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LOUREIRO, S. R. 2014. Do Ensino Prático À Forma Escolar
LOUREIRO, S. R. 2014. Do Ensino Prático À Forma Escolar
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Doutorando do Programa de Pós-Graduação em “Educação: História, Política, Sociedade”, da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo.
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A pesquisa histórica indica que até meados do século XVIII a escolha dos
chefes militares se dava a partir de privilégios de nascimento. Período em que os filhos dos
nobres recebiam o comando de unidades militares sem a necessidade obrigatória de se
prepararem para tal, o que por diversas vezes resultava em grandes fracassos. Encontramos
na historiografia militar portuguesa fontes que descrevem a inépcia e a falta de preparo dos
comandantes de tropas, incluindo os Oficiais destacados nas colônias. Podemos citar como
exemplo a obra "O Capitão de Infantaria Português", escrita em 1751 pelo coronel André
Ribeiro Coutinho. Trata-se de um manual sobre as funções de um capitão de infantaria,
documento onde é possível encontrar críticas a comandantes que não tem conhecimentos
ou experiência na arte militar (RIBEIRO COUTINHO, 1751).
EU ELREI Faço saber aos que este Alvará virem, que considerando o
muito, que convem ao Meu Real serviço, e ao Bem commun dos Meus
Reinos, que a Nobreza delles tenha escólas proprias, para se instruir na
Arte, e disciplina Militar, em que a especulação se faz inútil sem huma
quotidiana, e dilatada prática [...]: Sou Servido ordenar o seguinte:
Em cada Companhia de Infantaria, Cavallaria, Dragões, e Artilheria
poderão assentar praça tres Fidalgos, ou pessoas de nobreza conhecida
assim da Corte, como das Provincias, com a denominação de Cadêtes:
Fazendo petição aos respectivos Directores na qual lhes representem, que
pertendem servir de Cadêtes no Regimento, que declararem: E que os
admitta a fazer as suas provas de Nobreza (PORTUGAL, 1757).
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Para incorporar como Cadete, o Fidalgo não poderia ter menos de quinze anos
e nem mais de vinte. Além disto, poderia ascender na carreira militar, atingindo os postos
mais elevados. Como se depreende do seguinte trecho do citado alvará
2
Regulamento do Conde de Lippi, que durou no Brasil até 1895 (PAULA, 1970, P. 268).
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Militar. Ao analisarmos a Carta de Lei que cria essa academia constatamos que essa escola
possuía uma dupla função: a primeira seria a de formar "[...] hábeis Officiaes [...]"
(BRASIL, 1810); a segunda função era de formar "[...] Engenheiros geographos e
topographos, que possam também ter o util emprego de dirigir objectos administrativos de
minas, de caminhos, portos, canaes, pontes, fontes, e calçadas[...]" (idem).
Uma análise da primeira turma da Academia Real Militar nos permite verificar
a grande diversificação do corpo discente. A turma era composta por setenta e três alunos,
sendo que sessenta e seis já eram militares que ocupavam diferentes postos e graduações 3 e
sete eram civis. O Mais novo tinha 15 anos de idade e o mais velho 43 (PERES, 2011, p.
29). Estes fatos demonstram além de um corpo de alunos muito diversificado, a presença
de alguns Oficiais que se matriculavam na escola para aprimorarem seus conhecimentos
técnicos, visto que já possuíam a patente de oficial, eram os chamados “Oficiais-Alunos”.
3
Capitães, Tenentes, Sargentos-mores, Sargentos, Furriéis, Cabos, Soldados e Cadetes (PERES, 2011, p. 29).
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Mesmo com a criação de uma escola formadora de Oficiais, com uma aparente
consagração da forma escolar, o sistema de formação de Oficiais nos "Corpos de Tropa"
manteve-se. Continuou a existir a figura do Cadete como a principal sistema de formação
de Oficiais. Isto confirma a manutenção do sistema híbrido de educação militar, que
mantinha a forma escolar para um pequeno grupo e a formação pela vivência prática para a
maioria.
No século XIX, o problema que surgiu foi a falta de interesse por parte dos
filhos da aristocracia pela carreira militar. Shultz (1971) verificou que a partir da primeira
metade do século XIX a aristocracia dos grandes proprietários de terras brasileiros preferiu
a ocupação de "[...] funções mais lucrativas de caráter político e judicial aos postos do
oficialato" (SCHULZ, 1971, p. 238). A criação e a difusão das Faculdades de Direito e
Medicina absorveu o filhos das elites agrárias, em detrimento da carreira militar. Para
suprir a falta de interesse dos filhos da aristocracia pela carreira militar e poder completar
os quadros necessários à manutenção das Forças Armadas no tocante à necessidade de
Oficiais, em 1820 são criadas as figuras dos Segundos Cadetes e Soldados Particulares.
Esta norma flexibiliza a exigência de pertencimento a nobreza para ascensão ao oficialato.
Passaram a ser aceitos como Segundos Cadetes ou Soldados Particulares "[...] os filhos dos
Oficiais de patente das tropas de linha do Exército do Brasil, ou de pessoas condecoradas
com hábito de alguma das ordens [...]" (PORTUGAL, 1820). Os Segundos Cadetes e os
Soldados Particulares poderiam ascender na carreira do oficialato da mesma maneira que
os Cadetes criados em 1757 (denominados a partir de 1820 como Primeiros Cadetes).
Com estes mecanismos, durante o século XIX, a maior parcela dos Oficiais das
armas de infantaria e cavalaria era oriunda dos Cadetes e Soldados Particulares.
Constituíam os chamados Oficiais formados na "Tradição dos Corpos de Tropa", que
galgavam os postos por vivencia prática nos quartéis. Este sistema híbrido tinha seus
problemas, especialmente com relação às questões decorrentes da excessiva formação
teórica dada para os Oficiais formados na Escola Militar, que receberam a alcunha de
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Oficiais Doutores, e a falta de conhecimentos dos Oficiais formados nos Corpos de Tropa,
apelidados de tarimbeiros4.
A primeira solução dada foi a Lei de Promoções6, que estipulava que para ser
promovido a capitão era necessário o curso completo de sua arma. Como isto inviabilizaria
a promoção dos Oficiais formados na "Tradição dos Corpos de Tropa" e existiam muito
Oficiais nesta condição, incluindo Oficiais superiores, foi criada uma exceção para os
quadros das armas de infantaria e de cavalaria. Para estas armas, somente um terço dos
Oficiais dos quadros necessitaria da formação na Escola Militar. Em 1851 foi criado um
curso de infantaria e cavalaria no Rio Grande do Sul, onde se concentravam a maioria das
tropas. Efetivamente instalado em 18537, este curso deu oportunidade para que muitos
Oficiais tivessem uma rápida instrução teórica próximo das unidades em que serviam
(MACHADO, 2011).
4
Neste período surge o termo "Tarimbeiro", derivado da palavra tarimba, que era a cama de campanha do
soldado, uma cama tosca e rude. Inicialmente a alcunha era utilizada de forma pejorativa, indicando Oficiais
com pouca instrução. Posteriormente passou a ser usada de forma a exaltar o Oficial que tinha experiência
em combate (MACHADO, 2011, p. 352).
5
Durante a Guerra contra Uribe e Rosas, o ministro da guerra do Brasil era o Tenente-Coronel Manuel
Felizardo de Sousa Melo, bacharel em matemática pela Universidade de Coimbra, foi lente da Real
Academia Militar quando capitão do corpo real de engenheiros, o que explica a preocupação dele com a
formação dos Oficiais (N.A.).
6
Lei n.º 585 de 6 de Setembro de 1850.
7
Nas mesmas instalações funcionaram a "[...]Escola Militar de Porto Alegre (1851-57); Militar Preparatória
(1858-66); Militar Auxiliar (1860-62); Preparatória (1863-64) (Interrupção) e o Curso de Infantaria e
Cavalaria da Província (1874-76) e [...] Escola Militar da Província transferida [...] em 1883 [...]"para novas
instalações, ainda na cidade de Porto Alegre (BENTO, 1987, p.9).
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Com o passar dos anos, a Escola Militar da Praia Vermelha seria consagrada
como a escola responsável pela formação teórica dos futuros Oficiais do Exército e foram
criadas escolas de aplicação, como a Escola Preparatória e Tática do Realengo. Neste
processo a Escola Militar da Praia Vermelha, muito em razão da grande influencia do
positivismo de Comte em seu currículo, passou a ser conhecida como "Tabernáculo da
Ciência" e seus alunos ficaram conhecidos como "Mocidade Militar" (LOUREIRO, 2012,
p. 49 a 66).
8
Decreto 2.582, de 21 de abril de 1860.
9
Lei 1.163, de 30 de julho de 1862, e Decreto 3.083, de 28 do abril de 1863.
9
observa que e os escalões superiores eram constituídos por veteranos da guerra contra o
Paraguai, desprestigiados pelo Parlamento e pela sociedade, "[...] até os alunos das escolas
militares e os Oficiais subalternos ridicularizavam suas medalhas de guerra" (idem, p. 28 a
29). O soldo era a única fonte de renda dos Oficiais e as promoções sofriam forte
influencia política, "[...] Capitães podiam esperar de dez a quinze anos para chegar a major
[...]" (idem, p. 29), e os ministros civis, com formação jurídica, ocupavam cada vez mais
espaço no gabinete ministerial, em detrimento dos Oficiais com formação técnica. Com
relação à tropa "[...] ex-escravos e a escoria da sociedade compunham grande parte dos
praças, recrutados por esquadrões de alistamento compulsório" (idem, p. 29).
Este quadro ensejou uma ruptura dos Oficiais com o regime estabelecido, o que
culminou com a proclamação da República e uma série de reformas no sistema de ensino
militar (CASTRO, 2000). O novo regime tinha por princípios o fim dos privilégios de
nascimento oriundos do período monárquico e a consagração da formação técnica dos
militares em escolas, o que em outras palavras significa a consagração da forma escolar
como sistema de formação dos comandantes de unidades militares. Diversos documentos
indicam esta mudança, como a "Mensagem dirigida ao Congresso Nacional pelo
generalissimo Manoel Deodoro da Fonseca", chefe do Governo Provisório da República
dos Estados Unidos do Brasil, em 15 de novembro de 1890, publicada no Diário do
Legislativo do Brasil de 16/11/1890 (Diário do Congresso Nacional, 1890, p. 27 a 31). O
trecho a seguir demonstra a preocupação com a formação dos militares:
Uma nova reforma ocorre em 190512 que define que só poderiam ingressar na
Escola Militar os praças de pré13 com no mínimo seis meses de efetivo serviço em um
Corpo do Exército; que apresentem aptidão para o serviço militar e conduta irrepreensível,
atestada pelo comandante do Corpo de Tropa em que servia; robustez física, comprovada
em inspeção de saúde; ter mais de 17 e menos de 22 anos de idade; ser solteiro ou viúvo
sem filhos; e apresentar atestado de aprovação em exames de desenho linear, português,
francês, inglês ou alemão, aritmética, álgebra, geometria e trigonometria, elementos de
mecânica e astronomia, física e química, história natural, geografia e história,
10
Vide art. 72 da Constituição de 1891.
11
Vide art. 58 da Constituição de 1891.
12
Vide Decreto nº 5.698, de 2 de outubro de 1905.
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Nome dado à categoria inferior da hierarquia militar (soldado), também podendo ser denominada praça de
pret ou simplesmente praça (N.A.).
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Vide Art. 17 do Decreto nº 5.698, de 2 de outubro de 1905.
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A Escola Militar da Praia Vermelha, o "Tabernáculo da Ciência", foi fechada no início de 1905 em razão
do envolvimento dos alunos da escola com a Revolta da Vacina (N.A.).
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Nesse processo foi construído um novo modelo de oficial para o Exército, uma
antítese do padrão dos Oficiais rebeldes que participaram dos movimentos tenentistas da
década de 1920 e que iniciaram suas carreiras como Alunos-Oficiais. Surge a ideia de um
novo aluno da Escola Militar, o Cadete de Caxias, que não se caracteriza mais como um
detentor de privilégios de nascimento e formado por meio da vivencia prática dos quartéis,
como os antigos Cadetes. Uma espécie de amalgama que funde características tanto dos
antigos Cadetes quanto dos Alunos-Oficiais, o Cadete de Caxias passa a ser visto como
membro de uma “elite intelectual e moral”, por ter sido aprovado em processo seletivo e
receber formação em uma Escola Militar. O que demonstra que, apesar do título de Cadete,
permaneceu a forma escolar como principal mecanismo para a educação profissional dos
comandantes do Exército brasileiro.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRASIL. 1810. Carta de Lei de 4 de dezembro de 1810. Criação da Academia Real Militar
no Rio de Janeiro. Coleção de Leis do Império do Brasil, Rio de Janeiro.
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______. 1850. Lei n° 585, de 6 de setembro de 1850. Regula o acesso aos postos de
officiaes das differentes armas do Exercito. Coleção de Leis do Império do Brasil, Rio de
Janeiro.
______. 1860. Decreto n.º 2.582, de 21 de abril de 1860. Aprova o regulamento orgânico
das escolas militares do Império, modificando o de 1º de março de 1858. Coleção de Leis
do Império do Brasil, Rio de Janeiro.
______. 1862. Lei n° 1.163, de 30 de julho de 1862. Coleção de Leis do Império do Brasil
Rio Janeiro.
______. 1905. Decreto nº 5.698, de 2 de outubro de 1905. Diário Oficial da União, Rio de
Janeiro.
PERES, C. R.; et alli. 2011. Academia Militar: Dois séculos formando Oficiais para o
Exército. São Paulo: Editora IPISIS.
________. 1763. Alvará Régio de 15 de julho de 1763. Cria o Plano, que sua Magestade
manda seguir, e observar no Estabelecimento , Estudos, e Exercicios das Aulas dos
Regimentos de Artilheria. In: SILVA, A. D. 1829. Collecção da Legislação Portugueza
desde a última Compilação das Ordenações. Legislação de 1763 a 1774. Lisboa:
Typografia Maigrense. p. 48.
VINCENT, G.; LAHIRE, B.; THIN, D. 2001. Sobre a história e a teoria da forma escolar.
In: Educação em Revista, Belo Horizonte, nº 33, jun.