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UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA INSTITUTO DE CIENCIAS HUMANAS PROGRAMA DE POS GRADUACAO EM CIENCIA DA RELIGIAO 0 ATO DE COMPREENDER: ‘Uma ontologia do diilogo na hermenéutica filoséfica de Hans-Georg Gadamer ese apresentada ao Programa de Pés- Graduagio em Ciéncia da Religiao como requisito parcial A obtengio titulo de Doutor em Ciéneia da Religiio por ANA MARIA ZINSLY CALMON Orientador: Prof. Dr. Faustino Teixeira Juiz. de Fora 2008 Tese defendida ¢ aprovada, em 11 de agosto de 2008, pela banca constituida por: AGRADECIMENTOS Ao meu orientador, Prof. Dr. Faustino Teixeira, por seu acolhedor acompanhamento ao longo deste percurso, A filésofa Donatella Di Cesare, por sua disponibilidade interesse; ¢ de especial modo por me ter enviado, tao gentilmente, a sua monografia sobre Gadamer, de fundamental importancia no desenvolvimento deste estudo. Ao Prof. Dr. Volney Berkenbrock que me presenteou com 05 livros de Gadamer publicados pela Editora Vozes. A minha amiga Clara Ventura, que me regalou com toda a ibliografia em italiano e pelo apoio incondicional de sua amizade. Ao Prof. Dr. Terence Walsh, em cujo belissimos seminérios romanos sobre Kant, Hegel e Heidegger conquistei condigdes para me arriscar a este percurso académico. E, sobretudo, a Erika Louise, minha filha, exercicio didrio de didlogo e compreensio, por seu apoio afetivo sem 0 qual este trabalho nao teria sido possivel. AGRADECIMENTOS A Coordenagao de Aperfeigoamento de Pessoal de Nivel Superior (Capes) pelo fomento financeiro dos estudos que culminaram neste trabalho Para meu pai, Ricardo Calmon, com amor e admiragao RESUMO © presente trabalho apresenta uma reconstrugio da hermenéutica dentro de um paradigma historiografico com 0 objetivo de destacar a especificidade da hermenéutica filos6fica. Contempla o acontecer da verdade na arte ¢ na existéncia a partir da concepgao que Gadamer elabora em Verdade e Método; e analisa, através do fio condutor da linguagem, 0 compreender na relagdo dialégica. Como iiltimo, defende em modo assertivo, a possibilidade da hermenéutica gadameriana fornecer bases filos6ficas para um didlogo inter-religioso. Palavras-chave: hermenéutica filos6fica, didlogo, dialética, linguagem, comprensdo e diilogo inter-religioso. ZUSAMMENFASSUNG Die vorliegende Arbeit stellt eine Rekonstruktion der Hermeneutik innerhalb eines historischen Paradigmas dar, mit der Zielsetzung, die Besonderheit der philoso- phischen Hermeneutik hervorzuheben. Sie diskutiert das Vorkommen der Wahrheit in der Kunst und in der Existenz, basierend auf dem Konzept, das Gadamer in Wahrheit und Methode ausgearbeitet hat. Dariiber hinaus analysiert sie mithilfe der Sprache das Verstehen im dialogischen Verhiltnis. Schlussendlich hebt sie die Fahigkeit Gadamers Hermeneutik hervor, philosophische Grundlagen fiir einen inter-religidsen Dialog bereitzustellen. Schliisselworter: philosophische Hermeneutik, Dialog, Dialektik, Sprache, Verstindnis und inter-religidser Dialog SUMARIO Introducdo Capitulo 1: Os pressupostos 1. 1. Um aceno biogrétfico. 1. 2. Preliminares seménticos e hist6ricos da hermenéutica. 1. 3. A hermenéutica clissica: Schleiermacher e Dilthey. 1. 4. O aporte fenomenolégico e 0 conceito da vida 1, 5. A hermenéutica da facticidade de Heidegger Capitulo 2: O acontecer da verdade na arte e na existéncia 2. 1. A questo do método no indagar pela verdade: 2.2. A discussio com a estética kantiana.. 2. 3. O jogo do reciproco revelar-se .. 2. 4, A transcendéncia da arte: éxtase e transmutagao. 2. 5. A influéncia da origem e notas criticas.. Capitulo 3: O ato de compreender 3. 1. O cfrculo hermenéutico e a estrutura prévia da compreensio 3. 2. O valor positivo dos preconceitos na pré-compreensio 3.3. O conceito de experiéncia e a andlise da experiéncia hermenéutica . 3.4. O efeito do “trabalho da Histéria” no ato do compreender .. 3. 5. A relac&o entre compreender e aplicar .. 3. 6. Um horizonte histérico circunscrito a finitude Capitulo 4: O didlogo na hermenéutica gadameriana 4. 1. A ‘virada lingiiistica’ da hermenéuti 4.2. A intima relagio entre falar e pensar 4, 3. Uma ontologia do didlogo ... 4, 4. Os limites da linguagem e do didlogo. 4, 5. Bases filos6ficas para um didlogo inter-religioso. Conclusio ... Lista de abreviaturas Bibliografia.. INTRODUGAO vrever uma tese um exerci jo académico. Mas a execugo desse exercicio revela aspectos que ultrapassam em muito este Ambito. O tema escolhido, ainda que pos- samos apresentar outras motivagdes, &, mormente, uma espécie de “acerto” com a propria historia, Na minha histori . 0 didlogo, 0 outro e 0 ato do compreender sempre tiveram um lugar central Quando li a entrevista que Gadamer concedeu a Riccardo Dottori, em 2000, inti- tulada L’ultimo Dio, La lezione filosofica del XX secolo — na qual o filésofo enfatiza a necessidade urgente de um didlogo entre as grandes religiGes mundiais — eu morava em Roma ¢ estava terminando um mestrado sobre A critica da razio pura, de Kant, na Ponti- ficia Universidade Gregoriana. Como meu mestrado anterior tinha sido sobre As condi- ¢0es de possibilidade de um conceito de Diélogo Inter-religioso, surgiu 0 desejo de apro- fundar o estudo em uma tese que trabalhasse a hipétese de uma fundamentagto filos6fica desta forma de didlogo através da hermenéutica gadameriana. Voltando ao Brasil, aceitei o convite do amigo e professor Faustino Teixeira, da Universidade Federal de Juiz de Fora, que jé havia sido meu orientador e gentilmente continuou me apoiando neste estudo. Pude, entdo, empreender esse empenhativo percur- so. projeto inicial estava circunscrito a esta forma especifica de Didlogo, o inter- religioso. Porém, apés um ano de leituras, tendo jé escrito 0 esbogo do primeiro capitulo ¢, principalmente, depois de concluido o seminério sobre Gadamer com 0 professor Faus- tino, a proposta da tese transformou-se. Ao longo do seminério constatamos que a con- cepso de didlogo que o fildsofo elaborara de modo acurado no iltimo periodo de sua ‘obra — mais exatamente nos quarenta anos que sucederam publicagao de Verdade ¢ Método — fonecia, sim, as bases filos6ficas para um didlogo inter-religioso segura- mente fomentava a sua promogGo — mas fazia-o tanto quanto para qualquer outro autén- tico didlogo, independente da especificidade de seu acontecer, Destarte, durante o exame de qualificago, concordamos que seria mais interes- sante enfocar a estrutura do compreender na relagdo dialégica e a tematica da tese defi- niu-se como 0 ato do compreender. Uma ontologia do didlogo na hermenéutica filosofi- ca de Hans-Georg Gadamer. Quanto & bibliografia utilizada, gostaria de justificar 0 porqué da escolha de de- terminadas obras ¢ por que outras foram descartadas. Reconhego que, em se tratando de uma tese de doutorado, a obra de Gadamer deveria, naturalmente, ter sido lida e referen- dada pelas edigdes originais em alemao. Porém, meu conhecimento da lingua alema, ad- quirido em alguns anos de estudo, embora seja suficiente para reconhecer conceitos conferir no texto original (com a ajuda de diciondrios) a traducdo de trechos é-me insufi- ciente para ler o autor no original. Escolhi, entiio, com a anuéneia do meu orientador, trabalhar diretamente com as tradugdes de Gadamer em lingua italiana. Nao apenas por ser 0 idioma estrangeiro que melhor compreendo, mas, principalmente, porque essas tradugdes para o italiano superam em quantidade ¢ importancia todas as tradugéies em outras linguas, até mesmo na tZo fundida lingua inglesa. Assim sendo, utilizei a edigdo bilingite de Verdade e Método da Bompiani, na tradugio de Gianni Vattimo, tantas vezes elogiada pelo proprio Gadamer, ¢ que se tomou um clissico. Todas as citagées em italiano traduzidas para 0 portugués sto de minha autoria. De fundamental importancia para a realizagio deste trabalho, foi conhecer a filé- sofa Donatella Di Cesare e sua obra. Di Cesare foi assistente de Gadamer durante seis anos em Heidelberg ¢, atualmente, professora de Filosofia da Linguagem na Universi- dade “La Sapienza” de Roma. E a autora de numerosos livros e artigos sobre Filosofia da linguagem, hermen@utica filoséfica, filosofia contemporanea, filosofia hebraica, entre ou- tros, Di Cesare tem um s6lido conhecimento sobre a vida ¢ a obra de Gadamer. Escreveu importantes livros sobre o tema, tais como: Utopia do compreender, em 2003; Herme- néutica da Finitude, em 2004 e, principalmente, a excelente monografia Gadamer,, publi- cada em 2007 e traduzida para 0 alemo pela Mohr Siebeck. Excetuando os escritos do proprio autor, esta monografia é a principal obra de referéncia sobre a hermenéutica filo- séfica. Em iniimeros artigos, Di Cesare retrata, com poética sensibilidade, os momentos vividos na companhia do filésofo. Gragas a sua cordial amizade ¢ a0 apoio de seus textos, muitas dificuldades foram superadas e pude prosseguir no estudo mesmo quando me parecia impossivel continuar, Utilizei como método de pesquisa um enfoque diacrénico, através do qual bus- quei compreender o fato em sua evolugdo no tempo. trabalho divide-se em quatro capitulos. Comecei com um resumo da biografia de Gadamer, lembrando a famosa passagem de Heidegger, que iniciou um curso sobre Aristoteles com as palavras: “Nasceu, viveu e morreu”, para sublinhar que o importante & © pensamento ¢ a obra, e nio a vida do filésofo. Porque, certamente, ¢ disso que se trata. Mas, no caso de Gadamer, 0 aceno biogrifico justifica-se por dois motivos. Primeiro, porque € possivel esbogar a génese da hermenéutica filoséfica a partir da andlise dos momentos vividos pelo filésofo — que, durante sua longa ¢ bela vida de 102 anos, pode testemunhar 0 inteiro século XX como interlocutor dos enderegos filos6ficos mais impor- tantes, na Europa como também nos Estados Unidos onde, a partir dos anos setenta, le- cionou em diversas universidades; e especialmente porque alguns desses episédios permi- tem avaliar, ainda que somente em linhas gerais, tanto a influéncia de Heidegger no pen- samento de Gadamer quanto as significativas diferengas entre os dois fildsofos — 0 que nao deve ser subestimado, pois conhecer o ponto de insergo do pensamento de Gadamer no projeto heideggeriano de uma ontologia fundamental é um pressuposto indispensével para realmente compreender-se aquilo que ele intenciona em Verdade e Método. Como a hermenéutica se tornara uma palavra de moda, nomeando qualquer tipo de interpretaco, considerei oportuno evidenciar a especificidade da hermenéutica gada- meriana, distinguindo-a de uma hermenéutica técnica, entendida como arte de interpreta- Go. Comecei com uma breve andlise da semantica e do desenvolvimento histérico do termo “hermenéutica” — bem como, da aplicabilidade desta “arte” aos mais diversos dominios do saber, Busquei responder questdes basicas de modo a circunscrever o émbito do estudo, 0 objetivo do primeiro capitulo foi esbogar uma reconstrugdo da hermenéutica dentro de um paradigma historiografico. Este é 0 paradigma que Gadamer emprega em suas obras ¢ que Ihe rendeu varias criticas. A esséncia dessas criticas refere-se a contradi- 40 expressa em, de um lado, mostrar que a Historia da hermenéutica encontra o préprio telos na hermenéutica filosofica e, de outro, que esta adquire um perfil definido justamen- te ao acentuar a ruptura em relagdo & hermenéutica classi Ainda assim, escolhi trilhar 0 mesmo itinerério historiografico gadameriano, tan- to pelo inegavel carater elucidativo de sua taxonomia, — que sistematiza as diversas “hermenéuticas” indicando suas diferengas — como para contemplar, além das criticas a ele enderegadas, também os seus inquestionaveis méritos, isto é: de ter dialogado com as tradiges das eiéncias do espirito ¢ de ter mostrado como Schleiermacher unificou a her- menéutica na arte universal do compreender; de ter explicitado como Dilthey ampliou-a em uma metodologia das ciéncias do espirito; ter demonstrado como o Conde Yorck tor- nou-se uma figura chave na superagdo do paradigma epistemol6gico representado por Dilthey; e, finalmente, de evidenciar como Heidegger emancipou a hermenéutica do mé- todo transferindo-a para o Ambito da facticidade humana. Mas, em especial, por ter expli- citado a complexidade desta hermenéutica da facticidade — a famigerada “urbanizagao da provincia heideggeriana”, nas palavras de Habermas. No segundo capitulo enfoquei a perspectiva tragada por Gadamer na primeira parte de Verdade e Método, na qual o filésofo elabora a sua ontologia da obra de arte. A- través de uma referéneia a Critica da Razdo Pura, de Kant, tratei primeiro como Gada- ‘mer apresenta a questo do método no indagar pela verdade — o qual invalida a verdade que nao se submete a métodos; depois, em discuss40 com a estética kantiana, tentei a- companhar a complexa anilise que Gadamer faz da terceira critica, ada Faculdade do Juizo. A abrangéncia da ligago ontolégica arte-verdade obrigou-me a reconhecer a insu- ficiéncia com que tratei o tema. No entanto, procurei ao menos contemplar os elementos mais importantes dessa ontologia fazendo referéncia ao conceito de “jogo”, a transcen- déncia da arte, a0 conceito de mimese como plenitude senséria e ao conceito de contem- poraneidade da arte. Por tiltimo, fiz alusio & influéncia que as trés conferéncias de Hei- degger sobre “A origem da obra de arte” tiveram na ligagdo ontolégica arte-verdade que Gadamer resgata em Verdade e Método; e mencionei algumas das criticas que esta ques- to estética recebeu; tanto aquelas da Estética da Recepedo (de Jauss) ¢ do Desconstruti- vismo (de Derrida) como também aquelas sobre a estética kantiana (de Pietro Montani) a dos processos formativos na obra de arte (de Giovanni Matteu: No terceiro capitulo trato o que me parece ser 0 Leitmotiv de Verdade e Método: a andlise do ato do compreender. Gadamer divide a segunda parte de sua obra entre duas grandes questdes: a da polémica com o historicismo, de modo especial com Dilthey, ¢ a da historicidade da compreensio. E no tratamento desta segunda questéio que se encontra a parte sistematica, Nela, Gadamer evidencia que Heidegger interessa-se pela probleméti- ca da hermenéutica historica e da eritica histérica com a finalidade ontolégica de desen- volver, a partir delas, a estrutura prévia da compreensdo, enquanto ele, ao contrario, bus- ca compreender como a hermenéutica péde fazer jus 8 historicidade da compreensdo. Ga- damer eleva a historicidade da compreensdo a um principio hermenéutico, e pergunta por suas condigdes de possibilidade. Pergunta, outrossim, quais so as consequéncias para a hermenéutica provocadas pelo fato de Heidegger derivar fundamentalmente a estrutura circular da compreensio a partir da temporalidade da existéncia humana. Esta andlise da historicidade do compreender est relacionada com os momentos estruturais da herme- néutica filos6fica, Busquei abordar, ent&o, os pontos essenciais destes momentos estrutu- rais, a saber: 0 circulo hermenéutico, os juizos prévios ¢ as antecipagdes de sentido e 0 “pressuposto da perfeigao”, 0 vinculo com a tradigao, 0 “trabalho da historia”, bem como, também, o principio da “aplicagao”. Todos esses momentos emergem da fundamental historicidade da experiéncia historica ¢ afirmam a impossibilidade radical de ultrapass4- la: a historicidade é a experiéncia da finitude. No quarto capitulo apresento o didlogo na hermenéutica gadameriana. Comego tratando a virada gistica que Gadamer empreende no fio condutor da linguagem, na qual ele busca evidenciar a linguagem como medium da experiéncia hermenéutica, € menciono a sua discuss&o com a obra de Humboldt, que permite articular a relagdo entre linguagem e mundo. Em seguida, busco analisar a intima relagdo entre falar e pensar, a- companhando 0 “diélogo” que Gadamer mantém com a tradigao grega ¢ a teologia medi- eval. Enfoquei a temética do didlogo perguntando como acontece a compreensdo na rela- $0 dialogica, Tratei de responder o que entende Gadamer por didlogo ¢ qual o lugar que esse ocupa em sua filosofia, evidenciando a determinante influéncia de Plato no seu pensamento. Na terceira parte de Verdade e Método, bem como em varias outras obras escritas depois, o fildsofo apresenta uma andlise fenomenolégica, etimoldgica, histérica ¢ taxondmica do didlogo. Contemplando esses momentos, ousei oferecer os contornos de uma possivel ontologia do diélogo em Gadamer. Abordo, em seguida, os limites da lin- guagem e do didlogo, dentre aqueles que podem ser experienciaveis fenomenolégicamen- te, e que 0 fildsofo chamou de pré-lingufstico (das Vorsprachliche), para-linguistico (das Nebensprachliche) ¢ ultra-linguistico (das Ubersprachliche). No tiltimo ponto, para cum- prir a exigéncia de contribuir de modo original (mesmo que modestamente) para a ampli- ago do conhecimento dentro do dominio da competéncia, retomei a perspectiva desen- volvida na dissertago sobre um conceito possivel de dilogo inter-religioso. Defendi de modo assertivo a hipétese de que as andlises sobre a estrutura da compreensio na relagio dialégica — desenvolvidas por Gadamer em sua hermenéutica — podem fornecer bases filoséficas para esse tipo de didlogo. Também indiquei, en passant, as dificuldades ¢ cri- ticas enfrentadas, tais como: a utopia ingénua de semelhante irenismo; a incapacidade pa- ra 0 didlogo; a intolerdncia de quem acredita ter a verdade; e, também as “fraturas” que ferem os vinculos da compreensio, na apreensio do todo do discurso. A importancia teé- rica deste tema é de amplo alcance, pois busca, nas palavras de Gadamer atingir o signifi- cado politico mundial do compreender, 0 qual consiste em reconhecermos que sem nos compreendermos nao sera possivel uma solidariedade que possibilite um viver junto e um sobreviver com o outro, sem 0 que ndo poderemos realizar as tarefas essenciais da huma- nidade. Para que isso seja possivel, de fato € imprescindivel a contribuigao de um didlogo entre as grandes religides mundiais, fruto de uma busca compartilhada pela Transcendén- cia, Confio inteiramente na possibilidade de realizagiio desse didlogo. Se trato com exagerada “timidez” esta complexa questo, isso deve-se ao reconhecimento, de um lado, da grandiosidade dela, e de outro, da exigiidade de meus proprios conhecimentos no campo da ética ¢ da teologia. Caminhei apenas até onde a terra parecia ser bem firme sob meus pés. Assim, conclui com notas sobre a controversa questo da universalidade da hermenéutica filosofica e a fundamental compreensdo do papel da phronesis aristotélica nesta, a qual reconhece na filosofia — como ciéneia do bem no ambito da vida humana — uma pratica que, além de buscar saber, pretende também promover esse mesmo bem. A hipétese defendida nesta tese & que a hermenéutica gadameriana pode oferecer bases filos6ficas para um didlogo inter-religioso. ‘Ao longo do processo de escrita tive, por vezes a duras penas, de conhecer ¢ a- ceitar os meus proprios limites mas, também, de experimentar importantes superagdes. Os limites se evidenciam no texto e falam por si; jé as superagdes deixaram marcas inde- léveis. Mais que tudo, conta o valor do aprendizado pessoal de ter dedicado alguns anos a0 estudo do pensamento de Gadamer. ‘A hermenéutica filoséfica me ensinou a elaborar melhor as perguntas. Mais va- liosas do que qualquer resposta possivel, sfio elas que abrem e mantém abertas as novas possibilidades; que suspendem juizos prévios limitantes; que permitem a transcendéncia da propria finitude em dirego ao outro, no didlogo. Ao final deste trabalho ecoa o sentimento de incompletude de uma eserita que se reconhece permanentemente in fieri. Que sabe, para dizer com Gadamer, o limite herme- ne ico do quanto de n&io-dito permaneceu ainda por dizer. No entanto, a incompletude faz parte da nossa humana esséncia: somos “espe- Ihos fragmentados” Mas aprendi também, com Gadamer, que é exatamente neste cami- rho, que passa pela nossa finitude, pela particularidade de nosso ser, que se abre 0 dilo- g0 infinito em diregao a verdade que somos todos nés. Para finalizar, gostaria ainda de sublinhar esta minha certeza de que este trabalho no esgota o tema tratado, o qual permanece ainda aberto para novas pesquisas e investi- gages; de modo especial para a problemitica do compreender, no ambito da psicandlise. Mas, também na relagdo da hermenéutica ¢ da ética dialégica com a filosofia grega, no Ambito da politica, além da inesgotivel e sempre rica reflexdo sobre a linguagem CAPITULO 1: OS PRESSUPOSTOS 1. 1. Um aceno biogrifico A hermenéutica filosofica esté associada ao nome de Hans-Georg Gadamer (1900- 2002) assim como sua mais famosa obra, Verdade e Método, escrita na maturidade de seus 60 anos.! Para indicar os pressupostos de sua filosofia, é imprescindivel mencionar Platio, mas é também preciso falar de Aristételes, necessariamente de Hegel, bem como de Husserl, Dilthey, Conde Yorek e ainda de Bultmann, Natorp e Hartmann, entre tantos outros; e, de modo especial, deve-se considerar a influéncia de seu encontro com Heidegger. Gadamer nasce na aurora do século XX, em Marburg, que naquela época, era 0 lu- gar de uma filosofia respeitada mundialmente, um centro vivo das ciéncias do espirito e da teologia. Seu pai, um respeitavel professor de quimica, chegou a ser reitor da Universidade e desejava que o filho seguisse uma carreira cientifica.? 1 Além das indicagdes autobiogréticas em Philasophische Lehyjahre~ Eine Riickschau, dentre as bio- suafias de Gadamer é importante mencionar, especialmente a essencial monografia de Donatella Di Cesare, Ga- lamer, bem como seu poético artigo Alle origin! dellermeneutica. La formazione flosifica di Hans-Georg Ga- damer: D1 CESARE. Gadamer. Bologna: il Mulino, 2007; DI CESARE. Alle origini dell’rmeneutica. La formacio- ne floséfica di Hans-Georg Gadamer. In: GADAMER, "Caro professor Heidegger" Lettere da Marburgo 1922- 1929. Genova: il metangoto, 2000, pp. 9-44. Ver também: Franco BIANCO, Iniraducione a Gadamer. Roma: La- terza, 2004; BIANCO. Gadamer e Hantico, in: M. GARDINI, M., G. MATTEUCCI. Gadamer: bilanci e prospettive, Macerata: Quodliebt, 2004, pp. 75-96, Graziano RIPANTL. Gadamer. Assisi: Cittadella, 1978. G. SANSONETTL. I ‘pensiero di Hans-Georg Gadamer. Brescia: Morcelliana, 1988. E, também, aquela publicada por Jean GRON- DIN: Gadamer, Una biografia. Roma: Bompiani, 2004 2 Em entrevista com Di Cesare, Gadamer conta esse episédio para ilustrar a insatsfagdo de seu pai a0 vé-lo tomar-se um filbsofo: “No janeiro de 1927, jd gravemente doente e intemnedo no hospital de Marburg, a incerteza quanto a0 meu futuro nto o abandonava nem por um instante. Mandou,ento, chamar Heidegger & sua cabeceira, e disse: Sou tio preocupado por meu flho! — Mas, por qué? — replicou Heidegger, consolando-o — Ele € muito bom, Mais um ano ¢ obteré a docéncia, Conseguird. Tenho certeza! Mas, meu pai nko se deu por ‘convencido e suspirou: Sera, certamente! Mas, 0 senhor acredita de verdade que a filosofia possa ser uma tarefa Entretanto, desde cedo, ele demonstrou grande interesse pelo teatro e pela literatura, especialmente pela lirica — Iendo os classicos gregos, os alemaes, Shakespeare ¢ Dostoievs- ki, Sua primeira introdugdo na arte de pensar foram textos de Richard Hénigswald, cuja dialé- tica defendia a posigao idealista transcendental do neokantismo contra todo psicologismo.3 Em sua graduago, Gadamer estudou romanistica com Emst Robert Curtius (1886- 1950) e teologia com Rudolf Bultmann (1884-1976). Com Richard Hamann (1879-1961) estudou Histéria da arte, e com Paul Natorp (1854-1924) e Nicolai Hartmann (1882-1950), iniciou sua formagao em filosofiaS Cada professor formava um “circulo” de estudos que atraia para interesses variados: com Hartmann, ¢ sua paixio especial por astronomia, Gadamer observava as estrelas; com Natorp, aos domingos, lia as poesias de Rabindranath Tagore.6 Com Bultmann, Gadamer par- ticipou, durante quinze anos (de 1924 a 1939) da famosa Graeca, que tinha lugar, uma vez por semana, na casa do famoso tedlogo. A Graeca indicava, na terminologia académica ale- ma, um circulo de docentes e alunos que juntos interpretavam os textos da literatura classica. Com Bultmann, lia-se Homero ¢ os clissicos da literatura grega no original, além de vivenciar a efervescéncia da critica a teologia histérica, empreendida pela chamada teologia dialética, seguindo o exemplo de Karl Barth em seu comentario a Carta aos Romanos. Em sua autobio- grafia, Gadamer lembra, saudoso, que “ao deixar Marburg, nada Ihe fez mais falta do que essa roda de amigos e sua forma de vida”.7 ‘Também 0 convivio com o circulo formado em tomo do poeta Stefan George (1868- 1933) — “com a magica ressondncia de seus versos e a energia de sua pessoa, que exercia forte influéncia formativa” — teve significativa importancia.§ Nagquela época, os jovens da faculdade de filosofia criticavam 0 metodologismo das escolas neokantianas e elogiavam a descrigao fenomenolégica de Edmund Husserl (1859- de vida? E foi dizer iso a Heidegger, justamente Heidegger!” Cf. Donatella D1 CESARE. Le domande di un So- crate del nostro tempo. In: Rassegna Stampa 1S marzo 2002. 3 Cf. Hans-Georg GADAMER. VM II [480] 4 Cf. Hans-Georg GADAMER. MCCP, p. 32 5 Cf Hans-Georg GADAMER. MCP, pp. 15-27 6 Cf. Hans-Georg GaDaMeR, MCP, pp. 19-21 7 Sobre Bultmann, ver especialmente: Hans-Georg GADAMER. MCCP, pp. 196-201, 8 CI. Hans-Georg GADAMER. MCP, pp. 12, 17, 23, 68, 76,94, 172. Ver, também: VM I [481] 10 1938). As duas forgas que exerciam a critica contra a consciéneia metédica do neokantismo dominante eram: de um lado, 0 vigoroso pensamento de Friedrich Nietzsche (1844-1900) contra 0 platonismo, o cristianismo € todas as ilusGes da autoconsciéncia; e, de outro, o bri- Ihante ataque de Soren Kierkegaard (1813-1855) & filosofia da reflexo elaborada pelo idea- lismo especulativo — as “migalhas” contra o “sistema”.9 A irracionalidade da vida e a exis 1éncia eram, entio, os temas centrais. O que interessava era uma verdade que fosse “devida & imediatez. das préprias vivéncias e a intransferibilidade da propria existéncia”.'0 Com apenas vinte e dois anos, sob a orientag#io de Natorp, Gadamer conclui seu dou- torado sobre a esséncia do prazer nos didlogos platénicos “Das Wesen der Lust nach den pla- tonischen Dialogen”.!! Mas, ja no caminho de retorno & casa — apés ter consignado as exigi- das e6pias da tese — Gadamer nfo consegue mais manter-se em pé, pois havia contraido um, grave tipo de poliomielite que o obrigou a uma rigorosa quarentena em meses de isolamento ¢ dor.!2 Foi durante este periodo que ele leu as Investigagaes Légicas (Logische Untersu- chungen) de Husserl, as obras de Jean Paul e, 0 mais importante, recebeu de Natorp ~ prova- vyelmente na tentativa de tomar mais suportvel aquele momento dificil — um “presente” que transformaria a sua vida: o texto inédito de Heidegger sobre Aristételes, intitulado “Indica- goes da situagao hermenéutica”.'3 9 Cf. Hans-Georg GADAMER. J senieri di Heidegger, p. 83. A partir dagui citado como SH. 10 Cf, Hans-Georg GaDaMeR. VM I! [482] 11 Cf, Hans-Georg GADAMER. MCP, pp. 18-19, Também em: Donatella Di Cesare. Gadamer, p16 12.Cf, Hans-Georg GADAMER. MCP, p. 22, 13 Heidegger tinha enviado o manuscrto a Natorp, aravés de Husserl, para candidatarse a uma vaga na cétedra de filosofia na Universidade de Marburg. Esse texto ficou conhecido como “relatrio-Natorp” (Na- torp-Bericht)e foi redeseaberto somente em 1989, entre as cartas de Josef Konig, aluno de Georg Misch: Cr. Martin HEIDEGGER. Phanomenologische Interpretationen zu Aristoteles. Ausarbeitung fr die Marburger und die Gentinger Fakultat (1922). Stuttgart: Gunther Neumann (Hrsg), 2003. Tamém referendado em: Hans- Georg GADAMER. La riscoperiadell"iniroducione" del 1922 di Heidegger ad Avistotele. Prima pubblicazione in accasione del suo 100° compleanno. Lo scrtto “teologico” giovanile. In: Martin HEIDEGGER, Interpretazioni fonomenologiche di Aristoele. p. 124, Hans-Georg GADAMER. MCP, p. 172, Donatella DI CESARE. Gadamer, Pp. 16, Franco BIANCO. Gadamer e Vantico, pp. 79-80. O episédio é narrado assim: ‘No ambiente estudantil, j4 a partir de 1920, ouvia-se falar muito de Heidegger. Os marburgueses, que haviam estado em Freiburg, referiam-se ao modo insélito de cexprimir-se e a forga sugestiva do jovem assistente de Husser!. Quando Heidegger enviou a Natorp um manuscrito [...] ¢ eu o li, fiquei imediatamente como que en- cantado, [..] Aquela leitura me atingiu como uma descarga elétrica [...] Nao se tra- tava de um simples empreendimento erudito ou da tranqiiila exposi¢do histérica de tum problema. Ao contrario, sucedia que o inteiro Aristételes se corporificava [...] meus olhos se abriram!!4 Ele decide, entao, estudar com Heidegger e comunica-Ihe imediatamente sua decisao na carta de 27 de setembro de 1922.!5 Todavia, sua ma satide somente lhe permite viajar no ano seguinte. Assim, em abril de 1923, nda convalescente e recém-casado, Gadamer chega a Freiburg. Lé, as iste aos seminarios sobre as Investigagdes Logicas, de Husserl e passa a fre- giientar com assiduidade todas as aulas e os quatros semindrios semanais de Heidegger sobre 0 VI livro da Etica Nicomaquéia. E aqui que o tema da phrénesis enraiza-se em seu coragao € ‘© acompanha por sua inteira vida.6 Ele participa, ainda, de semindrios que, aos sibados, Heidegger organizara, junto com Julius Ebbinghaus, sobre a religido em Kant; e do célebre curso de vero intitulado Onto- logia: Hermenéutica da facticidade.!7 Gadamer ja tinha ouvido falar de ontologia nas aulas com Hartmann — em Metaphysik der Erkenntnis de 1921, onde a teoria do conhecimento é apresentada como questo metafisica. Mas, com Heidegger, esse conceito adquiria um sentido inteiramente novo. Um sentido que investia, em primeiro lugar, nao nas coisas, ¢ sim no ente humano, na sua capacidade de compreender o ser.18 14 Cf Hans-Georg GADAMER, MCCP, pp. 2; 172, Tambsm, no primeir capitulo do volume 10 de suas Obras Reunidas, Gadamer descreve estes acontecimentos com riqueza de detalhes. Cf Hans Georg GADs. MER. HR, v.10 15 Cf. Hans-Georg GADAMER. “Caro professor Heidegger”. Lettre da Marburgo 1922-1928, p. 47 16 Come atesta abel edgao do VI vr da Erica Nicomagudia com traduglo, ntoduso e coment rio de Gadame, publicada por le as 98 anos! Cf. ARISTOTELES. Nikomachische Ethik VI, hrsg, Und abersett von Hans-Georg Gadamer, Frankfurt a M.: Klosermann, 1998. Ver também: Hans-Georg GADAMER. MCCP, pp.28. 17 CE Hans-Georg GADAMER. HR, v. I, pp. 15 15-16. 18 Cf Franco BIANCO. Gadamer e antic, p. 81 12 Em pouco tempo a relagao com Heidegger tomou-se muito proxima, tanto que 0 ‘mestre propée-Ihe, primeiro, uma leitura privada dos assim chamados livros da substincia da Metafisica aristotélica e, em seguida, convida-o a passar “as tempestuosas semanas de infla- 80 do outono de 1923” na cabana que acabara de construir em Todtnauberg, na Floresta Ne~ gra.!9 Com sua linguagem incomum, enérgica e impetuosa, Heidegger evidencia a ambi glidade indissolivel que constitui a esséncia do movimento da vida como tal; e destaca a si- tuagao na qual o ente humano, entre o nascimento e a morte, encontra-se chamado a decidir 0 que fazer da propria existéncia.20 Na cabana da floresta, eles Iéem a “Correspondéncia entre Dilthey e 0 Conde Yorck” tratam questées da historicidade do Dasein, sobre 0 problema do relativismo histérico e sobre 0 conceito da vida?! Com Heidegger surge uma filosofia que reassume elementos de proveniéncia diver- sa, com motivos de carater religioso, filosdfico e ideolégico; onde, como expressa Gadamer, no apenas “o inteiro Aristételes”, mas “também as obras de Dilthey, Max Weber ¢ Emnst ‘Troeltsch, corporificam-se”.22 Gadamer comega, com o mestre, a ler “fenomenologicamente” Aristételes ¢ aprende, de Aristoteles, a enderecar perguntas filoséficas ao proprio tempo.23 Heidegger Ihe faz “ver no texto de Aristételes a insustentabilidade de seu suposto “realismo” e sua permanéncia no terreno do Jogos, preparado por Plato no seu seguimento a Sécrates”.24 19 Devido a enorme inflagao, mesmo recebendo remessas de dinheiro de seu pai, quando estas chego- vam ao correio de Freiburg jé cram papel sem valor. Gadamer, recém casado, via-se impossibiltado de viajar € até mesino com dificuldades para conseguir algum alimento, Di Cesare registra que, naquele outono em Todt- nauberg, a esposa de Heidegger, Eliride,saia todos os dias bem cedo para pedir lete aos camponeses da regio. “Por um més inteito, 0 nico alimento— além da filosofia — era 0 leite, de manha e de noite."Cf. Donatella Di CESARE. In: Hans-Georg GADAMER. “Caro professor Heidegger" Lettere da Marburgo 1922-1929, p. 28 20 Ja na prelegto de 1921-22, esse ¢ o tema do pensamento heideggeriano, Cr, Hans Georg GADA- MER. HR, v. 1, pp. 20-21 21 Cf, Hans-Georg GADAMER, HR, v. I, pp. 16-18. 22 CF. Hans Georg GADAMER, MCCP, p. 22; HR, v. Ip. 17. 23 Cf. Hans Georg GADAMER. HR, v. 1, pp. 14-15. 24 Cf. Hans Georg GADAMER. VM Il [485-486] Essas leituras e os semindrios com Heidegger formam, em Gadamer, a sua primeira introdugao pritica a universalidade da hermenéutica.25 Alguns aprenderam dele o que foi Marx, outros o que foi Freud, todos nés, de! nitivamente, o que foi Nietzsche. O que me interessou em Heidegger foi que podi- amos “repetir” a filosofia dos gregos, uma vez que a Hist6ria da Pilosofia eserita por Hegel e reescrita pela “hist6ria dos problemas” do neokantismo havia perdido seu fiundamentum inconcussum: a autoconsciéncia.?6 Gadamer também apreende com Heidegger a fundamental experiéncia hermenéutica de conduzir o pensamento histérico para a recuperaciio dos questionamentos da tradigao. Por serem entendidas como respostas a perguntas reais, as velhas questées tormam-se compre- ensiveis e vivas que se convertem em verdadeiras perguntas. As questdes compreendidas néo sio mais um mero tomar conhecimento, mas a descoberta da histéria de sua motivagdo, o que Ihes da um carder de ineludibilidade.27 Em sua autobiografia, Gadamer reconhece, com admiragao: Ninguém antes de Heidegger pensou to a fundo a ponto de tomar possivel com preender o desembocar da histéria humana na civilizagao técnica de hoje ¢ a luta pelo dominio da terra partindo diretamente do pensamento dos gregos, da sua fun- dagio da cigncia, da sua criagao da metafisica. (..] Ninguém, em tal empresa, foi mais do que ele empurrado tio além, sobre o terreno incerto dos conceitos nao convencionais para entrever, de longe, pela primeira vez, experiéncias humanas de ‘outras culturas como nossas possibilidades de experiéncia28 Um pensar capaz de aleangar pré-tempos © ao mesmo tempo vislumbrar outros em tum futuro distante, como menciona Gadamer, ao referir-se 4 conferéncia de Heidegger, O tempo da imagem do mundo, de 1938.29 Além de ser um intérprete notavel dos problemas xistenciais e das insatisfagées do tempo — as quais nem o neokantismo, nem a fenomenolo- gia conseguiram dar uma resposta convincente — Heidegger expressou ainda a sua genialida- de “na medigdo de campos vocabulares como um todo e na persecugdo das veias secretas na 25 Cf. Hans Georg GADAMER. VM Il [486] 26 Cf. Hans Georg GADAMER. VM II [484] 27 CF. Hans Georg GADAMER. VM TI [484]. 28 Cf. Hans Georg GADAMER. MCP, p. 178. 29 Cf. Martin HEIDEGGER. O tempo da imagem do mundo. In: Caminhos de Floresta, pp. 97-138 ¢ na cedgto original alema, de 1977, pp. 69-104, Ver também: Cr. Hans Georg. GADAMER. RD, p. 222. rocha primitiva da linguagem”.39 Um caminho que também Gadamer iria trilhar como fil6lo- £0, Quando Heidegger foi nomeado para Marburg, Gadamer retornou com ele. Porém, a inicial estima do mestre gradativamente esfriou. Heidegger, em seu modo extremamente exi- gente, considerava Gadamer pouco empenhado em seus estudos, e deixou explicito 0 seu des- contentamento em uma carta, enfatizando que “caso Gadamer néo estude muito dedicadamen- te ndio ha esperanga de uma carreira académica para ele”.3! Como € ficil imaginar, essa carta precedeu um periodo de crise e incerteza. Mas, em contrapartida, realizou um importante détour, destinado a revelar-se providencial para o itine- ratio do seu pensamento. Diz Gadamer: “Foram anos de profundas diividas sobre minha pacidades cientificas, mas, também, anos nos quais comecei finalmente a trabalhar a sé Eco!: tomnei-me fildlogo classico, sob a orientagdo amigavel de Paul Friedliinder.”32 No semindtio filol6gico de Friedlander, Gadamer apresenta, sobre 0 Protrético ( xortagii filosofia) aristotélico, um trabalho que contém uma critica a famosa interpretagao “genética” de Arist6teles feita pelo respeitado filélogo Wemer Jaeger (1888-1961). Publicado em 1928, na renomada revista Hermes, 0 artigo obteve importante repercussiio, que lhe prop jou reconhecimento ¢ prestigio junto ao circulo dos fildlogos, bem como a estima do proprio Jaeger.33 Sob a condugao de Friedlinder, Gadamer estudou os filésofos gregos, aprofundou seus estudos de retérica e dedicou-se a Pindaro — iluminado pelo pensamento de Hélderlin.34 Com Friedlinder, ele compreende que a forma dialdgica em Plato € muito mais do que um simples recurso artistico; e apreende que o esforgo essencial de Plato foi sempre o de dar forma a isso que se agita confusamente no animo do interlocutor — ¢ era 0 mesmo que Socrates fazia quando se propunha ensinar a pensar. Em seus estudos sobre a filosofia grega, ele ocupou-se, em especial modo, com o primado da ética sobre o Jogos, ¢ procurou assim mostrar que, em detrimento de toda aparéncia doxogréfica, a questdo socratica ndo visa 4 de- 30 Cr. Hans Georg Gadamer. HR, v. 1 pp. 16-23. 31 Cf. Jean GRONDIN. Gadamer, uma biografia, p. 138. Ver também: Franco BIANCO. Gadamer e Vantico, p. 83. 32 CF. Hans-Georg GaDAMER, MCCP, p. 29 33 Cf, Hans-Georg GADAMER. Der aristotelische Proleptikos und die entwirklungsgeschichtliche Be- srachtung der arisiorelischen Ethik. GW 5, pp. 164-185. Ver, também: VM Tl [483-484]; MCCP, pp. 39-40. 34 Cf. Hans Georg GADAMER. VM II (484-486) finigdo, mas ao didlogo que se abre com ela.55 Nascia, para Gadamer, a idéia de uma “ética dialégica”, central na maturidade da sua obra.36 Em junho de 1927, Gadamer presta os exames para tornar-se professor de Filologia Classica. Heidegger, que na ocasiéo comegava a preparar seu retomno a Freiburg para ocupar 0 lugar de Husserl, estava na banca examinadora e, mais uma vez, provocou uma decisiva mu- danga no caminho de vida de Gadamer fia.37 86 que, desta vez, trazendo-o de volta para a filoso- Apés 0 exame, Heidegger propés habilité-lo em filosofia e providenciou para que ele © substituisse na catedra.38 Assim, com vinte ¢ nove anos, Gadamer entrava oficialmente para © corpo académico da Universidade de Marburg, compondo o Instituto de Filosofia junto com seus amigos de longa data, Karl Lowith (1897-1973) e Gerhard Kriiger (1902-!972).39 O inicio de sua atividade docente foi marcada por um dedicado e trabalhoso “apren- der a ensinar ensinando”.49 Mas, em 1933, com a ascensiio de Hitler ao poder, comega um perfodo ligubre e inesquecivel para a Alemanha e para 0 mundo. Gadamer lembra 35 Cf. Hans-Georg GADAMER. HR II, p. 176. Hans-Georg GADAMER. MCCP, p. 29 ss. Ver também: Franco BIANCO. Gadamer e I'antico, pp. 84-85; Donatella Di CESARE. Gadamer,p. 22. 37 Cf. Hans-Georg GADAMER, Studi Platonic 1, pp. 3-184; Studi Platonici 2, pp. 152-153. A partir daqui citados por SPI e SP2. 38 Esta nfo foi a tniea ocasido em que Heidegger expressou o desejo de que seu sucessor fosse Ga- ddamer. Tamlbém quando se viu impedido pelas autoridades aliadas de continuar suas aulas na Universidade de Freiburg, em setembro de 1945 Heidegger esereveu a Stadelmann: “Em primeiro ugar sugiro-The Gadamer (Leipzig); no sei com precisto aonde se encontraatualmente. Quanto & sua estatura espiritual, como docente & como colega, &em absoluto 6 mais valido. Gostaria que fosse 6 meu sucessor”. Cf. Martin HEIDEGGER. Discorsi € alire testimonianze del cammino di una vita 1910-1976. Genova: II melangolo, 2005, p. 355. Ver também: Donatella Di CESARE. Gadamer, p42. 39 Na edigfo italiana de sua autobiografia, Gadamer publica, como complemento, uma biografia de Krriger, — amigo e companheiro desde a referida Gracca bultmaniana; além de outras belas paginas dedicadas a LLowith, seu maior amigo. Cf. Hans-Georg Gadamer, MCCP, pp. 180-195. 40 Cf. Hans-Georg GaDaMER. MCP, pp. 36-41 Foi um despertar terrivel: nada podia desculpar-nos pelo desinteresse com o qual haviamos seguido as atividades politicas. Nés todos haviamos subestimado Hitler € os seus, dando crédito quanto a isso imprensa liberal. Nenhum de nés havia lido Mein Kampf {...] no fundo, nés todos, até 30 de junho de 1934, estévamos conven- cidos que a assuada acabaria logo.4! Os anos que se seguiram foram os mais dificeis da sua vida. Em breve, as leis de Nu- remberg retiraram todos os docentes hebreus das universidades. Gadamer viu partir Lowith € Friedlander, entre tantos outros amigos queridos. Todavia, péde proteger Jacob Klein, abri- gando-o em sua casa por dois anos.#? A Universidade de Marburg ficou literalmente vazia.43 Em 1938, Gadamer passou para a Universidade de Leipzig onde, com a aprovagao das autoridades soviéticas de ocupagao, foi nomeado reitor por dois anos. Em sala de aula era possivel “movimentar-se livremente e sem impedimentos”, 0 que Ihe permitiu até organizar um semindrio sobre Husserl.4 Foi uma época de intenso trabalho: 41 CF. Hans-Georg GADAMER, MCP, p. 42 42.C£. Hans-Georg GADAMER. L'ultimo Dio, p. 101-102. 443 Quanto ao period das guerras¢ oportuno destacar que Gadamer nfo era nazista, jamais esteve ins- cto no partido nazista (Nationalsoralistische Deutsche Arbeiterpartei) © nunca aderiu és idéias do nacional- socialismo. Ao término da guerra, Gadamer nfo silenciou sobre essa terrivel questo, dew inimeras entrevistas sobre a sua vida naquela época e republicou os seus escritos. Estas entrevista encontram-se escrupulosamente ccompilada por Richard Palmer, Published Interviews and Archival Tapes, in; The Philosophy of Hans-Georg Gadamer. Chicago; Open Court, 1997, pp. 588-599. Apnd Di Cesare. Gadamer,p. 39, nota 63. 14 0 caso da as- sinatura de Gadamer em um manifesto, meneionado na biografiaescrita por Grondin. Mas, neste caso, &funda- mental mencionar as circunstancias. Di Cesare descreve que © documento de “Adesto dos professores das uni- versidades e das escolas superiores alemis & Adolf Hitler e ao Estado nacional-socialista” foi lido em voz. alta, numa assembléia pdblica, na qual somente aqueles que se opusessem, publicamente, poderiam negar a assinatu- ra, Todos os professores, sem excega0,assinaram. “Opor-sesignificava, na melhor das hip6teses, ter de ir embo- ra, Na Alemanha daguele periodo, ou se era nazistadeclarado ou se ealava. Em um regime totalitrio, 0 mote: “quem cala eonsente’,naturalmente, no tem validade, Pois estava em jogo a vida". Cf. Donatella Di CESARE Gadamer, pp. 25-27, nota 28; 33. Ver, também: Cf, Hans-Georg GADAMER. MCCP, p. 44. Vale ainda citar que, segundo Di Cesare, a biografia escrita por Grondin é “uma coleta abundante de materiais, elaborada de forma insuficiente e que surte um efeito oposto aquele presumivelmente querido pelo autor [..] cuja publicagao foi um dos episédios que mnais amarguraram Gadamer.” Cf. Donatella Di CESARE. Gadamer, pp. 26; 51, nota $8, 44 Cf. Hans-Georg GADAMER. VM II [490-491]. A partir do momento em que comecei a ser professor em Leipzig, sendo o tnico representante da matéria [...] tinha que expor, além dos gregos e seu titimo e maior sucessor, Hegel, toda a tradigdo classica, desde Agostinho e Tomas de Aquino até Nietzsche, Husserl, Heidegger... sempre atento aos textos [...]. Em seminétios, tra- balhei também com textos poéticos dificeis, de Hélderlin, Goethe e Rilke.45 Convidado a lecionar por dois anos (1947-49) em Frankfurt, ele conhece Max Hor- Kheimer (1895-1973) e Theodor Adomo (1903-1969); mas seu confronto com a “Escola de Frankfurt” aconteceria somente mais tarde, com Jiirgen Habermas (1929). Chamado para suceder Karl Jaspers (1883-1969) — que decidira deixar a Alemanha ¢ transferir-se para a Basiléia — Gadamer chega, em 1949, a tranqilila Heidelberg e 14 perma- nece por mais de cinguenta e dois anos, “o tiltimo longo periodo da sua vida, o mais proficuo € 0 mais afortunado”.*6 Foi, como sustenta o filésofo, “o recomego de uma atividade ‘acadé- mica’ em um mundo ‘académico™.47 Gadamer pode, entio, trazer Lwith de volta do longo exilio para trabalhar no Instituto de Filosofia; funda, junto com Helmut Kuhn (1899-1991), a revista Philosophische Rundschau, em 1953, que alcangou prestigio internacional; e consegue retirar Heidegger do seu isolamento, convidando-o com freqiiéncia a apresentar breves ciclos de semindrios em Heidelberg.48 Porém, o mais importante deste trangtiilo periodo foi que ele pOde retomar a sua escrita. periodo entre a publicagao de sua tese de livre-docéncia, em 1931, com o titulo E- tica dialética de Platdo, e Verdade e Método, em 1960, apresenta um intervalo de quase trinta anos.49 Sem ditvida, tinha razfo 0 filésofo quando afirmava que,ao progredir no saber, apren- deu a calar.50 45 Cf, Hans-Georg GADAMER. VM II [491] 46 Cf, Donatella DI CESARE. Gadamer, p44. Ver também: GADAMER, VM II [491-492] 47 Cf. Hans-Georg GADAMER. VM Il [492] 48 Cf, Donatella DI CESARE. Gadamer, p44 49 Durante esse periodo, Gadamer esereve apenas pequenos artigos, em sua maioria recensbes. De 1933 a 1945, ele publica cerca de vinte recensbies, vinte€ cinco breves conferéncas ¢ seis artigos. Os artigos so: em 1934, Platdo e as poetas A antiga teoria do dtomo; em 1939, A fundamentagdo kantiana da estétiea ‘o sentido da arte (reelaborado, depois, na primeira parte de Verdade e Método) e, ambém, Hegel eo espirito da historia; em 1940, Hegel e a dialética antiga; em 1941, Povo e histéria no pensamento de Herder e, em 1942, O estado educativo de Platao. Cf. Han 50 Cf. Hans-Georg GADAMER, VM 1! [483]. jeorg GADAMER. VM II [488-490], 18 Mas, neste longo siléncio estavam implicadas outras dificuldades, dentre as quais Donatella Di Cesare (1957) identifica fatores externos € outros, subjetivos, que merecem ser contemplados.5! Os primeiros sao, naturalmente, decorrentes da situagaio da Alemanha no pe- riodo da Segunda Guerra, bem como no pés-guerra, quando tudo era muito dificil. Quanto aos fatores subjetivos — além daqueles resultantes do fato de Gadamer nao ser um fildsofo siste- matico — destacam-se dois: um, resultante de uma sintomética inibigdio; € 0 outro, por a dizer, a expresso coerente de uma convicgio. Sua inibigdio € fruto do efeito paralisante do confronto com um gigante como Hei- degger. Gadamer confessa: “Escrever permaneceu por longo tempo, um tormento. Tinha sempre a ineémoda sensago de que Heidegger estava me espiando por cima dos ombros”.52 ‘Mas essa relagdo atormentada com a escrita acontecia também, e principalmente, por uma convicedo, Ele declara: [.a] ter de eserever, é uma pena terrivel. Onde esti 0 tu que se nos defronta, com aquela silenciosa presenga que mesmo silente nao cessa de responder-nos, aquela presenga do outro com o qual buscamos o didlogo para poder também prosseguir 0 didlogo com nés mesmos, que chamamos pensar. [..] As palavras nos sustentam, as palavras nos levam avante, mas nem sempre portam-nos & meta. Isso sabem to- dos aqueles que escrevem, todos aqueles que pensam.53 Odi leto ¢ caracteristico de Gadamer. O que toma compreensivel que, para esse “Sécrates moder- logo oral, que é a forma mais propria da filosofia, é também o elemento predi- no” — famoso por sua peculiar capacidade de ouvir — fosse extremamente dificil pensar sem um interlocutor. 51. CE. Donatella DI CESARE, Jntraduzione, in: Hans-Georg GADAMER. Linguaggio, pp. V-VI. 52.Cf. Hans-Georg GADAMER. VM II [491]. Ver também: Donatella Di CESARE. Gadamer, p. 45-46. Hans-Georg GADAMER, Serivere e parlare. In: L, pp. 6-58. Também publicado como: Schret ben und Sprechen. In: GW v.10, pp.354-355; Wort und VerhelBung. In: Newe Zarcher Zeitung. 0.144, 24 de jue ho de 1983 54 Com poucas excegdes, tudo aquilo que Gadamerescreveu originou-sea partir de um dislogo oral Como exemplos, podem ser citados os livros: A dialetica de Hegel, de 1971, Quem sou eu, quem és tu?, sobre Paul Celan, de 1973, A razdo na idade da ciéncia, de 1976, Elogio da teoria, de 1983, As trithas de Heidegger, de 1983, A heranca da Europa, de 1989, O cardter oculto da saide, de 1993. Cf. Donstella Di CESARE. Gada- ‘mer, p. 10; 47. 19 No entanto, os alunos — seus interlocutores — insistiam para que ele pusesse por escrito tudo aquilo que era tratado nas ligdes.55 Assim, evitando encargos burocréticos admi- nistrativos € dedicando-se quase que exclusivamente as suas aulas, Gadamer foi escrevendo Verdade e Método durante as férias, em “um lento e descontinuo processo de crescimento” Ele comenta essa passagem, em sua autobiografia, citando um antigo principio horaciano (Nonum prematur in annum) segundo 0 qual tudo o que é valido necessita de nove anos para alcangar a maturidade.56 Até que finalmente, em 1960, ele publica a sintese de seus estudos sobre a hermenéutica filoséfica. A obra aleangou, em poucos anos, um importante reconhecimento, e fez surgir uma nova corrente com a qual se confrontaria toda a filosofia contemporinea. Contribuiram para 0 sucesso ¢ a divulgagao da obra tanto as importantes recensdes, que apareceram ja a partir da primeira edig&o, como também as tradugdes; de modo especial a primeira, aquela de Gianni Vattimo (1936) para o italiano, publicada em 1972. 57 55 Com fino humor, Gadamer comenta este fato em seu discurso conclusivo para o ciclo de conferén- cias em homenagem pelos seus 100 anos. “Foram eles, os jovens, 0s culpados por este meu livro. Diziam: ‘Me perguntam sempre onde eu estudo ¢ eu respondo: ‘Em Heidelberg’. E ento me perguntavam ainda: Ah! E quem ‘esté agora em Heidelberg?. ‘Gadamer!’ — ‘Gadamer? Nunca ouvi falar!” . Cf. Hans-Georg GADAMER, Discorso conclusive. In: Di Cesare, Donatella, "L'essere, che pud essere compreso, & linguaggio" Omaggio a Hans-Georg Gadamer, pp. 116-119. 56 Cf, Hans-Georg GADAMER. MCP, pp. 146-147. VM II [492-493] 57 Quanto as recensbes, pode-se mencionar: Helmut KUHN. Wahrheit und geschichtliches Verstehen, Bemerkungen zu Hans-Georg Gadamers philosophische Hermeneutik. In: Historische Zeitschrift, 19572, 1961, pp. 376-389; J. MOELLER. Wahrheit und Methode. In: Theologische Quartalschrift, 5, 1961, pp. 467-471; H. OGIERMANN. Wahrheit und Methode. In: Scholastik, 27, 1961, pp. 403-406; Oscar BECKER. Zur Fragwiirdigkeit der Transzendierung der asthetischen Dimension der Kunst. In: Philosophische Rundschau, 10, 1962, pp. 225: 238; A. DE WAEHLENS. Sur une herméneutique de Uherméneurique. In: Revue phitosophique de Louvain, 60, 1962, pp. 573-591; H. KIMMERLE. Hermeneutische Theorie oder ontologische Hermeneutik. In: Zeitschrift fir ‘Theologie und Kirche, 59, 1962, pp. 114-130; Karl-Otto APEL. WAHRHEIT UND METHODE. In’ Hegel-Studien, 1963, pp. 314-322; W. HELLEBRAND. Der Zeitbogen. In: Archiv fir Rechts- und Socialphilosophie, 1, 1963, pp. 57-76; Otto POGGELER. Wahrheit und Methode. In: Philosophischer Literaturanzeiger, 1, 1963, pp. 6-16; F. Wie EACKER, Notizen zur Rechtshistorischen Hermeneutik. In: Nachrichten der Akademie der Wissenschaften zu Gottingen, 1963, pp. 1-22; W. PANNENBERG. Ermeneutica e storia universale (1963) Jn: Questioni fondamentali 4i teologia sistematica, Brescia: Queriniana, 1975, pp. 107-141. J. LOHMANN. Wahrheit und Methode. In: Gno- mon, 37, 1965, pp. 709-718; K. DOCKHORN. Hans-Georg Gadamer: Wahrheit und Methode, In: Gottingsche 20 Em Verdade ¢ Método, delineia-se uma filosofia que ganha relevo sobre o fundo da hermeneutica classica e, principalmente, sobre a hermenéutica da facticidade de Heidegger. Diz Gadamer: [Nas nossas conversas, Heidegger nunca designou as minhas prdprias tentativas de pensamento como hermenéutica filosofiea, mas sempre como filosofia hermenéut cca [-.] Eu s6 no ousava utilizar para mim a palavra 'filosofia’, pois essa palavra cesté carregada de exigéncias. Desse modo, procurei empregi-Ia apenas de modo a- tributivo.58 Na carta de 5 de janeiro de 1973 a Otto Péggeler, Heidegger confirma: “A herme- néutica ¢ tarefa de Gadamer”.5 Ao que Gadamer, em entrevista comentou: “Seguramente, a palavra de Heidegger sobre mim é to ambigua — entre critica e reconhecimento — como tudo 0 que ele, em tais casos, cuidou de dizer. I! uma palavra de critica na medida em que nos meus trabalhos defendi a hermenéutica como assunto meu, enquanto o Heidegger tardio abria mio do uso da palavra, que Ihe fora originalmente familiar através de estudos teolgicos. A- quele tempo, hermenéutica era uma mera disciplina auxiliar, sobretudo para os tedlogos & juristas. Mas com Heidegger se realizou uma evolugao convincente, da fenomenologia em diregdo a uma fenomenologia hermenéutica. Quando, enfim, o conceito de hermenéutica ad- guiriu para mim um contetido proprio, permaneci, ainda assim, plenamente consciente de es- tar mantendo a vista o Heidegger tardio”.®9 Gelehrte Anzeigen, 218, 1966, pp. 169-206, Até 2007, a obra ja tinha sido traduzida para (reze linguas, do itali 10 20 espanhol, do inglés ao francés, 20 russo ao chinés, a japonés.E importante mencionar que as tradugBes de Gadamer em lingua italiana superam em quantidade e importéncia todas as tradugGes em outras linguas, até ‘mesmo aquelas para o inglés. Cf Riccardo DoTTORL. Lereditd di Gadamer, p. 169. Ver também: Donatella Dt (CESARE. Gadamer,p. 9. 58 Cf. Hans-Georg GADAMER. HR Il, p. 176 59 Cf, Otto POGGELER. Heidegger und die hermeneuische Philosophie. Frieburg-Munchen: Alber, 1983, 395 60 Cf, Hans-Georg GADAMER. Dialosgischer Ruckblick auf das Gesammelte Werk und dessen Wir- Aungsgeschichte. In: Jean GRONDIN. (Org.) Gadamer ~ Lesebuch. Tubingen: UTB/ Mohr Siebeck, 1997. Utili- zaremos a tradugko: Retrospeetiva dialdgiea a obra reunida e sua historia de efetuagdo. Entrevista com Jean Grondin, In: C.L, 8. ALMEIDA, HG. FLICKINGER, L. ROHDEN, Hermendutica Filosdfica, nas rilhas de Hans- Georg Gadamer, Porto Alegre: Edipuers, 2000, 203-222, a partir daqui citada como RD. 21 E inquestiondvel a influéncia determinante € a divida — recordada ao longo de toda a sua vida e em muitas de suas obras — que a hermenéutica filos6fica tem para com 0 pensa-~ mento de Heidegger.§! De fato, Gadamer no apenas reconhece que a problematica da “com- preensao” foi formulada, em sua amplitude correta, por Heidegger — na elaborago da estru- tura existencial da compreens4o — mas contribui fartamente para torné-la mais compreensi- vel. Habermas denomina esse empenho de Gadamer como “urbanizagao da provincia heideg- geriana”.6? Expressa assim o seu entusiasmo com a leitura da segunda parte de Verdade e Mé- todo, onde encontrou explicado e conceitualizado tudo aquilo que, até entdo, Ihe havia perma- necido obscuro em Heidegger.63 Mas Habermas entende que Gadamer compromete as gran- des intuigées que havia aleangado — com a “reatualizagao do problema hermenéutico de fun- do” e com a “anélise da consciéncia hist6rica dos efeitos” — com uma condescendénci pe rante as sugestdes histéricas do ser do ‘iltimo Heidegger.64 Em sua Tentativa de uma autocritica, de 1985, Gadamer comenta: Minha hermenéutica filos6fica procura manter-se na diregao de questionamento do Heidegger tardio, tomando-o acessivel de uma nova maneira. [...] Creio que no compete a mim decidir se o caminho que segui pode pretender alcangar de certo modo os desafios de pensamento de Heidegger. Uma coisa porém precisa ser dita hoje. Trata-se de um trecho de caminho, a partir do qual podem-se demonstrar al- guns dos intentos do Heidegger tardio, e dizer alguma coisa aquele que no conse- gue acompanhar a orientagdo de pensamento do proprio Heidegger. De fato, Gadamer opde-se a qualquer tentativa de classificago e refuta a idéia de es- bocar uma reconstrugdo explicativa das meditagdes heideggerianas; como ilustram seus arti- gos, escritos ao longo de vinte e cinco anos, que compéem seu livro sobre o antigo mestre.56 61 Especialmente em: Cf. Hans-Georg GADAMER. / sentier? di Heidegger. Genova: Marietti, 1988; ‘que a partir daqui seré citada por SH. Ver, também, VM Il [495] 62 Cf. Jrgen HABERMAS. Hans-Georg Gadamer. L’urbanizzasione della provincia heideggeriana. In: Profil politico-filosofici, Milano: Guerini & Associati, 2000, pp. 253-262. Ver também: Laudatio, 1979. Hans-Georg Gadamer. L'urbantz -azione della provincia heideggeriana, p. 261 63 Cf. Jurgen HABERMAS. Lo spirit liberale. Un ricordo degli spensierati inizi di Heidelberg. In: In- contri con Hans Jeorg Gadamer,p. 4. 64 Cf, Jargen HABERMAS. Lo spirito liberale. Un ricordo degli spensierati ini di Heidelberg, In: In- conti con Hans-Georg Gadamer, p46. 65 Cf. Hans-Georg GADAMER, VM II [10-11]. (66 Cf. Hans-Georg GaDaMER. SH: Heideggers Wege: Studien zum Spatwerk, Tubingen: Mohr, 1983 2 Gadamer acolhe um desejo, que Heidegger com freqtiéneia formulava: a recomendagao de tica do seu nio esclerosar os esforgos filoséficos concentrando-se sobre a reconstrugaio escol percurso histérico, mas de abrir-se, a partir do interrogar fundamental, & coisa mesma do pen- samento.67 Alias, esse propésito anti-sistematico pode ser sentido na estrutura de todas as o- bras de Gadamer. Na busca de “demonstrar alguns dos intentos” do pensamento maduro de Heidegger, Gadamer expressa que “a tinica via de Martin Heidegger” era na diregao do ser, da Lich- tung.68 & possivel ver neste auscultar do ser, segundo Gadamer, uma declinagao da andlise existencial desenvolvida em Ser e Tempo: ‘Quando 0 pensamento de Heidegger projetou-se para fora da linguagem dos con- ceitos da metafisica, ele viu-se enredado em uma caréncia de linguagem que 0 le- vou a apoiar-se no dizer poético de Holderlin. {...] No entanto, a conduta do Hei- degger tardio, no que se refere a linguagem, no é uma recaida na poesia, mas ja estava contida na linha de seu pensamento.69 Gadamer afirma também — agora em oposi¢do a Heidegger — que no ha uma “lin- guagem da metafisica” Existem apenas conceitos da metafisica, cujo contetido ganha determinagao no em- prego das palavras, como ocorre com todas as palavras. Tanto os conceitos, onde se movimenta 0 pensamento, quanto as palavras do uso cotidiano da nossa lingua- gem nao esto dominadas por uma regra rigida, com uma posigao prefixada. A lin- guagem da filosofia, mesmo sobrecarregada pelo peso da tradi¢ao, como é 0 caso dda metafisica aristotélica traduzida para o latim, busca, sobretudo, ¢ sempre de no- vo, tornar fluentes as produgdes de linguagem.|...] Os conceitos que emprego no meu contexto definem-se de maneira nova pelo seu uso,70 Riidiger Bubner (1941) acrescenta que essa atitude mais amigdvel — em comparagao com a de Heidegger — que Gadamer manteve para com a tradigdo da metafisica e para com a Jinguagem comum, significou bem mais do que uma diferenciago pessoal: “Gadamer busca 67 CF. Renato CRISPIN. Nota iniroduttiva, in: Hans-Georg GADAMER. SH, p. VII 68 Der eine Weg Martin Heideggers & 0 provocativo titulo de uma conferéncia que Gadamer pronun- ciou em Messkirch, no 10° aniversirio da morte de Heidegger. Cf. Renato CRisTIN. Nota introdutiva. In: Hans Georg GaDameR, SH, p. X-XI 69 Cf. Hans-Georg GADAMER. VM Il [10}. Ver também: Cf. Martin HEIDEGGER. Séminaire de Zurich (1951). n: Poesie, Paris, n.13, 1980, pp. 56-57 70 Cf. Hans-Georg GADAMER, VM II (11-12} salvar o patriménio da histéria da metafisica, dos gregos a Hegel. Essa atitude ¢ um fato te6ri- co de grande destaque, cujo alcance esté ainda longe de ser medido em todas as suas implica- gbes."71 Para Gadamer a linguagem da filosofia desenvolve-se constantemente no diélogo com sua propria historia: comentando, corrigindo e criando variagdes. E a “linguagem da me- tafisica ¢ e permanece sendo 0 didlogo, mesmo que esse se dé na distincia de séculos e milé- nios. Por esse motivo, os textos de filosofia nao sto propriamente obras, mas contribuigdes a um didlogo que dura através dos tempos.”7? Vattimo destaca que dos dois elementos chave do pensamento de Heidegger — a a- tengiio ao alcance ontolégico da linguagem e a meditag3o sobre metafisica como histéria e destino do ser — Gadamer acentuou de maneira exclusiva o primeiro, 0 que 0 aproximou, de modo produtivo, da andlise da linguagem de origem wittgensteiniana e pragmatistica pratica- da na filosofia anglo-saxénica.73 Tanto quanto é inegavel a influéncia de Heidegger, também é fato que Gadamer tri- Ihou um caminho proprio, e que diferengas profundas o separam de seu antigo mestre. Uma dessas importantes ¢ essenciais diferengas consiste em que, para Gadamer, 0 outro é quem nos manifesta originariamente a auténtica finitude do ente humano. Neste caminho, veio-Ihe cla- ramente A consciéncia que “as questdes de filosofia, desenvolvidas por Heidegger na critica & tradigo metafisica, tomam-se verdadeiramente convincentes sé no momento em que se al- canga com elas, simultaneamente, 0 outro para o qual se fala.”74 Outra diferenga que indica o ponto de um verdadeiro desvio entre o seu pensamento 0 de Heidegger € a apreensao do pensamento de Platio.75 Gadamer nio 1é Plato como o precursor da ontoteologia; ¢ os conceitos que ele em- prega em sua hermenéutica filoséfica, e que “definem-se de maneira nova pelo seu uso”, per~ tencem A tradig&o platénica.76 71 Cf. Rudiger BURNER. La flosoftaéil proprio tempo appreso col pensiero. In: V.A.A. Ermeneu- ica e critica delV'ideologia, Brescia: Queriniana, 1979, p. 232 72 Cf. Hans-Georg GADAMER. VM II [13]. 73 CF. Gianni VATTIMO. Postilla 1983. Jn: Hans-Georg GADAMER, VM, p. LVI 74 Cf. Hans-Georg GADAMER. RD, p. 205. Esse aspecto Seré aprofundado em varios momentos da se- guunda parte deste estado, 75 Cf. Hans-Georg GADAMER. VM II [12]. 24 Allis, dev lo, no seu proprio se dizer que os estudos sobre o pensamento grego entender, “a parte melhor e mais original” de toda a sua atividade filos6fica. Gadamer obser- ‘vou, com satisfagao, “que justamente esses trabalhos significaram alguma coisa para Heideg- ger nos tiltimos anos de sua vida”.?7 De modo especial, a sua conferéncia sobre A idéia do hem entre Platdo e Aristételes, onde Gadamer pode demonstrar que “o proprio Aristételes era mais platénico do que se costuma admitir e que o projeto aristotélico da ontoteologia é apenas uma das perspectivas que se encontram reunidas nos livros da Metafisica”.78 Considere-se este estudo como uma tentativa de ler 05 clissicos gregos do pensa- mento de maneira diversa, nio do alto da superioridade critica dos modernos que retém possuir uma légica infinitamente mais refinada do que aquela dos antigos, ‘mas sim na conviego que a “filosofia” é um evento perene, que caracteriza 0 ho- ‘mem como tal e no qual, em vez de um progresso, € possivel apenas a participa- 40.79 E Gadamer soube fazer-se participe. No trabalho posterior, Verdade e Método, desenvolvido durante quarenta anos (1960- 2002), ele transformou € ampliou suas reflexdes, expressando seu interesse sobre as mais di- versas questdes da atualidade, pelas implicagdes préticas da hermenéutica como filosofia € suas possiveis contribuicdes, como atesta a edi¢do das suas Obras Reunidas, por ele mesmo cuidada, entre 1985 ¢ 1995.80 Dois fatores foram determinantes neste aspecto do desenvolvimento de suas refle- xées: primeiro, devem ser considerados os proficuos debates com a critica da ideologia de 76 Cf, Hans-Georg GADAMER. VM II [11-12] 77. Cf. Hans-Georg GADAMER. VM II [12] 78 Perspectivas estas que foram, por sua vez, extraidas de sua Fisica. Acerca do modo como Aristéte~ les produziu os seus trabathos, ver também: Cf. Werner JAEGER. Studien ur Entstehungsgeschichte der Meta- pplosik des Aristoteles, Berlin, 1923, p.148-163. Cf. Giovanni REALE, Metafisica, v. I, p. 41-52. Cf. Sit David Ross. Aristteles, p,20-21 e nota 26 79 Cf. Hans-Georg GaDAMER, SP 1, p. XI; SP2, p. 154 80 Para uma bibliografiasistomatica das obras de Gadamer ver: Cf. Eisuro MAKITA, Gadamer Bibliographie (1922-1994). Frankfurt: Lang, 1995, Ver, também, as seguintes péginas da web dedicadas a Ga- amer, com a atualizagto da bibliografia até 2008: hitp:/www.svec.edu/academics/classes/eadamer ¢ itp: /wwwms kukistus.ae jp/KMSLab/makita/gdmbp; bem como a explicago de Gadamer para a edigto de suas obras na entrevista com Grondin, Cf, Hans-Georg GADAMER. RD, pp. 221-222 25 Habermas, com 0 neo-pragmatismo de Richard Rorty (1931-2007), com a desconstrugao de Jacques Derrida (1930-2004) e com o pensamento fraco (debole) de Vattimo; ¢, segundo, a enriquecedora experiéncia como professor convidado nas universidades fora da Alemanha, Gadamer ministrou cursos e seminérios em Heidelberg até os 70 anos; depois, encorajado por Emst Tugendhat (1930) e apoiado por Richard E. Palmer (1933), foi ensinar, até os 86 anos, em varias universidades dos Estados Unidos.8! Di Cesare comenta que: A presenga de Gadamer nos Estados Unidos coincidiu com a guinada da filosofia analitica, com o seu repensar critico. Nisso a hermenéutica filoséfica constituiu um ponto de referimento e de confronto. Ainda é muito dificil avaliar plenamente os efeitos profundos e duradouros produzidos pelo ensinamento de Gadamer, seja na difusdo da ‘filosofia continental’, seja na ‘hermeneutizagao’ da filosofia analiti- a8? Vattimo sublinha que o aleance do pensamento de Gadamer no pode ser avaliado fazendo-se exclusivo ou mesmo somente prevalente referimento & hermenéutica: Isso que fica marcado € modificado pelo questionamento de Gadamer nao é a her menéutica como teoria especifica da interpretago, mas a filosofia mesma que, re- conhecendo as bases ontolégicas daquilo que a interpretacao jé por si mesma , so- fre uma guinada significativa na diregdo de uma renovada meditagao sobre a lin- guagem como fio condutor de cada possivel ontologia 83 A publicagao de Verdade e Método, para Gadamer uma obra ainda in fieri, assinalou © inicio de uma complexa historia dos efeitos (Wirkungsgechichte) da hermenéutica. Como indica Di Cesare : Quando a hermenéutica filos6fica foi posta a prova, mostrou poder compreender de modo diferente cada situagio, modificando ou precisando as proprias posicdes Boa parte do seu sucesso deve-se a sua flexibilidade e a sua capacidade de confron- tar-se também com as criticas mais asperas e com os ataques mais duros. Por fim, 81 Gadamer lecionou na Catholic University of America em Washington D.C. (1969), na University of Syracuse (1971), na Me Master University em Hamilton, no Canada (1972-1974) e,lecionou no Boston Col- lege durante 12 anos (1974-1986); além de cursos e conferéncias na América do Sul, Jao, Africa etc. Cf. Do natella DI CESARE, Gadamer, pp. 48-49. £2 CE. Donatella D1 CESARE. Gadamer, p. 49 83 Cf. Gianni VaTTIMo, Introdizione 1972: L’ontologia ermeneutica nella filosofia contemporanea. in: Hans-Georg GADAMER. VM, pp. XXIX-LIV. 26 as tentativas de atacar-Ihe a validade — ¢ até mesmo onde surgiram dificuldades que pareciam nao ter soluezo, as criticas nio obtiveram éxito e foram rapidamente esquecidas.84 Sobre as critieas que no serao tratadas ao longo deste trabalho, merece ser mencio- nado, ainda que en passant, o jurista italiano Emilio Betti (1890-1968) que, em aberta pol mica com Gadamer, defende, em sua teoria da interpretagao, a “objetividade do método”, ¢ “separa completamente o compreender € 0 reproduzir”.85 No Ambito da critica literéria, Donald Hirsch (1928) retoma a questo de Betti, ¢ restringe a amplitude do compreender a um mero processo de interpretagao de texto.86 Ainda no campo literario, é importante mencionar a “Escola de Konstanz”, inaugurada por Hans Robert Jauss (1921-1997) com a sua “estética da recepeo”, a qual busca restaurar 0 processo dinémico de produgdo (autor) e recepeao (Iei- tor) do texto, através de um modelo dialégico que defende a soberania do leitor: a obra literé- ria é um evento que requer a “recepedio” para alcangar existéncia.87 Jauss critica o conceito de “classico” em Verdade e Método, e recusa 0 de “fustio de horizontes”. 88 As importantes criticas referentes as questées filoséficas, principalmente aquelas com Derrida, serio tratadas na segunda parte deste trabalho, bem como os pontos que, nos liltimos decénios, receberam um especial destaque: a complexa e mal-entendida problematica do compreender, a reflexdo sobre a linguagem, a relago da hermenéutica com a filosofia gre~ ga, 0 tema da politica e 0 conceito de utopia, e, ainda, o estatuto filoséfico da hermenéutica. Como sugere Di Cesare, “talvez.a novidade mais importante, porque promete abertu- ras inéditas, é o interesse que a filosofia analitica americana tem demonstrado pela hermenéu- 84 Cf, Donatella Di CESARE. Gadamer, p, 250. 85 CF. Emilio BETTI, L’ermeneutica come metodologia generale delle scienze dello spirito, Roma: itd Nuova, 1990, pp. $9-108, A resposta de Gadamer encontra-se no Preficio & 2* Eigdo. Cf. Hans-Georg GADAMER, VM I, pp. 14-16, Também: VM I, [17] 86 Hirsch representa 0 primeiro importante confronto com a hermenéutia filos6fiea nos Estados Uni- dos. Cf. Erik Donald HIRSCH, Teoria dellinterpretasione e critica letteraria. Bologna: Il Mulino, 1973, 87 Cf. Hans Robert JAUSS. Esperiensa estetica ed ermeneuticaleteraria (1976). Bologna: 1! Mulino, 1988, 88 A resposta de Gadamer & Jauss encontra-se no Prefécio & 2” Edel. Cf. Hans-Georg GADAMER VM I, pp. 14-16. 27 fica — se bem que ambas deveriam refletir sobre a proximidade que possuem, ha tempo, a turn” 89 partir do linguis Ao longo de sua vida académica, Gadamer formou trés geragdes de alunos, dentre os quais Dieter Henrich (1927), Reiner Wiehl (1929), Hans Friedrich Fulda (1930), Wolfgang Wieland (1933), Konrad Cramer (1936), Manfred Riedel (1936), Emilio Lledé (1927), Vale- tio Verra (1928-2001), € ainda Riidiger Bubner e Giinter Figal, na Alemanha; Dennis J. Sch- midt, nos Estados Unidos; Jean Grondin, no Canada e Gianni Vattimo ¢ Donatella Di Cesare, na Italia,9° No tiltimo periodo de sua vida como professor, Gadamer dedicou-se & Itélia — que para ele era "como um santudrio”: um caso de amor reciproco.®! LA, entre 1980 € 1997, ele realizou conferéncias € um curso anual, sempre repleto de jovens alunos, no Istituto italiano per gli Studi Filosofici, em Napoli. O iltimo seminatio italiano intitulava-se Da palavra ao conceito, do conceito a palavra, ele tinha entio 97 anos!92 A hermenéutica filoséfica, que com Gadamer vem & luz, percorte 0 caminho que vai do conceito & palavra, buscando uma lingua comum, com palavras que aleancem 0 outro. O filésofo personifica essa abertura dialogal de um respeitoso ouvir que aprende: S6 assim temos a possibilidade de recolher-nos, para deixar valer o outro. Eu acre dito em um deixar-se absorver em algo, de tal modo que, nisso, se esquega a si mesmo. Bis ai 0 que importa — e isso pertence as grandes béncaos da experiéncia da arte, as grandes promessas da religio e, por fim, as condigdes fundamentais do convivio entre homens, de modo humano.93 89 Cf. Donatella Di CESARE. Gadamer, p. 256-257 90 Um interessante testemunho destes alunos encontra-se no volume comemorativo pelo 100" aniver- sitio de Gadamer. Cf. Ginter FiGAL. Incontr con Hans-Georg Gadamer. Milano: Bompiani, 2000. 91 Ele recebeu o titulo de cidadao italiano em Napoli, Siracusa e Palermo. A Magna Grécia reconhe- ceu. filho. Cf Giuseppe GIRGENTI Inconiri con Hans-Georg Gadamer,p. 10. 92.0 elenco completo dos semindrios encontra-se em: Cf. A. GARGANO. Hans- Jeorg Gadamer e Is- tino italiano per gli Studi Filosofie, im: revista Sophia, 2002, pp. 151-155. Ver, também, 1! camino della filo~ softa, uma série de vine e sete videos com Gadamer, sobre toda a historia do pensamento filos6fic, realizado pelo Mtitto italiano per gli Studi Filosofici em parceria com RAI Educacional, Cf. wwwemsfirai it além de: Cf. Gerardo MAROTTA. Con Gadamer per Europa della cultura, In: Inconmi con Hans-Georg Gadamer, pp. 2330. 93 Cf. Hans-Georg GADAMER, Da palavra ao conceit, In: Hermenéutica Filosfica, nas trithas de Hans-Georg Gadamer, p. 26. 28 Proximo de completar 100 anos, o filésofo analisa 0 significado politico mundial do compreender ¢ sublinha: “Hoje nos encontramos diante de tarefas para as quais precisamos de uma visio ampla e cautela consciente, assim como da abertura de uns para com os outros, se tivermos de resolver as tarefas de configuragao de futuro — de modo a que possam conduzir a paz.e ao equilibrio!"% A hermenéutica filoséfica, assim como Gadamer a concebeu, pode seguramente con- tribuir para isso, que 86 € possivel a uma filosofia que nao entende a si mesma como uma po- siggo “absoluta”, mas como um caminho da experiéncia, e permanece convicta de que nao existe principio mais elevado do que manter-se aberta ao diilogo.95 ‘Uma filosofia que, sabendo-se finita, no renuncia ao infinito, e faz do didlogo infini- toa forma propria do seu filosofar.96 1. 2, Preliminares seménticos e hist6ricos da hermenéutica No pensamento, 0 que permanece é 0 caminho Eos caminhos do pensamento guardam consigo 0 mistério de podermos caminhé-los para frente e para trés, trazem até 0 mistério de o caminho para trés nos levar para fremte. Martin Heidegger tem uma O termo grego “hermenéutica”, bem como aquilo que essa palavra nomeia Jonga logos ¢ fildsofos. (ria, a qual foi sobejamente comentada por historiadores, fi Gadamer comenta que, geralmente, as palavras derivadas do grego e utilizadas em nossa linguagem cientifica, abrangem diversos niveis de reflexio.%7 Para contemplar alguns desses niveis, ainda que de modo sucinto, busca-se, primeiro, apresentar um aceno semantico do termo; em seguida, aborda-se alguns dos elementos histéricos de sua origem, ¢ finaliza-se 94.CE. Hans-Georg GADAMER. Da palavra ao conceito, I: Hermenéutica Filosdfca, nas trithas de Hans-Georg Gadamer,p. 2. 95 Cf. Hans-Georg GADAMER, VM 1,490. 96 0 conceito de infinito seré desenvolvido no eap. 3, p. 135 s. 97 Cf, Hans-Georg GADAMER. VMII, [92] 29 acenando as diversas “hermenéuticas” resultantes do exercicio da compreensio nos mais vari- ados campos. No aspecto semantico, Gadamer ensina que em grego, hermeneutiké téchne, significa 1ma praxis relacionada a uma arte”.98 Portanto, uma aptidao pratica, uma habilidade. A arte em questo “é a do amincio, da traducdo, da explicagdo ¢ interpretagdo, que inclui, natural- ‘mente, a arte da compreensao que Ihe serve de base e que é sempre exigida quando o sentido de algo é duvidoso ou obscuro”99 Enquanto arte (1échne), encontram-se ligados & hermenéutica restos herdados da es- fera mantico sacral — em que, como afirmava Heréclito, “a Sibila, com uma boca delirante, profere palavras sem perfume e atinge com sua voz mil anos...” €“o Senhor do Ordculo de Delfos néo manifesta e nem esconde, somente acena”.100 O primeiro a falar de hermeneutiké como de uma especial réchne parece ter sido Pla- to. Ao comparar, no Politico, a arte do rei com aquela do advinho e da sibila, Plato contra- poe a hermeneutiké téchne & mantiké, distinguindo-as daquelas artes que si pronunciar-se sobre o verdadeiro e o falso.!01 E, também, no Jon, quando Sécrates explica a Ton que a capacidade de Homero para falar do modo como fala e sobre 0 que fala, nao é por mérito proprio, mas devido ao dom divino que os poetas tém e pelo qual eles sio “apenas os interpretes (hermeneus) dos deuses”.102 E 0 que mostra o canto inicial da Odisséia: “Canta, 6 Musa, os feitos do herdi astu- cioso que, muito peregrinou, desde que transpés as murathas sagradas de Tréia; muitas ci- dades dos homens viajou, conheceu seus costumes, como no mar padeceu sofrimentos intime- ros na alma, para que a vida salvasse e de seus companheiros a volta.”103 98 Cf. Hans-Georg GADAMER. VMI, [93] 99 Cf. Hans-Georg GADAMER. VMI, [92-93] 100 Cf. HERACLITO. Fr. 92, Fr.93. Cf. G. S. KIRK; J. E. RAVEN. Os fldsofos pré-socréticos, pp. 214- 215 101 Cf. PLATAo. Politico (ou sobre a arte de govenar), 260d-e; 290c. Ver também: Epinomis (ou conselho notumo, ou filésofo), 975¢ e Leis (ou sobre a legisla¢ao), 904d. 102 Cf. PLATAO. fon (ou sobre a Hiada), 103 Cf. HOMERO, Odisséia, Tradugao de Carlos Alberto Nunes. Sdo Paulo: Methoramentos, 1960. p. 34e. 30 Com Aristételes, 0 termo hermeneia aparece no De anima — quando ele comenta que a lingua pode ser utilizada para o degustar e para a linguagem: para a fungao da lingua- gem, do exprimir-se, do pronunciar, o Estagirita emprega também dialékton.104 Mas, é na sua obra Iégico-semantica Peri hermeneias — uma espécie de gramdtica que se ocupa das estru- turas légicas do logos apofhantikos, isto é, dos juizos — que o termo surge mais definido com maior incidéncia. Gadamer mostra que, neste tratado, Aristételes concentra-se no com- ponente semantico, puramente cognitivo, 0 que, provavelmente, contribuiu para o posterior desenvolvimento, no mundo grego, do sentido que 0 verbo hermeneuein, 0 substantivo her- meneia ¢ 0 adjetivo hermeneus, passaram a significar, respectivamente, “explicago erudita”, “comentador” e “tradutor”.105 Hermeneus €, portanto, aquele que se faz intérprete e medeia quem anuncia uma mensagem e quem a recebe. No Peri hermeneias, Aristételes define a interpretagao tanto co- mo enunciagao (hermeneuein) quanto como explicaga simples enunciagao ja é interpreta- fo antes mesmo que sobre ela incida a légica. A ldgica resulta da comparagao de enunciados, ¢ a interpretago se constitui na formulagiio mesma do enunciado: dizer “que algo &” jé cons- ti uma interpretago primeira, que condiciona as subseqientes. Assim, enquanto a légica trata da validade dos enunciados, a interpretago busca responder a uma pergunta fundamen- tal e anterior que resulta no proprio sentido do enunciado, 106 E interessante observar que, na génese da hermenéutica encontra-se 0 hermeneuta (hermeneus), com sua exigéncia de compreensio ¢ sua arte de traduzir para uma linguagem acessivel a todos o que se manifestou de modo incompreensivel. Essa tarefa do hermeneus, de, por assim dizer, portar de um mundo para outro, fez. com que varios autores mencionas- sem na etimologia da palavra “hermenéutica” a referéncia ao deus grego Hermes — 0 mensa- geiro divino que transmitia as mensagens dos deuses aos homens.!07 104 CF. ARISTOTELES. De anima, B 8; 420 18-19. 105 CF. Hans-Georg GADAMER. VMI, (93) 106 CE. Richard E. PALMER. Hermeneutica,p. 2488 107 Entretanto, 0 aso mais antigo da palavra detccta uma certa ambigtidade. Lingtistas, como por exemplo, Emile Benveniste (1902-1976) eo ilélogo e hstoriador das religides Karl Kerényi (1897-1973), afi sma que, emanticament,o termo ‘hermenéutica’, em sua génese, nfo possui nenhuma relagSolinglistica com Hermes, exceto a semethanga sonora. Ambos sustentam que a derivagéo de Hermes € apenas uma reconstrusSo @ posteriori. Hermenéia é, segundo Kerényi, um pronunciar, uma fungdo da lingua (glota); e também, a base de 31 Richard Palmer destaca trés acepgdes para o antigo uso de hermenéuein: primeiro, no sentido de +r (expressando em alta voz)"; segundo, naquele de “explicar (0 oculto)”; ¢, por iiltimo, o de “traduzir (0 estranho)”.!08 Mas “hermenéutica” remete ainda ao termo “her- meétics ite do com- . que expressa a dificuldade da propria interpretagdo e aponta para o Ii preender. 109 Em uma perspectiva histérica, vemos que a hermenéutica nasce quando a tradigio, que era transmitida sem particulares explicagSes, como coisa evidente por si mesma, passa a exigir uma interpretagdo. Como sustenta Gadamer, o problema hermenéutico se coloca so- mente quando surge a consciéneia de que a tradigiio com a qual alguém se depara é algo es- tranho, seja pelo fato de a ela nao pertencer, seja pelo fato de a tradigio nfo mais ser assumida yndivel. 110 como algo inquest Também Kerényi observa que “na historia de toda tradigao existe um periodo no qual esta satisfaz cada exigéncia de sentido — seja transmitindo o'miandamento divino como Ie ‘ou como exemplo na mitologia”, e que é apenas com a decadéncia da tradigo, ou com a sua insuficiéneia na tarefa de conferir um sentido, que surge “a exigéncia de uma renovada conscientizagaio, de uma hermenéutica, no para conservar nem para demolir a tradi¢o, mas para interpretar e ampliar o seu sentido”!!! Porém, com o declinio do mundo classico, apés as conquistas de Alexandre Magno que expandiu a cultura ea lingua grega as populagdes de estirpes diversas — como os semitas € 0s romanos — ocorreu na arte de interpretar uma transformagao significativa que definiu, progressivamente, os trés Ambitos da exegese: a hermenéutica filoldgica (profana), a a her- ‘menéutica religiosa (sacra) € hermenéutica juridica (juris). A hermenéutica passow a ter, en- todas as palavras derivadas desta raiz: hermeneus (interprete, tradutor), assim como hermeneutiké (hermenéu ca) — 0 que denota, jd na etimologia, sua originéria relagdo com a linguagem. Cf. Karl KERENYI. Origine e senso dell'erenewtica, pp.129-146. Também August Boeckh remonta & raiz ‘wer’ (falar, dizer), propria de outras linguas indo-européias, para indiear que a raiz de hermendia pode ser idéntiea ao termo “sermo”, elacutio do latim, e com verstandlich machen, no alemfo, Cf, August BOECKH. La filosofia come scienza storia. Enciclo- peda e metodologia delle scienze flologiche, pp. 139-149. 108 Cf. Richard E. PALMER. Hermeneutica, p. 2638 109 Perspectivatratada no capitulo 4.4 110 Ct. Hans-Georg Gabameer. VM II, [122] 111 Ch Karl KERENY1, Origine e senso dell'ermeneurica, p.131 32 to, um papel muito mais significativo do que aquele restrito exclusivamente ao universo fe- chado da pélis. A lingua de Hesiodo e dos poemas homéricos — que abarcava um importante papel na paidéia classica — tomou-se cada vez mais obscura aos gregos da koiné.!12 Withem Dilthey (1833-1911), em seu famoso texto sobre O surgimento da Herme- néutica (1900), comenta, que “no periodo do iluminismo grego um jogo espirituoso com a exposigdo ¢ a critica de Homero, Hesfodo e outros poetas era apreciado em todos os lugares onde se falava grego."!13 Mas, quando este universo da epopéia homérica — que fora, origi- nalmente, ideado para uma sociedade aristocratica — perde a sua forga de autoridade, ent&io toma-se necessario desenvolver uma nova arte interpretativa para a tradig&io, 0 que exige a criagdo e a atualizagao de glossérios que reportem sua legibilidade. Foi da resposta a essa ne- cessidade de compreensio que nasceu a filologia helenistica, também chamada de profana, pois no lugar dos Ordculos estavam as palavras do poeta. A filolégica helenistica foi de gran- de importincia para a arte da interpretago, como atesta 0 método histérico-gramatical elabo- rado pela Biblioteca do Museu de Alexandria.!14 Dilthey informa que, em Alexandria, as recensdes dos textos foram elaboradas atra- vvés de um engenhoso sistema de sinais e que o resultado desse trabalho de critica foi inscrito nos textos.!15 Ele diz, também, que foram feitos catélogos temiticos de todo o acervo, ¢ que 0s escritos nfo auténticos puderam ser rejeitados. Destarte, “a hermenéutica filolégica, como arte da recensdo de textos, da alta critica, da interpretagdio e da determinago do valor de obras literdrias, mostrou-se, entdo, como arte fundamentada na intima compreensio da lingua- gem."116 O niicleo desta antiga hermenéutica foi o problema da interpretagao alegérica. A ex- presstio “alegoria” provém da retérica, ¢ foi cunhada por um gramético, o Pseudo-Hericlito, no século I. Antes de ser utilizada como técnica da interpretagao, a alegoria era simplesmente uma forma de discurso. Como indica Gadamer, a alegoria pertence originalmente a esfera do 112 Cf. Maurizio FERRARIS. Storia dell'ermeneutica, pp. 9.27 113 Cf. Withem DILTHEY. O surgimento da hermenéutica (1900), p. 17ss. 114 Segundo antigos testemunhos, entre os séeulos IIe 11 aC., a biblioteca chegou a ter cerca de 490,000 volumes. CF. L.D. REYNOLDS; N, G. WILSON. Copist e filologi,p. 58s. 115 CF. Wilhem DiLtHEY. O surgimento da hermenéutica (1900), p18. 116 CF. Wilhem DILTHEY. O surgimento da hermenéutica (1900), p. 18 Jogos: “em lugar daquilo que se quer dizer coloca-se algo diferente, algo mais mio, mas de maneira que, apesar disso, este deixa e faz entender aquele outro”,!!7 E usual estabelecer “uma distingao entre a alegoria — como figura discursiva origi- ode niria, direcionada ao supra-literdrio — e a alegoresis, que significa 0 processo expl interpretagio, a recondugao da letra a vontade de sentido que nela se comunica”. A alegoresis — que reconhecia no sentido literal a figuragao de um outro significado — tormou-se um mé- todo universal, especialmente na interpretagio helenistica de Homero feita pelo estoicismo. A necessidade de tornar aceitavel a uma civilizagao transformada 0 comportamento irascivel dos deuses homéricos foi o que contribuiu para que os sofistas e os estdicos buscassem interpretar alegoricamente os textos.!18 E ainda que estas interpretages racionais de mitos ja estivessem presentes em Plato e Aristételes, esta prixis s6 foi sistematizada na Stoa. Se bem que, se~ gundo Gadamer, o problema da interpretagao alegérica ¢ bem mais antigo, pois “Fyponoia, literalmente o sentido subjacente, foi a primeira palavra usada para significar sentido alegéri- co — interpretagao esta que jé era corrente na época da Sofistica’”. "19 Do encontro com os Semitas — dispersos pelo mundo greco-romano na chamada Didspora, no século 1 — mais precisamente, do encontro com uma religido do livro, como 0 judaismo, adicionou-se a hermenéutica filoldgica uma hermenéutica religiosa. Para ampliar essa relagdo ¢ interessante mencionar, com Kerenyi, uma conferéncia na qual Gershom Scholem (1897-1982) indica o judaismo como um exemplo particularmente instrutivo do fendmeno hermenéutico.!20 Como é de conhecimento geral, os hebreus tinham a sua lei divina nos cinco livros de Moisés, a Torah, como concreta revelagio de contetido claro, univoco e objetivo. Ao lado desta tradigio escrita, sobre a qual modelava-se a vida dos hebreus, acontece — do século IV € Ill aC, até o IT século depois de Cristo — a época de formagao do judaismo rabinico, uma tradigo oral conhecida como a “forah falada” e que Gershom Scholem compara fenomenolo- gicamente com 0 conceito catdlico de verba divina non scripta. Surge, entio, a necessidade de explicar e ampliar o sentido da tradigao escrita, até poder compreender nesta a tradigo o- ral. © comentario, que era uma interpretag4o da Sagrada Escritura, foi a esta incorporado, a- 117 Cf. Hans-Georg GADAMER. VM I, [78]. 118 Cf. Hans-Georg GaDAMER. VM I, [78] 119 Cf. Hans-Georg GaDAMER. VM II [94] 120 C&. Gershom ScHOLEM. Conferéncia de Eranos 1962, apud Kerenyi, pp. 131 34 tribuindo, destarte, carater de revelagZo aos comentarios. Assim teve origem uma vida espiri- tual plenamente baseada na hermenéutica: a vida espiritual do Talmud.'2! Uma outra variagio do fendmeno “hermenéutico” junto aos hebreus seria a Cabala, resultante das exigéncias de uma hermenéutica mistica,!22 Nos circulos farisaicos e rabinicos foi comum a busca de outros sentidos além do li- teral, precisamente nos dois modos de interpretagdo: 0 midrash e 0 targum, ou seja, daquele conjunto de tradugdes e comentarios de textos biblicos que datam do século VI aC. Essa confluéncia entre filologia grega e tradieao hebraica foi inicialmente elaborada por Filon de Alexandria (aproximadamente 20 a. C. ~ 50 d. C.), expoente maximo do judais mo alexandrino, Filon acreditava que a filosofia grega derivava da religido hebraica e buscava adaptar as grandes intuiges do pensamento helénico a teologia contida no Antigo Testamento — ele designava Moisés como hermeneus theos, 23 Filon desenvolveu uma hermenéutica da Sagrada Escritura empregando regras e leis da alegoria. 24 Sao interessantes as semelhangas entre 0 estoicismo romano € o cristianismo do I° século: nao s6 0 vocabulério comum, mas também um tratamento semelhante dos problemas doutrindrios. Estudos hermenéuticos de descobertas do século passado (Ras-Shamra, em 1928; Nag Hammadi, em 1946 e Qumran, em 1948) indicam que “as semelhangas entre 0 es- 121 Cf. Gershom ScHOLEM. Conferéncia de Eranos 1962, apud Kerenyi, pp. 130-131 122 Gadamer recorda que “Gerschom Scholem foi o primeiro ver a mistica hebraica da Cabala e do CChassidismo com otho de pesquisa histirio e a interpretou no espirito de uma ciéncia citica-compreendente ‘A sua interps acto da mfstica hebraica foi [..] uma descoberta totalmente nova”. Cf. Hans-Georg GADAMER. Maestri e compagni nel camino del pensiero, p. 155. Essa autobiografia, Philosophische Lehrjahre ~ Eine ‘Rackschau, foi traduzida para o italiano por Gianni Moretto eserd, a partir daqui citada como MCCP. 123 CF. FILON DE ALEXANDRIA. De vita Mosis II 23 (II, 188) vol. IV, p. 244 124 Para ele, o conjunto dos livros das leis equiparava-se aun ser vivo que, como corpo, & possuidor 440s omamentos literais, mas, como alma, possui o significado invisivel oculto nas palavras: “Aqui, sobretudo, a alma dotada de razdo comega a enxergaro que Ihe ¢ familiar. Ela enxerga através das palavras, como através de um espetho, a incomensurdvel beleza dos pensamentos que nelas se mostram:; ela desdabra os simbolos alegér- cos ¢ 0s afast, desnudando, na luz, 0 significado das palavras para aqueles que esto em condig6es de enxergar, por intermédio de pequenos indicios, o invisivel através do visivel.” Cf. FILON DE ALEXANDRIA, De vita contem: plativa in: Les Ocuores de Philon d’Alexandrie. Pris: Le Cerf, 1963, p. 139. 35 toicismo romano ¢ 0 cristianismo podem ser explicadas pelo semitismo inerente as duas dou- trinas: como dois troncos que se tocam na raiz.""!25 Mas, foi prineipalmente o cristianismo que privilegiou 0 lugar histérico do texto e da interpretagio; pois, se por um lado, era premente interpretar 0 Antigo Testamento a luz do Novo Testamento, por outro, era necessario fazer uma tradugio de categorias hebraicas para o universo intelectual e cultural do helenismo — com todos os possiveis problemas de infideli- dade, de transformagao e desvio de sentido, Na hermenéutica patristica, representada sobretudo por Origenes (185-253) e Agos- tinho (354-430), desenvolveu-se, em especial, 0 método dos varios sentidos da Escritura, com particular relevo para o sentido literal € o sentido alegérico: Origenes, no quarto livro de seu escrito “Peri Archén” (“Sobre os principios”) € Agostinho no terceiro livro de De Doctrina Christiana (“Sobre a doutrina crist”).!26 Bem mais tarde, na Escolastica, esses diversos elementos da exegese patristica foram sistematizados por Cassiano na doutrina medieval do quadruplo sentido: o sentido literal ou gramatical, o sentido tropolégico ou figurado, o sentido anagbgico ou mistico, ¢ 0 sentido me- taférico ou alegérico.!27 Gadamer mostra que Agostinho, em De doctrina christiana, utilizando-se de idéias neo-platénicas, ensinou a elevar o espitito de um sentido literal e moral para um sentido espi ritual, e com isso resolveu o problema dogmético — da tensdio entre a historia especifica do povo judeu, interpretada no Antigo Testamento como histéria da salvago, e 0 aniincio uni- versal de Jesus no Novo Testamento — reunindo, assim, sob um ponto de vista unitario, a an- tiga heranga hermenéutica.!28 ‘Também Martin Heidegger (1889-1976) afirma que “Ago: tho fornece a primeira “hermenéutica” em grande estilo, ao questionar como deverfamos aproximarmo-nos dos lug. res da Sagrada Escritura que nio sio transparentes”. 129 Diz Agostinho que essa aproximagiio deve ser feita: 125 Cf. Vitorino SANSON, Estoicismo e Cristianismo. pp. 103-105, 126 Cf. Wilhelm DiLtHEY. O surgimento da hermenéutica (1900), p.21 127 Sobre isso a apresentago em quatro volumes de Henri DE LUBAC. Exégése médiévale, Les quatre sens de l’éeriture, Paris, 1964. 128 Cf. Hans-Georg GaDAMER. VMI, [95-94] 129 Cf, Martin HEIDEGGER. Ontologia, ermeneutica della effetivita, p. 22. 36 [..-] com o temor a Deus, com 0 tinico cuidado de procurar nas Escrituras a vontade de Deus; amadurecido na piedade de nao comprazer-se em disputas verbais; munido de conhecimentos lingiiisticos para nao ficar enredado em palavras ¢ locugées desconhecidas; na posse de conhecimentos de determi- nados objetos ¢ acontecimentos naturais que so introduzidos como ilustra- ges de modo a nao desconhecer a sua forga probante, sustentado pela ver- dade,130 Bem mais tarde, no Renascimento, a hermenéutica entra em um novo estigio, quan- do a filologia dos humanistas reabre um acesso critico aos classicos. Dilthey sustenta que, as- sim como ocorrera com o declinio do mundo classico, também no Renascimento houve uma ruptura; Estava-se separado da antiguidade classica e crista pela lingua, pelas condi- Ges de vida e pela nacionalidade. Portanto, a interpretacao se tornou — inda que de modo distinto do que houve outrora em Roma — transposiga0 para um mundo cultural estranho através de estudos gramaticais, de conteti- do ¢ hist6ricos. E esta nova filologia, polimatia e critica contava em grande parte somente com relatos € ruinas para trabalhar. Assim ela tinha de ser criativa e construtiva de uma nova maneira. Por isso a filologia, a herme- néutica e a critica entraram em um estégio superior.!31 apenas a hermenéutica profana entra em um estigio superior, como também a hermenéutica sacra recebe, com a Reforma luterana, um ampliador impulso. Martinho Lutero (1483-1546) provoca uma guinada decisiva na teologia com a sua teoria da Sacra Scriptura sui ipsius interpres, que defende uma exegese livre de autoridade, pela qual aquele que eré deve dirigir-se a Sagrada Escritura, que é por si mesma clara e compreensivel.!32 O vocabulé- rio conceitual da hermenéutica, do antigo protestantismo, nasce da retérica classica. No silén- 130 Cf. AGOSTINHO. De doctrina olvistiana, Patrologia latina. Il 11. Apud Martin HEIDEGGER. On- tologia, ermeneutica dela effenivita, p. 22. 131 Cf. Withem DILTHEY. O surgimento da hermendutica (1900), p. 21 132 Lutero foi excomungado em 3 de janeiro de 1521. E, apés sua recusa de qualquer retratacio, na dicta de Worms © imperador Carlos V pronunciou contra ele a condenagio imperial (édito de Worms de 25 de maio 1521). Entretanto, apesar de todo esforgo de repressio, o movimento evangélico promovido por Lutero difundiu-se entre os principes, nas cidades e nos campos ~ nfo obstante muitos humanistas terem Ihe dado as costas, tendo Brasmo de Rotterdam a frente. Cf. Dicionério de Teologia: conceitos fundamentais da teologia tual, vol. LV, pp. 397-417. 37 cio de Wartburg, Lutero traduz 0 Novo Testamento para o alemao e Filipe Melanchton (1497- 1560) cria a primeira apresentagao sistemética da teologia luterana: Loci communes de 1522. Gadamer recorda como marcou época a aplicagiio que Melanchton fez. dos conceitos retéricos fundamentais da Antiguidade tardia e sua literatura ao correto estudo dos livros sagrados.!33 Os reformadores recusavam 0 método alegérico — restringindo a compreensio ale- 26rica aos casos em que o sentido figurado a justificava, como nos discursos de Jesus — e entendiam ter desenvolvido um método ligado ao objeto ¢ livre de todo arbitrio subjetivo Gadamer reconhece, porém, que também a exegese biblica protestante tinha diretrizes dogma- ticas, em parte resumidas sistematicamente nos “artigos de fé" e, em parte, sugeridas na esco- Iha dos loci praecipui.134 ‘Na hermenéutica teol6gica, assim como na hermenéutica humanistica da Idade Mé- dia, a motivago principal era de carter normativo: o que importava era uma correta interpre- tagio que resgatasse ¢ renovasse o sentido origindrio, encoberto e desfigurado dos textos que continham o que realmente era decisivo e devia ser recuperado. Assim se expressa Gadamer: Voltando as suas fontes, a hermengutica buscava alcangar uma nova compreenso daquilo que havia se corrompido por distorgdo, deslocamento € mau uso: a Biblia, pela tradigao do magistério da Igreja; os classicos, pelo latim barbaro da escola ca; 0 direito romano, pela jurisprudéncia regionalista etc. O novo esforgo deveria ser niio apenas no sentido de buscar compreender de modo mais correto, mas tam- bém de recuperar a vigéncia do paradigmético, no mesmo sentido de um anuincio de uma mensagem divina, a interpretacdo de um ordculo ou de uma lei precep' va,135 A palavra “hermenéutica” aparece pela primeira vez como titulo de um livro em 1654, com Conrad Dannhauer — em Hermeneutica sacra sive methodus exponendarum sa- crarum litterarum, onde 0 autor distingue uma hermenéutica teolégico-filoséfica de uma hermenéutica juridica.136 Mas, ja em 1630, Dannhauer havia esbogado uma hermenéutica u- 133 Cf. Hans. jeorg GADAMER. VMI, [95-96]. 134 CF. Hans-Georg GADAMER. VMI, [94-97] 135 Cf. Hans-Georg GADAMER. VMI, [95]. 136 CF, DANNHAUER, Hermeneutica sara sive methodus exponendarum sacrarum litterarum 1654 Apud Hans-Georg GADAMER, VM II [93-96} niversal, na sua obra Die Idee des guten Interpreten, tentando apresentar uma hermeneutica _generalis de modo paralelo e complementar a légica aristotélica do Peri hermeneias.!37 No século XX aparece, no titulo do livro Interpretagao dos Sonhos (1900), de Sig- mund Freud (1856-1939), Portanto, como comenta Giovanni Moretto: ‘Nao na obra de um tedlogo ou de um filésofo ou de um literato — mas, de um ci- cntista, mais precisamente de um psiquiatra perito em teorias ¢ ‘métodos* idéneos para abordar aqueles episédios obscuros e absurdos — os sonhos e pesadelos — e interpreté-los, compreender 0 sentido, evidenciando 0 motivo latente, a tensao de desejos ali presente, ¢ isso nao pelo simples gosto de compreender, mas, sim, para transformar-lhe terapeuticamente em uma luta instauradora de sentido.138 Mencionemos, en passant, que, além do desenvolvimento de uma hermenéutica filo- logica (profana) e de uma hermenéutica teolégica (sacra), o encontro da cultura grega com a cultura romana, através das j4 mencionadas conquistas de Alexandre, também propiciou 0 surgimento de uma hermenéutica juridica. Esta tltima, fruto da ulterior referéncia do hele- nismo ao Estado romano, expunha a necessidade de fornecer uma correta interpretagio dos cédigos ¢ encontrava uma tematizacio explicita no Codigo de Justiniano. Esse primeiro ponto mostrou que a hermenéutica, em seus primérdios, ¢ requisitada e revela-se onde a tradigao e o dogma rompem-se. O fato que aqui merece destaque ¢ justamen- te que a hermenéutica desenvolve-se mormente nas situagdes de conflito religioso, cultural ¢ politico, nos quais exerce um importante papel. Nascida como chave interpretativa dos ordculos e poetas e, depois, dos textos sagra- dos e dos cédigos juridicos, a hermenéutica estende-se como instrumento de compreensiio a todas as produgdes do espirito humano. Alm de um Ambito mais especificamente téenico, 0 qual abarca a filologia, a teologia, a jurisprudéncia e a critica literdria, pode-se, ainda, men- cionar o uso da interpretago no ambito da estética, da sociologia, da psiquiatria e da psicand- lise, Porém, mais do que distinguir outras “hermenéuticas” na hermenéutica, busca-se, a seguir, pontuar momentos do desenvolvimento da hermenéutica no ambito filoséfico, de mo- 137 Cf, Jean GRONDIN. Introduedo a hermenéutica filoséfica, pp. 94-97. 138 Giovanni MORETTO. La dimensione religiosa in Gadamer. p. 15. 39 do a diferengar uma hermenéutica como teoria de interpretagao dos sentidos, que visa aplica~ bilidades técnicas, de uma hermenéutica “filoséfica”. Coneluindo, pode-se, inda uma vez, perguntar: o que é, entdo, que, propriamente, que a palavra “hermenéutica” nomeia? Segundo Gadamer, ela designa sobretudo uma capaci- dade natural do ente humano: o ato de compreender. 139 1.3. A hermenéutica classica: Schl rmacher e Dilthey No horizonte de um paradigma historiografico, Gadamer traga a linha do desenvol- vimento da hermenéutica classica, a qual permaneceu, até meados do século XVIII, um con- junto de regras resultantes mais da pratica do que de principios, e direcionadas mais para ob- jetos especificos — fossem estes religiosos, juridicos, filolégicos ou literdrios — do que dire- cionada pelo conceito de compreensao. Porém, entre 0 Tuminismo e 0 Romantismo, teve lu- gar um periodo de importantes mudangas que resultam em uma transformagdo essencial da hermenéutica. O movimento filoséfico-literério do Romantismo — com seu sentido da tradi- ‘¢d0, seu culto pela consciéneia coletiva dos povos e sua tentativa de reviver 0 passado em sua propria posigao histérica — forneceu um novo impulso que propiciou um fomento das varias “hermenéuticas.140 Nesta efervescéncia, a hermenéutica era apenas uma mera disciplina auxiliar de de- terminadas ciéncias; até que Friedrich Daniel Emst Schleiermacher (1768-1834) elevou-a, através de um tratamento sistemético, a arte do compreender em geral. Como reconheceu Dil- they em sua Das Leben Schleiermachers de 1867: “Uma hermenéutica efetivamente poderosa, 139 Cf, Hans-Georg GaDaMER. VMI, [301] 140 Vale lembrar que o Romantismo, heranga de um movimento cultural anterior, o Sturm und Drang (Tempestade e impeto),surgiu na segunda metade do século XVII. Tenpestadee mpeto sto manifestagBesit- racionais expressas filosoficamente por Hamann, Herder ¢ Jacobi que, partindo dos limites marcados & razio pela filosofia de Kant, fazem apelo a consciéncia mistica e a f& para ultrapassar os limites da razio finita. Essa azo finita é superada quando atinge o poder mais alto de conhecer o infinito, doutrina iniciada por Fichte e pela filosofia do jovem Schelling. Para um aprofundamento do tema, ver: Nicolai HARTMANN. A filosofia do idealis- ‘mo aleméo, pp. 51-125. 40 6 poderia surgir em uma mente que unisse o virtuosismo na interpretagao filologica com uma real capacidade filoséfica. Tal mente era Schleiermacher.”!4! Os estudos de Schleiermacher, inseridos tanto na tradig&io exegética da teologia pro- testante como no renascimento da filologia classica, originaram-se da necessidade tedrica de explicar ¢ justificar o procedimento de interpretagao ¢ tradugao de textos antigos classicos. 42 Nicolai Hartmann (1882-1950) sublinha que: Além das idéias antecipadoras de sua hermenéutica, Schleiermacher deve ser lem- brado, também, por seu conceito roméntico de religidio como sentimento de depen- déncia radical em relagao A totalidade. O sentimento era a categoria preponderante do Romantismo e, em Schleiermacher, tudo emana de um sentimento profunda- ‘mente religioso. Com vinte e oito anos Schleiermacher conhece Schlegel e une-se ‘40 Circulo dos Romanticos, colaborando com 0 “Athenaeum”. Schlegel, inspirado ‘em Fichte, interpreta 0 infinito como algo fora ¢ acima da racionalidade, como in- finitude de sentimento; ¢ Schleiermacher, no fluxo desta corrente, define a religido como intuigdo € sentimento do infinito,!43 Gadamer, que foi aluno de Hartmann em Marburg, também descreve Schleiermacher como um filésofo romantico: “Na época do romantismo alemao, a hermenéutica orientava-se pelas questes centtais da filosofia por obra de Schleiermacher. Seu pensamento, baseado na filosofia do didlogo, como a concebia Friedrich Schlegel (1772-1829), parte do significado metafisico da individualidade e de sua subordinagao e tendéncia ao infinito.”144 141 Cf. Wilhelm DILTHEY. Das Leben Schleiermachers, vol. II: Schleiermacher’s System als Philoso- phie und Theologie in: Gesammelte Schriften, vol. 14, pp. 595-787. Ver também: O surgimento da hermenéutica (1900), p.25. 142 CE. Friedrich D. E, SCHLEIERMACHER, Plarons Werke, em 6 volumes, Berlin 1804-1828. Incitado por seu amigo Friedrich Schlegel, Schleiermacher traduziu — e levou nisso vinte anos — todos os didlogos de Plato! Sua tradugdo provocou uma enorme influéncia em seus contemporaneos, € foi a partir dela que os dilo- 208 platOnicos impuseram-se como ponto de referéncia indispensével. Ver também: Hans-Georg GADAMER, Schlefermacher platonico. In: SP 2, pp. 291-301. 143 Cf. Nicolai HARTMANN, A filosofia do idealismo alemao, p. 325-370. 144 Cf. Hans-Georg GADAMER, VM II [97-98]; [425]. Ver, também: 4 hermenéutica e a escola, de Dilthey, de 1991, no 10° volume das Obras Reunidas. Este 10° volume, intitulado Hermenéutica em retrospecti~ va (Hermeneutik im Riickblick), foi traduzido para o portugués, por Marco Anténio Casanova e publicado em 1995. Nesta tradugdo, o volume foi subdividido em cinco: volume 1, Heidegger em retrospectiva; volume Il, A virada hermenéutica; volume Ill, Hermenéutica e filasofia prética; volume IV, A posigdo da filosofia na socie- 4 Para dar & hermenéutica um lugar de destaque na filosofia, Schleiermacher enfoca com prioridade 0 problema do compreender, seguindo 0 caminho aberto por Schlegel e Wi Them von Humboldt (1769-1835). Ele imprime uma virada na historia da hermenéutica — um. aprofundamento que unifica as hermenéuticas setoriais; pois, em vez de perguntar como in- terpretar este ou aquele tipo de texto, Schleiermacher passou a indagar 0 que significava 0 compreender ¢ como isso ocorre, elaborando, destarte, uma Hermenéutica Geral (allgemeine Hermeneutik).\45 As frases iniciais da Introducdo de sua Hermenéutica sio: Hermenéutica e critica, ambas disciplinas filolégicas, ambas artes, so inseparé- veis. O exercicio de uma pressupde a outra, De maneira geral, a primeira é a arte de se compreender corretamente o discurso do outro, de preferéncia o discurso escrito. ‘A segunda é a arte de julgar corretamente e verificar com dados e testemunhos su- ficientes a autenticidade dos escritos e de suas passagens. 46 Partindo da incompreenso, Schleiermacher descobre a tarefa hermenéutica na pas- sagem para o compreender; passagem esta que jamais serd perfeita, uma vez que “o ndo- compreender nunca se resolverd inteiramente”.'47 Pois, para ele, 0 desentendimento e a in- compreensiio no se encontram apenas nos casos limites € nos lugares obscuros sobre os quais a hermenéutica exercita-se, mas se dé alhures e espontaneamente. E a incompreenso que se experimenta nas exegeses dos textos sagrados, escritos em linguas estrangeiras e antigas, de dificil interpretagao, segundo Schleiermacher, é apenas sintoma de um desentendimento bem mais amplo que ja esta presente no didlogo da vida cotidiana.!48 Ja a compreensio, ele a concebe como sendo a interpenetragao de dois momentos: aquele do falado, como algo que provém da lingua, e aquele do pensado pelo autor. A aten- dade, ¢ no volume V, Encontro filosfices. A obra ser, a pant daqui, citada como HR, seguida do respectivo volume, Cf, Hans-Georg GADAMER, HR Il, pp. 158-159, 145 Schleiermacher dedicou-se por quase trnta anos ao tema da hermenéutiea (de 1805 até 1833), como consta na edigdo critica da “Hermenéutica", 1974 que foi reconstruida a partir dos manusertos por Heinz Kimmerle, discipulo de Gadamer,. Cf. F. D. E, SCHLEIERMACHER. Ermeneutca, Edigéo bilingte alemao- italiano, Rusconi: Milano, 1996, 146 Apud Martin HEIDEGGER. A caminko da lingwagem, pp. 78-79. 147 Cf Friedrich ScHLEIERMACHER, Ermeneutica, p. 447. 148 Cf. Friedrich SCHLEIERMACHER. Ermeneutica, p. 327. a2 gf, portanto, esta enfocada no autor. Ler 0 texto é dialogar com o autor, colocando-se na po- 9 deste — tanto do Iado objetivo, por meio de um conhecimento da lingua, quanto do sub- jetivo, no que concerme ao conhecimento de sua vida. Para Schleiermacher, nao se pode, natu- ralmente, nem interpretar e nem explicar que nfo se compreende. Mas, para compreender — e compreendendo, interpretar ¢ explicar parte do texto e das objetivagdes lingiiisticas do au- tor — € preciso elevar-se ao pensamento mesmo do autor mediante a intuig&o por parte do intérprete. Isso se d4, segundo Schleiermacher, sobre a base de uma “congenialidade”, ou se- ja, da comum participagao de ambos na razio universal.!49 Esses fatores subjetivos da compreensio so questionados por Gadamer do seguinte modo: Compreende-se um texto nao por colocar-se no lugar do autor ou por penetrar a sua atividade espiritual, mas, sim, por apreender-Ihe o sentido, o significado e a pers- pectiva daquilo que é transmitido. A atividade hermenéutica que entende “compre- enso como a reconstrucdo do original” nao passa “de um exercicio de transmisstio de um sentido morto.!50 que importa é entender, da maneira mais completa possivel, 0 valor intrinseco dos argumentos apresentados. Diz o filésofo: Encontramo-nos, de sibito, na esfera de uma perspectiva jé compreensivel em si ‘mesma, sem que isso implique debrugarmo-nos sobre a subjetividade do outro. O sentido da investigagio hermenéutica ¢ revelar o milagre da compreensio, ¢ nao a misteriosa comunicagao entre as almas. Compreender € o participar de uma pers peetiva comum, 151 Gadamer refuta a idéia de que a tarefa hermenéutica possa ser relegada a compreen- so das intengSes, explicitas ou remotas, do autor. Para ele, do momento em que a hermenéu- tica deve trazer & luz 0 contetido de um texto, pouco importa perguntar pela situagdo psicolé- gica do autor. O intérprete no deve esquecer que 0 seu objetivo é atin; a compreensio do que Ihe é comunicado e que tudo deve ser direcionado a isso. 149 Cf. Friedrich SCHLEIERMACHER. Hermenéutica, Inroducdo a0 Compéndio de 1819. In: Luis Henrique DREHER, O método teoligico de Friedrich Sehleiermacher, pp. 103-106. 130 Cf. Hans-Georg GADAMER. VM I [172] 151 Cf. Hans-Georg GADAMER, PCH, p. 59. B O “transfer! ¢ para dentro da constituigao do autor — para conceber o decurso in- terno da feitura da obra em uma reformulacao do ato criador” — estabelece na hermenéutica, ao lado da ja existente interpretago gramatical, uma interpretagdo psicolégica. Essa interpre~ tag&o psicoldgica €, posteriormente, subdividida em uma interpretago puramente psicol6gica (referente As idéias imediatas e pensamentos secundarios até o limite da compreensibilidade, que para Schleiermacher é 0 contetido dos sonhos) ¢ em uma interpretagdo técnica (determi- nada pelo que deve ser representado quando se ¢ obrigado a seguir um método).!52 O caminho de Gadamer para alcangar a correta compreensio de um texto é, portanto, oposto aquele de Schleiermacher: ele busca explicar as pré-compreensdes € os juizos prévios presentes no intérprete. Tais juizos prévios sto, de fato, inevitaveis, mas, ndo necessariamente danosos. Nao so, como os entendia o Tluminismo, juizos infundados e acriticos contra os quais deve-se precaver-se de modo a elimini-los, quando se quer realizar uma pesquisa séria. No entanto, deve-se considerar que, se por um lado, essa é uma perspectiva iluséria e ingénua também fundada em pré-juizos nao demonstrados, por outto lado, isso no significa que todos 0 juizos prévios corroboram para a compreensao. Em alguns casos eles originam verdadeiros mal-entendidos que criam obstaculos.!53 Gadamer entende que Schleiermacher dé destaque 4 interpretagao psicolégica visan- do a aplicagao neo-testamentiria, de modo a produzir um instrumento universal que traga & fala a forga salvifica da fé crista. Assim, na avaliagao de Gadamer, a tarefa hermenéutica de Schleiermacher fracassa por preferir unilateralmente a versio psicolégica em detrimento da- quela gramatical.154 Entretanto, essa interpretagdio que Gadamer propée para a hermenéutica de Schlei- ermacher recebeu merecidas criticas, dentre as quais destacam-se as de Peter Szondi (1929- 1971), de Manfred Frank (1945) ¢ de Christian Berner (1957).!8 152 Cf. Friedrich SCHLFIERMACHER. Ermeneutica, p. 158. 153 Cf, Hans-Georg GADAMER. VM I [272] 154 Cf, Hans-Georg GADAMER. I! problema del linguaggio in Schleiermacher. In: Linguaggio, pp.15- 16. A partir daqui citado por L, 155 Cf. Peter SZONDI. Jniroducione all'ermeneutica Jetteraria, Torino: Einaudi, 1992. Cf. Manfred FRANK. Das individuelle Allgemeine, Textstrukturierung und Interpretation nach Schleiermacher. Frankfurt Suhrkamp, 1977. Cf. Christian BERNER. La philosophie de Schleiermacher. Pavis: Edition du Cerf, 1995, 44 De modo sucinto, pode-se dizer que os principais problemas apresentados nessas ticas mostram que Gadamer busca demarcar, com demasiada énfase, a diferenga entre a her- menéutica clissica ¢ a hermenéutica filoséfica, no intuito de valorizar esta iltima. Para tal, Gadamer volta a propor a descrigo — jé oferecida por Dilthey — de Schleiermacher como um filésofo romantico (um resquicio de influéneia de Nicolai Hartmann?) e, 0 que & mai problematico, acusa-o de nao poder ver o problema hermenéutico por estar dominado por uma “metafisica da individualidade”!56 Gadamer nao relaciona, como deveria, a hermenéutica de Schleiermacher com a dialética e a ética. Ele a conecta, unicamente, com a estética sentimen- tal do romantismo, onde 0 texto é compreendido, no com base em seu contetido, mas, sim, através de um “sentimento de compreensao congenial com o autor”. Mas essas criticas evidenciam que Gadamer privilegia unilateralmente a interpreta- ‘40 psicolégica em detrimento da interpretagao gramatical — enquanto, para Schleiermacher, ambas estdo em completa simetria.157 Di Cesare acrescenta que essa interpretagao “psicologizante” ndo contempla a impor- tancia que Schleiermacher igualmente atribui ao aspecto gramatical da interpretagio, e, assim, jo dé o merecido valor ao sabio equilibrio com que o filésofo delineia a relagdo de interde~ pendéncia entre lingua e individuo.158 Essas criticas sao parcialmente acolhidas por Gadamer, que reconhece ter favorecido © desenvolvimento de suas proprias idéias através de uma reconstrugao unilateral da herme- néutica, e admite também ter “descuidado de importantes aspectos, como a dialética e a esté- tica” em Schleiermacher. 159 156 Acerca das meneionadas eriticas ver: Cf. Donatella DI CESARE. Gadamer, pp. 99-103 157 Cf, Manfred FRANK. Einleitung 2u Schleiermacher, Hermenewik und Kritk, Frankfurt: Subr- amp, 1977, pp. 7-6. 158 CF. Donatella Di CESARE. Gadamer,p. 99. 159 As respostas de Gadamer encontram-se em sua Tentativa de uma autocrtica (1985). Cf. Hans- Georg GADAMER, VM Il, (14-15]. E, principalmente em: 1! problema del linguaggio in Schleiermacher. In: L. pp. 3-17. A eonferéncia Das Problem der Sprache bei Schleiermacher foi proferida em 29 de Fevereiro de 1968, na Universidade de Nashville, no Tennessee, e depois publicada em 1993, in: GW4, pp. 361-373. Ver também: HR IL, pp. 159, 162, 176-177, 45 A reconstrugao critica da historia da hermenéutica revela-se como a sua verdadeira ¢ propria construgao, pois € neste processo que ela obtém uma nova compreenséo de si, como disciplina auténoma e unitéria, com uma metodologia propria. Se Schleiermacher sistematizou e elevou a hermenéutica a arte do compreender em geral, Dilthey teve o mérito de estabelecer o problema da interpretagéio como “metodologia universal”.!60 © seu importante texto sobre O surgimento da hermenéutica (1900) torna-se, de modo geral, o paradigma historiografico com o qual a genealogia da hermenéutica é lida. Com Dilthey a hermenéutica adquire o estatuto de um método de conhecimento que t6rico da busca interpretar a propria realidade humana no seu acontecer historico. O cardter existéncia humana ¢ de seu conhecimento assume um posicionamento central na filosofia da- quela época. Apés Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831), a histéria passou a ser vista nao mais como uma sucessio de fatos desconexos, mas como uma totalidade em desenvolvi mento dialético. Teve inicio, ento, um periodo de ouro para a histéria, com os grandes histo- riadores alemaes: Leopold Ranke (1795-1886), autor de uma Histéria da Alemanha nos tem- pos da Reforma; Gustav Droysen (1808-1884), que escreveu uma Histéria do Helenismo; Ja- cob Burckhardt (1818-1897), com sua famosa A civilizagdo do Renascimento na Itélia; Theo- dor Monsen (1817-1903), € sua monumental Histéria Romana; e Eduard Zeller (1814-1908), cujo texto A filosofia dos gregos em seu desenvolvimento histérico continua sendo uma im- portante referencia. Neste periodo aconteceu, também, a recuperagao de textos literarios ¢ pa- piros relativos aos epicuristas (por Hermann Usener), aos estoicos (por Hans von Arnim) e aos pré-socraticos (por Hermann Diels).!6! Por ter a hermenéutica como paradigma, Dilthey concebe a realidade hist6rica como se fosse um texto, e afirma: “Tal qual as letras de uma palavra, a vida e a historia tém um sen- tido” que deixa “um rastro tao puro que basta decifré-lo”.!62 Isso faz com que Gadamer de- 160 A obra de Dilthey teve grande influéncia na filosofia européla. Seus eseritos reunidos, na Ge- sammelte Schriften, em 20 volumes so na maior parte fragmentérios, exceto: os primeiros volumes que contém aj mencionada biografia de Schleiermacher; a sua Inmrodupdo as Cigncias do Espirito (Einleitung in die Geis- teswissenschafien), de 1883; 0s livros sobre A vivéncia e a poesia, com artigos sobre Lessing, Goethe, Novalis ¢ Holderlin (Das Erlebnis und die Dichiung), de 1895 e a sua Histiria da juventude de Hegel, (Jugendgeschichte ‘Hegel, de 1906. 161 Cf. 3. ORTEGA ¥ GASSET, La historia como sistema, p. S87Ss. 162 Cf. Wilhelm DILTHEY. Gesammelte Scriften, VIL, p. 291. Apud GADAMER. VM 1, [245]

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