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lebates debates politica hannah arendt ENTRE O PASSADO E O FUTURO Bia sasain7 “ISS Scanned with CamScanner SUMARIO Da Dignidade da Politica: Sobre Hannah Arendt - Celso Lafer.. 9 Prefacio: A Quebra entre o Passado e o Futur 28 1. A Tradicao e a Epoca Moderna... B 2. O Conceito de Historia - Antigo e Moderno 69 3. Que é Autoridade? 4. Que é Liberdade 5. A Crise na Educa¢ao 6. A Crise na Cultura: Sua Importancia Social e Politica 248 7. Verdade e Politica... 8. A Conquista do Espaco e a Estatura Humana... Indice de Nomes.... Scanned with CamScanner 1. A lacuna entre 0 Passado e 0 Futuro: A Diluigao da Tradigao “Seres entre dos dguas marginales de ayer y de my hana: es esto lo que hicieron de nosotros” José Emiti0 Pactizoy Transparéncia de los Enigmas Between Past and Future, cuja ultima edicao, revista ¢ ampliada, é de 1968, comega por examinar a lacuna entre 9 passado e o futuro - a crise profunda do mundo contempo. _ raneo - que se traduz no campo intelectual, pelo esfacela- ‘mento da tradicao. Evidentemente, Hannah Arendt adquiriu ~iéncia desta lacuna com a irrup¢ao do surto totalitario res e caracteristicas examinou em The Origins of (1951). “Os homens normais nao sabem que -a este livro e que talvez sintetize uma de suas totalitdrio revelou que nao Scanned with CamScanner 40 da tradicdo implicou na perda de sabedoria, isto é, para far com Karl W. Deutsch, na dificuldade de discernir, num contexto, as classes de perguntas que devem ser feitae’. “~Marx, Kierkegaard e Nietzsche anteciparam, no campo do pensamento, este esgarcamento da tradi¢ao, tendo Hegel como ponto de partida. De fato, Hegel foi o primeiro que se afastou de todos os sistemas de autoridade, pois, ao vislum- brar o desdobrar completo da Histéria Mundial numa uni- dade dialética, minou a autoridade de todas tradicées, sustentando a sua posigao apenas no fio da prdpria conti- auidade histérica, De mais a mais, a histéria da Filosofia Ocidéntal qué se tinha constituido no conflito bipolar entre o mundo das aparéncias e o mundo das ideias verdadeiras, perdeu parte do seu significado quando Hegel procurou demonstrar a identidade ontolégica da ideia e da matéria €m movimento dialético - 0 real é racional e 0 racional é real — desgastando, consequentemente, o sentido classico da aporia imanéncia versus transcendéncia?, Marx, Kierkegaard e Nietzsche, diante deste impasse, preocuparam-se nova- mente com a qualidade do humano e perceberam pontos basicos do contflito entre a contemporaneidade e a tradicao. Kierkegaard salienta 0 aspecto concreto do homem como sofredor, em contraste com 0 conceito tradicional do homem como ser racional. Desta maneira, subverte a relacio tradicional entre fé e razdo, pois a sua dtivida nao se resolve pelo cogito cartesiano mas, sim, pelo salto racionalmente absurdo da divida para fé*, E curioso observar que esta perda do senso comum, que traz a falta de confianga no que Nos circunda, foi realgada pelos resultados da ciéncia con- tempordnea. De fato, a perspectiva da ciéncia, como obser- va Hannah Arendt, parte da rejeicao do senso comum e da linguagem comum para poder descobrir 0 que se esconde atrds dos fenédmenos naturais. Q progresso da Ciéncia im- plicou numa linguagem cientifica cuja formalizacao cres- 2. Karl W. Deutsch. “On Political Theory and Political Action’, American Po- litical Science Review, vol. LXV (May 1971), p. 12-13-16-17. 3. Between Past and Future, Cap. I, p. 28; 37-39. 4. Between Past and Future, Cap. I, p. 29 € 35; Hannah Arendt. The Human Condition. N. York: Doubleday, 1959. P. 249-254. Scanned with CamScanner cente esvaziou de sentido a nossa percep¢4o concreta e, ‘ademais, nao s6 converteu, através da mediagao da técnica, meio ambiente em objetos criados pelo homem, como té “conseguiu modificar, por meio da aco hu- mana, o desencadeamento dos prdprios processos da natu. reza, como 0 evidencia a fissio do atomo. Destarte, diluiu-se a tradicional distingdo entre natureza e cultura, ¢ o homem, quando se confronta com a “tealidade objetiva’, nao encon- tra mais a natureza mas se desencontra consigo mesmo, isto & com objetos que criou e processos que desencadeou, que funcionam, mas que néo entende, por que nao é capaz de explica- linguagem comum’. ; eck também se opés ao conceito tradicional do mem como ser racional, insistindo na produtividade da vida ena vontade de poder do homem. Entretanto, o sen- sualismo da vida sé faz sentido no quadro de referéncia b aos ual e ao transcendente. Daf o llismo, pois a posicao de Nietzsche ~ “um portador de 5 ao qual o conhecimento se encarna e flui , nas palavras de Anténio Candido, es- e do a valores Scanned with CamScanner descanso, est ligada ao processo biolégico vital, e, como proceso bioldgico, o seu metabolismo consiste na alimen- tacdo de coisas. 9° risco deste processo reside no fato que a industria de diversio std confrontada com apetites imensos € Os processos vitais da sociedade de massas po- derao vir a consumir todos os objetos culturais, deglutin- do-os e destruindo-os. A sociedade de massas, que se orientou para uma atitude de consumo, dificilmente mo- dificara esta tendéncia devoradora, eo 6cio e a cultura animi de que falava Cicero, que recompunham na tradicao ocidental 0 balancez entre diversio e cultura, nao consti- tuem uma resposta adequada para a perplexidade de um niilismo que, em vez de enfrentar valores vigorosos criados pela cultura, se esvai no contato indigno com a diversao’. Marx, numa outra perspectiva, asseverou igualmente a incompatibilidade entre o pensamento classico e as con- digdes politicas da modernidade trazidos pela Revolugdo Francesa e pela Revolucao Industrial. A andlise de Marx explodiu a tradicao através da radicalidade de alguns de seus conceitos basicos, a saber: (i) 0 trabalho cria o homem, © que equivale a dizer que o homem cria a si mesmo pelo trabalho e que, portanto, a sua diferenca especifica é ser animal laborans e nao animal rationale. Nao é preciso sa- lientar que esta posico implica num ataque a Deus, como criador do homem, numa reavaliacgao do trabalho que até entao fora uma atividade desprezada em termos da proble- miatica filoséfico-politica e numa afronta a tradicional dig- nidade da razao; (ii) a violéncia é a porteira da Histéria, 0 que significa uma contestacao a faculdade especifica do homem, segundo os gregos, que seria a de conduzir os ne- gécios da polis através da capacidade dos homens livres de se persuadirem pela palavra. A violéncia, no contexto clis- sico, seria uma ultima ratio, aplicavel apenas na relagao entre os barbaros, onde imperava a coergao ~ e por isso é que eram barbaros — e com os escravos forcados a traba- tharem ~ e por isso que a sua atividade nao era digna, pois nao implicava no uso dialégico da palavra; (iii) e, finalmen- te, a atualizagao da Filosofia na Politica, que implica no fim de um ciclo do pensamento, iniciado quando um filésofo - 1 Between Past and Future, Cap. 6, p.197-21 Scanned with CamScanner OS Plato ~ se afastou da Politica para retornar a ela impong, 0 seus padres, e encerrado quando um fildsofo - Mary _ se afastou da Filosofia para realizd-la na Politica. Este sajtg, de Marx, da Filosofia para a Politica, trouxe, consoante Hannah Arendt, profundas modificagGes ao conceito de Histéria, que merecem ser sucintamente resenhadas Pai uma devida avaliagao da ruptura entre a modernidade e 4 icdo*. wife acordo com os gregos,a crcularidade da vidg biolégica conferia a natureza o seu cardter de imortalida. de, em contraste com a mortalidade concreta dos homens, Entretanto, o tempo retilineo de uma vida individual, onde o presente nao repete o passado e cada instante é unico e diferente - “que as pessoas nao estado sempre iguais, ainda nao foram terminadas - mas que elas vig sempre mudando’, como diria Guimaraes Rosa - pode albergar feitos e acontecimentos que, pela sua singulari- dade, merecem ser conservados. A fungio da Histéria seria a de registrar estes feitos e acontecimentos garantin- do, desta maneira, a imortalidade do homem na terra - “Por estender co’a fama a curta vida”, como nos ensina Camées?. Esta visio da Historia foi modificada quando Vico enfrentou o problema da distincao entre Pprocessos naturais e processos histéricos, De acordo com Vico, a natureza € feita por Deus, e s6 Ele pode compreender os seus processos. Entretanto, a Histéria é feita pelo homem, que pode, consequentemente, entender os Processos que desencadeou. Em outras palavras, e para usar a formula- s40 de Ortega: A Histéria é 0 sistema das experiéncias humanas. A natureza do homem é a sua histéria - as suas res gestae - e o sistematismo das rerum gestarum abre a possibilidade da cognitio rerum gestarum'°, Entretanto, para Vico e para Hegel, a importancia da Historia é tebrica. B uma visdo a posteriori dos aconteci- mentos, na qual o historiador, porque observou a totalida- 8. Between Past and Future, Cap. L, p.17, 21-23, 32. 9. Grande Sertdo: Veredas (2¥ ed.) Rio: José Olympio, 1958, p. 24; Os Lusiadas, » 64. 10. Giambattista Vico, Scienza Nuova di Fausto Nicolini, Milano: Ricciardi, sistema in Obras Completas, ~ senzione terza ~ § 331 in Opere a cura 1963; José Ortega y Gasset, Historia como VIL Madrid: Revista do Ocidente, 1964 - p. 41-44 4 de do processo, } de Hegel, no pref to: “A coruja de : uma forma de vi: lizacao da Filoso conceito de Hist¢ De fato, a Filoso anilise da agdo r toria, sé que a H passado para sex vias, a Historia ¢ fornece regras p. lizagao da ideia lado pelas leis ¢ classes. Entretan da fabricagao in éa fabricagao di imortalidade do cesso, quando s 0 antecedeu. N mesmo significe acabada”. Esta © significado tr proprio Marx q mento contemy as suas ultimas radoxal, pois a ciedade perfeit advento do dcic to do Estado e realizado na Hi que envolvem z cia e da atualiz uma sociedade Sem divid tadoxos nao n Sociedade, tal ¢ utdpica, nao pe U1. Between Past an 12. Between Past an Scanned with CamScanner 1e do processo, pode abarcar 0 ¢, ' a Hegel, no prefacio que escreveu 4 ous Front palavras to: ‘A coruja de Minerva voa sé no eair da torte poe, uma forma de vida jé envelheceu” Marx, a0 proven? lizacdo da Filosofia na Politica, politizou e janet aa conceito de Historia, subvertendo o seu significado teorico, De fato, a Filosofia Politica de Marx se baseava néo numa anilise da a¢4o mas na preocupacao hegeliana com a His- toria, s6 que a Historia deixou de ser uma compreensio do passado para ser uma projecao do futiito. Em outras pala- vfas, a FlistOria passou a ser um modelo cuja contemplacéo fornece regras para a¢ao. A finalidade da Historia é a atua- lizagio da ideia de liberdade. Este Processo pode ser reve- lado pelas leis da dialética, e 0 seu contetido é a luta de classes. Entretanto, este processo é um processo andlogo ao da fabricagao industrial: tem comeco, meio e fim. Este fim éa fabricago da sociedade perfeita. Destarte, cancela-se a imortalidade dos feitos e das ages humanas porque o pro- cesso, quando se encerrar, tornard irrelevante tudo quanto o antecedeu. Na sociedade sem classes os feitos terao 0 mesmo significado que as tabuas e os pregos para uma mesa acabada". Esta superposicao da teoria e da acao dissolveu 0 significado tradicional de ambas, tanto nos termos do proprio Marx quanto nos termos das tendéncias do pensa- mento contemporaneo. De fato, a analise de Marx, levada as suas tiltimas consequéncias, esbarra numa situa¢do pa- radoxal, pois a atualizacdo da Filosofia na Politica - a so- ciedade perfeita — implicar4 no fim do trabalho, com o advento do dcio, no fim da violéncia, com o desaparecimen- to do Estado e no fim do pensamento quando este tiver se realizado na Historia. Dai o desencontro entre os conceitos que envolvem a glorificagao do animal laborans, da violén- cia e da atualizacao da Filosofia e a visdo utépica final de uma sociedade sem Estado, sem trabalho e sem classes. Sem divida, uma inquietagao excessiva com estes pa- radoxos nao nos deve atormentar, porque os dias de uma sociedade, tal como foi preconizada por Marx na sua viséo utépica, nao parecem estar vista. Entretanto, 0 impacto de 1, Between Past and Future, Cap. Il, p. 41-44% 57°60: 77°80. 12, Between Past and Future, Cap. I, p-17-25+ 5 Scanned with CamScanner Marx, conjuntamente com o de Kierkegaard e Nietzsq nas tendéncias do pensamento contemporaneo, foj defin. tivo e por isso deve ser salientado na andlise da ruptura eal atradigao. A contestagao de Marx, Kierkegaard e Nietzsche 4 tra. digo, por ser uma contesta¢ao, ainda se integrava na tradicag mesma, por isso, talvez, conseguiram eles manter no hori. zonte de suas formula¢ées uma aspira¢ao de totalidade Entretanto, 0 esfor¢o que fizeram, que ajudou a derrocadg da tradicao, trouxe o desaparecimento de uma visio totalj. zadora. Uma rapida referéncia ao conceito contemporaneo de modelos nas Ciéncias Sociais, notadamente na Economia e, mais recentemente, na Ciéncia Politica, comprova esta observagao e a ela se soma toda a evolugao da Ciéncia. Esta delimitacao, implicita na ideia de modelo, que também mui- tas vezes contém nitidos objetivos operacionais, carreou a mudanga da nogao de teoria. De fato, esta deixou de ser, como -oera tradicionalmente, i Scanned with CamScanner ‘Es quimera pensar en una sociedad que reconcilie al poema y al acto, que sea palabra viva e palabra vivida, creacién de la comunidad y comunidad creadora?” Ocravio Paz Los signos en rotacién Diante deste beco sem saida, a reflexao de Hannah Arendt se encaminha para uma indagacao sobre as caracte- risticas da acdo politica para verificar se ela pode ser apreen- dida e entendida dentro de um esquema onde a circularidade da relacdo entre fatos e teorias nao seja tio infrutifera. Creio que se pode dizer que esta reflexdo comeca por descartar a relagao entre Politica e certas de co- nhecimento. Para Hannah Arendt o campo da Politica nao o da razao pura ~ como queria Plato - nem o da razao pratica - como aparentemente, segundo ela, se pensa que teria sido a posi¢ao de Kant, pois em ambos os casos os mo- dos de asser¢ao do conhecimento tém, para usar uma distin- c4o de Tércio Sampaio Ferraz Jr., uma estrutura discursiva monoldgica’’. As verdades matematica e cientifica se carac- eee terizam por conter um. slemento inizmno de coersio que 2s toma indiscutiveis. A evidéncia racional ou a prova empiri- ca implicam na submissao. A verdade filos6fica, a verdade moral e a propria verdade revelada também tém uma estru- tura monolégica, pois dizem respeito ao homem na sua singularidade. De fato, como aponta Hannah Arendt, ao falar da critica da razdo pratica, o imperativo categérico co- loca a necessidade de estar o pensamento racional de acordo consigo mesmo, principio que Sécrates ja descobrira ao afir- mar: Se sou um, é melhor estar em desacordo com o mundo do que estar em desacordo comigo mesmo. Dai a origem da Etica ocidental = concordar com a prépria consciéncia ~ eda Légica ocidental - o principio da nao contradicao"*. A Poli- tica, entretanto, como aponta Hannah Arendt, se insere num outro contexto e o seu campo ¢ 0 do pensamento no plural. 15, Tércio Sampaio Ferraz Jr. Justiga e Tépica Juridica, Estudios pe Derecho Vol. XXIX n® 77 (Marzo 1970), Pp. 183-194- 16, Between Past and Future, Cap. 6, P- 219-220; Cap. 7, P, 240, 244-245; cf. Gorgias, 482, Scanned with CamScanner Na interpretagao de Hannah Arendt, Kant, na Criticg a Juizo, salienta uma maneira de pensar no plural, que a siste em ser capaZ de HRs lugar ena Posi ie estar de acordo consigo mesmo. f o Kania * Iaissaiiase alargada”. O alcance ea fore juizo da mentalidade fargada esta na concordancig potencial com os outros. A sua rea de jurisdicao nao ¢, do pensamento puro, do didlogo do eu consigo mesmo, mas sim a do didlogo com 0s outros com 0s quais devo um acordo. Este portanto, nao tem validade r , imitada as pessoas um acordo. Este didlo. estes tipos de jui- acidade de perceber | mesma coisa que a sa- Aristételes no Livro Scanned with CamScanner co necessario para o conhecimento e para a a¢ao politica*. Neste sentido, a reflexao de Hannah Arendt elide o impasse lo pensamento contemporaneo, retomando uma linha de tradicao que, diante da circularidade da relacao entre fatos e ias, Te: ire um sentido que ficara ofuscado e afastado feorias, Téad énquanto perdurou uma aspiracio de totalidade sistematica. Desta retomada resulta uma reviséo de conceitos, de grande utilidade, que merecem ser examinados, a comecar pela re- lacdo entre verdade e Politica, A natureza dialdgica da Politica propde o problema da verdade factual, que informa a estrutura deste didlogo. Com efeito, se a Politica se situa no campo da opiniao, 0 problema da verdade factual — que é a verdade da Politica, uma vez que as outras verdades sao monolégicas — se re- sume na circunstancia que, sendo verdade, ela nao pode ser modificada, mas a sua maneira de asser¢ao é a da opi- nido. Toda a sequéncia de fatos poderia ter sido diferente Porque o campo do possivel é sempre maior que o campo do real. A verdade factual nao é evidente nem necesséria, € 0 que lhe atribui a natureza de verdade efetiva é que os fatos ocorreram de uma determinada maneira e nao de outra, Destarte, o problema da verdade factual é que o seu oposto pode ser nao apenas o erro mas também a menti- ra. Ora, a mentira, nos sistemas politicos tradicionais, era limitada porque, sendo limitada a Participacao politica, ela nao implicava normalmente em auto ilusio ~ os quea manipulavam sabiam distinguir a verdade da mentira. Entretanto, no mundo contemporaneo, estas distingées tendem a desaparecer porque as novas técnicas de comu- nica¢ao, somadas a incorpora¢ao das massas nos sistemas Politicos, levaram a novas modalidades de manipulacdo de opiniao. Uma delas é 0 image-making, que nao é um embelezamento da realidade mas um seu substitutivo. Neste sentido, basta comparar as declaragées oficiais do 80verno americano a respeito da guerra do Viet-Nam com as revelacées dos Pentagon Papers. Vale a pena, também, 20. Bertrand de Jouvenel, Sovereignty (trad. de x, Huntinton), Chicago: The University of Chicago Press, 1963. Cap. 13, p. 217-230; Giambattista Vico, IT Método degli Studi del ‘Tempo Nostro (1708) in Opere cit, Scanned with CamScanner registrar, para ressaltar o fendmeno, mesmo quando a seriedade na substituigao da realidade possa ter sido maior, que o pressuposto da politica de Gaulle foi avitoria da Franca na Segunda Guerra Mundial ¢ 0 stv ae te status de grande poténcia, ou orientaca® de Adenauer, na reconstrucdo politica da Alemanha, calcada na imagem de que o Nazismo foi um movimento jpaioritario. Outra modalidade de manipulagdo de opinido ¢ 0 reescrever da Histéria nao em termos de interpretagao mas de delibe- rada excluso de fatos - Trotsky, por exemplo, nos com- péndios soviéticos, nao participou da Revoluao Russa, Este tipo de manipulagao, que implicou na reabertura do campo de possibilidade para o passado, impede que a Historia desempenhe a sua fun¢ao, pois o repertério de opses é o campo do futuro ¢ 0 papel da Historia é regis- trar os feitos e acontecimentos decorrentes da politica, a partir dos quais se entreabre a estabilidade do possivel agir futuro. Esta situaco gera 0 ceticismo, pois a persuasio e a violéncia podem destruir a verdade factual, mas nao a substituem, porque os seus fluxos carreiam uma instabi- lidade permanente. Dai a importancia de alguns mecanis- mos de defesa da verdade factual, criados pelas sociedades modernas, fora do seu sistema politico, mas indispensa- veis para a sua sobrevivéncia, como a universidade aut6- noma e 0 judiciario independente. Dai também 0 fenémeno da violéncia contemporanea, sobretudo no momento atual norte-americano ou na Europa de 1968, em cuja raiz se encontra, como aponta Hannah Arendt em On Violence (1970), uma reacao contra a hipocrisia da manipulagao de opiniao e um apetite pela aco que reco- loca o problema da liberdade*, A liberdade, no campo da Politica, é um problema cen- tral, para nao dizer um axioma, a partir do qual agimos. Entretanto, no campo do pensamento o pressuposto a par 21, Between Past and Future, Cap.7,p. 227-264; Hannah Arendt. On Violence N. York: Harcourt, Brace and World, Ine.,1970. p, ee : Se nenxoek qe ee ere aa Bantam Books Inc., 1971: Hannah Arend Politics, ‘Review of Book, vol. X vember 18, 1971), P. 30-39. eee Scanned with CamScanner tir do qual raciocinamos é exatamente oposto: nada ver do nada (nihil sine causa). De fato, num exame tedrico sobre uma determinada aco, ela parece normalmente re- sultar, conjunta ou separadamente, ou da causalidade da motivacao intima dos seus protagonistas ou do principio geral de causalidade que regula o mundo externo dentro do qual se inserem estes protagonistas. Esta dicotomia, diz Hannah Arendt, é aparente e sé surge quando se identifica politica ¢ pensamento, obscurecendo-se desta maneira 0 fendmeno da liberdade. O campo do pensamento é 0 do didlogo do eu consigo mesmo, que provoca as grandes per- Sunitas Wietafisicas e onde o livre arbitrio se insere como centro da razao pratica de Kant. O campo da Politica éo.do dialogo no plural que surge no espaco da palavra e da acao - 6 mundo publico da liberdade, De fato, a cons séncia da liberdadé ocorre na int tio diélogo metafisico do eu cor Hannah Arendt, a assim chamada liber vativa, pois pressup6e, ou uma retracao forcada de um mun- do publico encolhido onde a liberdade é negada, - que sio os tempos obscuros por ela tao bem salientados numa co- letanea de ensaios significativamente intitulados Men in Dark Times (1968) - ou uma retracao deliberada da Vita Activa para a reclusao, sem divida digna, da Vita Contem- plativa. Politica e liberdade, portanto, sao coincidentes, porém s6 se articulam quando existe mundo publico. A acdo, apesar de requerer vontade e intelecto, a eles nao se reduz. Resulta de outros principios, muito bem percebidos por Maquiavel na virt, com a qual o homem responde as oportunidades que o mundo lhe oferece na forma de fortu- na. Seu sentido é dado pela palavra virtuosidade, que liga a politica as performing-arts, na medida em que entreabre as conex6es entre a acao e os virtuoses, cuja realizacao se dé durante e na execugio de sua arte. Isto nao quer dizer que a Politica seja arte no sentido convencional de arte criativa - estado como uma obra-prima coletiva — pois tradicional- mente as artes criativas, ao contrario da Politica, levam & obra, assinalada por uma existéncia independente. De fato, Scanned with CamScanner =: linhagem de Mallarmé by i jodernamente a oo poe acabada pela obra aberta onde, ata lene sul a tavio Paze Haroldo de Campos, 98 signos em rotg anil no horizonte do provavel”, esta existengy sao independente implica na concentragao maior dos momen, in tos de liberdade no proprio procesea de ee Depo dy dados, o autor se ve limitado pela pr mtie Obra de lance de filho e espelho, como aponta Valéry numa guest te ah Arendt e que serye assagem comentada por Hann: ea Para Hlustrar como a obra, mesmo aberta, esconde em parte g visibilidade dos momentos de liberdade de seu Criador e limita o numero de possibilidades de liberdade do leitor, 4 Politica se situa num outro campo e, eae ee, nao conduz nem a fabricagao da obra, nem as limitacdes owa durabilidade dela decorrentes. £ Por isso que as inst. tuicdes politicas, ainda que tenham sido superiormente elaboradas, nao tém existéncia independente. Estao sujeitas e dependem de outros e sucessivos atos para subsistirem, pois o Estado nao é um produto do pensamento mas sim da acao*. Acao que exige a vida publica, para que a possivel coincidéncia entre palavra viva e palavra vivida possa sur- gir e assegurar a sobrevivéncia das instituicées através da criatividade. Se a Politica é um produto da agao, o que significa agir? Agir deriva dos verbos latinos agere - p6r em mo- vimento, fazer avancar ~ e gerere — trazer, criar - cujo sentido, para esta andlise, pode ser captado pelo seu pat- ticipio passado gestum, de onde se origina gesta. Agir, Portanto, traduz um movimentar-se para trazer gestas. 0 sentido original de agere exprime atividade no seu exer- cicio continuo, em contraste com facere que exprime atividade executada num determinado instante. Estas denotagées distintas enfatizam as diferencas acima men- 22. Octavio Paz. El Arca y la Lira (24 ed). México: Fondo de Cultura Econ}: mica, 1967; Harold lo de Campos. A Arte no Horizonte do Provavel. Sio Paulo: Perspectiva, 1969. 23. The Human Condition, a P. 190, 355. : = ay Ween Past and Future, Cap. 4, p. 143-146, 151-1543 The Human Conditiom 185, 22 cionadas « dade da: exercicio! e viver as que result tido nos € ridade d: acrescenti romanos ‘ vra. De fai mento pi argument toteles se andlise dc o campo ¢ vo, pasto, iguais cor busca des que autor coer¢ao, ¢ léncia, nai obediénci e, conseq: anima o ¢ fundamer momenta diversos ; do poder, requer, p; deriva do assinala z inicio da; de ao pod 25. Between } simo Dicione Dictionaire 1) let. Dictionny 26. Between | 27. Between } 28. On Viole, Scanned with CamScanner cionadas entre a criatividade da obra de arte e a criativi- dade da a¢ao politica ~ esta ultima assinalada pelo exercicio continuo da liberdade publica, que faz avangar e viver as institui¢des. Os novos feitos e acontecimentos que resultam da acao se inserem num contexto cujo sen- tido nos é fornecido pelo conceito de autoridade*s, Auto- ridade deriva do verbo latino augere — aumentar, acrescentar ~ e, como observa Hannah Arendt, foram os romanos que nos deram tanto 0 conceito quanto a pala- vra. De fato, os gregos procuraram estabelecer um funda- mento para a vida publica que no fosse apenas a argumenta¢ao ou a forga, mas tanto Platio quanto Aris- toteles se utilizaram de conceitos pré-politicos para a andlise do problema ao transferirem, por analogia, para 0 campo da Politica as relagdes pais-filhos, senhor-escra- vo, pastor-rebanho, etc., que nao eram relacées entre iguais como as que devem nortear a vida politica*®, A busca deste fundamento é, sem duivida, complicada por- que autoridade envolve obediéncia, e, no entanto, exclui coer¢ao, pois quando ocorre o emprego da forca, da vio- léncia, nao existe autoridade. Por outro lado, por envolver obediéncia, autoridade se situa no campo da hierarquia e, consequentemente, exclui a persuasdo igualitaria que anima 0 didlogo politico”. Apesar desta dificuldade, este fundamento é indispensavel porque, num determinado momento, o processo politico exige uma escolha entre diversos argumentos. Este momento, que é 0 momento do poder, resulta do agir em conjunto que, no entanto, requer, para ser estvel, legitimidade. Esta legitimidade deriva do inicio da ago conjunta, cujo desdobramento assinala a existéncia de uma comunidade politica*®. O inicio da agao conjunta - a fundagao - confere autorida- de ao poder. No contexto do conceito romano, cujo gran- 25. Between Past and Future, Cap. 4, p. 165-167; ER. dos Santos Saraiva. Novis- Simo Diciondrio Latino: Portugués (ied), Rio, Garnier, s/s Felix Gaffot. Dictionaire lustre Latin-Frangais, Paris: Hachette, 1934; A. Ernout e A. Meil- let, Dictionnaire Etymologiqué de la Langue Latine. Paris, Klincksieck, 1951. 26. Between Past and Future, Cap. 3: p.18. 27, Between Past and Future, Cap. 3, P. 92-93- 28. On Violence, p. 52. 23 Scanned with CamScanner de achado foi o de ter ancorado 0 conceito de autorig no fato politico do inicio da ay palate, © que Ri P olitica faz é acrescentar, atravi i los eitos € aco, tec mentos, importancia fundagao ‘a comunidade Politi, e vida as suas instituigdes. E por isso que em Roma’ poder estava com 0 povo, mas a autoridade Tesidig a Senado, dotado de gravitas € incumbido de Zelar , continuidade da fundagao de Roma. Nas palavras de q cero: “cum potestas in populo auctoritas in Senatys sips. A persisténcia deste conceito pode ser rastreada na dis, tingdo entre a autoridade dos Papas €0 poder real, duran, tea Idade Média, que atesta a romanizacao da Igreja ¢ que atendia a esta mesma necessidade de conferir e também limitar o poder pela autoridade’*. Na Idade Moderna, , separagao da Igreja e do Estado diluiu esta distingao, mas Maquiavel retomou a tradi¢ao romana, através do concej. to de razo de estado, cuja autoridade derivava da expan. sao no espaco e dura¢éo no tempo de uma comunidade politica. Nao é preciso lembrar a importancia do concei- to de razao de estado, mas vale a pena recordar que foi um conceito tedrico decisivo para legitimar a formacio dos Estados nacionais e, consequentemente, um elemen- to importante na conformagio histérica do mundo atual*, Feitos estes registros, o que cabe perguntar-é qual ¢a relevancia do conceito de autoridade numa época onde ela 'Se desagrega até. mesmo.no_processo educacional; onde a da tradi¢o, como aponta Hannah Arendt, impede que se estruture educacio.e autoridade para.a.escola poderset- Vir de ponte entre o. mundo_privado da casa e.o-mundo Publico dos adultos? Sua relevancia se encontra na fre- quéncia do fenémeno revolucionério, que a partir da expe Tiéncia das revolugdes francesa e americana, buscol instituir pelo ato da fundacdo, que separa o ndo-mais ( Passado) do ainda-nao (0 futuro), uma novus ordo saect 29, Between Past and Future, Cay , Cap. 3, p. 120-124, 30, Between Past and Future, Cap. 3, p.125-128. ‘Machi 2 etween Past and Future, Cap, 3p 136338 cf. riedrich Meinecks, Mach vellism - The Doctrine of Raison d'Etat and its Place in Modern Histor? de Douglas Scott). London: Routledge and Kegan Paul, 1962. 32. Between Past and Fuutre, Cap. s, Scanned with CamScanner lorum, que legitime a comunidade politica e preencha a lacuna entre 0 passado e o futuro. De fato, como observa Hannah Arendt em On Revolution (1963), a palavra princi- pio envolve tanto origem quanto preceito, e estes significa- dos, no ato da fundagao, nao estao apenas relacionados mas sao coexistentes. O principio (inicio) da aco conjunta es- tabelece os principios (preceitos) que inspiram os feitos e acontecimentos da aco futura. Este fato - “O comeco nao é apenas metade do todo mas alcanga o fim”, como aponta Polibio - sugere, como diz Hannah Arendt, o principio da verdade factual que, estruturando a liberdade ptiblica, infor- ma discurso dialégico da Politica®®, O fendmeno revolucio- nario, neste sentido, representa uma retomada da tradi¢ao romana, s6 que a redescoberta da experiéncia da fundacao deixou de ser um evento passado ~ ab urbe condita - e passou a constituir uma possibilidade presente ou futura cuja ocor- réncia pode justificar, o emprego da violéncia. Esta justifica- tiva, que se encontra em Maquiavel e Robespierre, aponta um dos problemas do mundo contemporaneo, pois se de um lado a experiéncia da fundacdo tem provocado o gosto pela liberdade publica, por outro lado a sua violéncia constitutiva engloba uma tendéncia 4 supressao desta mesma liberdade que a legitimou. A trdgica ironia da tradicao revolucionaria moderna reside precisamente neste fato: as novas ordens, também por causa do impacto dos problemas sociais con- temporaneos, nao conseguiram, a nao ser intermitentemen- te, implantar a constitutio libertatis, que justificaram a sua ‘fundagdo, Em outras palavras, as revolucées nao consegui- ram assegurar a felicidade publica porque nao mantiveram um espago publico onde a liberdade como virtuosidade Pudesse permanente aparecer na coincidéncia entre aco, Palavra viva e palavra vivida™4. A tarefa de iluminar e res- taurar a importancia deste mundo publico, tio obscurecido na vida contemporanea, quer pelo desdobramento lamen- tavel do fenémeno revolucionario, quer pela decadéncia dos regimes politicos, dedicou-se Hannah Arendt: “If it is 33. Between Past and Future, Cap 3,D. 4o; Hannah Arendt. On Revolution, N. York; Viking Press, 1965. Cap. 5, P- 179-215. ‘ 34. Between Past and Future, Cap. 3, p. 138-141; On Revolution, Caps. 2, 3, 4, 6. Scanned with CamScanner = the function of the public realm to throw light on the affairs of men by providing a space of appearances in which th, can show in deed and word, for better and worse, who th, are and what they can do, then darkness has como whey this light is extinguished by “credibility gaps” and “invisible government’, by speech that does not disclose what it is by, sweeps it under the carpet, by exhortations, moral an, otherwise, that under the pretext of upholding old truths, degrade all truth to meaningless triviality”>>. Este trecho extremamente revelador do porqué da crenca da liberdade em Hannah Arendt nos permite lembrar uma de suas af. nidades com Rosa Luxemburgo, sobre quem escreveu im. portante ensaio apontando, no contexto da tradicig revolucionaria, a énfase solitaria de Rosa Luxemburgo em defesa da necessidade absoluta, em todas as circunstancias, tanto da liberdade individual quanto da liberdade publica® Este trecho sugere, igualmente, uma conex4o com Jaspers, relevante para a compreensao de estrutura légica do racio- cinio de Hannah Arendt. Um dos conceitos basicos do pensamento de Jaspers é a comunicagio ilimitada e sem fronteiras (Grenzenlose Kommunicatiori) que, segundo ele, éa tinica forma de revelacao da verdade, na concomitancia indissolivel entre razo e existenz. A comunicacio ilimita- dae sem fronteiras, fundamento de uma filosofia da huma- nidade, pressupGe - em contraste com uma filosofia do homem, que parte do didlogo solitdrio do eu consigo mes- mo - 0 didlogo com os outros”. A comunicacio ilimitada € sem fronteiras, portanto, ndo exprime a verdade masa instaura e se liga claramente com a assercdo-que Hannah Arendt faz da natureza dialdgica da Politica, cujo encadea- mento com o problema da aco e com 0 conceito de auto- ridade tentei demonstrar. Esta crenga na comunica¢4o confere 4 obra de Hannah Arendt um carter aberto, mui- to distante das imputagdes dogmaticas que lhe foram atri- buidas por alguns de seus critics. Gragas a este carater 35. Hannah Arendt. Men in Dark Times, N. York: Harcourt, Brace and World Inc,, 1968. p. VILL. 36. Men in Dark Times, p. 52, 37. Men in Dark Times, p. 81-94, aK aberto, a mental d que isto Neste se! ela sua problem tradi¢ao retou, re da liberc tancia -i do pensé nistra¢a invisible nidade c: importa: seja pelo adminis! seja pelo a sobrev. versio d ca suspe uma Pol da reflex vislumb1 futuro, tr 38. Karl jay 1963. p. 123, Scanned with CamScanner aberto, as prerrogativas da Politica, enquanto area funda- mental da experiéncia humana, recuperam vigéncia ainda que isto se dé apenas no campo da opiniao consistente. Neste sentido, creio que o pensamento de Hannah Arendt, pela sua eloquente capacidade de reflexao abstrata sobre o problema concreto, pela retomada de uma das linhas da tradigao e pela consequente revisao de conceitos que acar- retou, representa uma redescoberta da sabedoria. O tema da liberdade readquire, neste contexto, toda a sua impor- tancia - apesar da experiéncia do totalitarismo, do impasse do pensamento contemporaneo, da trivialidade da admi- nistragao das coisas e da escuridao dos credibility gaps e invisible government. Pessoalmente, sinto uma grande afi- nidade com este privilegiamento do tema da liberdade, cuja importancia procurei ressaltar através de outros angulos, seja pelo estudo das condi¢ées de racionalidade da decisao administrativa no planejamento governamental brasileiro, seja pelo estudo do pensamento de Octavio Paz, para quem a sobrevivéncia da Politica est ligada Arendt - o fim de uma politica auténti- ca suspende o interesse pela Politica*®, impedir o fim de uma Politica auténtica constitui o grande tema unificador da reflexdo politica de Hannah Arendt, que nos permite vislumbrar, mesmo no vazio da lacuna entre 0 pasado e 0 futuro, toda a forca e o vigor da dignidade da Politica. Janeiro de 1972 Celso Lafer 38. Kar Jaspers. Autobiographie Philosophique (trad. de Pierre Boudot). Aubier, 1963. p. 123, 7 Scanned with CamScanner PREFACIO: A QUEBRA ENTRE © PASSADO E O FUTURO Notre héritage nest precede daucun testament - “Nossa heranga nos foi deixada sem nenhum testamento”, Talvez esse seja 0 mais estranho dentre os aforismos estranhamen- te abruptos em que o poeta e escritor francés René Char condensou a esséncia do que vieram a significar quatro anos na Resistance para toda uma geracao de escritores e homens de letras europeus*. O colapso da Franga, acontecimento totalmente ines- perado para eles, esvaziara, de um dia para outro, o cenario politico do pais, abandonando-o as palhacadas de patifes ou idiotas; e eles, a quem nunca ocorrera ‘tomar parte nos 1. Ver, para essa citagio e as subsequentes, René Chat, Feuillets d’Hypnos Paris, 1946, Escritos durante o dltimo ano da Resistencia, de 1943 a 1944 e: publicados na Collection Espor, organizada por Albert Camus, tais aforismos juntamente com obras posteriores, apareceram em inglés sob 0 titulo Hypnos Waking; Poems and Prose, New York, 1956. 28 Scanned with CamScanner negocios oficiais da Terceira Republica, viram-se sugados para a politica como que pela forca de um vacuo. Desse modo, sem pressenti-lo e provavelmente contra suas incli- nagoes conscientes, vieram a constituir, quer o quisessem ou nao, um dominio puiblico onde - sem a paraferndlia da burocracia e ocultos dos olhus de amigos e inimigos — le- vou-se a cabo, em feitos e em palavras, cada negécio rele- vante para os problemas do pais, Isso nao durou muito, Apés alguns curtos anos, foram liberados do que originalmente haviam pensado ser um “fardo” e arremessados de volta aquilo que agora sabiam ser a leviana irrelevancia de seus afazeres pessoais, sendo mais uma vez separados do “mundo da realidade” por uma épaisseur triste, a “opacidade triste” de uma vida particular centrada apenas em si mesma. E, se se recusavam a “voltar as [suas] verdadeiras origens, a [seu] miseravel comporta- mento’, nada lhes restava sendo retornar a velha e vazia peleja de ideologias antagénicas que, apds a derrota do inimigo comum, de novo ocupavam a arena politica, cin- dindo os antigos companheiros de armas em grupelhos sem conta, que nado chegavam sequer a constituir faccdes, e alistando-os nas intermindveis polémicas de uma guerra de papel. Aquilo que Char previra e antecipara lucidamente enquanto a luta real ainda prosseguia — “Se sobreviver, sei que terei de romper com o aroma desses anos essenciais, de rejeitar silenciosamente (nao reprimir) meu tesouro” — acontecera. Eles haviam perdido seu tesouro, Que tesouro era esse? Conforme eles mesmos 0 enten- deram, parece ter consistido como que de duas partes inter- conectadas: tinham descoberto que aquele que “aderira 4 Resisténcia, encontrara a si mesmo’, deixara de estar “A pro- cura [de si mesmo] desgovernadamente e com manifesta insatisfacio”, nao mais se suspeitara de “hipocrisia” e de ser “um ator da vida resmungao e desconfiado’, podendo per- mitir-se “desnudar-se”. Nessa nudez, despido de todas as mascaras, tanto daquelas que a sociedade designa a seus membros como das que 0 individuo urde para si mesmo em suas reagdes psicoldgicas contra a sociedade, eles haviam sido, pela primeira vez em suas vidas, visitados por uma Scanned with CamScanner ee da liberdade; nao, certamente, por terem reagid, tirania ea coisas piores - 0 que foi verdade para todo ait : do dos Exércitos Aliados -, mas por se haverem tornad, 2 Contestadores’, por haverem assumido sobre seus Préprigg ombros a iniciativa e assim, sem sabé-lo ou mesmo Percebe. -lo, comegado a criar entre si um espaco ptiblico onde ali. berdade poderia aparecer. “A cada refeicao que fazemos juntos, a liberdade é convidada a sentar-se. A cadeira Per- manece vazia, mas o lugar estd posto”. Os homens da Resisténcia Europeia nao foram nem os primeiros nem os tiltimos a perderem seu tesouro. A hist. tia das revolugées ~ do verao de 1776, na Filadélfia, e do vero de 1789, em Paris, ao outono de 1956 em Budapeste -, que decifram politicamente a estoria mais rec6ndita da ida- de moderna, poderia ser narrada alegoricamente como a lenda de um antigo tesouro, que, sob as circunstancias mais varias, surge de modo abrupto e inesperado, para de novo desaparecer qual fogo-fatuo, sob diferentes condigées mis- teriosas. Existem, na verdade, muito boas razées para acre- ditar que o tesouro nunca foi uma realidade, e sim uma miragem; que nao lidamos aqui com nada de substancial, mas com um espectro; e a melhor dessas razées é ter 0 te- souro permanecido até hoje sem nome. Existe algo, nao no espaco sideral, mas no mundo e nos negécios dos homens que nem ao menos tenha um nome? Unicérnios e parecem possuir mais realidade que o te- revolucées. E, todavia, se voltarmos as desta era, e sobretudo para as décadas i Scanned with CamScanner 1. deixada sem testamento algum. O testamento, dizendo ao herdeiro 0 que sera seu de direito, lega posses do passado t i para um futuro. Sem testamento ou, resolvendo a metéfora, _ sem tradicao ~ que selecione e nomeie, que transmita e is preserve, que indique onde se encontram os tesouros e qual ie o seu valor ~ parece nao haver nenhuma continuidade s consciente no tempo, e portanto, humanamente falando, nem passado nem futuro, mas tao somente a sempiterna + mudang¢a do mundo e 0 ciclo bioldégico das criaturas que nele vivem. O tesouro foi assim perdido, nao mercé de cir- cunstancias histdricas e da adversidade da realidade, mas por nenhuma tradicao ter ‘previsto seu aparecimento o ou sua le; por nénhum testamento o haver legado ao futu- 10. A perda, talvez inevitavel em termos de realidade polf- tica, consumou-se, de qualquer modo, pelo olvido, por um lapso de meméria que acometeu nao apenas os herdeiros como, de certa forma, os atores, as testemunhas, aqueles or um fugaz momento retiveram o tesouro nas palmas mos; em suma, os préprios vivos. Isso porque a Scanned with CamScanner Contar a histéria e transmitir seu significado deles se esqui- Vou, e sem este acabamento pensado apés 0 ato e sem a articulacdo realizada pela memoria, simplesmente nao sobrou nenhuma historia que pudesse ser contada, Nao ha nada de inteiramente novo nessa Situacao, Estamos mais acostumados as periddicas irrupcoes de exasperacao apaixonada contra a Tazao, o Pensamento e 0 discurso racional, Tea¢6es naturais de homens que sou- beram, por experiéncia prépria, que o Pensamento se apartou da realidade, que a realidade se tornou Opaca a luz do pensamento, e que o pensamento, nao mais atado circunstancia como o circulo a seu foco, se sujeita, seja a tornar-se totalmente desprovido de significacdo, seja a Tepisar velhas verdades que ja perderam qualquer relevan- cia concreta. Até mesmo o reconhecimento antecipado da crise tornou-se agora familiar. Ao regressar do Novo Mundo, que com tanta mestria soube descrever e analisar, a Ponto de sua obra ter se tornado um classico, sobrevivendo a mais de um século de mudanga radical, Tocqueville estava bem cénscio de que aquilo que Char chamara “acabamento” do ato e do acontecimento, se esquivara também de si; 0 “Nos- sa heranga nos foi deixada sem testamento algum’; de Char, soa qual uma variante de “Desde que o Ppassado deixou de langar sua luz sobre o futuro, a mente do homem vagueia nas trevas”*, de Tocqueville. Todavia, a tinica descrigéo exata dessa crise se encontra, até onde eu saiba, em uma daquelas pardbolas de Franz Kafka que, tinicas talvez quan- to a esse aspecto na literatura, constituem auténticas ‘para- 2. A citacao é do iiltimo capitulo de Democracy in America, New York, 1945: vol. Il, p. 331, Ei-la na integra: “Embora a revolugio que se esta processando na social, nas leis, nas opinides e nos sentimentos dos homens es- teja ainda bem longe de se achar concluida, seus resultados, contudo, jé nio admitem comparacao com nada que o mundo tenha antes testemunhado. Remonto-me, de época a época, até a mais remota antiguidade, porém ni0 -encontro paralelo para o que ocorre ante meus olhos; a partir do momento em que op eon Mela nueemtes eeaen en segue) de que é 0 futuro “até a mais remota anti Scanned with CamScanner bola, lancadas ao lado e em torno do incidente como raios luminosos, que nao iluminam porém sua aparéncia externa, mas possuem o poder radiografico de desvelar sua estrutu- ra intima, que, em nosso caso, consiste nos processos re- cénditos da mente. A parabola de Kafka é a seguinte? Ele tem dois adversérios: 0 primeiro acossa-o por tras, da origem. O segundo bloqueia-lhe o caminho a frente. Ele luta com ambos. Na verdade, 0 Primeiro ajuda-o na luta contra o segundo, pois quer empurré-lo para frente, e, do mesmo modo, o segundo o auxilia na luta contra o primeiro, uma vez que o empurra para tras. Mas isso é assim apenas teoricamente. Pois nao ha ali apenas os dois adversdrios, mas também ele mesmo, e quem sabe realmente de suas inten- g6es? Seu sonho, porém, éem alguma ocasiao, num momen- to imprevisto — e isso exigiria uma noite mais escura do que jamais 0 foi nenhuma noite -, saltar fora da linha de comba- tee ser alcado, por conta de sua experiéncia de luta, 4 Pposigao de juiz sobre os adversérios que lutam entre si. O incidente que esta parabola relata e penetra, segue, em sua légica interna, os acontecimentos cuja esséncia en- contramos contida no aforismo de René Char. De fato, ela comega precisamente no ponto onde o nosso aforismo ini- cial deixou a sequéncia dos acontecimentos como que sus- pensa no ar. A luta de Kafka come¢a quando ja transcorreu © curso da ago e a estéria que dela resulta aguarda ser 3. A estoria é tiltima de uma série de “Notas do ano 1920” sob o titulo He. Traduzidas do alemao por Willa e Edwin Muir, sairam a lume, nos Estados Unidos, em The Great Wall of China, New York, 1946. Segui a traducao inglesa exceto em algumas poucas passagens onde uma traducao mais li- teral fazia-se mister para meus fins. Eis 0 original alemao no vol. 5 dos Gesammelte Schriften, New York, 1946: Er hat zwei Gegner: Der erste be- draengt ihn von hinten, von Ursprung her. Der zweite verwehrt ihm den ‘Weg nach vorn. Er kaempft mit beiden. Bigentlich unterstiitzt ihn der erste im Kampf mit dem Zweiten, denn er will ihn nach vorn draengen und ebenso unterstiitzt ihn der zweite im Kampf mit dem Ersten; denn er trei- bt ihn doch zuriick, So ist es aber nur theoretisch. Denn es sind ja nicht nur die zwei Gegner da, sondern auch noch er selbst, und wer kennt eigen- tlich seine Absichten? Immerhin ist es sein Traum, dass er einmal in einem unbewachten Augenblick - dazu gehoert allerdings eine Nacht, so finster wie noch keine war ~ aus der Kampflinie ausspringt und wegen seiner Kampfeserfahrung zum Richter iber seine miteinander kaempfenden Geg- ner erhoben wird. Scanned with CamScanner co! «, aeSade nas mentes que a herdam e questionam? 4 520 da mente é compreender 0 acontecido, ¢ essa com. a n eee: de acordo com Hegel, é o modo de reconciliag§g h © homem com a realidade; seu verdadeiro fim é estar em c Paz com o mundo. O problema é que, se a mente é incapaz e de fazer a paz e de induzir a reconciliacao, ela se vé de ime. fi diato empenhada no tipo de combate que lhe ¢ proprio, a Historicamente, contudo, esse estagio no desenvolyj. te mento do pensamento moderno foi precedido, pelo me. st nos no século XX, nao por um, mas por dois atos st anteriores. Antes que a geragao de René Char, por nés P escolhido como seu representante, se visse arrancada de tr suas ocupacées literarias para os compromissos da acio, outra geracao, apenas um pouco mais velha, voltara-se 7 Para a politica como solucao de perplexidades filoséficas e tentara escapar do pensamento para a aco. Foi essa ere que, mais tarde, se tornou porta-voz e criadora do que ela: a chamou de Existencialismo, pois 0 Exis- _ tencialismo, ‘na sua versao francesa, é basica- Scanned with CamScanner metafisicas eram desprovidas de sentido; isto é, quando o homem moderno comecou a despertar para o fato de ter chegado a viver em um mundo no qual sua mentalidade esua tradicao de pensamento nao eram sequer capazes de formular questées adequadas e significativas, e, menos ainda, dar respostas as suas perplexidades. Neste momen- to critico, a aco, com seu envolvimento e compromisso, seu engajamento, parecia abrigar a esperanga, nao de re- solver quaisquer problemas, mas de fazer com que fosse possivel conviver com eles sem se tornar, como disse Sar- tre certa vez, um salaud, um hipécrita. A descoberta de que, por alguma razao misteriosa, a mente humana deixou de funcionar adequadamente forma, por assim dizer, o primeiro ato da estéria que aqui nos in- teressa. Eu a mencionei, embora sucintamente, uma vez » perderiamos a peculiar ironia do que segue. escrevendo durante os derradeiros meses da Scanned with CamScanner Preensao, de acordo do homem com a Te eae ° mundo, O Problema € que, se a mente é incapaz € lazer a paz e de induzir a Teconciliacao, ela se vé de ime. diato empenhada No tipo de combate que lhe é Proprio, Historicamente, contudo, esse estagio no desenvolyj. mento do pensamento moderno foi precedido, pelo me- nos no século XX, nao por um, mas por dois atos anteriores. Antes que a geracao de René Char, Por nés escolhido como seu Tepresentante, se visse arrancada de suas ocupa¢ées literdrias para os compromissos da acao, Outra geracao, apenas um pouco mais velha, voltara-se Para a politica como solucao de perplexidades filoséficas € tentara escapar do pensamento para a acao. Foi essa geracao que, mais tarde, se tornou porta-voz e criadora do que ela mesma chamou de Existencialismo, pois 0 Exis- tencialismo, ao menos na sua versao francesa, é basica- mente uma fuga dos impasses da Filosofia moderna para © compromisso incondicional cem a acao. E como, sob as circunstancias do século XX, os chamados intelectuais - escritores, pensadores, artistas, literatos etc. - s6 puderam ter acesso a vida publica em tempos de revolugao, a revo- lucao veio a desempenhar, conforme Malraux observou certa vez (em A Condi¢ao Humana), “o papel ong desempenhado vida eterna”: “redimir os que a fazem’. oa rebeliao do fildésofo contra a Elo ‘surge ao revelar-se a Filosofia incapaz de aplicar suas oe esfera das questdes politicas; esta falén- - cia da Filosofia Politica no sentido em que Platao a ce PS ertentide' kan 3 iga quanto a histéria da Filoso- Ley , nao surgi nem mesmo 20 mente incapaz de realizar # ea Filosofia da Historia, SUMNER et ret om a 0 sc re br pr so. mi s tiv, de; du; 2 £ vac EgeERs Scanned with CamScanner metafisicas eram de; Sprovidas de sentido; isto 6, quando o homem moderno ¢: g ‘ome¢ou a despertar para o fato de ter chegado a viver em um mundo no qual sua mentalidade €sua tradi¢ao de pensamento nao eram sequer capazes de formular questdes adequadas e significativas, e, menos ainda, dar respostas as suas perplexidades. Neste momen- to critico, a acao, com seu envolvimento e compromisso, seu engajamento, parecia abrigar a esperanca, nao de re- solver quaisquer problemas, mas de fazer com que fosse possivel conviver com eles sem se tornar, como disse Sar- tre certa vez, um salaud, um hipéctita. A descoberta de que, por alguma razio misteriosa, a mente humana deixou de funcionar adequadamente forma, por assim dizer, o Primeiro ato da estéria que aqui nos in- teressa. Eu a mencionei, embora sucintamente, uma vez que, sem ela, perderfamos a peculiar ironia do que segue. René Char, escrevendo durante os derradeiros meses da Resisténcia, quando jé avultava a libertacao — que, em nos- So contexto, significava liberacao do agir -, concluiu suas teflexdes com um apelo ao pensamento, destinado aos so- breviventes futuros, ndo menos urgente e apaixonado que 0 apelo ao agir daqueles que o antecederam. Caso fosse preciso escrever a histdria intelectual de nosso século, nao sob a forma de geracées consecutivas, onde o historiador deve ser literalmente fiel 4 sequéncia de teorias e atitudes, mas como a biografia de uma tinica pessoa, nao visando sendo a uma aproximacao metaférica do que ocorreu efe- tivamente na consciéncia dos homens, veriamos a mente dessa pessoa obrigada a dar uma reviravolta nao uma, mas duas vezes: primeiro, ao escapar do Pensamento para a ago, ¢ a seguir, quando a ago, ou antes, 0 ter agido, forcou- ade volta ao pensamento, Seria, pois, de certa importncia observar que 0 apelo ao pensamento surgiu no estranho periodo intermediério que por vezes se insere no tempo histérico, quando nao somente os historiadores futuros, mas também os atores e testemunhas, os vivos mesmos, tornam-se conscientes de um intervalo de tempo totalmen- te determinado por coisas que nao sao mais e por coisas Scanned with CamScanner que nao so ainda. Na Histéria, esses intervalos mais de uma vez mostraram poder conter o momento da verdade, Podemos agora retornar a Kafka, que ocupa, na légica desses problemas, se nao em sua cronologia, a ultima e, de certa maneira, mais avancada posigao. (Nao se decifrou ainda o enigma de Kafka que em mais de trinta anos de crescente fama péstuma afirmou-se como um dos escrito- res mais notaveis -, que consiste, basicamente, em uma espécie de espantosa inversao da relagao estabelecida entre experiéncia e pensamento. Ao passo que consideramos como imediatamente evidente associar riqueza de detalhes concretos e acao dramatica 4 experiéncia de uma dada realidade, atribuindo assim certa palidez abstrata aos pro- cessos mentais como tributo a ser pago por sua ordem e precisao, Kafka, gracas 4 pura forga de inteligéncia e ima- ginacio espiritual, criou, a partir de um minimo de expe- riéncia despojado e “abstrato”, uma espécie de paisagem-pensamento que, sem perda de precisao, abriga todas as riquezas, variedades e elementos dramaticos ca- racteristicos da vida “real”. Sendo o pensar para ele a parte mais vital e vivida da realidade, desenvolveu esse fantastico dom antecipatério que ainda hoje, apés quase quarenta anos repletos de eventos inéditos e imprevisiveis, nao cessa de nos atordoar.) A estéria registra, em sua extrema sim- plicidade e conciséo, um fenémeno mental, algo que se poderia denominar um evento-pensamento. A cena é um campo de batalha no qual se digladiam as forcas do passa- do e do futuro; entre elas encontramos o homem que Kaf- ka chama de “ele’, que, para se manter em seu territério, deve combater ambas. Ha, portanto, duas ou mesmo trés lutas transcorrendo simultaneamente: a luta de “seus” ad- versdrios entre si e a luta do homem com cada um deles. Contudo, o fato de chegar a haver alguma luta parece dever- -se exclusivamente 4 presenca do homem, sem o qual - suspeita-se — as forcas do passado e do futuro ter-se-iam de ha muito neutralizado ou destruido mutuamente. A primeira coisa a ser observada é que nao apenas ° futuro - “a onda do futuro” -, ‘© passado, ¢ ie 05s. oka commeiaeepepticemente a as nossa de arcar devem s “yras de mesmo por tod ara tré ae de sado. D interva. continu meio, 0 present tempo, tante, a ro. Ape named te do te inserga termos forgas | corpo < sobre ¢ Pe possive sercao mas, 0 confor reta. V movin tante p conta } linha ¢ © anti ménid © supr Mento event< Pensay Scanned with CamScanner as nossas metaforas, como um fardo com que o homem tem de arcar e de cujo peso.morto os vivos podem ou mesmo devem se desfazer.em sua marcha para o futuro. Nas pala- ‘yras de Faulkner: “o passado nunca esté morto, ele nem mesmo ¢ pasado”. Esse passado, além do mais, estirando-se por todo seu trajeto de volta a origem, ao invés de puxar para tras, empurra para a frente, e, ao contrario do que seria de esperar, é 0 futuro que nos impele de volta ao pas- sado. Do ponto de vista do homem, que vive sempre no intervalo entre o passado e o futuro, o tempo nao é um continuo, um fluxo de ininterrupta sucessao; é partido ao meio, no ponto onde “cle” esta; e a posi¢ao “dele” nao ¢ 0 presente, na sua acepcao usual, mas, antes, uma lacuna no tempo, cuja existéncia é conservada gracas a “sua” luta cons- tante, a “sua” tomada de posigao contra o passado e o futu- ro. Apenas porque o homem se insere no tempo, e apenas na medida em que defende seu territdrio, o fluxo indiferen- te do tempo parte-se em passado, presente e futuro; é essa inser¢ao — o principio de um principio, para colocd-lo em termos agostinianos - que cinde o continuo temporal em forgas que, entao, por se focalizarem sobre a particula ou corpo que lhes da direcao, comegam a lutar entre sie a agir sobre o homem da maneira que Kafka descreve. Penso que, sem destorcer 0 pensamento de Kafka, é possivel dar um passo adiante. Kafka descreve como a in- sergio do homem quebra o fluxo unidirecional do tempo, mas, o que é bem estranho, nao altera a imagem tradicional conforme a qual pensamos o tempo movendo-se em linha reta. Visto Kafka conservar a metafora tradicional de um movimento temporal e retilinear, “ele” mal tem espaco bas- tante para se manter, e, sempre que “ele” pensa em fugir por conta propria, cai no sonho de uma regiao além e acima da linha de combate - e 0 que é esse sonho e essa regiao, sendo 0 antigo sonho, anelado pela Metafisica ocidental de Par- ménides a Hegel, de uma esfera bitemporal, fora do espaco € suprassensivel como a regido mais adequada ao pensa- mento? Obviamente, o que falta 4 descricio kafkiana de um evento-pensamento é uma dimensio espacial em que o Pensar se possa exercer sem que seja forgado a saltar com- Scanned with CamScanner pletamente para fora do tempo humano. O que ha de erra_ do com a estéria de Kafka, com toda a sua grandeza, ¢ que dificilmente pode ser retida a nogao de um movimentg temporal e retilineo quando o flux unidirecional deste é Partido em forgas antagénicas, idas para o homem ¢ agindo sobre ele. A insercio do homem, interrompendo continuo, ndo pode sendo fazer com que as forgas se des. viem, por mais ligeiramente que seja, de sua direcao origi- nal, e, caso assim fosse, elas nao mais se entrechocariam face a face, mas se interceptariam em Angulo. Em outras palavras, a lacuna onde “ele” se posta nao é, pelo menos potencialmente, um intervalo simples, assemelhando-se antes ao que 0 fisico chama de um paralelogramo de forcas, Idealmente, a acao das duas forgas que compéem o paralelogramo de forcas onde o “ele” de Kafka encontrou seu campo de batalha deveria resultar em uma terceira for- ga: a diagonal resultante que teria origem no ponto em que as forcas se chocam e sobre o qual atuam. Essa forca diago- nal diferiria em um aspecto das duas outras de que é resul- tado. As duas forcas antagénicas sido, ambas, ilimitadas no sentido de suas origens, vindo uma de um passado infinito, e outra de um futuro infinito; no entanto, embora nao te- nham inicio conhecido, possuem um término, o ponto no qual colidem. A forga diagonal, ao contrério, seria limitada no sentido de sua origem, sendo seu ponto de partida o entrechoque das forcas antagénicas, seria, porém, infinita quanto a seu término, visto resultar de duas forgas cuja ori- gem € 0 infinito. Essa forca diagonal, cuja origem é conhe- cida, cuja diregao é determinada pelo passado e pelo futuro, mas cujo eventual término jaz no infinito, é a metafora perfeita para a atividade do pensamento. Fosse 0 “ele” de Kafka capaz de exercer suas forcas no sentido dessa diagonal, em perfeita equidistancia do passado e do futuro, como que caminhando ao longo dessa linha, para frente e para tras, com os movimentos pausados e ordenados que $40 0 pass? mais conveniente a ordem do pensamento, ele nao ter!# saltado para fora da linha de combate e se situado, com? quer a parabola, acima da refrega, pois essa diagonal, em- bora apontando rumo ao infinito, permanece presa 20 pre a a2 sente € 1 - pression regio a pal te aquilo: existir col imenso €‘ tado pelas um lugar do futuro deria julg Eten teoricam« acontece! rias e par nal.que ¢ espaco cc gas, “mor tante em apenas © enquant« manter, 1 um cam] Para utilizand as condi ser valid tempo h pode ab: nas no t que é at Katka, e seu ser « doe of menor sim coe Pode se Pensar, vidade Mortais Scanned with CamScanner sente e nele arraigada; em vez disso, teria descoberto ~ pressionado como estava, pelos adversarios, na tinica di- regao a partir da qual poderia ver e descobrir adequadamen- te aquilo que Ihe era mais proprio e que somente viera a existir com seu proprio e autoinserido aparecimento ~ 0 imenso e sempre cambiante espago-tempo criado e delimi- tado pelas forcas do passado e do futuro; teria encontrado um lugar no tempo suficientemente afastado do passado e do futuro para lhe oferecer a “posicao de juiz’, da qual po- deria julgar com imparcialidade as forgas que se digladiam. Etentador acrescentar, porém, que isso “é assim apenas teoricamente”. O que muito mais provavelmente pode vir a acontecer — e que Kafka descreveu amitide em outras esté- rias e parabolas ~ é que “ele”, incapaz de encontrar a diago- nal que o levaria para fora da linha de combate, para 0 espaco constituido idealmente pelo paralelogramo de for- gas, “morra de exaustao’, deperecido sob a pressao do cons- tante embate, esquecido de suas primitivas intengdes e apenas cénscio da existéncia dessa lacuna no tempo que, enquanto ele viver, serd 0 territério sobre o qual tera que se manter, muito embora nao se assemelhe a um lar, e sim a um campo de batalha. Para evitar mal-entendidos: as imagens que estou aqui utilizando para indicar, de maneira metaférica e conjetural, as condi¢ées contemporaneas do pensamento, s6 podem ser validas no ambito dos fenémenos mentais. Aplicadas ao tempo histérico ou biografico, nenhuma dessas metaforas pode absolutamente ter sentido, pois nao ocorrem ai lacu- nas no tempo. Apenas na medida em que pensa, isto é, em que é atemporal ~ “ele”, como tao acertadamente o chama Kafka, e nao “alguém” -, o homem na plena realidade de seu ser concreto vive nessa lacuna temporal entre o passa- do eo futuro. Suspeito que essa lacuna no seja um fend- meno moderna, e talvez nem mesmo um dado histérico, e sim coeva da existéncia do homem sobre a terra. Ela bem pode ser a regiao do espirito, ou antes, a trilha plainada pelo pensar, essa pequena picada de nao tempo aberta pela ati- vidade do | através do espago-tempo de homens “mortais e na qual o curso do pensamento, da recordagio e Scanned with CamScanner da antecipacao salvam o que quer que toquem da ruina do tempo histérico e biografico. Este pequeno espaco intem. Poral no Amago mesmo do tempo, ao contrario do mundo e da cultura em que nascemos, nao pode ser herdado tecebido do passado, mas apenas indicado; cada nova ge. ragao, e na verdade cada novo ser humano, inserindo-se entre um passado infinito e um futuro infinito, deve desco. bri-lo e, laboriosamente, pavimenta-lo de novo. O problema, contudo, é que, a0 que parece, nao pare. cemos estar nem equipados nem preparados para esta ati. vidade de pensar, de instalar-se na lacuna entre 0 passado ¢ © futuro. Por longos periodos em nossa historia, na verdade no transcurso dos milénios que se seguiram a fundacao de Roma e que foram determinados por conceitos romanos, esta lacuna foi transposta por aquilo que, desde os romanos, | chamamos de tradicao. Nao ¢ segredo para ninguém o fato de essa tradicao ter-se esgarcado cada vez mais 4 medida que a época moderna progrediu. Quando, afinal, rompeu-se 0 fio da tradicao, a lacuna entre o passado e o futuro deixou de ser uma condigao peculiar unicamente a atividade do pensamento e adstrita, enquanto experiéncia, aos poucos eleitos que fizeram do pensar sua ocupagao primordial. Ela tornou-se realidade tangivel e perplexidade para todos, isto é, um fato de importancia politica. Kafka menciona a experiéncia; a experiéncia de luta adquirida por “ele” que defende seu territério entre 0 cho- que das ondas do passado e do futuro. Essa é uma experién- cia de pensamento — j4 que, como vimos, toda a parabola refere-se a um fendmeno mental -, e s6 pode ser adquirida, como qualquer experiéncia de fazer algo, através da pratica ede exercicios. (Nesse particular, como em outros aspects; esse tipo de pensamento difere de processos mentais como ‘ 0, a indugao e a extragao de conclusées, cujas ** as de nao contradicao e coeréncia interna podem de uma vez por todas, bastando depo's ensaios seguintes sao exercicios dese éadquirir experiéncia em como pens* fio rom] altima ! futuro. probler movim algum« Me mento de aco! sejamt to é qu experi os uni que se assim) a proje passat carar’ ensaic grosso que e: que ci ria, pi critic: deira deles evadi ae pons si for oes, -me, forn cicie este capi cara aju uni Scanned with CamScanner fio rompido da tradico, ou inventar algum expediente de ultima hora para preencher a lacuna entre 0 passado € 0 futuro. Em todos esses exercicios pde-se em suspenso 0 problema da verdade; a preocupa¢ao é somente como movimentar-se nessa lacuna - talvez a tinica regido onde algum dia a verdade venha a aparecer. Mais especificamente, trata-se de exercicios de pensa- mento politico, na forma como este emerge da concretude de acontecimentos politicos (embora tais acontecimentos sejam mencionados apenas de passagem), e meu pressupos- to é que o préprio pensamento emerge de incidentes da experiéncia viva e a eles deve permanecer ligado, ja que sao os tinicos marcos por onde pode obter orientacao. Uma vez que se movem entre 0 passado e o futuro, contém critica, assim como experimentos, mas os experimentos nao visam. a projetar qualquer espécie de futuro utépico, ea critica ao passado, aos conceitos tradicionais, nao pretende “desmas- carar”. Além disso, as partes criticas e experimentais dos ensaios que seguem nao sao rigidamente divididas, embora grosso modo os trés primeiros capitulos sejam mais criticos que experimentais e os cinco ultimos, mais experimentais que criticos. Essa gradual mudanga de énfase nao é arbitra- ria, pois ha um componente experimental na interpretagao critica do passado, cujo alvo principal é descobrir as verda- deiras origens de conceitos tradicionais, a fim de destilar deles sua primitiva esséncia, que tao melancolicamente evadiu-se das préprias palavras-chave da linguagem politi- ca — tais como liberdade e justica, autoridade e razao, res- ponsabilidade e virtude, poder e gloria -, deixando atras de si formas ocas com as quais se dao quase todas as explica- g6es, a revelia da subjacente realidade fenoménica. Parece- -me, e espero que 0 leitor concorde, que o ensaio como forma literaria guarda uma afinidade natural como os exer- cicios que tenho em mente. Como toda coletanea de ensaios, este volume de exercicios poderia obviamente conter alguns capitulos a mais ou a menos sem por isso modificar seu caréter, A unidade destes capitulos - que constitui para mim a justificativa de publicd-los em forma de livro - nao éa unidade de um todo indiviso, mas sim a de uma sequéncia 41 Scanned with CamScanner de movimentos que, como em uma suite musical, tos em um mesmo tom ou em tons relacionados sequéncia é determinada pelo contetido. A esse livro divide-se em trés partes. A primeira trata moderna na tradi¢ao e do conceito de Histéria de que se serviu a época moderna, almejando substituir 8 conceitos da Metafisica tradicional. A segunda discute dois Conceitos politicos centrais e inter-relacionados — autoridade e liber. dade. Pressupée a discussio da primeira parte, Porquanto questdes elementares e diretas como: O que é autoridade? O que é liberdade?, s6 podem Surgir quando nao mais se dispde de respostas deixadas Pela tradicao e ainda validas, Os quatro ensaios da ultima Parte, por fim, so francas ten. tativas de aplicar o tipo de pensamento que foi posto a pro- va nas duas primeiras partes a problemas imediatos e Correntes com que nos defrontamos no dia-a-dia, nao, de- certo, com o fito de encontrar solugses categéricas, mas na esperanga de esclarecer as questdes e de adquirir alguma desenvoltura no confronto com problemas especificos. b S20 escrj. - A Prope Tespeito, o da ry a Scanned with CamScanner

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