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Ivan Domingues . __ 4 DO, ae | O problema da fundamentagio | das ciéncias humanas COLECAO ye osorle 1, Para ler a Fenomenologia do Espirito Paulo Meneses 2. A vereda tragica do Grande Sertéo: Veredas Sonia M. V. Andrade 3. Escritos de Filosofia I Henrique C. de Lima Vaz V 4, Marx e a natureza em O Capital Rodrigo A. de P. Duarte 5. Marxismo e liberdade Luiz Bicca 6. Filosofia e violéncia Marcelo Perine . Cultura do simulacro Hygina B. de 8. Escritos de Filosofia II Henrique C. de Lima Vaz 9. Filosofia do mundo a. Filippo Selvaggi 10, O Conceito de religiio em Hegel Marcelo F, de Aquino a 11, Filosofia ¢ método no segundo Wittgenstein Werner Spaniol ‘ 12. Filosofia Polftica 130 caminho postico de Parménides ») 14, A filosofia na crise da modernidade Manfredo A, Oliveira 15. Antropologia filosdfica I Henrique C, de Lima Vaz 16. Religifo ¢ histéria em Kant Francisco Javier Herrero Alasdair MacIntyre 18. O grau zero do conhecimento Ivan Domingues 19. Maquiavel republicano Newton Bignotto 20. Moral e histéria em John Locke Edgard J. Jorge Filho 17. Justiga de quem? Qual racionalidade? \ / | | IVAN DOMINGUES O grau zero do conhecimento O problema da fundamentacao das ciéncias humanas Agradecimentos Gostaria de expressar todo meu reconhecimento a Hennio Morgan Birchal, pelo paciente trabalho de reviséo do verndculo e das citagdes em grego e em latim. A Francisco Javier Herrero Botin, pela leitura cuidadosa dos originais. A Hugo Pereira do Amaral e a M. Jacques Garelli, aos quais devo o estimulo e a iniciativa de publicar o presente trabalho. A Luiz de Carvalho Bicalho, meu mestre, com quem aprendi 0 exercicio e o gosto da filosofia. PREFACIO A idéia deste livro, em sua origem uma tese de doutorado defendida junto a Sorbonne, surgiu da leitura de um autor que, como poucos, soube seduzir os espiritos de uma época: Michel Foucault, e de uma obra que, como nenhuma outra, soube despertar toda uma geragao de estudantes de filosofia e de outras tantas disciplinas’das ciéncias humanas: As Pala- i —— vras e as Coisas, Por certo, Foucault é mais um desses camaleées filos6ficos com que os franceses de uns tempos para c4 resolveram brindar-nos, justificando a invectiva de Castoriadis que, referindo-se a Lévi-Strauss, diz que, enquan- to os xamas matam por fumigacao,/ antropélogos como ele matam por estruturalizacéo. Algo semelhante se passa com Foucault que, a exemplo de Baudrillard, mata por dissimulacdo (cf. p. ex. A Arqueologia do Saber). Porém, mais do que uma dissimulagao_estéril, As Palavras e as Coisas, mesmo onde elas erram e nos confundem, tratam de uma maneira extre- mamente fértil os temas do homem e despertaram em nés um problema que nos consumiu dez anos de trabalho: a questao da fundamentacao das ciéncias humanas. Foucault, no entanto, tergiversa e dissimula a epistemologia em arqueologia e a historia em genealogia. A necessidade de encontrar um antidoto nos levou a Cassirer e Gusdorf: a Filosofia da Ilustragdo e a Histéria das Ciéncias Humanas. A necessidade de encontrar um remédio contra uma nogdo de Episteme a um tempo rigida e abstrata nos levou a trabalhar a axiomatica da economia, da lingiiistica, da politica e da historia, no periodo que se estende do século XVII ao XIX, da qual a arqueologia foucauldiana, na pressa de generalizar, passa ao largo. Assim, 0 livro que nasceu com Foucault cedo se voltou contra ele. Com Foucault, trabalhamos o tema da fundamentacdo das ciéncias huma- nas. Contra Foucault, que na sua arqueologia nos fala de uma tinica Episteme' — a Episteme moderna —, ignorando suas variantes e inflexdes e pondo lado a lado um Descartes e um Newton, um Espinosa e um Smith (mathesis universalis), procuramos mostrar: 1) em realidade, a Episteme moderna nao é uma s6, mas varias; 2) pelo menos trés estratégias discursivas diferentes em sua motivacao e em sua indole conformaram as 1. Por Episteme entendemos, com a tradigéo filosdfica que nos vem dos gregos, 0 sistema de conhecimentos racionais fundado no /dgos demonstrativo, incluindo a ciéncia e a filosofia, e no uma sorte de inconsciente do saber ou de a priori hist6rico, como em Foucault. we eléneias humanas no perfodo que se estende do século XVII ao XIX: a) uma, de tipo “essencialista”, no século XVII (a Etica, de Espinosa, e a Gramatica, de Port-Royal); b) outra, de tipo “fenomenista”, no século XVIII (0 Espirito das Leis, de Montesquieu, e a Riqueza das Nacées, de A. Smith); ¢) outra enfim, nem essencialista nem fenomenista, mas “histérica’, no século XIX (O Capital, de Marx, e a Gramatica Comparada, de Bopp). Por seu turno, quanto 4 axiomatica, procuramos mostrar que as ciéncias hu- manas nasceram segundo os c4nones do principio da fundamentagéo suficiente do conhecimento? — seja de consisténcia légica; seja de sufi- ciéncia empirica — e, ainda, como, uma vez constituidas, foram elas levadas a abandonar este principio, na passagem da modernidade a nossos dias, dando lugar ao paradoxo que é 0 fato de que elas se encontram hoje “fun- dadas”, mas perderam seu “fundamento” no movimento mesmo dg sua “fundagio” — e o sentido e 0 alcance desses deslocamentos e inflexées. , Demais, cuidamos de mostrar que as ciéncias humanas ao longo des- tes'trés séculos se edificaram Pprimeiro em torno da metafisica e do méto- do l6gico-metafisico (Port-Royal) e da matematica e do método metafisico- -matematico (Espinosa), no século XVII; em seguida, da fisica e do méto- do empirico-dedutivo (Montesquieu) ou matematico-experimental (Smith), no século XVIII; enfim, da histéria e do método positivo-comparado (Bopp) ou dialético-hipotético-dedutivo (Marx), no século XIX. E isto com o ob- jetivo de ampliar os quadros da andlise epistemolégica tradicional, que privilegia 0 método, na direcéo de uma certa “ “arqueologia” como a de Foucault — a qual de um modo um tanto vago poderiamos chamar ainda de filosofia da ciéncia —, buscando dar conta de seu ponto de intersecio com a antropologia filos6fica — porque visamos ao homem —, com a teoria do conhecimento — porque visamos 4 sintaxe do saber e ao regime da verdade — e com a ontologia — porque visamos ao modo de ser que essas diferentes Epistemes permitem instalar: 0 século XVII nos falando de uma natureza humana co-substancial ao homem (Espinosa); 0 século XVIII reduzindo-a a estas “empiricidades” que séo a riqueza e o homo veconomicus (Smith) e o estado e o homo politicus (Montesquieu); 0 século XIX pulverizando-a na histéria (antropologia do homem histérico) e nos rindo a instauragéo de um novo modo de ser — o “ser-adven- =~, fundado nao mais no ponto fixo do ser e do seu fundamento — fa, mas antes nos pontos cambiantes do devir e no espétaculo de sua stagdo — o acontecimento (histérico) ele mesmo. Outro lado, um pouco além da axiomatica e um pouco aquém da @ da teoria do conhecimento, sob varios aspectos nosso livro 5 da Introdugao, onde explicamos 0 que compreendemos por esse principio fua origem hist6rica. pode ser entendido como um ensaio sobre as diferentes formas de pensar que conformaram a Episteme moderna. Ou seja, tentamos mostrar a exis- téncia de uma correlagao entre os “estilos de filosofar” e as “figuras do pensamento”, das quais a histéria da filosofia é tao rica em exemplos e que vamos encontrar espalhadas nas diferentes disciplinas das ciéncias _ chumanas que se constituiram ao longo destes.trés séculos. Com vistas a melhor precisar 0 sentido e o alcance dessa andlise “es- tética” ou “estilistica”, faremos em seguida uma pequena digressdo sobre as figuras do pensamento na histéria da filosofia, para em seguida carac- terizar as formas de pensar que armaram a Episteme moderna e suas _ respectivas estratégias discursivas — a estratégia essencialista, a fenomenista e a histérica —, cuja “fenomenologia” procuramos descrever nas trés partes que se seguem. Comecemos 1) com Aristételes que, na Metafisica, ao se referir a Platao, nos fala da figura do “pensamento complicativo” como aquele de um homem que, porque considera muito dificil contar os gréos de uma saca de feijio que ele tem diante de si, joga por cima uma outra saca para tornar mais facil a contagem — no caso Platdo que, nao totalmente satis- feito com as dificuldades que tinha diante de si para explicar o “mundo real”, inventa o “mundo das idéias”; em conseqiiéncia, no lugar de ter um problema ele cria um segundo, “et pour cause”... 2) Uma outra figura é a do “pensamento némade” de que nos fala Hume, aludindo ao empirismo que, nao tendo o suporte da ousia de Aristételes e da substantia de Des- cartes, est4 condenado, como um némade, a passar, num movimento sem trégua, de uma percepgao a outra, ad infinitum... 3) Uma terceira figura é ado “pensamento circular” de que nos fala Hegel, referindo-se dialética e as suas mediages que, se na sua marcha irresistivel nos levam ao Ab- soluto, é porque desde o comego elas j4 estavam 14, no Absoluto — e que Nietzsche ridicularizou dizendo “saber absoluto = saber do absoluto = um ponto de vista de Deus... qual Deus? Hegel, vivendo em Berlim!”... 4) Uma quarta figura nos oferece Merleau-Ponty, reportando-se ao positivismo, quando nos fala de um “pensamento em sobrevéo” incapaz. de apreender a coisa mesma. 5) Uma quinta figura se encontra em Heidegger, referindo-se nao ao positivismo, mas a fenomenologia existen- cial, como a de um pensamento enrolado como um caracol que se contor- ce para falar do inefavel ou do indizivel, que é a vida ou 0 vivido. Pois bem, 0 que mostramos 1) na primeira parte do presente traba- lho — estratégia essencialista — ¢ a aparicdo do “espirito geométrico” de que nos fala Pascal, com sua exigéncia de tudo definir e de tudo demons- trar, que dé nascimento a um discurso de cariz dogmiatico quando ele se funde com o “espirito de sistema” tao caro 4 metafisica. Uma metafisica dogmitica e racionalista, pois acreditava que a raz4o encontraria os fun- 9 damentos Giltimos do conhecimento dentro de si mesma, desde que exa- minasse seu proprio fundo e procedesse a uma espécie de ascese, a fim de fe livrar deste estorvo que € 0 corpo, depositério da alma, mas também 4 sede destes verdadeiros obstéculos epistemolégicos que sao os sentidos, 08 instintos e as paixdes. Eis em poucas palavras o estilo de filosofar desta “razio raciocinante” que nos vem de Platao e que vai marcar tao profun- damente o destino da modernidade: caracterizado pelo gosto da clareza, do universal, das definigdes essenciais e da deducdo sistemiatica, a sua expressdo mais perfeita no campo das ciéncias humanas é essa obra a um tempo tao artificial — com sua exposicao more geometrico — e tao desconcertante — como o é sua teoria das paixdes — que é a Etica de Espinosa. 2) Por sua vez, na segunda parte — estratégia fenomenis- ta —, estamos diante do nascimento do “espirito positivo”, deste enten- dimento medidor e calculador de que nos fala Voltaire, marcado pelo gosto do particular e do fatico, das descrigses empiricas e da inducdo amplificadora, cuja expressdo mais perfeita no campo das ciéncias huma- nas se encontra talvez em Smith — “que calculava, que pesava, que media, que observava” — oferecendo-nos esta obra-prima da “razdo calculado- ra” — 0 espirito positivo — que é a Riqueza das Nagées. 3) Enfim, na terceira parte — estratégia histérica —, esté em jogo o aparecimento do chamado “espirito histérico”, deste pensamento vegetativo de que nos fala Koyré, marcado pelo gosto das metaforas organicas (totalidade, orga- nismo) e por uma certa fixacdo nas origens (raizes, relagdes de filiagdo etc,). Assim estd ele em Bopp, adquirindo em seguida um ar romantico em Marx, com seu ideal estético (0 homem total), a paixao pelas rupturas (a revolugao) e a suspensao do devir (0 comunismo), e enfim enrolando- *se como um caracol em Dilthey, com seu circulo hermenéutico, cujo cen- tro se encontra em toda parte e em nenhum lugar, contorcendo-se para falar do inefavel ou do indizivel que é a vida ou o vivido. Eis-nos diante dos estilos de filosofar desta “razdo hist6rica” que, em seu esforgo ines- gotdvel de vencer o devir, acabou, como a serpente de Valéry, por engolir ua propria cauda, abandonando o principio da fundamentacao suficiente @ fechando assim o ciclo da teoria do conhecimento, na passagem da modernidade a nossos dias. Isto posto, chegamos ao fim de nossas investigacées, quando conclui- mos, d luz destes deslocamentos e inflexdes, que, se estas diferentes figu- do pensamento que conformaram as diferentes idades das ciéncias janas levam-nos a abandonar pura e simplesmente as idéias de fun- lento e de fundamentacao do conhecimento, este resultado nao signi- feafirmar o caminho da divida, do desespero, da negacao vazia do ento cético, de que nos fala Hegel, mas antes significa a necessi- por o problema do conhecimento no campo das bases absolutamente novas. Com efeito, onde o fundamento est4 ausente — diz Ladrigre —, 0 solo se retrai e se abre 4 Episteme o “abismo” no qual vai afundar-se este pensamento sempre demasiadamente seduzido pela metéfora do edificio, pelo conforto da substancia, pela seguranca do fundamento: a metafisica. E desde entao o caminho que se oferece ao espirito é simplesmente seguir ‘os vestigios do ser no calv4rio de sua obra — o devir — e procurar nestes pontos de fuga sempre cambiantes onde o ser — o homem — se entrecruza com o devir — a histéria — seu solo e fundamento tltimo, sem que nenhum “ponto de ancoragem e de acabamento de principio lhe seja assinal4vel” (Ladriére). Era o fim do saber absoluto: 0 homem e o de- vir — o ser-advento — sao a partir de agora a medida de todas as coisas’. tae 3. No presente trabalho, limitamos deliberadamente 0 campo de nossas investigagées as trés estratégias discursivas supracitadas: a essencialista, a fenomenista e a histérica Sabidamente, elas estdo longe de esgotar as estratégias que conformaram as ciéncias humanas na modernidade: hé ainda a via da hermenéutica da compreensio (Dilthey e Weber), que por vezes mencionamos; hé também a via da hermenéutica da interpretacéo (Freud); hd por fim a via do estruturalismo (Lévi-Strauss). Demais, 0 critério histérico a que parecemos obedecer (séculos XVII, XVIII e XIX) é meramente “diddtico”. Nao foram poucas as ocasiGes em que foros forcados a alargé-lo ou simplesmente a abandoné-lo, de forma a incorporarmos autores e disciplinas que se furtam a toda periodizacao, a exemplo de Arquimedes que, com seu matematismo experimental, sob este aspecto, é mais “moderno” do que Hegel e sua metafisica, apesar de historicamente ter aparecido antes. Wu Introducdo geral As clieNCcIAS HUMANAS E 0 principio da fundamentacao SUFICIENTE “Archiméde, pour tirer le globe terrestre de sa place et le transporter en un autre lieu, ne demandait rien qu'un point qui fit fixe et assuré. Ainsi j'aurai droit de concevoir des hautes espérances, si je suis assez heureux pour trouver seulement une chose qui soit certaine et indubitable” (Descartes, Méditation Seconde). 1. As Idades das Ciéncias Humanas Ao concluir sua arqueologia das ciéncias humanas, Foucault nos su- gere que o homem é um problema recente na trajetéria da cultura e como tal destinado a desaparecer do espaco de nossa Episteme, como um rosto na areia com o refluxo da maré. Mas,-se olharmos as coisas mais de perto, vamos ver que desde a noite dos tempos ‘os homens sempre estiveram engajados em tentativas de autocompreensao,/nao se limitando a interro- gar as coisas mesmas e os enigmas do universo, Um bom exemplo disso_ € 0 preceito délfico do “conhece-te a ti mesmo”, de que Platao nao hesitou “em fazer a divisa por exceléncia do pensamento socratico e que, segundo Cassirer, é a prova eloqiente da importancia que os gregos conferiam ao problema antropolégico, fazendo dele um dos eixos maiores de suas re- flexes |. —Para_tanto, em diferentes épocas, os homens trataram de desenvolver formagées discursivas as mais variadas, desde o mifo nas sociedades pri- mitivas, a filosofia na antiguidade classica, & teologia na idade média, até a ciéncia no pensamento ocidental, a partir da meecildads, De sorte que — se desenham quatro idades na arqueologia das ciéncias humanas —-se;) deixamos de lado 0 mito e-as-sociedades primitivas —, nas quais nem 0 homem nema Episteme sao os mesmos: 1) a idade cosmolégica, na-antigui- dade classica, época em que 0 problema-do homem é pensado a partir do cosmos (analogia micro/macrocosmos, pélis/cosmos-etc.), vale dizer, de .uma alma césmica universal na qual o espirito busca aquele principio de vida e de movimento que confere as coisas humanas a necessidade de uma physis, dando lugar & “antropologia do homem interior”, que remon- 1. A respeito da significacdo antropolégica desta maxima, ver CASSIRER, E. Essai sur Uhomme. Paris: Les Editions Minuit, 1975, p. 13-19, que seguimos de perto ao longo desta Introdugao; sobre as relagées deste imperativo com a ética ¢ seu papel na descoberta do “ho- mem interior”, ver LIMA VAZ, H.C. Escritos de filosofia II; Btica e cultura. Sao Paulo: Edigdes Loyola, 1988, p. 59-61. 15 ta a Séerates; 2) a idade teoldgica, na idade média, época em que 0 proble- ma do homem é pensado a partir dos designios da providéncia divina e no selo dos “mistérios” da doutrina da criacdo (queda/resgate), dando orlgem 4 chamada “antropologia do homem pecaminoso”, que nos vem de Santo Agostinho; 3) a idade mecénica, na modernidade, época em que © homem adquire autonomia e é interrogado a partir dele mesmo e das condigées da subjetividade, em busca dos “dispositivos mecdnicos” (me- canismos) postos no fundo do seu ser, os quais regulam suas relagdes de si consigo mesmo, com 0 outro e com o mundo (natureza humana), dando nascimento 4 “antropologia do homem-méquina”, origindria de Descar- tes; 4) enfim, a idade da histéria, na passagem da modernidade a nossos dias, época em que temos o descentramento do homem e a dissolugao da natureza humana nas positividades da histéria e da cultura (riqueza, lin- guagem, inconsciente), buscando as razGes de seus diferentes modos de ser na historia ela mesma (do individuo, em Freud; da sociedade, em Marx; da lingua, em Bopp etc.), e dando lugar a “antropologia do homem hist6rico”, que nos reenvia a Kant. Nas paginas que se seguem, procuraremos reconstruir essas diferen- tes configuragdes do homem e da reflexao antropolégica que despontam ao longo da trajetéria do pensamento-ocidental, nas quais nema forma nem 0 objeto de conhecimento so os mesmos, ainda que seja a mesma a questao a que se procura responder: que é o homem? Nos itens 2, 3 e 4 desta Introdugdo, 4 luz desta verdadeira obsesséo que é 0 imperativo do “conhece-te a ti mesmo”, 0 qual como uma sombra acompanhou os ho- mens desde a noite dos tempos, analisaremos 0 problema da formacao das ciéncias humanas, vale dizer, as diferentes configuragées do homem na histéria da civilizacgao e da cultura (antiguidade classica, idade média, modernidade), e, ainda, as diferentes formas de que se reveste a reflexdo antropolégica em suas diferentes idades (na antiguidade classica, propon- do-se como filosofia e buscando seu modelo na cosmologia; na idade média, recorrendo & religido e buscando seu modelo na teologia; na modernidade, aparecendo como ciéncia e buscando seu modelo nas ma- » temiticas primeiro, na fisica depois, na biologia e na histéria enfim). No item 5, analisaremos o problema da fundamentagao das ciéncias huma- para o que vamos limitar nossas investigag6es 4 modernidade, época que data o nascimento das ciéncias positivas, e as trés estratégias ivas por elas adotadas neste perfodo, com este intento: uma (séc. mais atenta ao modus essendi dos objetos (redugao as esséncias) e ao de ser das substancias, dos acidentes, dos atributos etc. (estratégia Alista); outra (séc. XVIII), ao modus operandi dos objetos (ordena- fendmenos) e ao modo de ser dos fenémenos — fato ou coisa fenomenista); outra (séc. XIX), por fim, ao modus faciendi dos objetos (reconstrugao histérica) e ao modo de ser do devir (fier?) — ser- -advento (estratégia histérica). tres partes em_que se subdivide o presente trabalho, com a ajuda das quais mostraremos, na conclusao, que o problema antropolégico, se j4 nao ra tao “moderno” quanto queria Foucault e como de resto a Introdugao se encarregara de demonstrar, tampouco esté fadado a desaparecer como ele suspeita: estando seu rosto profundamente esculpido na nossa meméria, sem que consigamos visualizé-lo, e néo sendo, qual uma figura na areia, uma imagem aderida a superficie, destinada a ser vista e a desaparecer, o homem 6, a exemplo da esfinge, um enigma a ser decifrado. Porém, a diferenga do enigma de Sisifo no qual quem interroga é 0 objeto (a esfin- ge), no enigma do homem quem interroga € 0 proprio sujeito (0 homem), o “si mesmo” que o preceito délfico ordenava conhecer. Parece-nos, por- tanto, que 4 pergunta “que é o homem?” nao é a nao-resposta que dé a sentenca de morte, a exemplo da esfinge, mas a resposta; ficar com a pergunta é dar-lhe vida — enigma e interrogagao. 2. A Antiguidade Classica Conta Hesjodo, em sua genealogia dos deuses e dos tits, que uma luta de vida e de morte se sucedeu entre estes entes poderosos, com 0 tita Cronos (tempo) a frente, destronando seus antecessores, castrando Urano (céu) e gerando.Zeus, que fica no lugar do pai e, numa luta sangrenta, instaura os deuses olimpicos no poder. Nestas pdginas imortais, ele nos fala também de Prometeu, filho de l4peto e Climene e pai dos homens, numa seqiiéncia que nos mostra no fim todo o peso do destino que lhes seria reservado e da dualidade de sua condigéo — mortais e miserdveis, mas também desejosos de serem deuses, buscando no conhecimento e no trabalho o meio de igualarem-se as poténcias divinas e de medirem forcas com elas. Mas como foi feito o homem? De que matéria? De barro, de Agua e deste sopro divino que é alma — diz. Hesfodo nao economizou detalhes ao descrever a empresa do tit. Prometeu arranca com as mdos 0 barro do chao, mistura-o com suas pr6- prias lagrimas e, com muito engenho e arte, trabalha aquela massa infor- me até dar-lhe a forma de uma estdtua e as feicdes de um deus. Em seguida, o tita, nao contente com uma s6 estdtua, decide fabricar outras tantas, e passa dias e noites a trabalhar a matéria informe, até dar-lhe feigGes divinas. Terminada a operacao, ele contempla, embevecido, a be- leza de sua obra. As estatuas sao perfeitas, em tudo semelhantes aos deuses, mas... falta-lhes vida. 17 Dai 6 segundo ato da criagdo: Prometeu, com a boca, insufla-lhes espi- Fito animais — a coragem do ledo, a fidelidade do cavalo, a forca do touro, # esperteza da raposa, a avidez do lobo. E as criaturas de barro, agora vivas, passam a se movimentar, lentas, porém decididamente. Mas ainda lhes fal- tava a fafsca do espirito divino, aquela que os tornard capazes de pensar, de deliberar e de agir, e, assim, de igualarem-se aos deuses... Na seqiiéncia chega-se ao terceiro e tltimo ato: Atena, a filha inteli- gente de Zeus (deusa da sabedoria), porta ajuda ao tita e da as criaturas uma taga cheia do precioso liquido. De repente, sobre a cabega de cada criatura, surge uma luz nova e bela. Sao homens. Quase deuses. Tém uma alma. Mas nao sabem o que fazer com ela... Prometeu devera ensinar- «lhes tudo. A comegar pelo fogo, cujo segredo ele rouba de Zeus — 0 que deveu custar-lhe caro”. Com 0 sacrificio do titi, abandonado a si mesmo, parece que neste es- tado 0 homem ficou: portador do espirito divino (a alma), é perfeito como 08 deuses; feito de barro, é imperfeito, mortal e miseravel, e ndo tem como se livrar dessa condicao. O trabalho, por exemplo, dé ao homem um meio de igualar-se aos deuses; porém, é também pena, fadiga, testemunho de sua condigao mortal, e, como a doenca, desse fardo ele s6 se livra com a morte. Essa narrativa, tao rica em ensinamentos, nos mostra que desde os tempos arcaicos os antigos estavam convencidos de que é na alma que reside a natureza propria do homem, e de que é seu espirito divino que faz dele a mais divina das criaturas. Esta convicgdo ganha densidade ao longo do tempo, e cedo a alma foi objeto de culto nas sociedades arcaicas espalhadas no Ocidente e no Oriente, como o atestam a doutrina da transmigragao e os deuses da familia, ambos a evocar sua capacidade de aperfeigoar-se e de sobreviver 4 prépria morte — a nossa e de nossos antepassados longinquos. Porém, se num primeiro momento os homens nao sabiam o que fazer com ela, limitando-se a lhe dedicar, temerosos, respeito e devogdo, com a descoberta do légos, que é também a redescoberta da alma (alma racional), © homem logo aprende o que fazer com ela: us4-la como instrumento de ~ onhecimento, primeiro das coisas, depois dos homens, quando finalmen- ela se dobra sobre si mesma (consciéncia de si). Ristes dois acontecimentos maiores do pensamento ocidental, a desco- do [égos e sua aplicagéo ao conhecimento da alma e por extensao do foram celebrizados por Plato, na pessoa de Sécrates, o qual diz que ela é o proprio homem (Alcebiades, 131¢/132e) e faz do “co- tor). Mitologia. So Paulo: Abril Cultural, 1973, v. 2, p. 305-306. nhece-te a ti mesmo” o exercicio divino por exceléncia. Exercicio superior ao da gindstica, pois por meio dele 0 homem, olhando a divindade, se serve do melhor espelho ao alcance dos mortais para 0 conhecimento da natureza de si mesmo, que é a alma (Alcebiades, 134a/135b), e, enfim, se descobre como ser livre e sujeito de liberdade — um deus, é certo, mas também um ser mortal e miserdvel, um ser que, humildemente, s6 sabe que nada sabe... Inicialmente voltada para as coisas mesmas (Escola de Mileto), é so- mente num segundo momento que a filosofia grega, na esteira deste fato maior da Episteme ocidental que é a descoberta do légos, estende-o aos homens e 4 sociedade (Sécrates, Platao, Arist6teles). E nesta viragem Sécrates € a grande marca. £ ele quem inaugura 0 periodo antropolégico, fazendo do homem e do mundo moral 0 eixo de suas reflexées. Segundo Cassirer, nao encontramos em Sécrates uma nova fisica ou uma nova légica, nem sequer uma ética coerente e sistematica; nele nao ha sendo uma sé e tinica questdo: que é 0 homem?? Para responder a ela, desconfiado do mito, ele procura satisfazer o ideal de uma verdade obje- tiva, absoluta, universal; entretanto, o tinico universo que conhece e ao qual todas suas investigagées se referem é o universo do homem. Esta é a razao pela qual sua filosofia é estritamente antropolégica. Com efeito, a prevaléncia do preceito délfico do “conhece-te a ti mesmo” € tal em Sécrates que ele chega a nao esconder um certo desprezo pela natureza e pelo conhecimento das coisas mesmas. Como no-lo lem- bra Cassirer, em um de seus didlogos (Fedro, III-V), Platio nos descreve Sécrates passeando nos arredores de Atenas com seu discipulo Fedro. Este admira a beleza do lugar. Num certo momento interrompe Sécrates, pois surpreende-se com o fato de que seu mestre se comporta como um estrangeiro. Ele lhe pergunta entio se ele, Sécrates, j4 ultrapassara uma vez na vida os muros de Atenas. E 0 filésofo Ihe responde: “Seja indul- gente para comigo, meu bom amigo: eu gosto de aprender, tu sabes. No entanto, 0 campo e as arvores ndo me ensinam nada, mas os homens da cidade”‘. Apesar de todo 0 peso do problema antropolégico estar posto neste didlogo, Sécrates nao nos oferece em nenhuma ocasido uma solucio direta do mesmo. Ao longo dos didlogos platénicos que tratam desta matéria e daquele autor, encontraremos uma anilise detalhada das diver- sas qualidades e virtudes humanas — beleza, justica, temperanga etc. —, jamais uma definicao do homem ou uma teoria da natureza hu- mana, qualquer que seja ela’ — salvo 0 célebre “o homem é um ser em busca constante de si mesmo”, 0 que é evidentemente muito pouco. 3. CASSIRER, E. op. cit. p. 17. 4, Ibidem. p. 18. 19 A razho desta aparente insuficiéncia reside no fato de que, segundo Sderates, ao contrario dos objetos fisicos, que podem explicar-se por suas propriedades objetivas, tidas como a esséncia acabada da coisa, e como tals abertas 4 observagdo empirica e a andlise l6gica, o homem s6 pode ser definido pela sua consciéncia (alma). Para seu conhecimento de nada servem um e outro procedimento: o homem nao é um ser pronto e aca- bado, mas um ser em busca constante de si mesmo, a todo momento examinando suas condigées de existéncia, sem jamais encontrar um ponto de repouso. Demais, sua esséncia — a alma — nao se oferece diretamente ao olhar, mas indiretamente no comércio dos homens, consistindo a via da verdade nao propriamente na contemplacéo exterior do sujeito cognoscente num monélogo consigo mesmo, porém na inspecdo interior € no didlogo com outros homens °. Assim, como diz Cassirer, em Sécrates a verdade é por sua propria natureza filha do pensamento dialético; ela nao é uma coisa, mas 0 pro- duto de um ato social, e nao pode ser obtida senao através de uma coo- peracdo constante dos homens, numa interrogacéo e resposta reciprocas (didlogo). Daf a idéia de maiéutica, celebrada por Platao no Teeteto. Dai também a importancia da pélis e da agora. Afinal de contas, as coisas nao falam e nada nos podem ensinar. S6 os homens... E por isso que a resposta que Sécrates nos dé a questao “que é 0 ho- mem?” é indireta, e ndo poderia ser diferente: o homem € um ser em busca constante de si mesmo, um ser inquieto que seu ddimon incansdvel fora a todo momento a examinar e a avaliar as condigdes de sua existéncia. E aqui que reside toda a importancia da consciéncia (psyché), a um tempo principio diretor da busca e elemento que introduz. a differentia specifica em relacéo aos animais e as bestas, sem o que ele se perderia na mesma indiferenca ontolégica da coisa — que nao 6, simplesmente existe (e uma vida nado examinada, nao merece ser vivida, diré Sécrates). E aqui que reside, por fim, 0 peso do imperativo do “conhece-te a ti mesmo”, no qual se encontra a esséncia do ensamento socrtico, centrado todo ele na consciéncia e seu contetido moral. sendo a consciéncia e seu contetido moral o que ha de mais digno no homem, a disciplina filos6fica que deles se ocupa — a Etica — é que nos vai dara chave da problematica do homem ’. De qual “homem" se fala, com efeito? Do homem natural e suas de- rminagdes empiricas? Do homem-medida de Protégoras e suas sensa- v8? Nem de um nem de outro, mas simplesmente do “homem interior” 0 individuo ético, cuja esséncia é alma. Tal foi a grande descoberta antropolégica de Sécrates. Segundo ele, a alma seria constituida de trés “faculdades”: razdo, desejo e sensibilidade. Mas, ao preconizar a supre- tmacia da razao, Sécrates afirma de um s6 golpe que é a ela que o homem deve o que é: um homem, e ndo um animal qualquer, sujeito livre e ser de liberdade. Tal é 0 sentido da moral socratica, uma moral “racionalista”: comandado pela razao, isto 6, pelos valores e qualidades que the sao imanentes, seu fim é 0 controle (senhorio) das paixées (apetites), através da deliberagdo firme da alma, cujas leis o obrigam in foro interno e cuja agio liberta-o da vis a tergo da natureza. E tal é a atitude que ela comporta, uma atitude “interiorista”: 1) tudo que vem de fora é nulo e vao: riqueza, posiciio, distingao social; 2) a tinica coisa que conta é a atitude interna da alma, que exige que o homem obedega a seu ddimon interior e se paute em sua acao por valores internos, tais como a justica, a bondade, a temperan- a etc; 3) e sua finalidade é adquirir o controle de si, um “célculo” dos prazeres pelo qual o homem se liberta do turbilhao das paixdes e da necessidade exterior da physis, e se descobre enfim como sujeito moral ou Individuo ético. Ei-lo, fechado, o circulo da filosofia grega que nos con- duz de Herdclito a Sécrates e que acaba por fazer convergir num sé e mesmo ponto (0 homem interior): 1) a interrogagao socratica “que € 0 homem?”, 2) o “si mesmo” que o preceito délfico ordenava conhecer e 3) 0 entds dnthropos a partir do qual Herdclito caracterizava toda sua filosofia (eu me procurei a mim mesmo, dizia) — isto 6, 0 homem-psiqué, portador da sabedoria, capaz de discernir o bem e o mal, e de escolher 0 justo e 0 melhor *. Platao estende a moral socratica 4 sociedade e subordina a politica 4 ética, em busca de um solo firme onde, fundar a acdo politica em bases heguras e racionais, para além do terreno movedico da déxa e da fluidez do devir. Este solo é a consciéncia — fonte comum da moral e da politica. Fi seu fim, o bem — na politica, a justica, definida como “justa medida”, © ponto de equilibrio no qual a bela alma reencontraria, no 4mbito da wil, a mesma harmonia experienciada no plano individual. Da mesma forma Aristételes que, a despeito de assimilar a politica a uma espécie de téchne, faz da arte de governar a extensdo da ética (qual @a melhor forma de governo?, pergunta), e da pélis o lugar por exceléncia de realizagio do “sujeito moral” (comunidade de obras para os homens viverem bem e felizes — dizia). A exceléncia do lugar é tanto mais nobre que é a nivel da esfera publica da pélis que o homem — a mais divina das ‘erlaturas — pode livrar-se do peso das necessidades da vida e enfim rnar-se “homem” (zéon politikén), adquirindo uma sorte de imortalidade a das atividades publicas e de praticas virtuosas baseadas em valo- H.C. op. cit. p. 60. ‘TeA eternos, como a justia, a temperanca, o bem comum etc. E tanto mais desejavel que confere a cada individuo aquela paz interior, a harmonia #ragas A qual ele se torna semelhante aos deuses e encontra em si o mesmo equilibrio 4 imagem das belas proporgdes do cosmos. Mais tarde, com os estéicos, o principio diretor que Sécrates descobre no mundo dos homens — a alma —, junto com o ideal de equilfbrio e de harmonia, ultrapassa a esfera da moral e da politica e se estende ao uni- verso inteiro. Agora, a alma nao é téo-s6é do homem, mas do mundo, uma alma césmica universal subjacente 4 ordem das coisas e ao mundo dos homens, com o que 0 “conhece-te a ti mesmo” ganha um alcance metafisico universal. “A necessidade de se interrogar aparece entao, no estoicismo assim como em Socrates, escreve Cassirer, como 0 privilégio do homem @ seu dever essencial. Mas este dever é agora tomado num sentido mais amplo; sua significagéo nao é mais somente moral, ela 6 também universal e metafisica. ‘P6r-se essa questéo em toda ocasiao; examinar o que eu tenho atualmente nesta parte da alma que se chama parte diretora (t6 hegemonikén)’. Quem vive em harmonia com seu eu préprio, com seu deménio (ddimon — ID), vive em harmonia com 0 universo, pois a ordem universal e a ordem individual sao somente expressdes e manifestagdes diferentes de um mesmo principio subjacente. O homem demonstra seu poder inerente de criticar, de julgar e de discernir, compreendendo que nesta correlagao é o Eu e nao o Universo que desempenha o papel pre- ponderante. Uma vez que o Eu encontrou sua natureza prépria, esta permanece inalterdvel e impassivel. ‘Tornado esférico, ele guarda sua forma circular’, Esta é por assim dizer — continua Cassirer —a diltima palavra da filosofia grega: uma palavra que, uma vez mais, contém e explica 0 espirito no qual ela foi originalmente concebida. Este espirito era o do julgamento, do discernimento critico entre o Ser e o Nao-ser, entre a ver- dade e a ilusao, entre o bem e o mal. A vida é em sua esséncia cambiante e flutuante, mas seu verdadeiro valor deve ser procurado numa ordem eterna que nado admite nenhuma mudanga. Nao é no mundo dos sentidos, mas somente por nosso préprio poder de julgar que podemos apreender @sta ordem. Julgar é o principal poder do homem, a fonte comum da p lade e da moralidade: somente ai o homem depende inteiramente de imo; (somente ai-ID), ele é livre, auténomo e se basta a si mesmo”’. 8 de qual “alma” se trata, com efeito? Da psiqué individual (eu fico) que nds, contemporaneos, vivendo neste século do ego nio é o individuo que habita sua psiqué, mas uma alma césmica transindividual que habita o individuo, Ou seja, nao é a alma do homem, mas a alma no homem, conforme observa-o Vernant. Para os gregos — escreve —, “a psyché é em cada um de nés uma entidade impessoal ou suprapessoal. E a alma em mim mais do que a minha alma. Em primeiro lugar, porque essa alma se define pela sua oposi¢ao radical ao corpo e a tudo quanto esta ligado a ele; porque ela exclui por conseqiiéncia o que em nés se deve as particularidades individuais, as limitagées préprias da existéncia fisica. Em seguida, porque esta psyché é em nés um déimon, um ser divino, um poder sobrenatural cujo lugar e fungao no universo ultra- passam a nossa pessoa singular. O nimero de almas no cosmos esta fixa- do de uma vez por todas; permanece eternamente o mesmo. Existem tantas almas quantos astros. Cada homem encontra, pois, 4 nascenga, uma alma que ja existia desde o principio do mundo, que nao é de modo algum exclusiva dele, e que, depois da morte, iré encarnar num outro homem ou num outro animal ou numa planta, se nao conseguiu, na sua tiltima vida, tornar-se suficientemente pura para ir juntar-se no céu ao astro a que esta ligada. A alma imortal nao traduz no homem a sua psicologia singular, mas antes a aspiragao do sujeito individual a fundir- -8e no todo, a reintegrar-se na ordem césmica geral”.'° O elo procurado entre o homem e o mundo tinha sido, portanto, encontrado: quem os liga é a alma, uma alma césmica universal que se exterioriza no mundo e se faz césmos e que se interioriza no homem e se faz légos. Alma do mundo e alma do homem, a alma césmica universal habita o individuo antes de ser habitada por ele, e a natureza do seu ser 6 0 antipoda da alma (pensamento) de Descartes e do espirito dos moder- nos: co-natural ao mundo e ao homem, a alma dos antigos nao é a psiqué individual dos modernos que se recolhe no individuo e vira as costas ao mundo, mas uma alma transindividual e suprapessoal que habita o indi- viduo e o reconcilia com o mundo. Por isso, a descoberta do homem interior e de sua esséncia — a alma — nao deu lugar a uma filosofia interiorista 4 maneira de Descartes, mas a uma filosofia objetivista: filoso- fia do sujeito ausente, nela o pensamento (Idgos) é apreendido como césmos, como uma totalidade racional, e 0 cdsmos é apreendido como Iégos, como totalidade de pensamento ou todo racional. E desde entdo, como o ho- mem e a natureza repousam sobre um principio de racionalidade ou ar- ché — a alma césmica universal — e habitam o mesmo mundo — 0 cés- mos —, € 0 césmos que sera o modelo de racionalidade das coisas mesmas e do mundo dos homens. Em primeiro lugar, do mundo das coisas, como no-lo mostra Cicero, que vé na raiz da imensa harmonia do universo a aco inteligente de uma 10. VERNANT, }-P. “O individuo na cidade”. In: VEYNE, P. et al. Individuo e poder. Lisboa: Edigdes 70, 1988, p. 40. 23 mundo, de uma alma césmica universal que ele assimila 4 pro- divindade (“sopro divino”): “Que dizer também deste acordo do [verso que comunica (...) uma mesma continuidade entre suas partes. (i) A terra poderia, passo a passo, cobrir-se de flores e depois se secar? Poder-se-ia, enquanto as coisas se transformam, reconhecer como 0 sol se faproxima, depois se afasta, nos solsticios de verdo e de inverno? Veriamos ita correspondéncia entre os movimentos das vagas do mar, assim como correntes, o nascer e 0 ocaso da lua? Quando o céu inteiro opera sua conversio em um movimento tinico, os astros conservam com a mesma regularidade seus movimentos tao diversos? Tudo isso nao poderia acon- tecer com uma tal concordancia em todas as partes do mundo, se um mesmo sopro divino nao as unisse todas e néo as mantivesse juntas”. Enfim, 0 césmos nos da o principio de inteligibilidade do mundo dos homens, a via que os eleva A divindade e também 0 modelo de suas préprias agées, conforme estabelece Ptolomeu: “Nada melhor que a As- tronomia poderia abrir a via ao conhecimento teolégico; com efeito, so- mente ela tem o poder de atingir com seguranga a Energia imével e a abstrata, tomando como ponto de partida o estudo aproximativo das energias que estao submetidas aos sentidos e que sao a um tempo moventes e movidas; de atingir as esséncias eternas e impassiveis que residem sob 08 acidentes (...). Melhor que toda outra ocupagao, ela prepara os homens que sabem na pratica e nos costumes discernir 0 que € 0 belo e o que € o bem, pela contemplacao da constante similitude que apresentam as coisas celestes, da perfeita simetria, da simplicidade que ai reinam; (...) ela habi- tua a alma a adquirir uma constituicéo que se Ihe assemelha e por assim dizer ela lhe torna natural esta constituicao”". Eis o quadro a partir do qual a antiguidade classica pensa o problema do homem e procura compreender seu destino no universo. A um tempo mergulhado na physis e fora dela, mas com ela integrando 0 mesmo todo (césmos), o homem, dotado de consciéncia, pode nao somente compreendé- -la, mas também se compreender a si mesmo como consciéncia moral e vontade politica. O lugar da reflexdo era a filosofia — uma filosofia “objetivista” tematizada como cosmologia; uma filosofia “interiorista” ngada como metafisica: a antropologia do homem interior, matriz da Tea e da politica. A verdade é que a antiguidade classica tinha todas as condig6es para fundar as ciéncias humanas a maneira de uma fisica, por exemplo (fisica das qualidades): tinham isolado o objeto — o homem interior — e sua esséncia — a alma. Mas nao o fez: no seu lugar ficou uma economia 11, Apud GUSDORRF, G. Fondements du savoir romantique. Paris: Payot, 1982, p. 329. 12, Apud GURSDORF, G. op. cit. p. 327. pensada como arte (administragéo doméstica), uma “lingiifstica” diluida na légica e pensada como arte do discurso (retérica), uma histéria cons- tituida como crénica e arte da meméria. No homem, o dnico dominio estavel é a consciéncia, a Gnica que chega a escapar da fluidez do devir, e, com ela, apenas as esferas do pensamento, da moral e da politica, na falta de um eu substancial, encerram uma certa espessura ontolégica (ne- cessidade e universalidade). Cabia 4 filosofia tematiz4-las e nos oferecer na légica, na ética e na politica a imagem daquilo que ha de mais digno no homem e faz dele a mais divina das criaturas: a alma e suas diferentes “figuras” (a verdade, a virtude e o bem). Muitas paginas j4 foram dedicadas a nova racionalidade que a desco- berta do légos permitiu instalar (cf. Vernant, Cornford etc.). Com certeza nao é e ndo pode ser a mesma do mito. Hesfodo nos fornece uma genealogia por demais obscura e por vezes incoerente (em algumas vers6es do mito de Prometeu, 0 tita sofre seu tormento por ter tentado criar a raca dos humanos e, assim, impor-se aos deuses, durante 30 anos; outras dizem que sao 30 séculos). Plato, ao que parece, nao leva tao a sério assim 0 mito, e propée algo diferente, uma racionalidade instalada, nao ex-abrupto, a exemplo do mito, sem uma justificativa prévia numa ordem de razdes fundadora, como que por meio de uma inspiracao divina aberta a poucos iniciados, mas com a ajuda de um raciocinio cujas regras sao franqueadas a todos, apoiando-se em argumentos capazes de se justificarem (“dar raz4o”) e de resistirem 4s provas e contraprovas, e, sobretudo, cuidando de dar as ilages do pensamento a necessidade das conexées da coisa. Por isso, 0 conhecimento da atma é do homem em Platao tem a natureza de uma ciéncia discursiva: para-tal,-vate-o-afgumento e sua capacidade de~ instalar a verdade e a prova.ATal nao é, ao que parece, 0 caso de Arist6- teles. Antiplaténico, o Estagirita, a despeito de ter encerrado a alma na physis e lhe ter reservado uma ciéncia demonstrativa — a fisica —, ao ter ante si o mundo dos homens, governados pela alma intelectiva, mas tam- bém pelos espiritos animais, nao hesitou em ver em sua verdade uma verdade pratica, em sua certeza uma certeza por aproximacio, em seu conhecimento uma ciéncia pratica (praktiké episthéme)'*. Tanto na via aristotélica (ciéncia pratica) como na platénica (ciéncia discursiva), o conhecimento da alma e do homem se dé, portanto, fora dos quadros de uma ciéncia empirica (positiva) tal como a conhecemos e a praticamos hoje. Sem a matéria com que operar — o fenédmeno, esvazia- do de toda espessura ontolégica propria —, nao havia como pensar uma ciéncia empirica do homem. Mas, dispondo do objeto (a alma) e do meio 13. A este respeito, ver ARISTOTELES. Etica a Nioimaco. 1094b-1095a, onde o Estagirita esclarece a natureza da verdade na ética e na politica. 25 de conhecimento (0 /6gos), havia como pensar uma ciéncia do homem, antropologia do homem interior, tao cara a antiguidade classica. Antropo- ainda que de uma outra maneira, O lugar desse conhecimento era a filo- logia que, ao invés de des-velar o enigma do homem, trazendo-o a luz da sofia, a ciéncia por exceléncia segundo eles, ficando reservada & ética e a razao e estendendo-lhe as categorias légicas do pensamento, antes de politica esta tarefa maior do pensamento, em resposta ao preceito délfico mais nada 0 confirma, tomando como chave de leitura os artigos de fé @ A questio socratica “que é 0 homem?” (“mistérios”) das sagradas escrituras (criagéo, queda, resgate). Neste itiner4rio notavel que nos leva da afirmagao da alma em Hesiodo, A exemplo da antiguidade classica, o principio do “conhece-te a ti passando pela descoberta do /égos pelos milesianos e sua aplicagao a cons- mesmo” aparece na idade média, mas de uma outra maneira. Enquadrado cléncia por Sécrates, até a celebragao da virtude e do bem em Aristételes na doutrina da criagao, a partir de entao este principio nao é mais conside- e Platéo e a elevagdo da alma a um principio césmico universal pelos rado como algo de valor puramente tedrico ou especulativo, porém como estéicos — emerge 0 homem da antiguidade classica, o homem interior, um preceito religioso que exige de quem o pratica uma outra atitude: sim, reconciliado com o mundo e com o ddimon que € todo seu: a alma. No © homem deve conhecer-se a si mesmo; todavia, ao fim e ao cabo, ele se inicio deste percurso — vimo-lo — o homem tinha a alma, mas nao sabia descobre, ndo como um ser que em sua autonomia se basta a si mesmo, mas © que fazer com ela, e Prometeu vem em sua ajuda. Depois, com a des- estando @ mercé do bom Deus e a depender da sua graca. Pensado como coberta do [égos, sem qualquer ajuda, ele sabe o que fazer com ela: usd- imperativo de salvagao e nao como imperativo de conhecimento, é um novo -la como instrumento de conhecimento, das coisas e de si mesmo. Por fim, olhar que se Janga sobre ele: as idéias de autonomia e de independéncia do © homem, agora conhecendo-se a si mesmo, sabe-se aut6nomo e se deter- homem, que na civilizagéo classica eram consideradas como o valor fun- mina como sujeito moral e vontade politica, vendo na alma o principio damental a ser cultivado por ele, sio olhadas agora com suspeita — escreve interior de afirmagéo do seu ser. E desde entéo, como diz Chatelet, a Cassirer — e tidas como 0 seu vicio ou erro mais grave"’. filosofia “ver tomar o lugar dos deuses ausentes. Substitui a inspiragéo . . que estes, ao tempo em que aqui estavam, insuflavam nos homens, pelo Esta problematica aparece em primeiro lugar na obra de Santo Agos- ensinamento; ela substitui a conivéncia com a realidade pelo conhecimen- tinho, considerado 0 fundador da filosofia medieval e da dogmatica cris- to dessa realidade (...). O filésofo, que esté no lugar dos deuses, poe o ta. Nas Confissdes — continua —, ele afirma que “toda filosofia anterior ao homem em seu lugar (...)”". advento de Cristo estava sujeita a um erro fundamental e marcada por uma mesma heresia. O poder da razao era celebrado como o maior poder do homem. Mas, que a raz4o em si mesma é uma das coisas mais contes- taveis e mais incertas do mundo, isto o homem nao podia sabé-lo, antes que uma revelacao divina particular viesse ilumind-lo. A raz4o nado nos pode mostrar o caminho da claridade, da verdade e da sabedoria, pois sua significado prépria é obscura, e sua origem estd envolvida de mistério — de um mistério que s6 a revelacdo crista pode esclarecer. Para Santo 3. A Idade Média Agostinho, a natureza da razio n4o é simples nem tnica, mas dual e dividida. O homem foi criado 4 imagem de Deus, e no estado original, A diferenca da antiguidade clissica, a reflexao sobre o problema do quando saiu das mdos de Deus, era a réplica de seu modelo. Mas desde jem na idade média nao se dé nos quadros de uma filosofia de tipo » a queda de Ado tudo ruiu. Desde entao o poder original da razdo se ', mas de tipo religioso, nos quais as fronteiras com a teologia sao encontra completamente obscurecido. E, abandonada a si mesma e As into incertas. De um lado, 0 objeto nao é mais 0 mesmo: uma cria- suas proprias faculdades, nao pode percorrer o caminho de volta. Ela nao i@ pertence a Deus e nao a si mesma. De outro, nado é a mesma a pode retornar a si mesma e por seus prdéprios esforgos reencontrar sua reflexdo: uma antropologia do homem pecaminoso e néo a pura esséncia primeira. Se uma tal reforma é possivel, ela nao 0 é sendo por intermédio de uma ajuda sobrenatural, o poder da graca divina’”. Aqui reside, segundo Cassirer, 0 grande legado da civilizagao cldssica onde vamos encontrar uma das matrizes da concep¢géo moderna do ho- mem — a outra matriz é a visao cristaé. O conflito das duas visdes vai sacudir 0 comeco dos tempos modernos e marcar profundamente o de- senvolvimento ulterior do pensamento ocidental’*. ILET, F, “Platéo”. In: CHATELET, F. (diretor). Hist6ria da filosofia. Idéias, dow- a iro: Zahar Editores, 1973, v. 1, p. 119. 16. CASSIRER, E,, op. cit. p. 23. B, op. cit. p. 22-23. 17. Ibidem. p. 24. Por seu turno, Santo Tomas — prossegue Cassirer —, considerado 0 maior representante do pensamento medieval, faz parte da mesma linha- gem, Também ele tenta pensar a problematica do homem no contexto da doutrina da criagio. E, ainda que confira um maior poder 4 razao em comparagio a Santo Agostinho, esté igualmente convencido de que esta faculdade, inscrita no registro da queda ou do pecado, somente podera servir-se adequadamente de seus poderes se é guiada e iluminada pela graga divina. Santo Agostinho é tido como platénico, enquanto Santo Tomas é considerado aristotélico. Porém, a exemplo de Santo Agostinho, 0 que temos em Santo Tomas é, em realidade, uma subverséo profunda dos valores mais caros & antiguidade classica". A idéia de uma razéo sobera- na, por exemplo, nao tem sentido e, longe de qualificar o homem, torna- -se uma heresia que devemos combater. E verdade que o homem é a mais divina das criaturas, nado por causa da razo, mas pela vontade de Deus que, em sua onipoténcia absoluta e infinita bondade, assim o quis e assim 0 fez. Pensada como um cogito cum Deo, e nado como Iégos, a verdade nao 6 alétheia, mas revelatio, e sua certeza, antes de ser a adaequatio intellectus et rei, 6 luz divina e intuigao intelectual de Deus. Assim, tanto no bispo de Hipona como no Doutor Angélico, tomado como imperativo religioso, e nao simplesmente como principio ético ou especulativo, o preceito do “conhece-te a ti mesmo” nao é e nao pode ser mais o mesmo, e 6 uma mesma suspeigao que recai sobre ele: “ Aquilo que aparecera como 0 maior privilégio do homem se revela como seu maior perigo e maior tentagao; © que era seu orgulho torna-se sua mais profunda humilhacdo. O preceito estdico que quer que o homem obedeca a seu principio interior, ao ‘daimon’ que esté investido nele, e 0 venere, é tido agora como uma perigosa ido- latria” — conclui Cassirer ¥. Estas mesmas idéias reaparecem nos demais padres e doutores da Igreja que, apoiando-se nas sagradas escrituras, nos mostram que o ho- mem nao esta integrado no cosmos e tampouco é portador de uma alma do mundo, mas um elo da imensa cadeia que nos leva do cosmos a Deus, ea alma pertence a ele. E a mais divina das criaturas, criada 4 imagem e A semelhanca de Deus, mas depois da queda ele nao pode descobrir 0 caminho de retorno sendo com a ajuda de sua graca. E este o sentido dos mistérios da Encarnacao e da Redengao. E é este por fim o sentido de sua verdade: artigo de fé e nao da razao discursiva, pertence a religido antes de pertencer a ciéncia, e a religiéo, longe de des-velar os mistérios do homem, confirma-os, reenviando-nos ao mistério supremo da onipoténcia absoluta ¢ da infinita bondade de Deus. ——————— ‘1B, CASSIRER, B, op. cit. p. 25. 19, Ibidem, p, 25. Com efeito, como o observou muito bem Dilthey, se a metafisica cria- da pela antiguidade classica devia subsistir neste novo sistema de pensa- mento, ela deveria sofrer mudangas profundas para se adaptar de alguma maneira a este mundo novo e a este novo homem. Antes de mais nada, as trés questées postas pela antiga légica, pela antiga fisica, pela antiga 6tica: em que se funda a certeza do pensamento?, qual é a causa do mundo?, em que consiste 0 supremo bem?, devem entrar em acordo com as trés questdes fundamentais da dogmitica crista: cur Deus?, cur homo?, cur homo Deus?, e nos levar a uma condicéo comum 8 qual estao submetidos o saber, a natureza e a vida pratica dos homens, qual seja, a idéia de Deus”. Para tanto, devemo-nos afastar da idéia, cara 4 antiguidade classica, segundo a qual o cosmos é um todo racional, o lugar da justa medida e das belas proporgées, e toma-lo, como diz Lima Vaz, como uma imensa alegoria, um grande livro aberto cuja “leitura” era feita gracas a superposicao de um outro livro, a Escritura. Esta, por sua vez era a ale- goria das verdades divinas que se revelavam através de sua “letra” —o corpus das verdades reveladas. E, de um s6 golpe, ofereciam a um mesmo olhar o livro da natureza, o livro da escritura e o fundamento absoluto de todas as coisas: Deus”. No quadro destas sumas que, segundo Lima Vaz, criaram uma ver- dadeira civilizagdo teolégica no curso da idade média, vemos despontar um novo padrao de racionalidade. Este acolhe num mesmo plano as exi- géncias do pensamento racional, que querem que a razao interrogue a partir dos princfpios que ela encontra no interior de si mesma os enigmas do universo, e as exigéncias do pensamento teolégico, que querem que a razdo estenda a esfera da fé 0 instrumento do Iégos demonstrativo e en- contre na fé os principios permanentes da interrogagao (Lima Vaz). Esten- dido ao mundo das coisas e dos homens, o conhecimento vé-se, assim, infletido numa direcao estranha a antiguidade classica: nao é mais a ati- vidade puramente racional de uma filosofia de tipo secular a servico do homem e pensada como metafisica, mas uma filosofia de tipo religioso que faz do conhecimento um obsequium rationabile a Deus, e da metafisica uma ancilla theologiae *. Demais, propondo-se como teologia e néo como metafisica, ha um desequilfbrio da segunda exigéncia em face da primei- ra: enquanto os principios do pensamento racional sao verdades da razao, os do pensamento teolégico sao artigos de fé, e o problema é que nem sempre se pode concilidé-los. Dai esta dificuldade téo marcante do pensa- 20. DILTHEY, W. Introduction a l'étude des sciences humaines. Paris: PUF, 1942, p. 326. 21. LIMA VAZ, H. C. Escritos de filosofia I; problemas de fron io Paulo: Edigées Loyola, 1986, p. 80. 22. Ibidem. p. 82. 29 ‘Mento medieval: incapaz de decidir entre a transparéncia de um mundo vernado pelos designios da providéncia divina e sua absoluta opacida- pelo fato de que esses designios sao eles préprios insondaveis, a Hpisteme medieval vai estar atravessada pela antinomia de que nos fala Santo Agostinho, referindo-se 4 empresa contraditéria de se representar Deus e de fazer dele a arché a um tempo da ordem do conhecimento e da ordem do ser: “Ele é grande, sem que possamos determinar esta grande- 24; é onipresente, sem ocupar um lugar ao invés de outro; é a causa das mudangas, sem se modificar”*. Dai também a impressao de Dilthey, se- gundo o qual conceitos como formas substanciais e outros, vindos da metaffsica antiga, sao aplicados a uma matéria estranha pelos escolasticos, assemelhando-se seu uso a “plantas de herbdrio arrancadas de seu solo e de que se ignora o sitio habitual e as condigées de vida”™* — sitio que é precisamente o légos demonstrativo; seu meio de existéncia, as exigéncias do conhecimento racional que queria explicar 0 cosmos a partir de prin- cipios que lhe sao imanentes — a exemplo dos conceitos de 4tomo ou de vazio dos atomistas. Eis os quadros do pensamento medieval a partir dos quais o proble- ma do homem é pensado. Inscrito no registro da queda e da falta, o homem carece de toda autonomia e vé-se 4 mercé do bom Deus e a de- pender da sua graca; pensada como uma antropologia do homem peca- minoso, nela o homem néo é um enigma a ser decifrado, mas um mistério a ser confirmado. Sua esséncia segue sendo a alma; porém, esvaziada dos espiritos animais e vegetativos que a animavam, ela torna-se simplesmen- te espirito, nao integrado no mundo mas, desde a queda, estranho a ele (vale de lagrimas). Separado do mundo, recolhido em si mesmo, mancha- do pelo pecado e dependendo seu resgate nao dele, mas de Deus, 0 ho- mem nao tem como cultivar o Si mesmo que o preceito délfico e o proprio Sécrates ordenavam conhecer. Mais do que uma alma do homem ou uma alma no homem, é a alma de Deus; mais do que um mal no mundo e um recolhimento da alma em busca de sua salvacdo contra os males deste mundo (a ética nos antigos, sabemo-lo, é uma espécie de medicina do espirito, uma cura de seus excessos), 0 mal do mundo est4 em mime é da Feconciliagao da alma com Deus que depende minha salvagao contra mim imo, Operando com artigos de fé e nao da razao discursiva, o discurso © homem é crenga e teologia racional, e nao ciéncia — empirica, ou discursiva. im isso, ndo queremos sugerir que os medievais passaram 0 tempo ao invés de refletir e conhecer. Pois, de fato, fizeram-no e muito. DILTHEY, W. op. cit. p. 359. A nivel da reflexao teolégica, temos importantes contribuigdes sobre a eondicio humana no mundo: a idéia de alma em Santo Agostinho termina por dota-la de uma intimidade e de uma espontaneidade, desconhecidas dos gregos, e vai reaparecer mais tarde em Descartes, que soube como ninguém tirar partido desses atributos em sua metafisica da subjetivida- «de; a nogdo de pecado leva a uma reflexdo profunda sobre a condicéo do Niomem como ser limitado, e 0 otimismo grego da lugar a uma atitude algo pessimista ao se defrontar com o problema do mal. Configura-se também com clareza a questéo da liberdade do ho- mem — agora, s6, diante de Deus, como um outro de si mesmo infinita- mente distante. A idéia de alma leva-o a buscar o principio de sua deter- fMinacao no interior de si mesmo — a liberdade da vontade e a livre- -escolha. O proprio pecado — a transgressao da lei — leva-o a abandonar © mundo e a refugiar-se em si mesmo, na solidao da alma e diante apenas de sua consciéncia, ante a escolha entre o bem e o mal. Dai uma proble- matica absolutamente nova configurar-se 14 onde o homem grego via a aglio do destino: como pode o homem sair da ordem, transgredir a lei e insurgir-se contra 0 cédigo da finalidade? Porque ele é livre... Também o homem grego 0 6, mas a diferenga do homem helénico, que buscava sua autodeterminacdo diante da acdo constritiva do destino, através da ascese e da reintegracdo na ordem césmica universal, o homem cristao sé é livre porque encontra o principio de sua autodeterminacio no interior de si mesmo — a alma —, e procura o caminho de sua salvacao, depois da queda, na sua reintegracao em Deus, e nao simplesmente no mundo. Descentrado do cosmos, arrancado do circulo de ferro da physis, 0 homem cristdo se vé agora s6, diante de Deus, e a liberdade se definira — escreve Lima Vaz — como “situagao do homem pecador nas peripécias de uma histéria ou de um drama em que sua livre decisao se abre ou deve abrir-se ao acolhimento do dom divino”*. O resultado desta perda do mundo, depois da queda, é 0 aprofundamento da nogao de subjetividade, com a qual a busca de Deus se revela em seu avesso como a busca do eu e do proprio homem — escreve Vernant: “Busca de Deus é busca do eu sao as duas dimensées de uma mesma experiéncia solitéria”. Instalando sua morada no interior de si mesmo (a alma), 0 homem passa a ser definido por sua interioridade (Santo Agostinho): a esfera dos desejos e das intencdes, numa hist6ria que Ihe é interior — meméria, drama, esquecimento, vigiada de perto pelo Outro que o vé e o chama a si: Deus. O discurso sobre 0 eu, porém, nunca pode eliminar 0 mistério; ao contrério, 0 confirma. E a verdade, que ja 25, LIMA VAZ, H. C. op. cit. p. 39. 31 ’ tograma, e seu sentido enigma, alétheia, e seu sentido desvelamento, , @ #eU sentido prova, passa a ser agora revelatio, e seu sentido mis- 19 —= © mistério do homem, de Deus e do mundo, e como tal capaz de 108 elevar a uma ordem superior de reflexdo: a ordem da carne, a ordem do espfrito, a ordem da caridade, encerrando cada uma delas um valor intrinseco, sem a camisa-de-forca das definigées légicas do método do ; Idgos, e mesmo do método geométrico, dird mais tarde Pascal, espelhando fielmente a problemitica crista*. 4. A Modernidade A modernidade é a época em que a alma se retira do mundo das coisas e recolhe-se no mundo dos homens, bem como a época em que 0s homens se acreditam suficientemente fortes e poderosos, qual um novo Prometeu, se nao para elevarem-se contra a divindade e se imporem aos deuses, ao menos para prescindirem de sua protegdo e dispensarem seus servicos. Teatro de uma revolucao cientifica sem par na hist6ria da huma- nidade, os tempos modernos sao também a época em que se instala uma nova forma de conhecimento do homem, agora em torno da ciéncia e néo mais da filosofia ou da teologia racional. Mundo novo, homem novo, ciéncia nova, os tempos modernos sao o ponto de ndo-retorno do proble- ma do homem e da reflexao antropolégica. O objeto nao é mais o mesmo: fala-se da alma, mas esta como que se dilata, ap6s a cisdo cartesiana, para abarcar o corpo e as pulses da carne (as paixdes, os instintos, os apetites etc.), que passam a prevalecer sobre sua parte puramente racional, até entao tida como diretora (sem a roda das paixdes, ndo haveria progresso, sequer refinamento do gosto, dizia Voltaire). E também nao é a mesma a forma de reflexdo: no lugar das antropologias do homem interior e do homem pecaminoso, as antropologias do homem-mdquina e do homem histérico — e para sua constituicao bastam a observagdo empirica e a andlise légica, a diferenca dos antigos e dos medievais. & nesta época, por volta do século XVII, que se consolida a astronomia Copérnico e a fisica de Galileu, e, em sua esteira, assiste-se a constitui- de um novo padréo de racionalidade centrado nas matemiticas, ido pela reducdo da natureza a seus elementos mensurdveis e pela das leis que a governam segundo a linguagem do ntimero e da Este novo espirito cientifico tem ainda uma outra caracterfstica: ono das causas finais na explicacéo dos fendmenos da natureza. ulre autonomia e se apresenta como um imenso mecanismo sem acerca da problemitica existencial do homem cristéo (os temas do da transgressio da lei, etc), devemo-las a Telma de Souza Birchal. filma, desprovida de toda finalidade, qualquer que seja ela. E mais: a intervengao de uma providéncia divina para garantir os mecanismos de seu funcionamento torna-se va ou inttil. Pode-se até mesmo admitir, como © faz Descartes, que Deus criou a natureza e suas leis, mas agora seus designios néo nos dizem respeito e nos escapam absolutamente. Esta nova Episteme tem como nervo o projeto de uma mathesis universalis, uma ciéncia universal da ordem e da medida, cujo modelo sao as matemé- ticas — projeto ambicioso que procurava estender este novo padrao de racionalidade a todos os dominios: do universo fisico ao mundo moral, social € politico. Primeiro, ao mundo das coisas, por volta dos séculos XVI e XVII, quando se procura fundar uma nova astronomia e uma nova fisica —.que na realidade sdo uma s6, visto que se procede a fusao da fisica celeste e da fisica terrestre (Newton se encarregar4, depois, de fazer a grande sintese). Enfim, ao mundo dos homens, dando nascimento as ciéncias humanas um pouco mais tarde, em torno dos séculos XVII e XVIII. Esta revolucio é soliddria de outras mudangas de fundo que ocorrem nos planos econémico, cultural e politico, pois, como se sabe, trata-se de uma época das mais conturbadas da histéria da humanidade, testemunhando grandes transformacées: em primeiro lugar, a reforma protestante, que eclode no século XVI e cinde a unidade da fé crista; em seguida, a expansdo do capital comercial, com a descoberta das Américas, quando o mundo deixa de ser mediterréneo e se abre aos quatro cantos do planeta; enfim, a revolucéo industrial na Inglaterra, cuja consolidagio data do século XVIII, que vai desencadear um poderoso desenvolvimento das forgas produtivas e impli- car profundas mudangas nos planos econémico, social e politico, este tiltimo tendo sua expressdo maxima na revolugio francesa, na curva do século, com grandes repercussdes na trajetoria da ciéncia moderna. A um tempo efeito e causa deste processo, uma scientia nova vé-se assim nascer, profundamente associada com a técnica, por um lado, e algo estra- nha ao ideal contemplativo da antiguidade classica, por outro. Segundo Descartes e Bacon, o objetivo das ciéncias torna-se a partir de agora oferecer os meios tedricos para que o homem se converta finalmente em senhor e possuidor da natureza. Mais além da natureza, o homem e a sociedade vao integrar-se nesse projeto, e cedo o que era dominagao da natureza se conver- te em dominacao do homem sobre o homem, o que com certeza ndo era bem © que Bacon e Descartes pretendiam com seu prometeismo. Mais afetas a sociologia e a histéria da ciéncia, nossas investigagdes passarao um tanto ao largo dessa problematica para reter seus aspectos propriamente epistemolégicos: uma chave de leitura de nossa hermenéutica (pois é bem uma hermenéutica que fazemos) sao as repercussdes, no plano da disposicao mesma da Episteme, da revolucdo cientifica do século XVII; a compreenséo 33

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