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Cadetes e Alunos-Oficiais: do ensino pela experiência prática à forma escolar.

Samuel Robes Loureiro 1


Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
robes36@yahoo.com.br

Palavras-chave: Ensino Militar; Forma Escolar; Cadetes; Alunos-Oficiais.

Historiadores da Educação como Guy Vincent, Bernard Lahire e Daniel Thin


(2001), ao analisarem a crise do sistema escolar francês, debruçaram-se sobre a temática da
"forma escolar". Nestes estudos foi contestada a produção historiográfica que defende uma
noção de continuísmo entre as formas escolares da Idade Média, ou mesmo da
Antiguidade, e a forma escolar contemporânea, propondo uma espécie de "evolução
natural" da escola desde a antiguidade até nossos dias. Esses autores identificam
anacronismos na ideia de continuísmo, como a procura por sistemas de ensino primários,
secundários e superiores na Antiguidade Clássica e Idade Média. Por fim concluem que a
forma escolar, tal qual concebemos, pode ter tido suas origens na Idade Moderna
(VICENTE, et alli, 2001, p. 12).

O presente trabalho tem por objetivo demonstrar, com base em dados


empíricos obtidos por meio da pesquisa histórica, que as propostas de Vincent, Lahire e
Thin, com relação à origem e a história da forma escolar, encontram suporte nos estudos na
história do ensino militar no Brasil. Visando demonstrar a relação entre o conceito de
forma escolar e o estudo histórico, foi utilizada a teoria elaborada por Thompson (1981),
que considera que a teoria não pertence apenas à esfera das abstrações, esta ligada também
a um

[...] debate entre, por um lado conceitos ou hipóteses recebidos,


inadequados ou ideologicamente informados, e, por outro, evidências
recentes ou inconvenientes [...] Na medida em que uma noção é
endossada pelas evidências, temos então todo o direito de dizer que ela
existe [...] na história real (THOMPSON, 1981, p. 53-54).

1
Doutorando do Programa de Pós-Graduação em “Educação: História, Política, Sociedade”, da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo.
2

Com base neste referencial, os procedimentos metodológicos do presente


trabalho usaram a ideia de que os conceitos e as evidências devem "conversar" entre si, por
meio de comparações que busquem comprovar a aplicabilidade de determinado conceito
em determinado quadro empírico. Em termos mais práticos, as propostas de Vincent,
Lahire e Thin, no tocante a origem e a história da forma escolar, devem encontrar suporte
em indícios históricos para serem comprovadas. O que procuraremos demonstrar com o
estudo da história da formação dos comandantes militares no Brasil. Para tal
questionaremos a versão continuista utilizada para explicar a evolução do ensino militar e
indicaremos indícios de rupturas entre o sistema de ensino prático e a forma escolar.

A pesquisa histórica indica que até meados do século XVIII a escolha dos
chefes militares se dava a partir de privilégios de nascimento. Período em que os filhos dos
nobres recebiam o comando de unidades militares sem a necessidade obrigatória de se
prepararem para tal, o que por diversas vezes resultava em grandes fracassos. Encontramos
na historiografia militar portuguesa fontes que descrevem a inépcia e a falta de preparo dos
comandantes de tropas, incluindo os Oficiais destacados nas colônias. Podemos citar como
exemplo a obra "O Capitão de Infantaria Português", escrita em 1751 pelo coronel André
Ribeiro Coutinho. Trata-se de um manual sobre as funções de um capitão de infantaria,
documento onde é possível encontrar críticas a comandantes que não tem conhecimentos
ou experiência na arte militar (RIBEIRO COUTINHO, 1751).

Diante deste e de outros problemas, em meados do século XVIII houve um


processo de modernização das forças armadas portuguesas que observou a questão da falta
de preparo e de experiência dos comandantes militares. Desta forma, em 1757, durante a
chamada era pombalina, foi publicado o alvará régio que criava a graduação de Cadete na
hierarquia militar. O texto inicial do citado alvará dizia

EU ELREI Faço saber aos que este Alvará virem, que considerando o
muito, que convem ao Meu Real serviço, e ao Bem commun dos Meus
Reinos, que a Nobreza delles tenha escólas proprias, para se instruir na
Arte, e disciplina Militar, em que a especulação se faz inútil sem huma
quotidiana, e dilatada prática [...]: Sou Servido ordenar o seguinte:
Em cada Companhia de Infantaria, Cavallaria, Dragões, e Artilheria
poderão assentar praça tres Fidalgos, ou pessoas de nobreza conhecida
assim da Corte, como das Provincias, com a denominação de Cadêtes:
Fazendo petição aos respectivos Directores na qual lhes representem, que
pertendem servir de Cadêtes no Regimento, que declararem: E que os
admitta a fazer as suas provas de Nobreza (PORTUGAL, 1757).
3

Para incorporar como Cadete, o Fidalgo não poderia ter menos de quinze anos
e nem mais de vinte. Além disto, poderia ascender na carreira militar, atingindo os postos
mais elevados. Como se depreende do seguinte trecho do citado alvará

Nenhuma pessoa poderá ser admittida para assentar praça de Cadete,


tendo menos de quinze annos de idade, ou passando de vinte; porém os
que forem recebidos nesta conformidade pelo mesmo facto da praça, que
assentarem, ficarão dispensados no tempo de serviço, para o effeito de
que, antes delle ser completo, possão ser gradualmente nomeados nos
póstos, como pelas Minhas Reaes Ordens está determinado.

Em uma análise preliminar deste dispositivo é possível verificar uma tentativa


de solução para a questão da falta de preparo dos comandantes de tropa, a experiência
prática que seria obtida com o serviço junto às unidades operacionais (Companhia de
Infantaria, Cavalaria, Dragões e Artilharia). Por outro lado, os privilégios de nascimento
para a escolha dos futuros comandantes permaneceram por meio da obrigação de que os
candidatos a Cadetes apresentassem provas de nobreza. Com este dispositivo as Forças
Armadas portuguesas passaram a adotar a graduação de Cadete como uma forma de
ascensão ao oficialato a partir da experiência de comando que seria adquirida na vivencia
prática da vida militar por parte dos filhos da nobreza.

Ainda no sentido de modernizar as Forças Armadas, Pombal adotou outras


medidas, como a nomeação do Conde de Lippi como marechal-general do Exército
Português e o investimento em novas tecnologias militares, como novos canhões e novas
fortificações (PORTUGAL, 2004). Com a evolução dos armamentos, em especial do uso
de canhões e dos sistemas de fortificações, foi necessário que um grupo de Oficiais fosse
detentor de conhecimentos técnicos para comandarem os regimentos de artilharia e
construírem as fortificações necessárias à defesa, tanto de Portugal quanto das colônias.
Para tal, foram criados cursos específicos para que os Oficiais das armas ditas científicas
(artilharia e engenharia) recebessem os conhecimentos necessários à modernização
almejada.

Nesta fase permaneceram funcionando os dois sistemas: a formação prática


dada aos Cadetes junto às unidades operacionais e foram criadas "escolas" para a formação
e aprimoramento de alguns Cadetes e Oficiais mais velhos. Um exemplo deste tipo de
"escola" pode ser observado no alvará régio de 1763 que cria o "Plano, que sua Magestade
manda seguir, e observar no Estabelecimento, Estudos, e Exercicios das Aulas dos
4

Regimentos de Artilheria" (Portugal, 1763). Neste plano verificasse um sistema de ensino


teórico que deveria ser utilizado para instruir os Oficiais da arma de artilharia com a
designação de "Lentes das Aulas de Artilheria" e determinando a utilização do método
Monsieur Bellidoro para as aulas de matemática e o método Monsieur Du Lacq para as
aulas de artilharia (idem). Isso indica o surgimento de um sistema de formação de Oficiais
semelhante à forma escolar contemporânea, com a existência de um professor, um método
próprio e predominância da formação teórica em detrimento da formação prática. A partir
da analise do alvará régio que cria a graduação de Cadetes e do outro que cria o plano de
aulas de artilharia temos evidencias da existência de um sistema híbrido que mesclava
formação prática, na vivencia militar para a maioria dos Oficiais, e formação escolar para
um pequeno grupo.

Enquanto era aprimorado o processo de formação de Oficiais em Portugal, foi


reforçada a defesa da colônia portuguesa na América, para tal foi enviado o Marechal-de-
Campo João Henrique Böhm, que realizou grande reforma nas forças militares da colônia,
introduzindo os regulamentos prussianos2 e desenvolvendo "[...] uma verdadeira estrutura
militar" (PAULA, 1970, p. 268 a 269). Em 1774 chegam de Portugal Oficiais
especialmente nomeados para ministrarem aulas de artilharia e iniciar um curso de
"Arquitetura Militar". Em 1792, o Vice-Rei, Conde de Resende, transforma a "aula militar"
em Academia de Artilharia, Fortificação e Desenho, que foi instalada no depósito de
material bélico conhecido como "Casa do Trem da Artilharia", localizada na cidade do Rio
de Janeiro (MACHADO, 2011, p. 340 a 341). Nessa Escola Militar a formação do oficial
aproximou-se da ideia da forma escolar contemporânea. Eram ministradas aulas de
infantaria, cavalaria, artilharia e engenharia. Os cursos de cavalaria e infantaria duravam
três anos, o curso de artilharia cinco, e o curso de engenharia seis. Em 1795 é criada a
"Nova Academia de Aritmética, Geometria Prática, Fortificação, Desenho e Língua
Francesa", que provavelmente também funcionava na "Casa do Trem de Artilharia"
(idem).

Com a chegada da Família Real portuguesa no Brasil, o Príncipe Regente D.


João reorganiza as forças da colônia, ampliando os efetivos e modernizando as unidades.
Este projeto de modernização incluiu a criação de uma escola militar para a formação dos
Oficiais do Exército. Assim sendo, em dezembro de 1810, foi fundada a Academia Real

2
Regulamento do Conde de Lippi, que durou no Brasil até 1895 (PAULA, 1970, P. 268).
5

Militar. Ao analisarmos a Carta de Lei que cria essa academia constatamos que essa escola
possuía uma dupla função: a primeira seria a de formar "[...] hábeis Officiaes [...]"
(BRASIL, 1810); a segunda função era de formar "[...] Engenheiros geographos e
topographos, que possam também ter o util emprego de dirigir objectos administrativos de
minas, de caminhos, portos, canaes, pontes, fontes, e calçadas[...]" (idem).

Uma análise da primeira turma da Academia Real Militar nos permite verificar
a grande diversificação do corpo discente. A turma era composta por setenta e três alunos,
sendo que sessenta e seis já eram militares que ocupavam diferentes postos e graduações 3 e
sete eram civis. O Mais novo tinha 15 anos de idade e o mais velho 43 (PERES, 2011, p.
29). Estes fatos demonstram além de um corpo de alunos muito diversificado, a presença
de alguns Oficiais que se matriculavam na escola para aprimorarem seus conhecimentos
técnicos, visto que já possuíam a patente de oficial, eram os chamados “Oficiais-Alunos”.

Trevisan (1993, pp. 10-11) observa que um dos aspectos do regulamento


editado para a Academia Real Militar em 1810 era a distinção entre os alunos, como se
depreende do trecho a seguir:

Um último detalhe, fruto ainda do 'espírito' do Estatuto de 1810, com


origem bem determinada nele, tem especial importância: as distinções
entre espécies de aluno. Em 1810 o Estatuto previa o aluno “obrigado” e
o “voluntário”. Ambos, para ingresso, cumpriam duas exigências: 15
anos completos e “dar conta das quatro primeiras operações”. A diferença
entre eles é que o “obrigado” sentava praça de soldado ou cadete de
Artilharia e prestava serviço nessa Arma, o que lhe conferia depois
regalias. O “voluntário” estava dispensado desse destino de artilheiro. Em
1823, porque enfim o Estatuto previa diferenças entre os alunos, um ato
do governo independente permite matrícula na Academia Real Militar de
alunos civis, que não firmariam nenhum tipo de compromisso com a
carreira militar. Eram os “paisanos”. A esse tipo de aluno seria
concedido, ao final do curso, um diploma: o de Engenheiro Civil.

Em 1812, a Escola Militar muda da "Casa do Trem de Artilharia" para uma


nova sede no Largo de São Francisco, também na cidade do Rio de Janeiro, onde
permaneceu até 1858. Nesse período a Escola manteve a sua dupla função: formar Oficiais
para o Exército e engenheiros que supririam as necessidades da nação. Em razão disso, a
maior parte das discussões sobre o sistema de ensino da escola militar girava em torno dos
problemas relativos a um ensino excessivamente teórico e afastado das necessidades do

3
Capitães, Tenentes, Sargentos-mores, Sargentos, Furriéis, Cabos, Soldados e Cadetes (PERES, 2011, p. 29).
6

Exército, ou de um ensino voltado quase que exclusivamente à prática militar, o que


dificultava a formação dos engenheiros necessários à nação.

Mesmo com a criação de uma escola formadora de Oficiais, com uma aparente
consagração da forma escolar, o sistema de formação de Oficiais nos "Corpos de Tropa"
manteve-se. Continuou a existir a figura do Cadete como a principal sistema de formação
de Oficiais. Isto confirma a manutenção do sistema híbrido de educação militar, que
mantinha a forma escolar para um pequeno grupo e a formação pela vivência prática para a
maioria.

No século XIX, o problema que surgiu foi a falta de interesse por parte dos
filhos da aristocracia pela carreira militar. Shultz (1971) verificou que a partir da primeira
metade do século XIX a aristocracia dos grandes proprietários de terras brasileiros preferiu
a ocupação de "[...] funções mais lucrativas de caráter político e judicial aos postos do
oficialato" (SCHULZ, 1971, p. 238). A criação e a difusão das Faculdades de Direito e
Medicina absorveu o filhos das elites agrárias, em detrimento da carreira militar. Para
suprir a falta de interesse dos filhos da aristocracia pela carreira militar e poder completar
os quadros necessários à manutenção das Forças Armadas no tocante à necessidade de
Oficiais, em 1820 são criadas as figuras dos Segundos Cadetes e Soldados Particulares.
Esta norma flexibiliza a exigência de pertencimento a nobreza para ascensão ao oficialato.
Passaram a ser aceitos como Segundos Cadetes ou Soldados Particulares "[...] os filhos dos
Oficiais de patente das tropas de linha do Exército do Brasil, ou de pessoas condecoradas
com hábito de alguma das ordens [...]" (PORTUGAL, 1820). Os Segundos Cadetes e os
Soldados Particulares poderiam ascender na carreira do oficialato da mesma maneira que
os Cadetes criados em 1757 (denominados a partir de 1820 como Primeiros Cadetes).

Com estes mecanismos, durante o século XIX, a maior parcela dos Oficiais das
armas de infantaria e cavalaria era oriunda dos Cadetes e Soldados Particulares.
Constituíam os chamados Oficiais formados na "Tradição dos Corpos de Tropa", que
galgavam os postos por vivencia prática nos quartéis. Este sistema híbrido tinha seus
problemas, especialmente com relação às questões decorrentes da excessiva formação
teórica dada para os Oficiais formados na Escola Militar, que receberam a alcunha de
7

Oficiais Doutores, e a falta de conhecimentos dos Oficiais formados nos Corpos de Tropa,
apelidados de tarimbeiros4.

Na década de 1850, durante a Guerra contra Uribe e Rosas (1851-1852), o


ministro de guerra5 passou a preocupar-se com a formação profissional dos Oficiais do
Exército. O quadro era considerado grave, o próprio Almanaque Militar de 1857 nos
informa que os Oficiais dos corpos técnicos (engenharia, artilharia e estado-maior) tinham
passado pela Escola Militar, sendo que "[...] apenas 31 dentre os 354 de infantaria e a 20
dos 119 da cavalaria [...]"(SCHULZ, 1971, p. 238) tinham frequentado um curso superior.
Surgem tentativas para solucionar o problema da falta de conhecimentos técnicos dos
Oficiais formados na "Tradição dos Corpos de Tropa".

A primeira solução dada foi a Lei de Promoções6, que estipulava que para ser
promovido a capitão era necessário o curso completo de sua arma. Como isto inviabilizaria
a promoção dos Oficiais formados na "Tradição dos Corpos de Tropa" e existiam muito
Oficiais nesta condição, incluindo Oficiais superiores, foi criada uma exceção para os
quadros das armas de infantaria e de cavalaria. Para estas armas, somente um terço dos
Oficiais dos quadros necessitaria da formação na Escola Militar. Em 1851 foi criado um
curso de infantaria e cavalaria no Rio Grande do Sul, onde se concentravam a maioria das
tropas. Efetivamente instalado em 18537, este curso deu oportunidade para que muitos
Oficiais tivessem uma rápida instrução teórica próximo das unidades em que serviam
(MACHADO, 2011).

Enquanto isto, na Escola Militar, visando o equilíbrio entre o ensino teórico e o


ensino prático, tentou-se adotar o modelo francês de duas escolas, uma teórica e outra de
aplicação. Para tal, em 1855, a Escola Militar é dividida em duas escolas. Permanece no
Largo de São Francisco a Escola Militar, ministrando um curso científico de forma

4
Neste período surge o termo "Tarimbeiro", derivado da palavra tarimba, que era a cama de campanha do
soldado, uma cama tosca e rude. Inicialmente a alcunha era utilizada de forma pejorativa, indicando Oficiais
com pouca instrução. Posteriormente passou a ser usada de forma a exaltar o Oficial que tinha experiência
em combate (MACHADO, 2011, p. 352).
5
Durante a Guerra contra Uribe e Rosas, o ministro da guerra do Brasil era o Tenente-Coronel Manuel
Felizardo de Sousa Melo, bacharel em matemática pela Universidade de Coimbra, foi lente da Real
Academia Militar quando capitão do corpo real de engenheiros, o que explica a preocupação dele com a
formação dos Oficiais (N.A.).
6
Lei n.º 585 de 6 de Setembro de 1850.
7
Nas mesmas instalações funcionaram a "[...]Escola Militar de Porto Alegre (1851-57); Militar Preparatória
(1858-66); Militar Auxiliar (1860-62); Preparatória (1863-64) (Interrupção) e o Curso de Infantaria e
Cavalaria da Província (1874-76) e [...] Escola Militar da Província transferida [...] em 1883 [...]"para novas
instalações, ainda na cidade de Porto Alegre (BENTO, 1987, p.9).
8

semelhante à escola Politécnica de Paris. Para o ensino aplicado, semelhante à escola de


Aplicação de Metz, foi criada em 1855, no forte de São João, a Escola de Aplicação. Em
1858 a escola de Aplicação passa a funcionar em um novo prédio, na Praia Vermelha.

Em 1858 a Escola Militar no Largo de São Francisco passou a ser denominada


de Escola Central. Na década de 1860, com as reformas do Ministro Sebastião do Rego
Barros8 e a primeira reforma Polidoro9, o curso de engenharia é separado do curso de
artilharia, e a Escola Militar na Praia Vermelha passa a ministrar os cursos das três armas -
artilharia, cavalaria e infantaria. Enquanto isso, a Escola Central ministraria somente os
cursos de engenharia, tanto para civis quanto para militares, e algumas matérias do curso
de estado-maior. Com isto, inicia-se a separação definitiva do curso de engenharia civil da
formação militar (MACHADO, 2011).

Após a participação do Brasil na guerra contra o Paraguai, a necessidade de


novos engenheiros civis e o desenvolvimento de conhecimentos técnicos adquiridos nos
campos de batalha forçaram uma nova reforma que separou os cursos militares do curso de
engenharia civil. Em 1874, na velha sede do Largo de São Francisco passou a funcionar o
curso de formação de engenheiros civis, sob a administração do Ministério do Império,
agora com a denominação de Escola Politécnica. A Escola da Praia Vermelha passou a
funcionar como uma clássica Escola Militar, com os cursos de infantaria, cavalaria,
artilharia, engenharia e estado-maior (MOTTA, 2001).

Com o passar dos anos, a Escola Militar da Praia Vermelha seria consagrada
como a escola responsável pela formação teórica dos futuros Oficiais do Exército e foram
criadas escolas de aplicação, como a Escola Preparatória e Tática do Realengo. Neste
processo a Escola Militar da Praia Vermelha, muito em razão da grande influencia do
positivismo de Comte em seu currículo, passou a ser conhecida como "Tabernáculo da
Ciência" e seus alunos ficaram conhecidos como "Mocidade Militar" (LOUREIRO, 2012,
p. 49 a 66).

Mesmo com estas mudanças na Escola Militar, na década de 1880 a jovem


oficialidade do Exército Imperial era composta majoritariamente por Oficiais formados nos
Corpos de Tropa, sendo considerados mal instruídos. O brasilianista MacCan (2007)

8
Decreto 2.582, de 21 de abril de 1860.
9
Lei 1.163, de 30 de julho de 1862, e Decreto 3.083, de 28 do abril de 1863.
9

observa que e os escalões superiores eram constituídos por veteranos da guerra contra o
Paraguai, desprestigiados pelo Parlamento e pela sociedade, "[...] até os alunos das escolas
militares e os Oficiais subalternos ridicularizavam suas medalhas de guerra" (idem, p. 28 a
29). O soldo era a única fonte de renda dos Oficiais e as promoções sofriam forte
influencia política, "[...] Capitães podiam esperar de dez a quinze anos para chegar a major
[...]" (idem, p. 29), e os ministros civis, com formação jurídica, ocupavam cada vez mais
espaço no gabinete ministerial, em detrimento dos Oficiais com formação técnica. Com
relação à tropa "[...] ex-escravos e a escoria da sociedade compunham grande parte dos
praças, recrutados por esquadrões de alistamento compulsório" (idem, p. 29).

Este quadro ensejou uma ruptura dos Oficiais com o regime estabelecido, o que
culminou com a proclamação da República e uma série de reformas no sistema de ensino
militar (CASTRO, 2000). O novo regime tinha por princípios o fim dos privilégios de
nascimento oriundos do período monárquico e a consagração da formação técnica dos
militares em escolas, o que em outras palavras significa a consagração da forma escolar
como sistema de formação dos comandantes de unidades militares. Diversos documentos
indicam esta mudança, como a "Mensagem dirigida ao Congresso Nacional pelo
generalissimo Manoel Deodoro da Fonseca", chefe do Governo Provisório da República
dos Estados Unidos do Brasil, em 15 de novembro de 1890, publicada no Diário do
Legislativo do Brasil de 16/11/1890 (Diário do Congresso Nacional, 1890, p. 27 a 31). O
trecho a seguir demonstra a preocupação com a formação dos militares:

[...] não seria possível demorar a decretação de reformas que collocassem


as forças armadas do Brazil em condições de responder pela integridade
do solo brazileiro, pela inquebrantada manutenção da ordem geral.
Para atingir este desideratum de tanto alcance, era indispensavel começar
pela elevação do nível moral do soldado brazileiro, dar-lhe a instrucção
necessaria, aperfeiçoar-lhe o conhecimento e manejo das armas, formar-
lhe o caracter e a disciplina militares, e tirar aos serviços a expressão de
imposto de sangue, para qualifical-os como a mais elevada e a mais nobre
funcção publica que o cidadão é chamado a desempenhar. Cumpri elevar
tambem o nivel dos estudos superiores, adapatal-os aos progressos,
programas e adeantamentos da civilisação moderna nas especialidades
que a um militar devem ser familiares, e preparar assim os mais altos
destinos para essa mocidade que acode fervorosa de todos os angulos da
Republica, pedindo logares nas fileiras do nosso exercito (Diário do
Congresso Nacional, 1890, p. 31).

No mesmo diapasão desta mensagem, durante os trabalhos do Congresso


Constituinte de 1890 foi discutido o fim dos títulos de nobreza e dos privilégios de
10

nascimento oriundos do período monárquico no Brasil. Nos anais desse Congresso


observamos que na 31ª Seção, de 13 de janeiro de 1891, o Deputado Barbosa Lima levou a
plenário o fim do título de Cadete (BRASIL, 1924, p. 495-497). Por força desta e de outras
discussões, com a Constituição de 1891 foram extintos os títulos de nobreza, incluindo os
títulos de Cadetes10. Desta forma o acesso ao oficialato por meio de privilégios de
nascimento foi encerrado.

Cabe ressaltar que continuaram a existir alguns Cadetes, pois a própria


Constituição de 1891 consagrou o principio jurídico do direito adquirido11. Desta forma as
pessoas que já gozavam do título de Cadetes antes da promulgação da carta magna
continuariam com este título, mas não seriam promovidas a Oficiais sem que
frequentassem a Escola Militar e não surgiriam novos Cadetes. Os que frequentavam a
Escola Militar passaram a utilizar a graduação de Aluno-Oficial, apenas alguns
mantiveram em seus uniformes o distintivo típico do título de Cadete. Câmara (1985)
verificou que isto se deve à interpretação de que o título Cadete era muito relacionado com
privilégios oriundos do período Imperial e a graduação de Aluno-Oficial tinha uma
conotação mais "Republicana". Sob o aspecto da história da educação, não podemos
esquecer que a figura do "Aluno" tem forte ligação com a forma escolar, o que demonstra o
predomínio da Escola Militar como forma de acesso ao oficialato no Brasil em detrimento
do ensino pela vivencia experimentado pelos Cadetes dos séculos XVIII e XIX.

Uma nova reforma ocorre em 190512 que define que só poderiam ingressar na
Escola Militar os praças de pré13 com no mínimo seis meses de efetivo serviço em um
Corpo do Exército; que apresentem aptidão para o serviço militar e conduta irrepreensível,
atestada pelo comandante do Corpo de Tropa em que servia; robustez física, comprovada
em inspeção de saúde; ter mais de 17 e menos de 22 anos de idade; ser solteiro ou viúvo
sem filhos; e apresentar atestado de aprovação em exames de desenho linear, português,
francês, inglês ou alemão, aritmética, álgebra, geometria e trigonometria, elementos de
mecânica e astronomia, física e química, história natural, geografia e história,

10
Vide art. 72 da Constituição de 1891.
11
Vide art. 58 da Constituição de 1891.
12
Vide Decreto nº 5.698, de 2 de outubro de 1905.
13
Nome dado à categoria inferior da hierarquia militar (soldado), também podendo ser denominada praça de
pret ou simplesmente praça (N.A.).
11

especialmente do Brasil, tudo de acordo com regulamento do Gymnasio Nacional14.


Também foi proibida a matricula de Oficiais nos cursos da Escola Militar.

A partir da reforma de 1905 a única maneira de ascensão ao oficialato era a


frequência aos cursos da Escola Militar. Isto põe fim ao sistema de formação dos Oficiais
com base na experiência prática de um "Fidalgo" pela vivencia junto a uma unidade
operacional. Para matricular-se na Escola Militar não era mais necessário comprovar a
nobreza. Passou a ser necessária a aprovação em uma espécie de processo seletivo que
exigia outros valores que não apenas os privilégios de nascimento. Este processo
consagrou a forma escolar como única maneira de ascensão ao oficialato, inaugurando a
era dos Alunos-Oficiais e determinando efetivamente o fim dos Cadetes e dos Oficiais-
Alunos.

Um caso curioso foi o renascimento da graduação de Cadete no Brasil em um


processo que durou entre 1931 e 1934. Pesquisadores como Celso Castro (1994) e Loureiro
(2012) evidenciaram que na década de 1930, logo após assumir o governo provisório,
Getúlio Vargas teve que enfrentar o problema da rebeldia na Escola Militar do Realengo,
escola formadora dos Oficiais do Exército à época15. Para solucionar esta questão foi
nomeado o então coronel José Pessoa para o comando da escola. Entre 1931 e 1934, esse
Oficial promoveu uma verdadeira reforma na escola, quando foi recriada a graduação de
Cadete e foram inventadas as tradições do uniforme histórico, do espadim e do Corpo de
Cadetes. Essa reforma tinha o objetivo de, por meio da criação do sentimento de
pertencimento a um grupo aristocrático com seu próprio cerimonial, símbolos e tradições,
inculcar nos alunos uma disciplina tal que os afastasse da “perniciosa” política, que havia
conduzido gerações de Oficiais à rebeldia dos movimentos tenentistas da década de 1920
no Brasil.

Essa reforma trabalhou especialmente com a formulação de uma nova cultura


escolar por meio da adaptação de tradições presentes nas principais Escolas Militares do
mundo ocidental, como West-Point, Saint-Cyr, Sandhurst, estabelecimentos de formação
de Oficiais do Exército norte-americano, francês e inglês respectivamente. Algumas das
tradições dessas escolas foram assimiladas, readaptadas e impregnadas de elementos da

14
Vide Art. 17 do Decreto nº 5.698, de 2 de outubro de 1905.
15
A Escola Militar da Praia Vermelha, o "Tabernáculo da Ciência", foi fechada no início de 1905 em razão
do envolvimento dos alunos da escola com a Revolta da Vacina (N.A.).
12

biografia oficial do Duque de Caxias, descrito como um general apolítico e disciplinado.

Nesse processo foi construído um novo modelo de oficial para o Exército, uma
antítese do padrão dos Oficiais rebeldes que participaram dos movimentos tenentistas da
década de 1920 e que iniciaram suas carreiras como Alunos-Oficiais. Surge a ideia de um
novo aluno da Escola Militar, o Cadete de Caxias, que não se caracteriza mais como um
detentor de privilégios de nascimento e formado por meio da vivencia prática dos quartéis,
como os antigos Cadetes. Uma espécie de amalgama que funde características tanto dos
antigos Cadetes quanto dos Alunos-Oficiais, o Cadete de Caxias passa a ser visto como
membro de uma “elite intelectual e moral”, por ter sido aprovado em processo seletivo e
receber formação em uma Escola Militar. O que demonstra que, apesar do título de Cadete,
permaneceu a forma escolar como principal mecanismo para a educação profissional dos
comandantes do Exército brasileiro.

A partir dos indícios detectados por meio da pesquisa histórica, podemos


concluir que a história do sistema de formação dos comandantes de unidades militares no
Brasil é um caso típico de um sistema de formação profissional que evoluiu de uma
educação, na qual os conhecimentos eram transmitidos a partir da vivencia dos futuros
Oficiais na vida militar, para um modelo híbrido que mesclava a formação por meio da
vivencia nos quartéis e a educação por meio de uma escola, até que no século XX ficou
consagrada a forma escolar como única maneira de acender ao oficialato. Este estudo
comprova a ideia de Vicent, Lahire e Thin sobre a origem e a história da forma escolar a
partir da idade moderna. Resta ainda ampliar este estudo para outros tipos e sistemas
escolares e verificar até que ponto os conceitos da forma escolar são aplicáveis à "História
Real".

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