte de Moreira César?

LEITOR - Não inteiramente! É que esse beócio aqui (Mostra o jornal) diz que tudo isso está
acontecendo em Canudos, porque nós, baianos, somos mestiços.

AMIGO - É coisa do Nina Rodrigues?


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LEITOR - Não, é coisa de um tal de Sá Oliveira ... 1

AMIGO - Filho de uma marafona... branca... é o que ele é! (Os dois estão rindo quando
passam duas Senhorinhas e uma Senhora em direção às compras)

LEITOR, AMIGO (Solícitos) - Muitos bons dias... Como vão as senhorinhas?

SENHORINHA UM - Bem, e os cavalheiros?

LEITOR - Tomando conhecimento das notícias sobre Canudos. Mas, as senhorinhas não
devem tomar conta dessas histórias. São muito tristes.

SENHORINHA DOIS - Mas nós tomamos, de qualquer maneira. Acho que deviam deixar
Conselheiro e sua gente em paz.

AMIGO - Não diga uma coisa dessas, Senhorinha. Eles são muito perigosos. São
monarquistas armados por grandes impérios para destruir a República brasileira!

SENHORA (Intrometendo-se na conversa) - O senhor está enganado. Eles são iguais ao


Inácio. Só isso! ( As Senhorinhas caem na risada)

LEITOR - E quem é o Inácio?

SENHORA - Inácio é um homem que nós trouxemos da roça. Ignorante, faminto, sedento,
nascido num sertão que a monarquia e a república nunca quiseram enxergar. Passar bem,
cavalheiros. Vamos, meninas!

AMIGO - E vão aonde, com tanta pressa?


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SENHORA - A loja Primeiro de Setembro anunciou estar queimando tecidos por todo o
preço, liquidando tudo...

LEITOR - Tal e qual se faz em Canudos?

SENHORINHA ( Saindo) - E a Loja Mateus está vendendo chapéus de feltro, os preferidos


de Moreira César, a 18 mil réis.

AMIGO (Arrastando o Leitor) - Vamos!

( A caminho da Loja Mateus, o Leitor e o Amigo batem-se com um rapaz apressado.)

LEITOR - Lélis Piedade! O grande jornalista baiano! Então, rapaz? Não há novidades na
imprensa além de Canudos? 2

LÉLIS - Parece que não. O país inteiro está tomado por esta comoção republicana de vingar
os heróis de Canudos. Eu mesmo fui, há pouco, designado para ir lá, acompanhar todos os
passos da guerra.

AMIGO - Então, a guerra continua?

LÉLIS - Lógico! Há quatro meses está sendo preparada uma expedição comandada pelo
General Artur Oscar, mais bem armada do que todas as outras juntas, que haverá de destruir o
reduto dos fanáticos.

LEITOR - E a Bahia na berlinda mais uma vez. Os médicos dizem que praticamos todas as
barbaridades, porque somos mestiços.
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AMIGO - Além de mestiços, monarquistas que ajudam os fanáticos de Canudos. Ontem, um


batalhão do exército quis arrebentar o prédio da Alfândega por causa dos brasões imperiais
que tem no portão.

LÉLIS - Mas a Bahia não está sofrendo sozinha. Invadiram os jornais monarquistas no Rio de
Janeiro, quebraram tudo e depois .fizeram uma fogueira com os restos na Rua do Ouvidor.

AMIGO - E a polícia não fez nada?

LÉLIS - A polícia é republicana, como o povo que destruiu os jornais... Mas, vocês não vão
se alistar?

LEITOR E AMIGO ( Juntos) - Quem, eu?

LEITOR - Não, eu tenho mãe velhinha...

AMIGO - E eu, mãe doente...

(Passa um batalhão cantando alguma coisa.)

LÉLIS - Então sumam, porque senão as mamães de vocês vão sentir muitas saudades. Estão
levando qualquer homem que encontram pela frente!

(Os dois fogem, e a coletiva com o Governador Luiz Viana, que já estava acontecendo, é
ouvida.)

JORNALISTA 3 - Como Vossa Excelência explica a guerra de Canudos?


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LUIZ VIANA (Com desprezo) - Canudos é um acidente para o qual concorrem causas
múltiplas, sem que os governos possam prever. Informei ao Sr. Presidente da República que
Canudos é fruto da necessidade e da ignorância...

JORNALISTA - Será exato que os fanáticos têm ideais monarquistas?

LUIZ VIANA - Eles não conhecem fórmulas de governo. Canudos está sendo uma
exploração contra o Presidente da República e o Governador da Bahia.

JORNALISTA - A que atribui Vossa Excelência o desastre da expedição Moreira César?

LUIZ VIANA - Ao supremo infortúnio dele ter morrido no começo da ação.

JORNALISTA - Desculpe-me, mas há quem diga que V. Excia. tem pendor pela monarquia,
e que por isso não auxilia o exército contra os jagunços...

LUIZ VIANA - Desgraçadamente, a política entre nós ainda acredita que o melhor meio de se
combater o adversário é tirar partido da calúnia.

JORNALISTA - Julga Vossa Excelência que, com a tomada de Canudos, esta guerra cruel
estará terminada?

LUIZ VIANA - Se Antonio Conselheiro for preso, tudo estará terminado. Se ele fugir, será
preciso persegui-lo onde quer que ele esteja!

IX - A EXPEDIÇÃO ARTUR OSCAR

Tropa formada, com Artur Oscar à frente. Ministro da Guerra chega. Soldados apresentam
armas.
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MINISTRO DA GUERRA - General Artur Oscar, ponho em vossas mãos a sorte da


República. O povo espera de nós uma ação enérgica para acabar com esses rebeldes que
querem restaurar a monarquia. Mobilizei todo o exército nacional para essa expedição: 17
batalhões, l4 500 homens, que coloco sob o vosso comando.

ARTUR OSCAR - Sr. Ministro, estou à disposição de V. Exa. Viva a República!

Cenas de uma aparente normalidade, em Canudos. Pessoas trabalhando. Mulheres


conversando, acocoradas. Homens passando. Toca o sino, todos se benzem. Vêem-se, no
santuário, os homens conversando em companhia de Conselheiro.

ANTÔNIO CONSELHEIRO - Haverá quatro incêndios: os três primeiros eu apagarei, o


quarto será entregue ao Bom Jesus!

Entra Chico Ema, esbaforido.

CHICO EMA - Louvado seja o Nosso Senhor Jesus Cristo! (Para Conselheiro) A bênção,
meu pai.

JOÃO ABADE - Tome assento, Chico Ema.

CHICO EMA (acomodando-se) - Agora vai ter dois exércitos, e vão atacar de dois lados:
um vem por Monte Santo, o outro por Jeremoabo. Vão se encontrar pertinho daqui.

JOÃO GRANDE - Filhos de uma égua! Mas em Belo Monte não vão chegar!

PAGEÚ - Pedrão e Vila Nova tocaiam os ateus que tão saindo de Jeremoabo.

VILA NOVA - E quantos são os outros?


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CHICO EMA - Pra lá de três mil...

PAGEÚ - Esses vão ter que atravessar o Angico. Eu e meu pessoal vamos esperar por eles na
saída da serra.

JOÃO GRANDE - E quantos são todos juntos?

CHICO EMA - Tudo junto, sei não. Tá encardido de gente. Não deu pra contar direito.

PEDRÃO - Se avexe não, Chico Ema, nós vamos sangrar tudo na bala e na faca!

VILA NOVA - Temos que pensar é na comida e na munição, homens de Deus... Onde é que
está o comboio deles?

CHICO EMA - Tá bem atrás... desguarnecido.

VILA NOVA - Então, Pageú, um magote chega pra assaltar o comboio quando eles sairem de
Monte Santo. Tem que pegar a munição, fazer o estouro do gado e depois tocar o que puder
pra aqui.

PAGEÚ - Tá me ensinando, Vila Nova? Não disse que já separei os homens?

JOÃO ABADE - Pageú vai levar os protestante pro Alto da Favela, e você, Macambira, não
deixa eles descer por nada desse mundo!

JOÃO GRANDE - Já sei, eu vou tá tocaiado com meu pessoal do outro lado, apreciando os
imundiça subir o morro pra num descer nunca mais!
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JOÃO ABADE - Tem que ser feito que é pros homens ter tempo de atacar o comboio e
chegar com tudo aqui.

PEDRÃO - Tu é mais esperto que eles, João Abade.

Os homens se levantam, pedem a bênção a Conselheiro e saem do Santuário.


A tropa de Artur Oscar, a caminho de Canudos, carrega um canhão. A tropa encontra os
restos da expedição Moreira César.

EUCLIDES DA CUNHA – “Havia em toda parte recordações cruéis. Molambos, esqueletos


de fardas poeirentas e rasgadas. Os jagunços não haviam tirado nada dos mortos, apenas
munição e armas. Um soldado encontrou um maço com 4 contos de réis no bolso de um
esqueleto.”

ARTUR OSCAR - Homens, esta é uma cena que nós jamais devemos esquecer. Em pouco
tempo estaremos em Canudos para vingar os nossos companheiros que tombaram aqui, vítimas
do fanatismo monarquista.

Em seguida à fala de Artur Oscar, a tropa sofre um ataque sem ver um só conselheirista.
Tiros dados de todos os lados por atiradores invisíveis. A tropa é empurrada para perto de
Canudos. Anoitece e cessa o ataque. Os praças festejam a "vitória" ao som de gritos e
dobrados.

PAGEÚ DÁ INSTRUÇÕES A UM GRUPO DE HOMENS.

PAGEÚ - A gente vai atirando e puxando os cachorro pro alto do morro. Quando eles tiverem
bem no meio, o pessoal de João Abade e João Grande cercam eles atirando de cima e dos
lados.
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PEDRÃO - Mas Pageú, agora tá fácil de acabar com eles! Vamos atacar de uma vez e acabar
com isso!

PAGEÚ - Faz o que eu tô mandando, homem! Num é pra atacar agora, não. É pra puxar os
batalhões pro Alto da Favela. Vocês tão pensando que só tem isso aí de soldado, é? Tem uma
desgraceira subindo, fervendo por todos os lados!

O Oficial do dia conversa com Artur Oscar.

CORONEL MEDEIROS - General, os jagunços nos trouxeram para cá através das


emboscadas. Existem centenas de trincheiras de onde eles podem ficar nos atacando até não
restar um só homem nosso.

ARTUR OSCAR - Vamos resistir!

VARGAS NEVES - Se eles nos trouxeram pra cá, pior pra eles.

ARTUR OSCAR - Vamos amanhecer em formação de batalha. Quero o canhão atirando às 6


horas da manhã.

Ouvem-se rezas dos canudenses. Amanhece, o canhão atira e os conselheiristas começam


uma fuzilaria interminável sobre o acampamento.

CORONEL MEDEIROS - General, atacaram o comboio de comida, e dos 130 bois que
trazíamos, restaram 11.

ARTUR OSCAR - Ainda hoje, eles serão atacados pela coluna de Jeremoabo, que deve
chegar no Vaza Barris antes de acabar o dia.
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CORONEL MEDEIROS - Temos muitas baixas, Senhor. As tropas estão desanimadas.


Espalharam que os jagunços são invisíveis, por força das mágicas de Conselheiro. Que é
impossível derrotá-los.

ARTUR OSCAR - Eu mesmo penso nisso às vezes. Serão 200, serão 2.000? Tivemos tantas
baixas e até agora não sabemos quem atirou ou de onde vêem as malditas balas.

VARGAS NEVES (atento ao ruído de gritos e balas de outra direção) - Ouça, General, é a
coluna de Jeremoabo chegando!

Acontecem três cenas simultâneas : a morte de Pageú, os soldados morrendo em emboscadas


quando saem em busca de comida e o ataque à “matadeira” praticado por Joaquim
Macambira Filho e outros canudenses, que tentam “matar” o canhão com pedaços de pau,
acordam os soldados e são fuzilados, à exceção de um (eram 11), que consegue fugir.

PAGEÚ – Vamos, minha gente, para trás, para trás. Pedrão, vamos recuar.

JOÃO GRANDE - Pageú, eu nunca vi tanto macaco junto.

PAGEÚ - Mas cada um de nós vale dez deles!

JOÃO GRANDE - Estou achando difícil, Pageú!

PAGEÚ - Que é isso, homem? Isso é hora de desanimar? Isso é hora de...

PRAÇA (surgindo, arma apontada para Pageú) - Peguei esse desgraçado! Peguei Pageú!
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Pedrão é atingido e Pageú aprisionado. Durante a próxima cena, vê-se Pageú sendo
torturado pelos soldados e, em seguida, baleado. Os demais conselheiristas escapam e
chegam a Canudos.

ANTONIO BEATINHO (encontrando João Abade) - Pageú morreu!

JOÃO ABADE - Tá tudo ruim, Beatinho. Não conseguimos barrar a coluna de Jeremoabo e
se não tivessem acertado o general, ia ficar pior ainda.

CALIXTO (aproximando-se dos homens) - Seu João, a matadeira destruiu o hospital.

Amanhece. As deserções são inúmeras.

CORONEL MEDEIROS - General, 20 praças do trigésimo terceiro batalhão desertaram


ontem, além de todos os outros...

ARTUR OSCAR (interrompendo Medeiros) – Covardes! Vermes! Afundaram-se no deserto,


preferindo o tiro de misericórdia dos jagunços à agonia lenta da ocupação.

Coronel MEDEIROS - ... e chegou um comboio de alimentos!

ARTUR OSCAR - Finalmente! Agora podemos atacar! Reúna os homens!

CORONEL MEDEIROS - Sim, general! Entram em ação 3.500 homens repartidos em 5


brigadas!

ARTUR OSCAR (dirigindo-se aos soldados) - Valentes oficiais e soldados das forças
expedicionárias! O inimigo não tem podido resistir à vossa bravura. Isso atestam os combates
de Cocorobó, Trabubu, Macambira, Angico e do Alto da Favela. Agora, vamos batê-lo dentro
de Canudos. A pátria tem os olhos sobre nós e tudo espera de nossa bravura. O inimigo
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traiçoeiro, que não se apresenta de frente, tem sofrido perdas consideráveis. Se tivermos
constância, Canudos estará em nosso poder.

Gritos, bravos entusiasmados, som de fanfarras e dobrados. Ao longe, o ruído das rezas dos
sertanejos. A tropa ataca Canudos.

EUCLIDES DA CUNHA – “Eles chegaram a Canudos famintos e agoniados de sede, e ao


penetrarem nos pequenos casebres em busca de uma moringa de água ou de um punhado de
farinha, esqueciam de seus moradores, e às vezes morriam com um disparo à queima-roupa.
Soldados possantes, que vinham resfolegando de uma luta de quatro horas, caiam mortos por
mulheres frágeis. Algumas valiam homens. Velhas megeras de peles amareladas, faces
murchas, arremetiam sobre os invasores num delírio de fúrias. E quando eram dobradas pelos
pulsos deles, arrastadas pelos cabelos, pisadas pelos coturnos, não fraquejavam. Morriam num
estertor de feras, cuspindo um esconjuro doloroso e trágico.”

Coronel VARGAS NEVES - Senhor, estamos dentro da goela da fera. Cada passo errado de
um soldado, é a morte! Se o inimigo quiser tirar partido de nossas desvantagens, não perderá
esse momento. Seremos destroçados se houver um ataque.

ARTUR OSCAR - Mande este telegrama com urgência: “Canudos, 26 de julho de 1897.
Exmo. Sr. Ministro da Guerra. Temos quase 2.000 homens fora de ação. Não há como
garantir linhas de comunicação, nem de retirada. Não há como garantir coisa alguma. Os
jornais têm publicado que as nossas forças têm recuado. Eu garanto a V.Exa. que não
recuamos um passo das posições conquistadas. Os que entendem alguma coisa da arte militar,
ficariam admirados do imenso poder tático da cidadela de Canudos. Continuo a garantir a
V.Exa. que o inimigo está muito bem armado.”

EUCLIDES DA CUNHA – “Mas o jagunço não atacou a tropa que estava tão perto, porque
não era afeito à luta regular. Ele apenas defendia seu lar invadido, nada mais. A partir daqui, a
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expedição levou 3 meses para a travessia de 100 metros que a separavam do centro de
Canudos.”

Chegam muitos prisioneiros no campo, trazidos por alguns praças. Um oficial interroga um
deles.

Coronel GOUVEIA - Ouvimos falar que Conselheiro morreu. É verdade?

JOAQUIM SEM-TELHA - Sei não.

Coronel GOUVEIA - Mas deve saber quantos homens ainda existem aí dentro e de onde
Vocês estão recebendo munição.

JOAQUIM SEM-TELHA - Sei não.

Coronel GOUVEIA - Ele não vai falar, mas vai morrer e antes vai gritar Viva A República!

Silêncio.

Coronel GOUVEIA - Quer morrer como?

JOAQUIM SEM-TELHA - De bala!

Coronel GOUVEIA - Pois vai morrer de facão! (Para os soldados) - Cumpram!

O jagunço é degolado; enquanto a primeira onda de sangue borbulha na garganta, grita:


“Viva o Bom Jesus!”
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VARGAS NEVES - General, estão chegando mais reforços. Contamos agora com quase
8.000 homens. O Sr. Ministro do Exército está em Monte Santo, organizando pessoalmente
um corpo regular de comboios. Portanto, estamos livres da fome...

OFICIAL - Trinta batalhões com o melhor armamento no mundo para enfrentar um punhado
de fanáticos.

ARTUR OSCAR - Que resistem! Acossados pela fome, pela sede, pelo incêndio e pela bala,
eles resistem e nos atacam. Que gente é essa, Capitão?

VARGAS NEVES - Eu não sei, General.

ARTUR OSCAR - Nós não sabemos, nunca saberemos. Só sei que são dotados de uma
coragem que eu nunca encontrei em nenhuma outra guerra, nem nos livros de história onde se
fantasiam os heróis.

ANTÔNIO CONSELHEIRO, SOZINHO, NO SANTUÁRIO.

ANTONIO CONSELHEIRO - Sertão, não nos entregue ao inimigo que te odeia, ao


contrário de nós. Duplica os espinhos dos xique-xiques sobre as mãos dos hereges que querem
destruir o santuário construído com tanto sacrifício. Seca a terra que eles pisam, ainda mais do
que secaste para nós, teus filhos desesperados. Enche de macambira os pés sacrílegos que
pisam teu chão, abençoado pelo nosso amor. Ouve o nosso apelo, e faze do teu chão áspero e
ingrato, que transformamos em nosso lar, o túmulo de nossos inimigos. Xiquexique,
palmatória, rabo-de-raposa, mandacaru, croá, cabeça-de-frade, culumbi, cansação, favela,
quixaba, macambira, cumanã, venham em nosso socorro.

Beija o chão e morre.


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ANTONIO BEATINHO (saindo do santuário aos gritos) - Conselheiro morreu, morreu


nosso pai! Que será de nós, meu Deus? Que será de seu povo?

As mulheres se aproximam de Beatinho, que chora, carregam o corpo de Conselheiro e


começam a rezar o Credo às avessas.4

SERTANEJOS - Não creio em Deus Padre, nem que ele criou o céu e a terra. Não creio
em Jesus Cristo, que não é um só seu filho, nem foi concebido por obra ou graça do Espírito
Santo, não nasceu de Maria Virgem, não padeceu sob o poder de Pôncio Pilatos, não foi
crucificado, nem morto e sepultado, nem desceu ao inferno. Não subiu aos céus, nem está
sentado à mão direita de Deus Padre, que não é todo poderoso, de onde não há de vir julgar
nem os vivos nem os mortos. Não creio no Espírito Santo, nem creio na Santa Igreja
Católica, não creio na comunhão dos santos, nem na remissão dos pecados, nem na vida
eterna.

Enquanto as mulheres rezam, Vila Nova tem a sua fuga interrompida por Pedrão.

PEDRÃO - Onde é que tu vai, Vila Nova?

VILA NOVA - Vou trovejar no mundo, Pedrão. Se eu puder ajudar vocês fora daqui, eu
ajudo.

PEDRÃO - E tá levando a burra de dinheiro que ganhou com os miseráveis que tão
morrendo?

VILA NOVA - Dinheiro ganho honestamente, Pedrão.

PEDRÃO - Ganho "honestamente" com a bênção de Conselheiro. Você é um desgraçado


covarde e usurário, Vila Nova.
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VILA NOVA - E tem mais, Pedrão. Nunca mais, enquanto vivo eu for, eu dou um só tiro
contra o governo. E meus filhos, netos e bisnetos se quiserem aproveitar do dinheiro que eu tô
levando, têm que me jurar o mesmo.

Vila Nova foge debaixo dos xingamentos de Pedrão.


Beatinho chega perto de Artur Oscar, acompanhado de um jagunço, tira um gorro azul que
usava.

ANTÔNIO BEATINHO - Saiba o Sr. Doutor General que eu sou Antonio Beato e eu mesmo
vim por meu pé me entregar, porque a gente não tem mais opinião e não agüenta mais.

ARTUR OSCAR - Bem... e Conselheiro?l

ANTÔNIO BEATINHO - Está no céu, General.

ARTUR OSCAR - E os outros vão se entregar também?

ANTÔNIO BEATINHO - Há um bando que não querem. São de muita opinião.

ARTUR OSCAR - Então, o Senhor não pode trazê-los?

ANTONIO BEATINHO - Posso não. Eles estavam em tempo de me atirar, quando saí.

ARTUR OSCAR - A sua gente não pode resistir. Vá lá e diga que eles se entreguem, mas
sem qualquer condição. Não aceito condição.

Beatinho sai com o Jagunço..


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JAGUNÇO - Vamos, homem! Vamos embora! Eu falo uma fala com eles. Deixe tudo
comigo, vamos...

CALIXTO (conversando com outros homens) - Pedrão, tô indo embora.

PEDRÃO - Calixto, você vai fugir?

CALIXTO - Não, Pedrão, eu vou morrer. Agora não tem mais caminho. Não vou nem gastar
munição, vou me atirar no fogo, que já levou minha mulher e meus filhos.

Calixto se atira ao fogo, perto das mulheres, que permanecem indiferentes.

EUCLIDES DA CUNHA – “Beatinho voltou, passada uma hora, seguido de umas trezentas
mulheres e crianças e meia dúzia de velhos. Os jagunços realizavam com perfeição o seu
ultimo ardil. Nem um rosto viril, nem um braço capaz de suspender uma arma... Mulheres, sem
número de mulheres, velhas cadavéricas e moças envelhecidas, indistintas na mesma feiúra. E
após a entrega, a noite começou sulcada de tiroteios.”

MARIÁ MIJA-CARNIÇA (acocarada, perto de outras mulheres) - Mas o que é que eles
vieram fazer aqui, meu Deus do céu? Nós só queria plantar em São José e colhê em São João.
Queria ter o que comer e o que beber. Queria criar nossos menino debaixo da guarda do Bom
Jesus Conselheiro, com um punhado de terra nos pés.

SANTINHA - Isso era muito, Mariá! Parece que a gente não tem mesmo direito a nada.

ANA DE BOM JESUS - A nada. Nós estávamos quietos aqui, longe de qualquer lugar desse
mundo grande, e eles vieram nos ensinar que a felicidade é propriedade deles. Os "imundiça"!

MARIÁ MIJA-CARNIÇA - Mas nós não se entrega não, nós não se entrega...
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ANA DE BOM JESUS - Já foram tantas mulheres ...

MARIÁ MIJA CARNIÇA - As bobas estão pensando que os "imundiça" vão cumprir o que
prometeram. Vão é matar todo mundo!

SANTINHA - É melhor morrer por nossas mãos! Dói menos!

ANA DE BOM JESUS - Se os homens não tiveram, Deus há de ter piedade de nossa miséria.

Alguns praças aproximam-se das mulheres. Outros protegem os que avançam.

PRAÇA UM (conversando e protegendo os que avançam) - Nós já derrubamos as torres da


igreja, o desgraçado do velho morreu!

PRAÇA DOIS. (festejando) - Não tem mais igreja, não tem mais santo, não tem mais
Conselheiro. Não tem mais nada...

Os praças que avançam encontram um grupo de mulheres esqueléticas, miseráveis, que não
dão qualquer importância à chegada deles

PRAÇA TRÊS – O general mandou um último aviso...

PRAÇA QUATRO – É... ele não quer gastar munição atirando em mulher, e ainda mais
mulher assim, quase morta!

PRAÇA UM – Vocês não precisam nem se entregar. Podem fugir! Fujam! Saiam daqui!
Vamos!

As mulheres continuam paradas.


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PRAÇA TRÊS – Peguem o caminho da Várzea da Ema! Vamos! Gritando. Saiam daqui, suas
bruxas!

As mulheres continuam imóveis.

PRAÇA DOIS – Fala, raça ruim! Não estão entendendo, não?

PRAÇA UM – Que gente é essa, meu Deus?

PRAÇA QUATRO – Tem muito lugar ainda por onde fugir. Vão pra Uauá, vão...

As mulheres erguem-se aos poucos e avançam contra os praças, gritando e atacando com
unhas, dentes e as poucas armas que ainda têm. Eles, a princípio, como que hipnotizados, e
em menor número, não reagem, até que chegam outros e matam as mulheres.

DEVOTAS - Este aqui era o lugar/agora não há mais onde/ Satanás chegou aqui/desencantou
Belo Monte/ não há pra onde fugir. // Este aqui era o lugar/nossa terra prometida/Era a vida,
Belo Monte, pra só aqui ser vivida/ Agora não há mais onde. // Agora o mundo acabou/ no
Império do Belo Monte/ Fugir é só caminhar/ Não existe outro lugar/onde o futuro se esconde.
// Fugir é desacatar/a vida que se criou/ Agora não tem mais onde/ O mundo era Belo Monte/ e
agora o mundo acabou.

X – EPÍLOGO

Um oficial vai em direção ao General Artur Oscar, apressado.

VARGAS NEVES - Os homens estão prontos para entrar em Canudos, General. Agora é o
fim. Não há mais como resistir. Num buraco perto da Igreja Nova uns poucos miseráveis,
esfomeados, cercados de cadáveres apodrecidos, estão esperando por nós.
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ARTUR OSCAR - Acabou, o pesadelo acabou! Vamos entrar!

EUCLIDES DA CUNHA – “Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a história,


resistiu até o esgotamento completo. Expugnada palmo a palmo, caiu quando morreram seus
últimos defensores, quatro apenas, um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos
quais rugiam, raivosamente, cinco mil soldados.”

O exército fuzila os quatro resistentes. Aparecem as imagens da represa de Cocorobó nos


telões. Conselheiro retorna.

ANTÔNIO CONSELHEIRO - Canudos não se rendeu. E o sertão é do tamanho do mundo.

FIM

1
J.B. de Sá Oliveira escreveu vários artigos no jornal A Bahia, à época, desenvolvendo a teoria de que Canudos era fruto
de nossa miscigenação degenerante. As matérias foram reunidas no livro A Evolução Psíquica do Baiano, Tipografia
Baiana, 1898.
2
Lélis Piedade, jornalista baiano, correspondente do Jornal de Notícias em Canudos.
3
Trechos da entrevista publicada na Gazeta de Notícias de 07.08. 1897, sob o nome de “ Importante Interview Com o
Governador da Bahia.”
4
É considerada uma reza fortíssima e perigosa. Recurso supremo em situações trágicas. É preciso muita coragem pessoal
para dizê-la. Recomenda-se pronunciá-la em lugares onde não haja oratórios ou cruzes. Ver Superstições no Brasil, de
Câmara Cascudo.

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