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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

PUC-SP

Fernanda Mara de Oliveira Macedo Carneiro Pacobahyba

Constructivismo Lógico-Semântico, entre o passado e o futuro: movimentos da


hermenêutica jurídico-tributária brasileira

Doutorado em Direito

São Paulo
2018
Fernanda Mara de Oliveira Macedo Carneiro Pacobahyba

Constructivismo Lógico-Semântico, entre o passado e o futuro: movimentos da


hermenêutica jurídico-tributária brasileira

Doutorado em Direito

Tese de doutorado apresentada à Pontifícia Universidade


Católica – PUC/SP, como parte das exigências do
Programa de Pós-Graduação de Direito, para a obtenção
do título de Doutor, sob a orientação do Professora
Doutora Fabiana Del Padre Tomé.

São Paulo
2018
BANCA EXAMINADORA:

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Dedico esta tese a tudo aquilo que em mim é feminino, desde
minhas musas inspiradoras: às minhas avós, Zaíra Macedo e
Zuleide Alves, à minha madrinha, Laíra Macedo, e à minha
mãe, Sara Jane, por serem a fonte dessa força na qual me
deleito. Que todo movimento venha por um mundo de amor.
AGRADECIMENTOS

É nos momentos de agradecer que fica patente o quanto a linguagem é redutora de toda a
complexidade inerente ao ser humano: imagine-se querer expressar em palavras a imensidão que,
em nós, representam os sentimentos. E aí, bate uma frustação. Pior do que falar pouco, contudo, é
não falar... e daí insisto em redigir esses “agradecimentos”.

De cara, eles fogem do texto tradicional, que se esperaria em uma tese, dada a solenidade
implícita ao escrito, e será o único momento em que expressarei como eu mesma, na primeira
pessoa do singular. Tenho uma veia poética que não me deixa calar: meu bisavô, Lobo Manso,
homem de pouco conhecimento teórico, mas de muita sabedoria e sensibilidade, parece não deixar
calar em mim a marca da ancestralidade.

De tal maneira, minha escrita, que traz sempre o mais profundo do meu ser, é sempre tão
intensa. E este trabalho reflete o momento de maior efervescência intelectual de minha vida, até o
presente momento, o que se fez acontecer em um período de real amadurecimento de minha alma.
Digo que, antes de escrever uma tese, que materializa esse momento, vivi um período de intensivas
renovações, um verdadeiro período de transformações.

Mas encerro em mim, também, notadamente ao me manifestar pela fala, um ser com
atitudes deveras distintas das acima explicitadas: nesse terreno, sou toda arroubos, força, firmeza...
Aqui, sim, o campo da mulher nordestina, guerreira e ávida por alcançar o que deseja. E volto a ser
feminina, não esquecendo a quem dediquei este trabalho: à força feminina.

É com toda essa complexidade que me vejo às voltas de elaborar esses agradecimentos,
como ser bipolar pretensamente equilibrado que sou, e que carece reviver as marcas que a vida vai
deixando, sem ser absolutamente ingrata com quem quer que seja. Ciente, porém, da
impossibilidade de não errar nesse propósito, notadamente o de nomear pessoas importantes nesse
processo, vamos àquelas que agora me vêm à mente, às quais serão acrescidas tantas outros, em
um caminho que se revela infinito na formulação do conhecimento.

Nesse ponto, a família exerce papel fundamental e não poderia iniciar os agradecimentos
sem citar meus pais, Fernando Macedo Carneiro e Sara Jane de Oliveira Macedo Carneiro, bem
como meus quatro irmãos, meus sobrinhos. Aos meus filhos, Luis Filipe e Marcus Fernando,
espíritos tão maravilhosos que Deus me concedeu para o meu aprendizado.
Às Professoras Doutoras Maria Lírida Calou de Araújo e Mendonça e Denise Lucena
Cavalcante, por serem as companheiras de sempre nessa jornada acadêmica; tão diferentes entre
si, mas ambas absolutamente brilhantes e cujos ensinamentos vão além do Direito Tributário:
exemplos de mulheres fortes e que alcançaram um lugar ao sol em uma disciplina ainda bem
masculinizada.

À Secretaria da Fazenda do Estado do Ceará, que me permitiu um período de imersão de


90 dias consecutivos, sem os quais eu não teria chegado a apurar meus olhos para enxergar “um
pouquinho” da complexidade do fenômeno da interpretação jurídica. Nesse ponto, não poderia me
esquecer do Prof Dr Carlos Mauro Benevides Filho, Secretário da Fazenda, bem como dos Drs
João Marcos Maia e Liana Machado, uns verdadeiros anjos em minha vida.

Aos meus amigos da Célula de Consultoria e Normas, da Coordenadoria da Administração


Tributária, da SEFAZ/CE, que tenho a honra de liderar: é muito gratificante ver tantos exemplos
de honestidade e de cuidado com a coisa pública, ainda mais quando se fala da espinhosa atividade
de interpretar e de criar as normas relativas aos tributos estaduais. Não poderia deixar de citar, no
entanto, as mais do que amigas Eliana Nunes Caldas e Valéria Alves Rangel, que comigo integram
o “Trio Parada Dura”: vocês foram o conforto nos dias difíceis, com as risadas sempre fáceis de
serem encontradas. E o meu querido Francisco Ferreira Chagas Junior, simplesmente Junior, amigo
das horas difíceis e das horas fáceis: amigo de sempre. Em vocês três, resta claro que os amigos
são a família que a gente escolhe.

À Universidade de Fortaleza, centro de excelência em nossa região e local onde


praticamente todo esse texto foi elaborado. É impressionante o efeito positivo que este lugar, com
toda a sua magia, pode despertar em mim a criatividade; meu paraíso intelectual nesta Terra...

À Professora Doutora Fabiana Del Padre Tomé, um exemplo de orientadora, de pessoa


dedicada a escutar, a dialogar, sempre tão atuante. Mais um presente se encerrava na sua indicação,
tendo em conta que pareço ter ganho duplamente: uma professora altamente habilidosa e
inteligente, além de alguém que me ajudou em diversos outros momentos de indecisão, como
verdadeira amiga, paciente, em meio a um caminho que, no início, parecia obscuro para mim.

Ao Prof Dr Gregorio Robles Morchón, filósofo do Direito, que tomei como referência
absolutamente incontrastável no universo particular que eu desejava criar com esta tese. Muito
obrigada por nos ofertar uma obra tão bem estruturada e por ter sido sempre tão gentil e aberto às
minhas indagações ainda tão incipientes.

Aos Profs Drs Tacio Lacerda Gama e Clarice von Oertzen de Araujo que, juntamente com
a minha orientadora, conseguiram colocar minhas ideias no eixo (eu espero...) após o exame de
qualificação desta tese. Tudo foi ouvido com extrema atenção para eu chegar a este texto final. Ao
Prof Vianney Mesquita, da Academia Cearense de Língua Portuguesa, que me honrou com a
correção gramatical e estilística do meu texto, mostrando-me os vícios de linguagem e contribuindo
para que essa leitura seja mais digna de seus leitores.

Preciso – e faço – uma referência especial a quatro pessoas cuja atuação estabeleceram a
diferença absolutamente indescritível nesse processo. Resolvi elencá-los em ordem alfabética, para
que não haja dúvida quanto a uma suposta precedência: cada um, da maneira que lhe é toda
particular, contribuiu com um pedaço especial desta tese.

Assim, houve um dia em que conheci uma pessoa absolutamente diferente e que
influenciaria tão intensamente a minha vida acadêmica, que eu jamais me desvencilharia dela: os
meus sinceros agradecimentos à minha siamesa, Professora Doutora Germana Parente Neiva
Belchior, intelectual de uma nova geração, absolutamente comprometida com a Academia e com
a pesquisa. Não teria como expressar as infinitas portas em minha vida e em minha cabeça que
foram abertas graças a você. Muito obrigada...

Ao meu querido marido, Marcus Vinícius Pacobahyba, de quem me apropriei do sobrenome


(cujo significado é melhor não revelar), veio a confirmar a vida em tons proféticos: você é a luz
que Deus me deu para trilhar esse caminho da vida de uma maneira absolutamente influenciada
positivamente e cheia de afetos. Quando penso no que ainda preciso melhorar, miro-me em você,
e aí fica tudo mais fácil (e possível). Meu amor e minha fidelidade inteiramente dedicados a você,
enquanto você ainda desejar permanecer ao meu lado.

A seguir, um presente ofertado pela Professora Doutora Denise Lucena Cavalcante e que
mudaria radicalmente a minha vida: conhecer e me aprofundar na teoria fecunda desenvolvida pelo
Prof Dr Paulo de Barros Carvalho, com amparo nos estudos desenvolvidos no Instituto Brasileiro
de Estudos Tributários (IBET). Depois disso, digo que o mestre surgiu e que nunca mais eu me
sentiria só em minha vida intelectual. Como é bom ter um mestre e, em especial, esse mestre! E
não me sinto absolutamente só nesta jornada: para minha felicidade, vejo que esse sentimento é
compartilhado por tantos outros pesquisadores que tiveram suas vidas influenciadas pelas suas
obras e pela sua bondade. Meu muito obrigado...

Por fim, mas não menos importante, um amigo queridíssimo, que veio a mim também pelos
braços do IBET e que mudou absolutamente meu jeito de lidar com a Filosofia e com a delicadeza
da vida: ao meu querido Dr Rogério Lima, cuja sabedoria e tranquilidade sempre vieram a calhar
nos momentos em que eu parecia não avançar. Você me proporcionou os insights mais verdadeiros
e profundos nessa temática e, rogo a Deus, estejamos juntos, sempre, “trocando nossas figurinhas”
com livros e textos profundos.

Diante de todas essas joias, que representam os presentes que Deus colocou em meu
caminho, não poderia exaltar mais o resultado final do trabalho que o próprio caminhar: antes de
tudo, a tese é um processo de profundo acolhimento interior, nutrido por ricos momentos de
espiritualidade, que parecem nos indicar que a Verdade está bem próxima de cada um de nós: basta
ter olhos de ver, ouvidos de ouvir, pele para sentir... E acrescento: mãos de escrever (ou digitar).

Aos meus alunos: do passado, do presente e do futuro, por tudo!!!

Meus sinceros agradecimentos à Vida!


“Uma interpretação definitiva parece ser uma contradição em
si mesma. A interpretação é algo que sempre está em marcha,
que não conclui nunca. A palavra interpretação faz, pois,
referência à finitude do ser humano e a finitude do
conhecimento humano”. GADAMER

“Torna-te quem tu és”. NIETZSCHE

“Las ideas se tienem; en las creencias se está”. ORTEGA Y


GASSET

“Eu sou de uma terra que o povo padece


Mas nunca esmorece, procura vencê,
Da terra adorada, que a bela cabôca
De riso na boca zomba no sofrê.
(...)
Ninguém me desmente, pois, é com certeza,
Quem qué vê beleza vem ao Cariri,
Minha terra amada pissui mais ainda,
A muié mais linda que tem o Brasi.
Terra da jandaia, berço de Iracema,
Dona do poema de Zé de Alencá,
Eu sou brasileiro, fio do Nordeste,
Sou cabra da peste, sou do Ceará”. PATATIVA DO ASSARÉ
RESUMO

Ao se observar a maneira como se processa a interpretação jurídico-tributária, percebem-se


movimentos distintos e que parecem calhar em um ponto de enfrentamento intelectual. De um lado,
a Hermenêutica tradicional, fincada na literalidade do CTN, e que busca o sentido dos textos
normativos com base na extração de seus conteúdos. E arrimada nesta Hermenêutica, a elaboração
da doutrina e da jurisprudência que que faz verberar um sentido de assertividade, de completude,
de certeza. Sob outra perspectiva, movimentos que identificam o Direito como sendo linguagem,
o que faz culminar em ideias complexas e em um diálogo constante entre textos, dada a dificuldade
sempre ocorrente em se enxergar a realidade jurídica sob o signo da linguagem. Na doutrina e na
jurisprudência que lhe seguem, aprofundamentos em matérias que antes pareciam esgotadas,
retornos às estruturas fundamentais normativas e reconhecimento da incompletude de tudo quanto
se diga acerca do fenômeno jurídico-tributário. E aqui desponta o Constructivismo Lógico-
Semântico, de Paulo de Barros Carvalho. A justificativa desta pesquisa se fundamenta no enfoque
original que se busca oferecer à problemática, tendo em vista que aborda a ideia de movimentos
hermenêuticos na Ciência do Direito, de sorte a investigar a possibilidade de estabelecimento dos
caracteres próprios desses dois movimentos, situados em tempos não cronológicos distintos: o
primeiro, do “passado que ainda se faz presente”, representa o enfoque tradicional; o segundo, do
“futuro que já se faz presente”, tem como ponto de partida a obra fundamental do Constructivismo
Lógico-Semântico. Com efeito, o problema de partida é: podem ser individualizados mo(vi)mentos
distintos na maneira como se processa a Hermenêutica Jurídico-Tributária brasileira? O objetivo
geral da pesquisa é investigar a possibilidade de identificação desses movimentos hermenêuticos e
o estabelecimento de caracteres que representem a superação do modelo tradicional, dados os
influxos decorrentes da adoção do paradigma da linguagem, bem como da promulgação da
Constituição Federal de 1988 e, mais recentemente, do Código de Processo Civil de 2016. A
metodologia utilizada é o caminho que interlaça o método analítico-hermenêutico, próprio do
Constructivismo Lógico-Semântico, sob os influxos de perspectivas semióticas no dado jurídico:
aqui, a estruturação de planos sintático, semântico e pragmático da linguagem, pelo qual o próprio
objeto é construído por um sujeito, que também é pela linguagem. Com tudo isso, a estruturação
do pensamento contido neste trabalho margeia reflexões que se processam no âmbito da
Epistemologia Jurídica, da Teoria do Direito e do próprio Direito Tributário. A hipótese central do
trabalho é que, apesar de novos influxos intelectuais na dogmática jurídico-tributária brasileira, os
juristas e estudiosos do Direito Tributário ainda se valem de panoramas hermenêuticos
ultrapassados, apegando-se à utilização dos diversos métodos espraiados no CTN e que mascaram
a complexidade do fenômeno normativo. E isso se dá mesmo após as influências determinantes da
CF/88. Efetivamente, aprofundam-se as possibilidades que permitem lidar com paradigmas
diferenciados na interpretação dos textos e dos fatos jurídico-tributários, como a maneira de
empreender uma nova racionalidade jurídica que alinhe Teoria Geral do Direito e Direito Tributário
com esteio no diálogo entre as diversas linguagens, competentes e incompetentes, que se plasmam
no discurso normativo brasileiro.

Palavras-Chave: Constructivismo Lógico-Semântico. Movimentos. Hermenêutica Jurídico-


Tributária. Tempo não Cronológico. Código Tributário Nacional (CTN).
ABSTRACT
When observing the way in which the juridical-tax interpretation has been processed, distinct
movements are perceived and that seem to fit in a point of intellectual confrontation. On the one
hand, traditional hermeneutics, based on the literality of the CTN, which seeks the meaning of
normative texts from an extraction of their contents. And from this hermeneutics, the construction
of doctrine and jurisprudence that makes verberar a sense of assertiveness, completeness, certainty.
From another perspective, movements that identify law as being a language, which culminates in
complex ideas and a constant dialogue between texts, given the difficulty always present in seeing
the legal reality under the sign of language. In the doctrine and jurisprudence that follow, deepening
in matters that before seemed exhausted, returns to the fundamental normative structures and
recognition of the incompleteness of everything that is said about the legal-tributary phenomenon.
And here, emerges the Logical-Semantic Constructivism, by Paulo de Barros Carvalho. The
justification of this research is based on the original approach that seeks to offer to the problematic,
considering that it approaches the idea of hermeneutical movements in the Science of Law, in order
to investigate the possibility of establishing the proper characteristics of these two movements,
located in times not -chronic logics: the first, from the "past that is still present", represents the
traditional approach; the second, of the "future that is already present", has as its starting point the
fundamental work of Logical-Semantic Constructivism. Thus, the starting problem is: can
individual different motifs be identified in the way Brazilian juridical-tax hermeneutics takes
place? The general objective of the research is to investigate the possibility of identifying these
hermeneutical movements and the establishment of characters that represent the overcoming of the
traditional model, given the inflows resulting from the adoption of the paradigm of language, as
well as the promulgation of the Federal Constitution of 1988 and, more recently, the new Code of
Civil Procedure. The methodology used is the path that interweaves the analytical-hermeneutic
method, which is characteristic of Logical-Semantic Constructivism, under the influence of
semiotic perspectives in the juridical data: here the syntactic, semantic and pragmatic plans
structuring of language, by which the object itself is constructed by a subject, which is also by
language. With all of this, the structuring of the thought contained in this work margeia reflections
that are processed in the scope of Legal Epistemology, Law Theory and Tax Law itself. The central
hypothesis of the work is that, in spite of new intellectual influences in Brazilian juridical-tax
doctrine, jurists and scholars of tax law still rely on ulteriorated hermeneutic views, clinging to the
use of the various methods scattered in the CTN and masking the complexity of the normative
phenomenon. This is true even after the decisive influences of CF / 88. In this way, the possibilities
that allow us to deal with different paradigms in the interpretation of texts and legal-tax aspects, as
a way of undertaking a new legal rationality that align General Theory of Law and Tax Law from
the dialogue between the different languages are deepened, competent and incompetent, which are
reflected in Brazilian normative discourse.

Key Words: Logical-Semantic Constructivism. Movements. Legal-tax hermeneutics. Non-


chronological time. National Tax Code (CTN).
SUMARIO

INTRODUÇÃO ...................................................................................................... 17

LIVRO I – A HERMENÊUTICA JURÍDICO-TRIBUTÁRIA EM UM


“PASSADO QUE AINDA SE FAZ PRESENTE”: PARADIGMA DO STATUS
QUO E ANOMALIAS INERENTES A ESTE MODELO ................................. 32

CAPÍTULO 1. PAUSA BREVE: PELA ELUCIDAÇÃO DE ASPECTOS


FILOSÓFICOS ACERCA DA INTERPRETAÇÃO E SUA
CONCATENAÇÃO COM A HERMENÊUTICA JURÍDICA ......................... 32

CAPÍTULO 2. PAUSA LONGA: ASPECTOS CIENTÍFICOS


FUNDAMENTAIS PARA O DIREITO. O PROBLEMA DO
CONHECIMENTO E SUAS CONEXÕES COM A HERMENÊUTICA
JURÍDICA .............................................................................................................. 46

2.1 EPISTEMOLOGIA E GÊNESE DO CONHECIMENTO: ESTUDOS COM BASE NAS


ABORDAGENS EMPIRISTA, RACIONALISTA E INTUICIONISTA E A RELAÇÃO SUJEITO-
OBJETO............................................................................................................................ 50

2.2 CONHE(CIMENTO) CIENTÍFICO, EDIFICANDO PARA RUIR: LUZES SOBRE O QUE O


CONHECIMENTO CIENTÍFICO É E, MAIS AINDA, SOBRE O QUE ELE NÃO É ................... 61

CAPÍTULO 3. PAUSA ÚLTIMA: PELA COMPREENSÃO DE ASPECTOS


DA HERMENÊUTICA TRADICIONAL ........................................................... 74

CAPÍTULO 4. ALGUMAS OBSERVAÇÕES ACERCA DO MÉTODO: A


MENSURAÇÃO DA REALIDADE NO “PASSADO QUE AINDA SE FAZ
PRESENTE” DESDE A PROBLEMÁTICA NOÇÃO DE LIMITES À
INTERPRETAÇÃO ............................................................................................... 83

CAPÍTULO 5. O TEXTO COMO MEDIDA DE CONTENÇÃO: CTN E OS


CÂNONES DA INTERPRETAÇÃO. O PORQUÊ DA ESTAGNAÇÃO NO
PASSADO E A SACRALIDADE DAS NORMAS TRIBUTÁRIAS ................ 93

5.1 O ART. 106, INCISO I, DO CTN, E A ANÁLISE DA LEI EXPRESSAMENTE


INTERPRETATIVA PARA A CONFIGURAÇÃO DE FATOS GERADORES DE OBRIGAÇÃO
TRIBUTÁRIA PRINCIPAL: O DOGMA DA SOBERANIA DO PARLAMENTO NA LEGISLAÇÃO
BRASILEIRA E A AFRONTA AO ART. 150, INCISO III, ALÍNEA “A”, DA CF/88 ................ 99
5.2 O ART. 106, INCISO I, DO CTN, E A ANÁLISE DA LEI EXPRESSAMENTE
INTERPRETATIVA PARA A CONFIGURAÇÃO DE FATOS GERADORES DE “DEVERES
INSTRUMENTAIS”: AINDA ASSIM, A INCONSTITUCIONALIDADE .............................. 112

5.3 OS ARTS. 107, 108 E 110 DO CTN E A QUESTÃO DO VETOR INTERPRETATIVO


99

5.4 INTERPRETAÇÃO LITERAL E A INASFASTÁVEL CONDIÇÃO DE AMPLITUDE


SEMÂNTICA E PRAGMÁTICA DOS TEXTOS: ANÁLISE À LUZ DO ART. 111 DO CTN
115
5.4.1 O Caso Dos Benefícios Fiscais Relativos Ao ICMS Nas Saídas De Insumos
Agropecuários Previstos No Convênio ICMS nº 100, de 1997: Interpretação Literal e
Valores Constitucionais ..................................................................................................... 118

5.4.1.1 “Aves de um dia”: fragilidades na interpretação literal e no rigor técnico da


legislação tributária do ICMS.......................................................................................... 119
5.4.1.2 Convênio ICMS nº 100, de 1997, e a inviabilidade de fundamentação constitucional
dos benefícios fiscais de ICMS para os agrotóxicos ........................................................ 124
5.4.2 A Dimensão do Signo “Leite” para o Reconhecimento do Benefício Fiscal aos
Produtos Previstos nas Cestas Básicas dos Estados e do DF, nos Termos das Legislações
Estaduais e do Convênio ICMS nº 128, de 1994 .............................................................. 125

5.4.3. Pausa Breve Para Outro Tributo Estadual: A Incidência Do Ipva Sobre
Aeronaves E Embarcações E As Conveniências De Uma Interpretação Literal Pelo STF
130

CAPÍTULO 6. A CONSTRUÇÃO DA MOLDURA DE KELSEN COMO UM


PRIMEIRO PASSO DO PROCESSO INTERPRETATIVO, SOB A ÓPTICA
POSITIVISTA, E SUA INFLUÊNCIA MARCANTE PARA A
HERMERNÊUTICA JURÍDICA TRADICIONAL ......................................... 144

CAPÍTULO 7. PANORAMAS HERMENÊUTICOS JURÍDICO-


TRIBUTÁRIOS DO “PASSADO QUE AINDA SE FAZ PRESENTE”
ESTRUTURADOS COM SUPORTE NA ANÁLISE DE JULGADOS DO STF
E DO STJ EM QUESTÕES RELATIVAS À INCIDÊNCIA DO ICMS NAS
OPERAÇÕES DE CIRCULAÇÃO DE MERCADORIAS ............................. 149

7.1 STJ: RESP Nº 1.092.206/SP E SEUS POTENCIAIS EFEITOS SOBRE O RE Nº 605.552


NO STF. FORNECIMENTO DE SOLUÇÕES DE EMULSÕES ENTERAIS E PARENTERAIS E
O “ETERNO” CONFLITO ENTRE ENTES TRIBUTANTES DO ISS E DO ICMS: UMA
POSSIBILIDADE INTERPRETATIVA .............................................................................. 149
7.2 STF: RE Nº 176.626-3/SP E UM CONCEITO CONSTITUCIONAL DE MERCADORIA
....................................................................................................................................... 159

7.3 STF: O RETROCESSO NO JULGAMENTO DO RE Nº 593.849 E DAS ADIS NºS


2.665/PE E 2.777/SP ANTE A CONSOLIDAÇÃO HAVIDA ULTERIORMENTE COM A ADI
Nº 1.851: COMO O STF FUNDAMENTOU A TRANSFORMAÇÃO DO PRINCÍPIO DA
EFICIÊNCIA EM MERA VANTAGEM PRAGMÁTICA .................................................... 164

LIVRO II – A HERMENÊUTICA JURÍDICO-TRIBUTÁRIA NO “FUTURO


QUE JÁ SE FAZ PRESENTE” .......................................................................... 178

CAPÍTULO 8. “SENDO ASSIM, O DIREITO POSTO, ENQUANTO


CONJUNTO DE PRESCRIÇÕES JURÍDICAS, NUM DETERMINADO
ESPAÇO TERRITORIAL E NUM PRECISO INTERVALO DE TEMPO,
SERÁ TOMADO COMO OBJETO DA CULTURA, CRIADO PELO HOMEM
PARA ORGANIZAR OS COMPORTAMENTOS INTERSUBJETIVOS,
CANALIZANDO-OS EM DIREÇÃO AOS VALORES QUE A SOCIEDADE
QUER VER REALIZADOS”: CARACTERÍSTICAS FUNDAMENTAIS DO
CONSTRUCTIVISMO LÓGICO-SEMÂNTICO ............................................ 178

8.1 “O APROFUNDAMENTO COGNOSCITIVO REQUER, COM TEIMOSA INSISTÊNCIA, A


PRESENÇA DA TEORIA GERAL E DA FILOSOFIA COMO CONDIÇÕES DE SUA
POSSIBILIDADE”: POR UMA POROSIDADE NECESSÁRIA ENTRE OS CONHECIMENTOS
CIENTÍFICO E FILOSÓFICO ......................................................................................... 189

8.2 “[...], PARTIREI, EM ESFORÇO ANALÍTICO, DA DECOMPOSIÇÃO LÓGICO-


SEMÂNTICA DO FENÔMENO DA INCIDÊNCIA DA REGRA TRIBUTÁRIA, QUERENDO
SABER COMO SE DÁ A PERCUSSÃO DA NORMA, JURIDICIZANDO O ACONTECIMENTO
DO MUNDO DA EXPERIÊNCIA SOCIAL E FAZENDO PROPAGAR EFEITOS PECULIARES
NA DISCIPLINA DAS CONDUTAS INTERPESSOAIS”: INTERPRETANDO EVENTOS E
CONSTRUINDO FATOS JURÍDICOS À LUZ DO CONSTRUCTIVISMO LÓGICO-
SEMÂNTICO .................................................................................................................. 195

8.3 “A PESQUISA DO FENÔMENO JURÍDICO, COM OS RECURSOS DA TEORIA


COMUNICACIONAL, POSSIBILITOU ATINGIR NÍVEIS MAIS PROFUNDOS DE
OBSERVAÇÃO, BEM COMO DESENVOLVER UMA INVESTIGAÇÃO MAIS FINA E
PENETRANTE NO TRABALHO CONSTRUTIVO DA CIÊNCIA”: BREVES CONSIDERAÇÕES
SOBRE A TEORIA COMUNICACIONAL DO DIREITO ................................................... 202

CAPÍTULO 9. “A INTERPRETAÇÃO É INESGOTÁVEL, O QUE IMPORTA


RECONHECER QUE OS PROCESSOS DE GERAÇÃO DE SENTIDO
CONTINUAM, INCESSANTEMENTE, ACOMPANHANDO A OBRA AO
LONGO DE SUA EXISTÊNCIA”: TEORIA HERMENÊUTICA NO
CONSTRUCTIVISMO LÓGICO-SEMÂNTICO ............................................ 207

9.1 “MANTENHO PRESENTE, DESSE MODO, A CONCEPÇÃO PELA QUAL


INTERPRETAR É ATRIBUIR VALORES AOS SÍMBOLOS”: A AMPLITUDE DOS SIGNOS
INTERPRETAÇÃO, SENTIDO E ALCANCE E OS PLANOS SINTÁTICO, SEMÂNTICO E
PRAGMÁTICO ............................................................................................................... 208

9.2 “A INTERTEXTUALIDADE SE ENCARREGA DE APRESSAR A DESVINCULAÇÃO DOS


LAÇOS QUE PRENDEM O TEXTO ÀS SUAS ORIGENS”: O MÉTODO HERMENÊUTICO-
ANALÍTICO E OS AXIOMAS DA INTERPRETAÇÃO. INTERDISCIPLINARIDADE,
INTERTEXTUALIDADE (INTERNA E EXTERNA) E INESGOTABILIDADE DE SENTIDO216

9.3 “O PONTO DE PARTIDA É O CONCEITO ATÔMICO DE “NORMA JURÍDICA,


TANTAS VEZES VERSADO, MAS TÃO POUCO APROFUNDADO, COMO, ALIÁS, SÓI
ACONTECER COM AS NOÇÕES CEDIÇAS”: INTERPRETAÇÃO E A ELEIÇÃO DO PLANO
SINTÁTICO. O MÍNIMO IRREDUTÍVEL DE MANIFESTAÇÃO DO DEÔNTICO COM
SENTIDO COMPLETO ................................................................................................... 219

9.4 “NÃO OBSTANTE AS LINGUAGENS DA TEORIA E DA PRÁTICA SEJAM


INDISSOCIÁVEIS E IMPRESCINDÍVEIS AO CONHECIMENTO, ESTE SÓ SE REALIZA
PLENAMENTE MEDIANTE A EXISTÊNCIA DE UMA TERCEIRA LINGUAGEM: A DA
EXPERIÊNCIA”: TEORIA, PRÁTICA E EXPERIÊNCIA NO PERCURSO GERADOR DE
SENTIDO ........................................................................................................................ 223

9.5 “O PROCEDIMENTO RETÓRICO DESENVOLVE-SE COM OS MESMOS TRAÇOS


DIALÓGICOS, OFERECENDO VARIAÇÕES OCORRENTES EM VIRTUDE DE CONTEÚDOS
QUE OSCILAM”: A ABERTURA AO DIÁLOGO COMO O TRAÇO DIFERENCIADOR DO
CONSTRUCTIVISMO LÓGICO-SEMÂNTICO EM TEMPOS DE MUNDO COMPLEXO E
PLURAL ......................................................................................................................... 230

CAPÍTULO 10. PANORAMAS HERMENÊUTICOS JURÍDICO-


TRIBUTÁRIOS DO “FUTURO QUE JÁ SE FAZ PRESENTE”
ESTRUTURADOS COM AMPARO NA ANÁLISE DE JULGADOS DOS
TRIBUNAIS SUPERIORES RELATIVOS À INCIDÊNCIA DO ICMS NAS
OPERAÇÕES DE CIRCULAÇÃO DE MERCADORIAS ............................. 232

10.1 STF: TUTELA PROVISÓRIA NA ADI Nº 5.866/DF. COMPREENDENDO A


COMPLEXIDADE NA ATRIBUIÇÃO DE RESPONSABILIDADE TRIBUTÁRIA NO ICMS
232

10.2 O “SILÊNCIO RETÓRICO” DA CIÊNCIA DO DIREITO TRIBUTÁRIO BRASILEIRO


COM A PROMULGAÇÃO DA LEI COMPLEMENTAR Nº 160, DE 2017 ......................... 243
10.3 OUTRA PAUSA PARA O IPVA: O QUE ESPERAR DA ADI Nº 5.654/CE .............. 248

CAPÍTULO 11. PERSPECTIVAS FUTURÍSTICAS ARRIMADAS NO


CONSTRUCTIVISMO LÓGICO-SEMÂNTICO: O INTÉRPRETE COMO
UM JANO MULTIFRONTE E A ÊNFASE NA CONSTRUÇÃO COLETIVA
................................................................................................................................ 255

11.1 POR UM NOVO MODELO PARA O PERCURSO GERADOR DE SENTIDO:


PLURIDIMENSIONALIDADE E NOVAS PERSPECTIVAS HERMENÊUTICAS.................. 258

11.2. A PLURIDIMENSIONALIDADE DO PERCURSO GERADOR DE SENTIDO DO CLS:


PELA IDEALIZAÇÃO DE UM PERCURSO AMPLIADO DE POSSIBILIDADES
HERMENÊUTICAS ......................................................................................................... 261
11.2.1 O porquê de uma nova perspectiva para o percurso gerador de sentido .......... 263

11.2.2 Imagem pluridimensional do percurso gerador de sentido para o Constructivismo


Lógico-Semântico e o hiperplano do presente ................................................................. 265

11.2.3 A pré-compreensão como a dimensão anterior ao hiperplano presente e integrante


do percurso gerador de sentido ........................................................................................ 269

11.2.4 As Dimensões S1, S2, S3 e S4: voltando ao hiperplano presente e permitindo a


circularidade hermenêutica .............................................................................................. 272

CONCLUSÃO ...................................................................................................... 277

REFERÊNCIAS ................................................................................................... 286


17

INTRODUÇÃO

A presente abordagem, que pretende encetar o modo de aproximação dos fluxos temporais
distintos que permeiam esse trabalho, carece de algumas observações inaugurais, para que se
compreenda o pensamento que se quis estruturar nesta tese, e cujo centralidade está contida na
hermenêutica jurídico-tributária1. Desde já, pede-se licença para utilização das expressões
“passado que ainda se faz presente” e “futuro que já se faz presente” entre aspas, o que é praxe na
gramática pátria ao se utilizar das palavras fora do seu uso convencional. Assim, como se falar em
um passado que ainda ecoa, isto é, que ainda é “presente”, bem como de um futuro que já se faz
“presente”? Não haveria uma contradição, ou mesmo, estabelecer-se-ia um choque na utilização
destes termos? É o que se passará a explicitar desde agora.

Assim, inicialmente, pode-se afirmar que se trabalha com uma noção de transcurso do
tempo2, a fim de identificar contextos interpretativos distintos, os quais expressam modalidades
diversas de se estruturar a legislação jurídico-tributária brasileira, e, em especial, do Imposto sobre
Operações relativas à Circulação de Mercadorias e sobre a Prestação de Serviços de Transporte
Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação (ICMS), e seus reflexos na doutrina e na
jurisprudência. No tocante a este imposto, além de farta legislação emanada do Conselho Nacional
de Política Fazendária (CONFAZ), serão trazidos exemplos da legislação estadual, notadamente
dos Estados do Ceará e de São Paulo. Deve-se ressaltar, ainda, que dada a familiaridade do percurso
profissional que se desenvolve, eventualmente outros tributos estaduais podem compor a análise

1
Começando com Denise Lucena Cavalcante (2004, p. 15), “no Direito nenhum assunto está esgotado. Sempre há
possibilidades de um novo olhar, mesmo em relação às questões antigas. Numa monografia sempre se questiona sobre
a novidade do tema. Dependendo do prisma sob que se analise, tudo pode ser novo, como pode ser velho. Reinventar
conceitos para justificar novidade não é científico. Ciência é conhecimento, e o conhecimento é a consciência de algo
por si mesmo. Quando o sujeito busca reagir ativamente no mundo que o circunda, desvendando seus objetos, acabará
produzindo suas idéias [sic], e este produto sempre será algo novo”. É com esse espírito que se inicia uma abordagem
acerca da “boa e velha” hermenêutica.
2
E essa ideia que permeará a elaboração científico-filosófica que ora se inicia concilia-se à descrição realizada por
Dardo Scavino (2014, p. 6), ao tratar do passado, do presente e do futuro: “À medida que nos deslocamos, recolhemos
em cada presente da experiência não apenas o passado imediato, mas também o futuro imimente: existe um
‘horizonte bilateral’ de ‘retenção’ e de ‘projeção’, segundo o léxico de Husserl, pressuposto em cada percepção
atual. Se não estão ‘ausentes’, o passado e o futuro ‘coexistem’, poderia dizer-se, com o presente. Se não fosse
assim, nunca veríamos as coisas, mas uma série descontínua de imagens instantâneas sem relação entre si: seria o
esmigalhamento do mundo em fragmentos carentes de unidade” (destacado). É com base nessa imagem que se pode
ter uma dimensão da percepção que tentará ser aqui descrita, acerca da Hermenêutica Jurídico-Tributária.
18

que ora se pretende, sempre com olhos fitos nos contornos de movimentos hermenêutico-jurídicos
distintos que convivem simultaneamente.

Isso porque a pergunta central do trabalho está relacionada à possibilidade de se identificar


movimentos distintos na Hermenêutica Jurídico-Tributária, os quais estariam conectados a
configurações de premissas diversas tanto em termos de arcabouço jurídico-normativo, quanto do
desenvolvimento da Ciência do Direito. Deve-se ressaltar que, no concernente ao arcabouço
jurídico-normativo, nele se inclui toda a jurisprudência, a qual, normalmente, em um sentido
quantitativo, perlustra parcela considerável do conjunto de normas individuais e concretas vigentes
em um determinado país. Não se pode olvidar, contudo, a importância do Judiciário em,
hodiernamente, fixar normas que ultrapassam o caráter individual e concreto, o que foi
absolutamente potencializado com a entrada em vigor de novo Código de Processo Civil (Lei nº
13.105, de 16 de março de 2015).

A justificativa desta tese se conforma no enfoque original que se busca oferecer à Ciência
do Direito Tributário, tendo em vista que aborda a quebra de paradigmas da Hermenêutica Jurídico-
Tributária tradicional, desde perspectivas que permitem aproximações mais complexas do dado
normativo, especialmente sob a perspectiva da linguagem, o que inaugura novos patamares para a
interpretação jurídico-tributária.

Em razão de tudo isso, a hipótese central desta tese é que houve um rompimento na maneira
como se efetivava a trajetória de interpretação no Direito Tributário, o que faz sair de um terreno
de tecnicismo permeado de certezas e de linearidades, com discursos retóricos bem construídos e
com perspectiva de abarcar a verdade sobre os problemas que são enfrentados pelos aplicadores do
Direito, e avança para uma zona pantanosa, incerta, complexa, e que se engrandece pela profusão
dos diálogos e de perspectivas qualitativamente mais bem trabalhadas, tudo mediado pela
linguagem. Nesse ponto, o percurso gerador de sentido das normas é algo incessante, sempre aberto
a novas perspectivas e em contínua formulação.
19

A primeira premissa merece ser fincada: a ideia de tempo aqui defendida (ao se utilizar do
passado, do presente e do futuro) não se conecta ao viés da linearidade3, do movimento de
passagem de minutos e segundos que se observa nos relógios. Não!4 Diferentemente disso,
percebe-se que esses movimentos diversos observáveis na interpretação jurídico-tributária são
semelhantes a um encontro de águas: de um lado, águas em tom marrom, bem definidas, e, de outro
lado, águas azuladas. Entre ambas, uma zona de confluência que expressa uma mistura indefinida,
em que a individualidade parece se perder no contexto, e se cria uma realidade que não é bem a
soma de ambas. E, desde então, nunca mais os rios serão os mesmos: e é nesse encontro de águas
que todos se encontram no presente momento. Portanto é mais uma inspiração na temporalidade
cultural descrita por Ferraz Jr (2014a) do que no tempo cronológico: torna o passado algo ainda
interessante, por fazer os intérpretes aparentemente repousarem em águas tranquilas, e reconhece
o “futuro que já se faz presente”, desde uma escola que promove o diálogo e não olvida as
complexidades inerentes ao fenômeno jurídico: uma promessa que já se realiza. No meio de tudo
isso, tendo compreender, alguém que depara a realidade jurídico-normativa em sentido amplo e
busca melhor descrever ou constituir aquilo que surge no plano das ideias.

Se no direito positivo é o legislador quem comanda os relógios, conforme defende Carvalho


(2016b)5, ou se nele se estrutura uma capacidade da retomada do passado e de projeção do futuro

3
No que concerne a essa divisão feita do tempo, pelo homem, em presente, passado e futuro, afina-se a ideia desta tese
com a premissa de que são apenas criações intelectuais que podem ser facilmente confundidas no processo de
interpretação (e interpretação aqui pode se referir à própria vida). E a própria Física, bem como a Psicologia, estão aí
para demonstrar isso. A tentativa aqui é de materializar essas percepções desde marcos teóricos peculiares, mas que
não se encontram cerrados em cada uma das “caixinhas” do tempo. Nessa medida, vale citar um trecho das “Lições
trentinas” de Paul K. Feyerabend (2016, p. 70), um físico e filósofo radical, que lembra a frase de Albert Einstein:
“Einstein foi além. Dirigindo-se à irmã de sua falecida amiga Michele Besso, ele escreveu: ‘Para nós, físicos convictos,
a distinção entre passado, presente e futuro não significa nada além de uma ilusão, embora tenaz’ – significando
que todas as vidas humanas e todas as experiências reunidas em seu curso, o nascimento, o crescimento e a morte, são
‘ilusões, muito tenazes’. Popper tinha razão quando chamou Einstein de Parmênides de quatro dimensões” (destacado).
4
Essa ênfase em não se apegar a uma noção de tempo linear, cronológica, também é encontrada no Prefácio à 2ª edição,
redigido por Paulo de Barros Carvalho (2016b, pp. XXVII-XXVIII), do “Curso de decadência e de prescrição no
direito tributário: regras do direito e segurança jurídica”, de Renata Elaine Silva Ricetti Marques. Nesse prefácio, o
Jurista paulista assim se manifesta sobre o tema da decadência e da prescrição: “O tema é um desafio constante à
compreensão do intérprete, suscitando dúvidas de todas as direções, pois não se trata aqui do tempo cronológico,
histórico, biológico ou tomado em outras e variadas acepções. O sentido de ‘tempo’, para o direito, há de ser uma
construção eminentemente prescritiva, como, de resto, os marcadores de espaço e aqueles que se referem ao miolo dos
fatos e das condutas (que também são fatos relacionais). O legislador (em sentido amplo, aquele que introduz normas
no sistema) é quem diz como o tempo deve ser contado: seu início, a continuidade ou descontinuidade de seu fluxo, e
o tópico que vai assinalar o termo final de sua duração: ‘o direito é senhor do tempo’, segundo a tradicional asserção
dos juristas”.
5
Citação extraída do prefácio acima transcrito.
20

como indica Ferraz Junior (2014a), apontando como o tempo deve ser contado, na Ciência do
Direito, cabe ao estudioso deparar uma torrente de acontecimentos e projetá-los em um movimento
que envolva cadência e continuidade, mas que não necessariamente transcorre em um fluxo reto.
Nessa medida, avanços, retrocessos, mais retrocessos, avanços mais tímidos, revezam-se
continuamente, mas sempre na crença de que a evolução do direito, e de toda a sociedade, ocorrem,
ainda que a passos lentos.

Pode-se afirmar, ainda, que semelhante descrição do movimento empreendido na ideia de


“livros” deste trabalho está contido na noção de paradigma, tão bem delimitada por Thomas Samuel
Kuhn (2013), em seu “A estrutura das revoluções científicas”, o qual foi talhado para as chamadas
ciências “duras”, mas que pode ser amplamente aproveitado pelas chamadas ciências sociais, como
se pretende com o Direito e, aqui, mais especificamente, com o Direito Tributário.

Tais ideias serão utilizadas continuamente nesta tese. Isso porque se vislumbrou um
momento inicial, que será descrito no Livro I sob o título “passado que ainda se faz presente”, cujo
marco inicial é identificado com a entrada em vigor da Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966, isto
é, em 1º de janeiro de 1967. Vale ressaltar que foi apenas com o Ato Complementar nº 36, de 13
de março de 1967, que esta lei ordinária passou a ser denominada de “Código Tributário Nacional
- CTN”, nomenclatura que será utilizada aqui, à exaustão. A escolha dessa data, como um marco
que pontua aquilo que se qualifica como passado, certamente, tem algo de arbitrário, como o
processo de grande parte das escolhas, mas o que se buscará é moldar o sentido de conjunto
delimitado e separável de outras realidades.

Assim, o CTN constitui-se em diploma organizador no nível infraconstitucional e que


mantém uma vitalidade surpreendente, apesar de se estar vivendo, na atualidade, um movimento
que parece absolutamente diferente, com resíduos dos tempos passados: como não admitir, pelo
menos no que respeita ao ICMS, por exemplo, a manutenção de um “direito tributário
invertebrado” ou a profusão enlouquecedora de normas que deveriam estar em conformidade com
os arquétipos superiores e que, no mais das vezes, destoam absurdamente do plano teórico.

Essa abordagem, contudo, apesar de fazer menção aos institutos dogmáticos tradicionais,
bem como à legislação e à jurisprudência erigidos, não tem pretensão de realizar estudo de História
do Direito. Do contrário, buscar-se-á identificar a manutenção desse movimento paradigmático que
21

deveria estar situado no passado, mas que ainda ecoa nas decisões mais recentes dos órgãos
administrativos, na doutrina e na jurisprudência, ainda que dos Tribunais superiores.

Tal momento, do “passado que ainda se faz presente”, com peculiaridades, resolve os
problemas, ou “quebra-cabeças” que lhe são postos quando do confronto de ideias na Ciência do
Direito e na própria jurisprudência, dentro de um movimento que “tenta”6 se caracterizar pela
linearidade e certeza. Assim, epistemologicamente, considera-se o direito positivo nas elaborações
dogmáticas que se seguirão.

Nesse ponto inicial do momento paradigmático a ser enaltecido, o imposto que é figura
central desta análise denominava-se “Imposto Estadual sobre Operações Relativas à Circulação de
Mercadorias”, tendo passado, com a Constituição Federal de 1988, à atual nomenclatura
identificada pela sigla ICMS7. Tal tributo será acompanhado de perto nos dois livros em que se
divide o trabalho, identificando-se as anomalias que tornam insustentável a manutenção do status
quo e, consequentemente, induzirão (ou já induziram) a uma crise no sistema tributário, com a
deflagração de outra revolução que institui um distinto status quo.

Vale ressaltar, ainda, que a materialidade a ser aqui explorada no que diz respeito ao ICMS
se cingirá à realização de operação de circulação de mercadorias, ficando fora da análise que ora
se empreende as prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal, bem como as
prestações de serviços de comunicação. Estas são altamente complexas e também carentes de novas
perspectivas, dada a (des)materialização do conceito de mercadoria.

Fixado de modo objetivo o marco inicial, o Livro I também conterá os traços dos primeiros
passos da Ciência do Direito, que se erigem juntamente com o CTN, tendo como obra doutrinária
de maior importância, neste momento, o texto “clássico sempre novo, novíssimo” (CARVALHO,

6
A alusão a uma tentativa de caracterização do primeiro movimento hermenêutico jurídico-tributário como sendo
certo e linear revela-se diante da impossibilidade de fazê-lo, dada a complexidade da realidade social que é subjacente
à realidade jurídica. Apenas um ideal romântico positivista poderia ter a pretensão de oferecer respostas para todas as
indagações e de constituir um sistema que fosse absolutamente lacrado para os fatos do mundo.
7
Diferentemente da disposição indicativa de cada uma as letras que compõem a sigla ICMS, este imposto tem seu
“nome completo” contido no inciso II do art. 155 da CF: “Art. 155. (...) II - operações relativas à circulação de
mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que
as operações e as prestações se iniciem no exterior; (...)”.
22

2010, p. XXIII) de Alfredo Augusto Becker8, “Teoria Geral do Direito Tributário”, e, na


Hermenêutica Jurídica, a obra de Carlos Maximiliano.

A segunda premissa que será fundada aqui é a de que, dado que não se cuida de “medir o
tempo”, de apresentar fatos com precisão linear, emerge outra decorrência que lhe é ínsita: não há
como se julgar se os “acontecimentos” normativos e doutrinários se deram há muito ou há pouco
tempo, ou mesmo se ainda se dão, ainda que seja de uma paradigma localizado, didaticamente nesta
obra, no “passado”. Assim, observar-se-á que o mesmo dispositivo literalmente do CTN vigente
em 1967, por exemplo, pode permitir julgados completamente distintos nesta data9, ainda que um
deles possa ser configurado como pertencente ao “passado que ainda se faz presente” (Livro I) e o
outro esteja “localizado” no “futuro que já se faz presente” (Livro II). Aqui se conecta à ideia de
incomensurabilidade, também contida em Kuhn.

Assim, apesar de certeza quanto à fixação do marco de início desse “passado”, com a
entrada em vigor do CTN, a aceitação de que o mesmo “ainda se faz presente” denuncia que, nesta
data, ainda são encontráveis trabalhos normativos ou jurisprudenciais que mais se aferram ao
sentido desse período inicial do que propriamente reconhecem outro paradigma, já desenvolvido,
por exemplo, pelo Constructivismo Lógico-Semântico, o qual, no decurso deste trabalho, pode ser
identificado pela sigla CLS. Assim, o movimento identificado neste momento ainda ecoa no Direito
Positivo e na Ciência do Direito.

8
Sobre essa obra, que representa um dos textos mais importantes da Ciência do Direito Tributário, valem as palavras
de Paulo de Barros Carvalho, nas apresentações à 4ª e à 5ª edições: “Texto clássico é assim: atravessa os tempos e vai
instalar-se nos espaços da memória, até que nosso espírito reúna seus fragmentos e os recolha para reapresentá-los com
a vivacidade e o esplendor de idéias ‘originais’. É justamente nesse sentido que se diz que a repetição gera o novo”
(CARVALHO, 2010, p. XXI) e “Há obras que assinalam de modo incisivo a marcha do pensamento humano,
conduzindo-o para certas direções que fatores históricos vão consolidando como conquitas da cultura, nos vários
segmentos do saber. Está entre elas, sem dúvida alguma, esta 4ª edição da Teoria Geral do Direito Tributário, [...].
O Teoria Geral do Direito Tributário é, antes de tudo, um clássico. Porém, um clássico sempre novo, novíssimo
diria eu, em face de sua proposta fundamental de estruturar a mente do jurista que lida com a matéria tributária,
ensinando-o a pensar com o senso jurídico, muitas vezes distante do tão proclamado ‘bom senso’” (destacado). Ao
tratar da temática das ficções, em Prefácio à obra de Cristiano Carvalho (2008), Paulo de Barros Carvalho (2008, p.
XIX) novamente deixa pistas sobre esse “bom senso” e o “senso jurídico”: “Ora, é justamente naquele espaço que
excede a coincidência, quando o direito ultrapassa os limites do previsível e mesmo do possível no quadro do real-
social, que aparecem e comparecem as ficções. Sem tais recursos de caráter extralógico o legislador encontrar-se-ia
atrelado à causalidade físico-social, impotente de prosseguir em direão às suas finalidades. Enfim, o direito cria seus
próprios elementos a tal ponto que o ‘bom senso’ não pode compreendê-lo, cedendo lugar ao ‘senso jurídico’”.
9
Aqui, sim, sendo o tempo tratado linearmente.
23

Enquadrar um determinado trabalho doutrinário ou manifestação jurisprudencial sob a


modalidade de um “passado que ainda se faz presente”, com as críticas que serão expostas a este
modelo, não significa que o Direito não deva promover necessariamente a conexão com esse
passado, ainda mais em tempos absolutamente inovadores em que, em vez de olharem para o
passado e “escolherem” uma decisão que seja mais adequada para fundamentar o caso levado à
análise atualmente, dos tribunais é esperada uma atuação tendente a “uniformizar sua
jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente” (art. 926, Código de Processo Civil –
CPC), o que aponta para um “holismo interpretativo, constituído a partir de uma circularidade
hermenêutica” (STRECK, 2016a, p. 156). Nessa medida, os caracteres da estabilidade, da
integridade e da coerência ressoam como um feito de manutenção do status quo monitorado
democraticamente.

Diferentemente disso, espera-se dar visibilidade, especificamente na dinâmica afeta ao


Direito Tributário, ao perigo já alertado por Lenio Luiz Streck (2016a, p. 156) “[...] de o velho
permanecer por intermédio de redefinições dos sentidos das leis, a partir de álibis teóricos como ‘a
busca dos valores’ ou ‘texto da lei é apenas a ponto do iceberg’”10. No que se refere à disciplina
dos tributos, esta estabeleceu diversos desses “álibis teóricos”, calcados em métodos como
instrumentos retóricos que inviabilizam, em suas supostas fundamentações, a plenitude do Texto
Constitucional. E tal perigo é gravíssimo em face de um sistema tributário nacional que parece
conferir maior “dignidade” ao CTN do que propriamente aos dispositivos constitucionais11.

10
Ingedore Villaça Koch e Vanda Maria Elias (2012, p. 59) também traz a metáfora do “iceberg”: “Quando adotamos,
para entender o texto, a metáfra do iceberg, que tem uma pequena superfície à flor da água (o explícito) e a imensa
superfície subjacente, que fundamenta a interpretação (o implícito), podemos chamar de contexto o iceberg como um
todo, ou seja, tudo aquilo que, de alguma forma, contribui para ou determina a construção do sentido”.
11
Mais à frente será promovida uma crítica ao art. 110 do CTN. Adiantando brevemente, vale a transcrição deste
artigo: “Art. 110. A lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e
formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, pelas Constituições
dos Estados, ou pelas Leis Orgânicas do Distrito Federal ou dos Municípios, para definir ou limitar
competências tributárias”. Ora, se determinados institutos, conceitos e formas de direito privado foram utilizados
pelas Constituições, entendidas como regramentos máximos, para definir competências tributárias, tais “institutos,
conceitos e formas” não são mais de direito privado, mas constitucionais: não se pode admitir que a CF se envergue
diante de conceitos de direito privado. Assim, a definição, o conteúdo e o alcance deles deve ser perscrutado
diretamente no Texto Maior, do qual irradiam focos ejetores normativos que, aí sim, serão devidamente trabalhados
tanto pelo direito privado, quanto pelo direito público (ainda com resvaladas criticas a esse modo tradicional de
subdividir o direito, como se fossem modelos estanques e autossuficientes).
24

Nesse ponto, a abordagem do Livro I não pode se fazer completa sem se aproximar da ideia
de fixação de limites a esses tempos aqui dispostos (passado, presente e futuro), sem que estes
sejam tratados como fatalidade, o que aqui não se pretende. Voltando-se, contudo, à alegoria do
“encontro das águas”, resta assumida desde já a dificuldade em se reportar a limites, pois estão
situados onde há mais de mistura entre águas distintas: uma inseparabilidade que se pretende
romântica e que, talvez, demonstre a dificuldade em se configurar os diversos movimentos
encontrados na Hermenêutica Jurídico-Tributária.

Quanto ao aspecto doutrinário, por pretexto de elegância ou de profundo respeito aos


teóricos que erigiram o Direito Tributário no “passado que ainda se faz presente”, evitar-se-á a
citação dos juristas ainda em atividade, dada a possibilidade de que os que não bem compreenderão
o sentido desta tese acreditem que ela se presta a apor rótulos nas teorias jurídicas de "servíveis”
ou “inservíveis”, “prestáveis” ou “imprestáveis”. Do contrário, acredita-se que todos aqueles que
contribuíram para a estruturação dogmática da Ciência do Direito Tributário, em especial em um
país que enfrentou isso tardiamente, produziram o que lhes fora melhor, como autênticos frutos de
seu tempo12.

Ademais, uma premissa final acerca do Livro I merece ser fixada introdutoriamente: torna-
se muito delicado criticar com severidade e com viés de exclusão as doutrinas jurídicas, pelo
simples fato de se admitir que as múltiplas teorias são apenas formatos distintos de se enxergar a
mesma realidade, dado que não há uniformidade na configuração do dado jurídico.

Nessa ordem, discrepam as opiniões desde a delimitação do próprio objeto da Ciência do


Direito, o que não pode resultar em uma uniformidade nas teorias decorrentes desses pontos de

12
Nesse ponto, vale a observação percuciente de André Folloni (2013, p. 37), em obra dedicada à análise da Ciência
do Direito Tributário, a partir do mestre pernambucano José Souto Maior Borges, e que relata a indignação deste jurista
quanto aos julgamentos que sofrera de sua “Teoria da isenção tributária”. Para tanto, pensa em uma hermenêutica
histórica, que busca fincar as condicionantes históricas para compreensão das teorias: “A indignação que leva SOUTO
a pensar a hermenêutica histórica se dá diante daqueles que, com aparatos contemporâneos, pretendem a crítica a
uma concepção teórica do passado, sem localizá-la enquanto tal. Isso pode ser visto, inclusive, como um ato de
desonestidade intelectual: um pensador antigo é julgado e diminuído por não levar em consideração certas situações
que só seriam compreendidas, historicamente, muito depois dele. E o julgador, que se supõe superior, não percebe –
ou não se preocupa em deixar claro – que só está aparelhado a julgar porque, entre o criticado e o crítico, houve uma
evolução teórica que aquele não poderia antecipar. Então, para JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES, ‘... é absurdo
pretender criticar, com as categorias e instrumental teóricos modernos, os ecos das eras antigas da ciência. Sem
compreendê-las na sua emergência, historicamente situada, o desacerto será inevitável’” (destacado no original).
25

partida distintos. Acredita-se, apenas, que, sob o rótulo de “Ciência do Direiro Tributário”, muito
se produziu de meras opiniões de seus autores, argumentos de autoridade que foram se
sedimentando e que distam do “fazer ciência”: como se verá a seguir, não é todo e qualquer
conhecimento que deve ser erigido à categoria de científico.

Isso não pode, contudo, levar à falta de reconhecimento das teorias13 que permitem
mudanças paradigmáticas nas ciências, e, mais ainda, com a identificação de obras ou de autores
que foram determinantes para a melhoria qualitativa do conteúdo jurídico-normativo-tributário,
com amparo em novas perspectivas hermenêuticas. Desde já se assume, entretanto, a ideia de que
as escolhas aqui empreendidas podem ser feitas de maneiras absolutamente diversas por outros
estudiosos, os quais venham a privilegiar as características de outras formulações, em detrimento
daquelas tomadas como relevantes: não há qualquer pretensão de se excluir esta ou aquela corrente.

Já em sentido oposto, a crítica à jurisprudência se justifica na medida em que se aceita que


os julgadores, em especial os dos Tribunais superiores, são as mãos de que dispõe o Estado para
exercer o poder que se pretende imparcial em um Estado Democrático de Direito. Assim, longe de
representarem concepções individuais, eventualmente criticadas, verberam um Estado que ainda
tem dificuldades em julgar as contendas tributárias que lhe são apresentadas sob o aspecto técnico-
normativo, fugindo, nas mais das vezes, para argumentos estranhos ao Direito Tributário, sob
pretextos de “quebra” do Estado ou de insustentabilidade nas prestações dos serviços públicos.

Ainda mais, e ante a fatalidade de que o ser humano é circunstancial, sendo um “produto”
moldado pelas experiências e pelo conteúdo cultural que o envolvem, o modo pelo qual se elaboram
a legislação, a jurisprudência e a Ciência do Direito Tributário, na atualidade, ainda é permeado de
um dedutivismo simplista e que não mais se adapta aos requisitos necessários à promoção da

13
Deve-se reconhecer o sentido da palavra “teoria” a partir da sua origem grega, como acentua Gadamer (1983, pp.
22-23): “A palavra teoria é uma palavra grega. Representa a caracterização propriamente dita do homem, esta aparição
quebrada e subordinada dentro do universo que, apesar de suas reduzidas e finitas medidas é capaz da intuição pura do
universo. Porém, a partir do grego, seria impossível ‘formular’ teorias. Isto soa como se fôssemos elas mesmas. A
palavra não significa – tal como sucede com o comportamento teórico assumido desde a autoconsciência – aquela
distância em relação ao ente que permite conhecer imparcialmente o que é e, desta maneira, submetê-lo a uma
dominação anônima. A distância da teoria é bem mais a da proximidade e da pertinência. O velho sentido da teoria
consiste na participação nos cerimoniais em honra dos deuses. O contemplar o processo divino não é a comprovação,
sem participação, de um estado de coisas, ou a observação de um magnífico espetáculo, mas uma autêntica participação
nos acontecimentos, um real estar presente”. Dessa forma, teorizar, antes de tudo, é falar de si mesmo, participar dessa
escuta, desta visão, deste sentido no mundo, sendo criatura e criador ao mesmo tempo, teorizando.
26

transparência, da estabilidade, da integridade, da coerência e da simplificação de todo o sistema


tributário nacional.

Relativamente à segunda parte do trabalho, intitulada de “Livro II” e que revela esse
“futuro que já se faz presente”, algumas premissas precisam ser validadas, a fim de diferenciá-lo
qualitativamente do paradigma estabelecido no Livro I. E aqui se retomam as características
enaltecidas na obra de Kuhn (2013), como medidas que convém ser reavaliadas, a fim de
compreender esse momento que se espera descrever.

De efeito, mostra do modelo do “passado que ainda se faz presente”, calcado em um


diploma normativo (CTN) da primeira fase da Ciência do Direito, faz evidenciar algumas
anomalias: a utilização da literalidade como método interpretativo; uma afirmação implícita da
chamada “vontade do legislador” na utilização dos métodos; uma simplificação insustentável no
desenho da materialidade dos tributos, com suporte em uma conexão frágil com institutos do
“direito privado”; um abuso na utilização dos deveres instrumentais pelos entes tributantes; uma
afirmação de possibilidade de o julgador escolher a interpretação que lhe pareça mais adequada,
sem levar em consideração os aspectos culturais de uma dada sociedade, dada a fragilidade na
exigência de uma fundamentação coerente, dentre outros aspectos.

Especificamente no que reporta ao ICMS, tributo central desta tese, o momento “presente”
revela-se eivado de angústias e indefinições, aprofundados pela complexidade normativa do
imposto, bem como por uma atuação do Poder Judiciário que, no mínimo se pode dizer que chega
à intempestividade14, causando uma fragilização sistêmica impressionante. Assim, mesmo com a
promulgação da Lei Complementar nº 160, de 7 de agosto de 201715, e até mesmo por conta dela,
como se verá, agrava-se a “guerra fiscal”, pela falta de disciplinamento na atuação do CONFAZ,
que muitas vezes abusa das competências que estariam a ele conferidas na LC nº 24, de 1975, pela
complexidade para o cumprimento das obrigações tributárias principal e “acessórias”,

14
O Protocolo ICMS nº 21, de 2011, “manifestamente inconstitucional”, contra o qual foi proposta a ADI nº 4.628/DF
em 1º de julho de 2011, só teve a liminar deferida em 19 de fevereiro de 2014.
15
Dispõe sobre convênio que permite aos Estados e ao Distrito Federal deliberar sobre a remissão dos créditos
tributários, constituídos ou não, decorrentes das isenções, dos incentivos e dos benefícios fiscais ou financeiro-fiscais
instituídos em desacordo com o disposto na alínea “g” do inciso XII do § 2 o do art. 155 da Constituição Federal e a
reinstituição das respectivas isenções, incentivos e benefícios fiscais ou financeiro-fiscais; e altera a Lei no 12.973, de
13 de maio de 2014.
27

obstaculizando a consagração deste tributo como evidente instrumento nacional, e não meramente
estadual, de arrecadação.

Acompanhando esse aspecto, é notório haver imensa dificuldade em se chegar a um


consenso quanto à utilização do ICMS como instrumento para alcançar os objetivos fundamentais
da República Federativa do Brasil, em especial, a garantia do desenvolvimento nacional e
erradicação da pobreza e da marginalização e redução das desigualdades sociais e regionais. Este
é assunto de alçadíssima importância, mas que refoge desta presente análise.

Com origem nessas anomalias, evidencia-se um “período de crise”, que ainda se faz
presente na legislação vigente, na doutrina e na jurisprudência, em especial em sede de tributação,
quando então convivem não harmonicamente diversos modelos de estruturação do conhecimento
que lidam com aspectos eminentemente tributários de maneira distinta.

Parece hígido, desde já, reiterar a ideia de que a formulação do fenômeno da interpretação
jurídica, e em especial da jurídico-tributária, opta por desagarrar-se, na medida do possível, do
lugar-comum descrito em elaborações igualmente respeitáveis, mas que se entende que pecam
pelo fato de repetir conceitos, mostrando-se indiferentes à reviravolta linguística observada na
Filosofia e que reverbera no que se entende por conhecimento e na própria conceituação da
ciência16. Ora, aquele que lida com o dado essencial da linguagem deve estar preparado para se
reinventar, reimaginar seu mundo e, na medida do possível, recriar “o” mundo17.

No íntimo dessa dinâmica, entende-se o caráter circunstancial dos conceitos científicos, os


quais se mostram ampliados ou modificados desde as contribuições filosóficas, seja nas chamadas

16
Apenas para deixar uma “imagem” de tal pretensão, surge à memória uma história, contada por Paulo de Barros
Carvalho, e que revela o momento em que o Jurista se desconecta da visão tradicional acerca do fenômeno na
interpretação, a qual era tomada, em obras clássicas de Hermenêutica Jurídica, como uma simples “extração de
conteúdo” das palavras contidas no texto. Surge, então, um panorama que favorece, inclusive, a gestação da própria
Escola do Constructivismo Lógico-Semântico, a qual, tomando o Direito como linguagem, não remete a uma “des-
(coberta)” do conteúdo dos textos normativos mas, antes, a uma construção da norma jurídica com origem nos textos.
Tal se deu em um contexto de intenso labor intelectual, em uma de suas muitas idas à Universidade de Pernambuco,
para trabalhos de imersão junto a Lourival Vilanova. Este ensaio, pois, inicia com o compromisso de tocar, quando
possível, a “raiz” dos problemas hermenêuticos, questionando os fundamentos pelos quais se estruturam o Direito
Positivo e a própria Ciência do Direito.
17
Aqui, parece esbarrar-se em um argumento metafísico, admitindo-se as realidades em si, e não apenas aquelas
mediadas pela linguagem. Nesse ponto, merece referenciar as profundas reflexões trazidas por Gabriel (2016a; 2016b),
as quais se enquadram no que o autor denomina de “Novo Realismo”.
28

ciências naturais ou mesmo nas ciências sociais. O passo importante, contudo, que ora se ressalta
é que, havendo novos arcabouços filosóficos, não pode a Ciência Jurídica fazer-se indiferente e
reiterar a dogmática tradicional, a qual se acha limitada para responder às questões complexas que
ora se põem, ainda mais ao se considerar a relevante (e por que não dizer, recente) promulgação
da Constituição Federal de 1988, enquanto inauguradora do novo sistema jurídico brasileiro.

Assim, o Livro II, tal qual o Livro I, retoma a discussão sobre a Hermenêutica Jurídico-
Tributária com esteio em eixos fundamentais do conhecimento, e que são absolutamente
definidores do modo como o mundo e a realidade são criados pelo homem. Nesse mister,
entretanto, o corte cronológico é dado nos idos de 1997, com a defesa da tese de concurso para
obter a titularidade do Departamento de Direito Econômico, Financeiro e Tributário na Faculdade
do Largo do São Francisco, da Universidade de São Paulo, realizada por Paulo de Barros Carvalho,
a qual representa o primeiro passo para a superação dos métodos tradicionais.

Assim, a obra “Direito tributário: fundamentos jurídicos da incidência", ao sedimentar o


fenômeno jurídico da incidência tributária, especialmente com a incorporação de elementos da
Semiótica18, proporciona novas dimensões à atividade hermenêutica do tributarista, acostumado a
“tentar extrair” conteúdo das normas jurídicas e sendo dignificado como verdadeiro construtor
dessas normas. Além de tudo isso, e como se isso já não fosse muito, a obra de Paulo de Barros
Carvalho contribui de uma maneira decisiva para a construção dessa “realidade jurídico-tributária
brasileira”, por abrir-se ao diálogo e aos fatores pragmáticos, de maneira inovadora.

E tal se dá uma vez constatado que este novo modelo paradigmático na Hermenêutica
Jurídico-Tributária (e não só sob esta vertente) inspira-se em outro movimento, no qual predomina
o espírito de colaboração e que visa a ultrapassar meras competições com ideais egoísticos, como
descreveu o próprio Paulo de Barros Carvalho.

18
Em referência aos estudos da linguagem e às propostas da Semiótca, semelhante ao que afirmou Paulo de Barros
Carvalho (2013a, p. XXVI) em seu Prólogo à obra “Direito Tributário: Linguagem e Método”, não se assumirá, nesta
tese, “[...] um caráter de especulação teórica estruturada em termos sistemáticos”, tendo por intuito, apenas, “[...] tomar
algumas categorias da Linguística e da semiótica na sua índole instrumental, procurando aplica-las à compreensão do
direito positivo e de sua metalinguagem, a Dogmática”, com ênfase em uma abordagem do ICMS – Operação de
Circulação de Mercadorias.
29

Logicamente, sabe-se que os refluxos de uma determinada obra, por vezes, demoram anos
para serem sentidos na doutrina e na jurisprudência, especialmente em decorrência das tradições
intensivamente incrustadas no Direito, o que se pode revelar com um traço característico dessa
disciplina. E, ainda mais, para um livro, como é o caso do “Direito tributário: fundamentos
jurídicos da incidência", cuja linguagem destoa das obras tradicionais que lidam com o dado
jurídico.

Assim, no Livro II, a ênfase na obra de Paulo de Barros Carvalho, com procedência no
Constructivismo Lógico-Semântico, não sucede aleatoriamente, mas pela singularidade de uma
antevisão do fenômeno jurídico em fase expansiva, desde a descrição de um percurso gerador de
sentido (também chamado de percurso gerativo de sentido ou trajetória de interpretação) que
permeia planos previamente lineados e estabelecidos com amparo no enaltecimento de aspectos
sintáticos, semânticos e pragmáticos.

Nessa medida, seguir-se-á a análise de inúmeras dissertações e teses defendidas na


Universidade de São Paulo (USP) e na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP),
mas não apenas nesta duas importantes universidades, bem como das diversas publicações
produzidas no âmbito do Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (IBET), em seus cursos de
especialização em Direito Tributário, como foco na interpretação jurídico-tributária e com temas
que tangenciem o ICMS – Operações de Circulação de Mercadorias, ou mesmo, outros tributos
estaduais.

Nesta medida, investigar o percurso gerador de sentido, de Paulo de Barros Carvalho, é ter
a certeza de transitar infinitas vezes por caminhos incertos e que não espelham, de antemão, a
resposta que será obtida. Então se deslumbram os olhos interessados com as imensas
possibilidades hermenêuticas, margeadas pelo apuro no emprego das palavras e pela reflexão de
cunho filosófico.

Efetivamente, encarnando em uma perspectiva do Constructivismo Lógico-Semântico,


buscar-se-á identificar os rastros deixados pelos estudiosos e que já possam ser identificados na
doutrina ou em algumas decisões judiciais tomadas pelo STJ e do STF, e que demonstrem uma
dimensionalidade diferente nos casos levados a julgamento; entendendo-se sempre que o homem,
apesar de toda a sua complexidade, representa o resultado final da “medida” do pensamento vigente
30

no seu tempo e no seu meio, e que se aprisiona “voluntariamente” nas gaiolas que confortavelmente
ele permite que o acomodem19.

A dinâmica, contudo, que permeará este Livro II será construída de uma forma peculiar: os
capítulos em que se divide o Livro II serão identificados a partir de citações dos textos escritos por
Paulo de Barros Carvalho. Contudo, tais textos limitam-se aos prefácios, apresentações ou prólogos
de obras de outros autores ou de suas próprias obras, em trabalhos nos quais é identificada a mesma
cadência do Constructivismo Lógico-Semântico.

A escolha dessas manifestações “menos formais”20 da linguagem de Carvalho representa o


pano de fundo inaugurador de cada um dos capítulos que comporão o Livro II e não se dá de forma
aleatória: primeiro, porque apesar de não conter o formato dos capítulos propriamente ditos,

19
Aqui não se poderia deixar de citar a perspicácia de Thomas S. Kuhn, ao verificar os movimentos de ruptura que
ocorrem com as revoluções científicas. Nesse ponto, apesar de não ser sua obra mais conhecida, “A revolução
copernicana: a astronomia planetária no desenvolvimento do pensamento ocidental” (KUHN, 2017) deixa patente que
o homem passa a ter um “universo” absolutamente distinto a partir da revolução empreendida por Nicolau Copérnico,
em 1543. Nessa medida, do mesmo modo que nos tempos correntes, “Copérnico viveu e trabalhou durante um período
em que as rápidas mudanças na vida política, económica e intelectual preparavam as bases da moderna civilização
europeia e americana. A sua teoria planetária e a consequente concepção de um universo centrado no Sol foram os
agentes da transição da sociedade ocidental medieval para a moderna, porque pareciam afectar a relação do homem
com o universo e com Deus. Iniciada como uma revisão muito técnica e altamente matemática da astronomia clássica,
a teoria de Copérnico tornou-se o foco das tremendas controvérsias de religião, filosofia e teoria social, que, durante
os dois séculos seguintes à descoberta da Amércia, determinaram o teor do espírito moderno”. (KUHN, 2017, 17-18).
Ao tratar do “Novo Universo”, que corresponderia àquele que se tem “construído” na atualidade, sobreleva a
fecundidade das novas maneiras de ver o mundo empreendidas por Planck, Einstein e Bohr, e que se assemelham ao
movimento de Copérnico: “Os seus novos conceitos, e outros dos quais a revolução contemporânea depende, mostram
paralelos históricos muito próximos do conceito de Copérnico de uma Terra planetária. Concepções como o átomo de
Bohr e o espaço finito mas não limitado de Einstein foram introduzidas para resolver problemas prementes numa única
especialidade científica. Aqueles que as aceitaram, fizeram-no inicialmente devido à imensa necessidade sentida na
sua especialidade original e apesar dos seus conflitos óbvios com o [o] senso comum, a intuição física e os conveitos
básicos de outras ciências. (...) toda a inovação fundamental numa especialidade científica transforma inevitavelmente
as ciências vizinhas e, mais lentamente, os mundos do filósofo e do leigo culto”. (KUHN, 2017, p. 245-246). Por fim,
em sua obra que já se tornou clássica, Kuhn (2013, p. 201-202) assim resume a “inauguração” desse mundo, com esteio
nas revoluções científicas que se vão operando: “Guiados por um novo paradigma, os cientistas adotam novos
instrumentos e orientam seu olhar em novas direções. E o que é ainda mais importante: durante as revoluções, os
cientistas veeem coisas novas e diferentes quando, empregando instrumentos familiares, olham para os mesmos pontos
já examinados anteriormente. É como se a comunidade profissional tivesse sido subitamente transportada para
um novo planeta, onde objetos familiares são vistos sob uma luz diferente e a eles se apregam objetos
desconhecidos. Certamente não ocorre nada semelhante: não há transplante geográfico; fora do laboratório os
afazeres cotidianos continuam como antes. Não obstante, as mudanças de paradigma realmente levam os cientistas
a ver o mundo definido por seus compromissos de pesquisa de uma maneira diferente. Na medida em que seu único
acesso a esse mundo dá-se através do que veem e fazem, poderemos ser tentados a dizer que, após uma
revolução, os cientistas reagem a um mundo diferente.” (destacado).
20
Normalmente revelam um caráter mais intimista (quando ele faz a introdução de suas obras) ou mesmo de mais
intimidade com o autor da obra que está sendo prefaciada.
31

representam importantes textos da Ciência do Direito e que possuem um formato que manifesta a
riqueza doutrinária do CLS de uma forma concisa.

Secundariamente, por se tratar de uma abordagem da Escola do Constructivismo Lógico-


Semântico a partir de caracteres inovadores, revelando traços que muitas vezes não foram sequer
aprofundados em nas obras doutrinárias tanto de Paulo de Barros Carvalho quanto dos demais
estudiosos do CLS, mas que manifestam efeitos prospectivos de uma abordagem altamente
profícua para lidar com o dado jurídico.

Por fim, no que concerne à metodologia utilizada, a aceitação do conceito de Direito como
linguagem faz reverberar modalidades de aproximação e de construção da Ciência do Direito que
revelam a complexidade e o dinamismo do insumo com o qual se trabalha. Nessa medida, a
recorrência a obras tradicionais para a pesquisa no Direito Tributário ainda aponta para uma lógica
cartesiana e linear, própria de um “passado que ainda se faz presente”, e cujos métodos, como se
verá, são inadequados para esta tese.

Em assim sendo, a adoção de métodos que acolham as diversas linguagens, competentes e


incompetentes, quer sob as peculiaridades dos planos sintático, semântico e pragmático, sob a
configuração analítico-hermenêutica, e com vistas à produção de sentido dos textos legislados,
ainda que sem estruturas previamente moldadas, parece apontar para maior conformidade com o
que se pretende neste “futuro que já se faz presente”.
32

LIVRO I – A HERMENÊUTICA JURÍDICO-TRIBUTÁRIA EM UM


“PASSADO QUE AINDA SE FAZ PRESENTE”: PARADIGMA DO STATUS
QUO E ANOMALIAS INERENTES A ESTE MODELO
CAPÍTULO 1. PAUSA BREVE21: PELA ELUCIDAÇÃO DE ASPECTOS
FILOSÓFICOS ACERCA DA INTERPRETAÇÃO E SUA
CONCATENAÇÃO COM A HERMENÊUTICA JURÍDICA
Viver é um continuum2223 interpretativo: o ser humano está condenado a interpretar24
(PASQUALINI, 2005; STRECK, 2014b; ROBLES, 2015); a interpretação é inesgotável
(CARVALHO, 2013a, p. 517)25. E, ainda mais, como outra fatalidade, observa-se que o homem
trilha um caminho que supostamente o conduz à verdade26, tal qual um ideal metafísico, o que se

21
As pausas breve e longa de que cuida este Capítulo, bem como o Capítulo 2, também faz remontar à ideia de tempo,
só que sob outra perspectiva, também colhida de Santo Agostinho, quando este explora as diferenças entre tempo longo
e tempo breve, isolando-os no passado ou no futuro. No caso deste trabalho, as pausas dão-se no presente, com luzes
para que sejam mais ou menos demoradas: “E, no entanto, dizemos ‘tempo longo’ e ‘tempo breve’, mas não o dizemos
senão em relação ao passado e ao futuro. Chamamos ‘longo’ ao tempo passado, quando, por exemplo, ele é cem
anos anterior ao presente. De igual modo, chamamos ‘longo’ ao tempo futuro, quando ele é cem anos posterior ao
presente. Por outro lado, chamamos ‘breve’ ao tempo passado, se, por exemplo, dizemos ‘há dez dias’, e ‘breve’ ao
tempo futuro, se dizemos ‘daqui a dez dias’. Mas como é que é longo ou breve aquilo que não existe? Com efeito,
o passado já não existe e o futuro ainda não existe. Não digamos, pois: é longo, mas, em relação ao passado, digamos:
foi longo, e em relação ao futuro: será longo.” (AGOSTINHO, 2001, p. 112).
22
O sentido de continuum aqui esposado tem pertinência com a noção de sequência, de ininterrupção, de continuidade,
trazendo uma noção mais apropriada de processo do que de produto. Faz-se necessária tal ressalva, pois em obra
importante do linguista italiano Umberto Eco (1998, p. 51), intitulada “Kant e o ornitorrinco”, o autor intitula um
subcapítulo de “O sentido do ‘continuum’”. Para o autor, neste texto, continuum identifica-se muito mais com o
produto do que o processo: “Sobre o que e por que coisa é recortado? Por uma massa amorfa, amorfa antes que a
linguagem tenha operado as suas dissecações, que chamaremos o continuum do conteúdo, todo o exeqüível, o dizível,
o pensável – se quisermos, o horizonte infinito daquilo que é, foi e será, quer por necessidade ou por contingência.
Parecerá que, antes que uma cultura o tenha linguisticamente organizado em forma de conteúdo, este continuum seja
tudo e nada, e fuja, portanto, a cada determinação”.
23
Gregorio Robles (2015, p. 407) afirma que “la interpretación se enfrenta, por consiguiente, ante toda obra humana
em cualesquiera circunstancias de comunicación. La dificultad de decidir cuál se ala interpretación que parece correcta
será mayor o menor, dependendo obviamente de dichas circunstancias; pero, com independência de ello, siempre
estaremos realizando um ejercicio interpretativo”. Tradução livre: “A interpretação é, portanto, confrontada com todo
o trabalho humano em qualquer circunstância de comunicação. A dificuldade de decidir qual é a interpretação que
parece correta será maior ou menor, obviamente dependendo das circunstâncias; mas, independentemente disso,
estaremos sempre realizando um exercício interpretativo”.
24
Nesse sentido, são muito pertinentes as palavras de Alexandre Pasqualini (2005, p. 161), ao tentar responder à
pergunta: “- Por que interpretar?”. Responde o autor, dentre outras questões: “Para alguns a resposta é concisa e
terminante: lêem, escrevem e, por conseguinte, interpretam pela circunstância elementar de que não dispõem de outra
alternativa. É interpretar ou interpretar – ‘o resto é silêncio’. Na medida em que ‘tudo o que [...] nós podemos
compreender e representar depende da interpretação’, todos, aonde quer que forem, de onde quer que venham, estão,
desde sempre e para sempre, condenados a interpretar”.
25
Assim aduz Paulo de Barros Carvalho (2013a, p. 517): “A interpretação é inesgotável, o que importa reconhecer que
os processos de geração de sentido continuam, incessantemente, acompanhando a obra ao longo da existência”.
26
A noção de verdade aqui trazida se coaduna com aquela defendida por Pontes de Miranda (1980, p. 32-33), para
quem a “posse da inteira verdade é inacessível. E todos o cremos. Mas o caminho é neste sentido: inacessível ou não,
33

encontra atualmente confrontado com a revolução empreendida pelo movimento do giro


linguístico27 (CARVALHO, 2013a, p. 159-161) e, ainda mais, com as mudanças tecnológicas que
influíram profundamente na maneira como a sociedade enxerga o fenômeno jurídico e como se
espraiam as discussões acerca do Direito28 e de sua importância na solução de pontos fundamentais
para a (boa) convivência social.

É com esse espírito29 que se propõe o aprofundamento da questão propriamente


hermenêutica, enquanto desejo inquietante de buscar as bases do conhecimento, em especial a
partir da leitura e da meditação30, de um cuidado especial com a manifestação do pensamento, a
partir da linguagem escrita e de um olhar sensível à forma como se tem realizado a interpretação
jurídica. Tal se dá à maneira descrita por René Descartes (1996), em seu “Discurso do Método”,

prosseguem os sábios na mesma estrada. Não lhes cabe perder tempo em discutir a legitimidade de procurar o fim que
nunca chegará: a procura é um fato, e fatos são também os segmentos que ela vence na avançada, como fato é o valor
prático de tal esforço e de tais conquistas”.
27
Também é Paulo de Barros Carvalho (2013a, p. 161) quem expressa o princípio sobre o qual se funda o movimento
do giro linguístico, qual seja, o da “autorreferencialidade da linguagem”, sendo a “retórica, não como singelo domínio
de técnicas de persuasão, mas fundamentalmente, como o modelo filosófico adequado para a compreensão do mundo”.
Nesse ponto, não se pode deixar de citar a conexão, no círculo de debates do CLS de representantes da Escola Retórica
de Direito, notadamente desde os estudos desenvolvidos na Universidade Federal de Pernambuco, cujos maiores
representantes são João Maurício Adeodato e Torquato Castro Junior.
28
Em larguíssima medida, vale a indicação, especialmente, do “Prefácio de um posfácio”, bem como do Capítulo I
(“Tempo e tempo jurídico em tempos do direito positivo”) da obra “O Direito, entre o futuro e o passado”, de Tercio
Sampaio Ferraz Junior (2014a). Especificamente quanto à mudança da opinião pública no trato com as questões
jurídicas, vale a transcrição: “Está em voga o chamado neoconstitucionalismo. O STF ocupa as páginas dos jornais
com decisões acerca de temas candentes: união homoafetiva, fica-limpa, pesquisas com células-tronco, interrupção da
gravidez de fetos anencéfalos, demarcação de reservas indígenas, mensalão, correção monetária da poupança etc.
Argumentos jurídicos são acompanhados e debatidos pela opinião pública, não só por profissionais do direito”
(FERRAZ JR, 2014a, p. XI).
29
Schleiermacher (1999, p. 25), ao estabelecer uma gradação das atividades que compõem a vida humana, admite três
tipos distintos, tomados em relação à maneira como são executados: “uma [um], o é de modo inteiramente mecânico
e sem espírito; outra [outro], se apóia em uma riqueza de experiências e observações e, finalmente, outra [outro] que,
no sentido literal da palavra, o é segundo as regras da disciplina” (destacado). A seguir, insere a interpretação no
terceiro tipo. O destaque que aqui se faz, porém, guarda conexão com o emprego da palavra espírito, neste parágrafo,
e que tem estreita ligação com a maneira utilizada pelo autor polaco. Ora, por ser trabalho intelectual, meditativo,
contemplativo, produtivo, a abordagem que se inicia é obra do espírito, como anima, como algo que transcende, e que
serve de elemento diferenciador do homem dos outros animais.
30
Tal meditação é a etapa fundamental para a construção científica, conforme apregoa Ortega y Gasset, nela se
ocupando o homem para tentar “des-cobrir a realidade” das coisas: “para descobrir a realidade é preciso que retiremos
por um momento os fatos de em torno a nós e fiquemos a sós com nossa mente. Então, por nossa conta e risco,
imaginamos uma realidade, fabricamos uma realidade imaginária, puro invento nosso: logo, permanecendo na solidão
de nosso íntimo imaginar, encontramos que aspecto, que figuras visíveis, em suma, que fatos produziria essa realidade
imaginária. É então que saímos de nossa solidão imaginativa, de nossa mente pura e isolada, e comparamos esses fatos
que a realidade imaginada por nós produziria com os fatos efetivos que nos rodeiam. Se casam uns com os outros,
deciframos o hieróglifo, des-cobrimos a realidade que os fatos cobriam e escondiam” (ORTEGA Y GASSET, 1989,
p. 26).
34

o qual graceja com toda forma de aprofundamento do pensamento, a partir dos clássicos que já
discorreram sobre o mesmo assunto: “que a leitura de todos os bons livros é qual uma conversação
com as pessoas mais qualificadas dos séculos passados, que foram seus autores, e até uma
conversação premeditada, na qual eles nos revelam tão-somente os melhores de seus
pensamentos” (DESCARTES, 1996, p. 68), bem como das novas tendências de manifestação do
dado jurídico em uma sociedade hipercomplexa.

Deve-se deixar esclarecido, desde já, o fato de que a opção pelos autores que se seguem
justifica-se na medida em que se apontarão seus caracteres individualizados e que fundamentam
a hermenêutica tradicional. Pela profundidade que eles chegaram em matéria de interpretação, não
se olvida da importância de suas análises para compreender a própria compreensão, com arrimo
nas bases fundantes da Filosofia. Com isso, antes de tudo, tais abordagens serão guiadas por um
certo teor utilitarista, na demarcação dos movimentos distintos da Hermenêutica Jurídico-
Tributária, que é a temática central deste trabalho.

Assim, iniciando-se pela mitologia grega, vê-se a figura de Hermes31, filho de Zeus e de
Maia, e que era considerado o mensageiro ou o intérprete dos deuses 32: pode-se afirmar que não

31
José Ricardo Cunha (2005, p. 323) vai um pouco além na busca etimológica da hermenêutica, ao atrelá-la com
próprio conceito de interpretação: defende o autor a noção de que Hermes seria o “titão que, segundo a mitologia grega,
teria sido o descobridor da linguagem e da escrita, tendo, por isso, domínio daquilo que é necessário aos humanos para
alcançar o significado das coisas e transmiti-las aos demais. Hermes era o deus da compreensão e por esta razão era o
enviado para levar as mensagens dos deuses aos homens, tendo como seu trabalho específico o de dar inteligibilidade
ao que, a princípio, parecia fugir do entendimento humano. Trata-se de dar sentido àquilo que parece pouco
compreensível na sua forma de se manifestar. Essa mesma ideia de sentidoestá presente na etimologia da palavra
interpretação, que vem do latim interpretatio – interpretari, que pode ser traduzido como ‘tomar em um sentido’ ou
‘ajuizar o sentido de algo’. A busca ou produção de sentido para a norma jurídica é o elo que une hermenêutica
e interpretação.” (destacado).
32
Desde já, deve-se apontar o fato de que o trabalho realizado por Hermes já indica que este não só levava a mensagens
dos deuses, textualmente falando, mas sim, as interpretações dessas mensagens feitas por ele, conforme já referenciado
em Josef Bleicher (2002, p. 23). Aqui já reside uma das maiores dificuldades na interpretação, e que se revela assaz
importante no Direito: ao se pensar no legislador, este tem o papel fundamental de interpretar as aspirações da
sociedade, perfazendo os valores que esta elegeu como importantes em determinada comunidade. Assim, o próprio
texto normativo já é resultado da interpretação, neste caso, operada pelos legisladores. Isso, entretanto, não se afasta
da inefável condição de Hermes: por agirem (re)presentando os anseios do povo, de quem todo o poder emana,
conforme o ordenamento brasileiro apregoa, o Legislativo, lato sensu, já caminha por areias movediças, não se
acreditando que seja possível espelhar a própria vontade popular, mas se buscando chegar ao ideal de maior
proximidade dessa utopia. O próprio conceito de vontade popular parece algo de uma tangibilidade distante, restando
a última ratio nos próprios enunciados de textos normativos, últimos “locais” de uma racionalidade que atenda aos
reclamos da segurança. É ainda Dilthey (2010, p. 73) quem espelha bem essa relação da vontade com o próprio direito:
“O direito só vem à tona sob a forma de imperativos, por detrás dos quais se encontra uma vontade, que tem o intuito
de impô-los. Essa vontade é uma vontade conjunta, isto é, a vontade una de um conjunto; ela possui sua sede na
35

só anunciava as mensagens textualmente como atuava também como intérprete (BLEICHER,


2002, p. 23). Destacando-se pela eloquência e pela arte de bem falar, era também considerado o
deus dos mercadores: os latinos o chamavam de Mercúrio (COMMELIN, 1993, p. 51). De ambas
as figuras parecem originar-se dois signos altamente distintos para o Direito contemporâneo: de
Hermes adviria a “Hermenêutica”, e com Mercúrio, surgiria a palavra latina merx, que originaria
mercadoria33.

Tal conexão etimológica, no entanto, é questionada na atualidade34. Assim sendo, estudos


mais recentes demonstram que a palavra “hermenêutica” teria ingressado na língua inglesa em
1737, e, um século antes disso, o alemão Johann Danhauer teria cunhado “a palavra latina
‘hermeneutica’”, a qual representa uma transliteração modificada do verbo grego hermeneuein,
“[...] que significa expressar em voz alta, explicar ou interpretar, e traduzir”. Sua tradução latina é
interpretatio, o que leva a concluir que, grosso modo, hermenêutica significa interpretação
(SCHMIDT, 2016, p. 18). Significa, ainda, “[...] declarar, anunciar, interpretar ou esclarecer e, por
último, traduzir.” (CORETH, 1973, p. 1).

Pode-se afirmar também, que a palavra interpretação provém de “interpretare (inter-


penetrare), significando penetrar mais. Isto decorre da prática religiosa de feiticeiros e adivinhos,
os quais introduziam suas mãos nas entranhas de animais mortos, a fim de conhecer o destino das
pessoas e obter respostas para os problemas humanos" (SOARES, 2017, pp. 17-18). Assim, para
os objetivos deste trabalho, visualiza-se a ideação de que hermenêutica e interpretação parecem

organização externa da sociedade: assim, na comunidade, no Estado, na Igreja. Quanto mais retornamos às condições
mais arcaicas da sociedade e nos aproximamos de sua articulação genealógica, tanto mais claramente deparamos com
o fato: as esferas de poder dos indivíduos em sua relação recíproca e em sua relação com as coisas estão em conexão
com as funções desses indivíduos na sociedade, e, por conseguinte, são reguladas pela organização externa dessa
sociedade”.
33
Apesar de a temática central desta tese se relacionar à Hermenêutica, a qual será pontuada com amparo em uma
abordagem filosófica com o Constructivismo Lógico-Semântico, o signo “mercadoria” também se coaduna ao
movimento central desta investigação, dado que a Hermenêutica Jurídico-Tributária cuja análise ora se propõe será
investigada às margens do ICMS, especificamente no que respeita à materialidade afeta às operações de circulação de
mercadorias. Curiosamente, nesse ponto, o mesmo Mercúrio que se conecta à interpretação, liga-se, também, de modo
direto, ao imposto investigado.
34
Tal incerteza filológica é também ressaltada por Emerich Coreth (1973, p. 2), ao referir-se à mera probabilidade de
que hermenêutica derivaria de Hermes, o mensageiro dos deuses. O que mais interessa, contudo, e que é revelado pelo
autor é que, já em grego, “[...] o termo significava, de preferência, embora não exclusivamente, a compreensão e a
exposição de uma sentença dos deuses, de uma mensagem divina, como digamos, de um oráculo de Delfos, o qual
precisa de uma interpretação para ser apreendido corretamente, ou seja, ‘levado à compreensão’”.
36

apenas representar faces distintas do mesmo deus Jano: a diferença residiria apenas em suas origens
grega ou romana. Daí que, para os objetivos deste estudo, serão tomados como sinônimos35 36.

Vedado é esquecer-se de que a “[...] história da formação da hermenêutica, enquanto arte e


técnica de interpretação correta de textos37, começa com o esforço dos gregos para preservar e
compreender os seus poetas e desenvolve-se na tradição judaico-cristã de exegese das Sagradas
Escrituras”38 (BRAIDA, 1999, p. 7). Aristóteles (2004, p. 102), em seu conjunto de apontamentos
relativos à poesia, à tragédia e à epopeia, escrito por volta de 335 anos antes da Era Cristã39,
intitulado “Poética”, já advertia para o fato de que lidar com as palavras carecia de um cuidado
especial, o qual apontasse quantos sentidos pode ter uma frase, tendo em vista que só assim se
evitaria a condenação do poeta, caso ele tivesse uma opinião contrária à do leitor e do intérprete. E
tal cuidado deve permear a atividade de todos aqueles que deparam textos.

Quanto às Sagradas Escrituras, não se pode negar o evidente esforço, em especial da Igreja
Católica, em resguardar seus textos nas chamadas “traduções fieis”, o que se deu com suporte em
um movimento complexo de controle das traduções, da obstaculização na disseminação dos
documentos ou textos sagrados, bem como de uma série de procedimentos que visavam a controlar
a interpretação mais “adequada” ao pensamento divino. Com efeito, os dogmas, nas religiões, têm

35
Neste mesmo movimento, tomar-se-ão como sinônimos, na esteira de Gadamer (2014), compreensão e interpretação,
o que, como afirma este Filósofo, deve-se ao romantismo alemão. Já em Heidegger (2015, p. 209) compreensão e
interpretação são fenômenos diversos: “No compreender, a presença projeta seu ser para possibilidades. Esse ser para
possibilidades em compreendendo é um poder-ser que repercute sobre a presença as possibilidades enquanto aberturas.
O projetar inerente ao compreender possui a possibilidade própria de se elaborar em formas. Chamamos de
interpretação essa elaboração. Nela, o compreender apropria-se do que compreende. Na interpretação, o compreender
vem a ser ele mesmo e não outra coisa. A interpretação funda-se existencialmente no compreender e não vice-versa.
Interpretar não é tomar conhecimento do que se compreendeu, mas elaborar as possibilidades projetadas no
compreender”.
36
Tal também foi a opção feita por Juarez Freitas (2010), justificada pela facilitação em sua exposição.
37
Nesta tese, “textos são resultado da atividade verbal de indivíduos socialmente atuantes, na qual estes coordenam
suas ações no intuito de alcançar um fim social, de conformidade com as condições sos as quais a atividade verbal se
realiza” (KOCH, 2013, p. 26).
38
Nessa mesma linha, e enfatizando a conexão entre a interpretação e as obras clássicas da Antiguidade, ressalta a
manifestação de Schleiermacher (1999, p. 28): “Como obras-primas do discurso humano, as obras da antiguidade
clássica são certamente os mais excelentes e os mais veneráveis entre os objetos com os quais lida ordinariamente a
arte de interpretar”.
39
Dado caráter de laicidade da ciência, talvez fosse melhor a utilização de “antes do tempo presente” do que,
propriamente, “antes de Cristo”.
37

o papel de tentar conter o processo absolutamente humano de criação↔recriação↔construção, que


só se paralisa ou se atenua a um custo muito alto40.

E essa sacralização não destoa da atitude adotada, no primeiro momento em que o Direito
Romano desapareceu, com o movimento de codificação (França, 1804, e Alemanha, 1900), e pelo
qual “[...] toda argumentação jurídica deve tributar seus méritos aos Códigos, que passam a possuir,
desse momento em diante, a estatura de verdadeiros ‘textos sagrados’: [...] eles são o dado positivo
com o qual deverá lidar a ciência do direito.” (STRECK, 2014a, pp. 33-34).

Na atualidade, como tecnologia a ser empregada para a compreensão 41 de textos, a


hermenêutica é utilizada em três níveis distintos: em primeiro plano, auxilia discussões em torno
da linguagem do texto, notadamente sob o viés do vocabulário e da gramática; a seguir, facilita a
compreensão da literatura bíblica, remontando à sua função inicial e sempre presente e, por fim,
em um terceiro plano, e que interessa a esta investigação, é aplicada para guiar a jurisdictio, em
seu sentido primevo de dizer o Direito, especialmente, desde a aplicação (BLEICHER, 2002, p.
24), e, contemporaneamente, da decisão e da argumentação42.

40
No ideal de contenção desse processo, a violência física ou moral, seja pela fogueira, pela crucificação, pela forca,
seja pelo pecado, por uma vida eterna torturada por seres demoníacos, nas mais diversas religiões, acompanham a
própria evolução da história da humanidade e parece ganhar destaque na proliferação de religiões baseadas no medo,
na falta de uma fé raciocinada.
41
Com um teor filosófico, Paulo de Barros Carvalho (2011, pp. XVII-XVIII), na “Introdução que muito importa ler”
à obra “Derivação e Positivação no Direito Tributário – Volume I”, assim descreve a compreensão: “Seja partindo da
concretude dos fatos, seja descendo dos preceitos mais abstratos para a singularidade de ocorrências que a vida social
a cada instante oferece, não é outro o procedimento do exegeta, sempre à procura daquele momento mágico em que
se instala, no seu espírito, a tão desejada compreensão da mensagem legislada” (destacado). Dessa forma, descreve
a própria magia do conhecimento, do ato de conhecer. Mais à frente no mesmo texto, continua o autor: “Importante é
reter que tal intervalo, no fluxo da consciência, a que chamamos de compreensão, se estabelece mnum átimo
imprevisível (quando se estabelece). Em linguagem husserliana, poderíamos dizer que o ato de consciência
compreender gera a forma de consciência compreensão com o conteúdo de consciência (noema) que for seu objeto,
no caso, os textos jurídicos.” (destacado no original).
42
Ao tratar acerca da interpretação e da argumentação, Pierluigi Chiassoni (2011, p. 153) deixa patente que “las
relaciones entre interpretación y argumentación constituye uno de los temas centrales de la reflexión acerca de la
interpretación jurídica, en relación al cual se puede detectar una amplia gama de posiciones, y soluciones, diferentes.
Se ha sostenido por ejemplo – para mencionar sólo algunas de las tesis formuladas a este propósito – que entre
interpretación y argumentación habría: 1) una relación de coincidencia sustancial – que resulta ser, sin embargo, y de
manera más precisa, una relación de conexión funcional – ; o bien, 2) una relación de interconexión dialéctica – que
consiste, aparentemente, en un relación de dependencia epistémica de la interpretación respecto de la argumentación
–; o todavia por último, 3) una relación de recíproca relevancia – punto de vista que, sin embargo, no parece que haya
prestado la debida atención a lo equívoco de los términos –.”. Tradução livre: “As relações entre interpretação e
argumentação constituem um dos temas centrais da reflexão sobre a interpretação jurídica, em relação à qual uma
ampla gama de posições e soluções pode ser detectada. Argumentou-se, por exemplo - para mencionar apenas algumas
38

Neste experimento acadêmico strictu sensu, vislumbra-se uma oportunidade de se


aprofundar a Hermenêutica sob o viés do Direito Positivo e da Ciência do Direito, sob o enfoque
tributarista. Ora, tomada a doutrina como uma rede que conecta diversos estudiosos, será a
responsável por legitimar as inúmeras leituras feitas pelos julgadores, estruturando a jurisprudência
(CARNEIRO, 2015, pp. 149-150), que se vivifica no núcleo “inquebrantável” dos textos escritos,
quer do Direito Positivo, no qual se situa a própria jurisprudência, quer de Ciência do Direito43.
Nesse sentido, serão estruturados dois conteúdos distintos de interpretação jurídica, os quais se
imbricam continuamente, ensejando uma retroalimentação constante que constrói o edifício do
sistema jurídico.

É interessante observar que, acostumados a lidar tradicionalmente com métodos


hermenêuticos em sua atividade diuturna, os juristas se esquecem de que fenômeno semelhante
ocorre relativamente a outros textos, tal qual se vê nos escritos considerados “sagrados”, em que
se pretende uma perenização, ou mesmo, um fortalecimento da ideia de segurança e de controle.

das teses formuladas para este fim - que entre interpretação e argumentação haveria: 1) uma relação de coincidência
substancial - que acaba sendo, no entanto, e mais precisamente, uma relação de conexão funcional -; ou, 2) uma relação
de interconexão dialética - que consiste, aparentemente, em uma relação de dependência epistêmica de interpretação
com relação à argumentação -; ou ainda por último, 3) uma relação de relevância recíproca - um ponto de vista que,
no entanto, não parece ter prestado a devida atenção ao equívoco dos termos”.
43
Aqui, não se pode deixar de apontar que a ideia referenciada de Wálber Araujo Carneiro (2015, p. 133-151) é
estruturada em um sentido mais estreito do que o aqui posto. Isso porque, defende o autor a ideia de que “[...] não é a
jurisprudência que legitima a doutrina, e sim a rede doutrinária que legitima [a] jurisprudência. Ao juiz é dada a
possibilidade de romper com a jurisprudência somente se a rede doutrinária assim o permitir, sendo que esse
rompimento atrai o ônus argumentativo do rechaço do modelo jurisprudencial rechaçado, bem como dos modelos
doutrinários que o sustentava”. Na defesa desta tese, longe de se pugnar por um niilismo interpretativo, ou por um
subjetivismo ilimitado, que autorizariam qualquer interpretação por parte dos cientistas do Direito ou mesmo em se
tratando do processo de positivação do Direito, não se pode olvidar que, no que respeita ao Direito Tributário, cujos
estudos científicos são relativamente recentes no Brasil, bem como por um tecnicismo muitas vezes exagerado e
confuso da legislação tributária, o qual dificulta o aprofundamento teórico, não é raro inexistir doutrina acerca de
matérias específicas. Acredita-se que o caso paradigmático esteja no ICMS, em que não raro os entes competentes
editam normas tributárias de incentivos ou benefícios fiscais que estabelecem tratamentos absolutamente díspares
acerca da matéria, em uma “esquizofrenia” criativa, que não encontra respaldo no sistema, mormente tomada à margem
do Conselho Nacional de Política Fazendária (CONFAZ). Assim, diante de um caso levado ao Poder Judiciário, muitas
vezes o juiz não encontra respaldo na jurisprudência acerca daquela específica matéria e, caso opte pelas
macroconceituações do sistema, talvez não acompanhe a complexidade da norma expressa no regime especial
específico moldado para determinado contribuinte. Nesse caso, ainda com o dever de exercer a jurisdição, pacificando
o conflito, restar-lhe-á o Direito Positivo, com amparo na peculiaridade posta pela norma individual e abstrata do
Regime Especial aqui exemplificado.
39

Nesse ponto a Encíclica do Papa Pio XII, Divino Afflante Spiritu, de 30 de setembro de
194344, traz, em sua Segunda Parte, os “[...] critérios hermenêuticos para o estudo da sagrada
escritura hoje”, o que “permitiu fundamentalmente os métodos científicos de investigação e
interpretação da Escritura.” (CORETH, 1973, p. 16). Aqui, no caso de não seguimento dos ditames
apontados pela Igreja, pode-se processar a condenação do intérprete que ousar desbordar dos
limites45 tracejados pela autoridade superior eclesiástica: no caso do Direito, a questão dos
“limites”46 é expressa de modo muito mais delicado e com menor possibilidade de argumentos
assertivos.

Desde já, entretanto, alguns rastros do caminho a ser trilhado podem ser identificados com
amparo em Streck (2013), para quem “[...] interpretar é compreender”, e “[...] compreender é
aplicar”; não mais se interpreta para compreender, mas, sim, compreende-se para interpretar: “a
hermenêutica não é mais reprodutiva (Auslegung); é, agora, produtiva (Sinngebung)”; bem como
em Paulo de Barros Carvalho (2013a, 2015), com seus axiomas interpretativos da intertextualidade
e da inesgotabilidade dos sentidos, como será mais bem aprofundado no Livro II.

Reconhecendo, todavia, as dificuldades ingentes à natureza humana, a qual se constitui em


uma integridade unitária absolutamente complexa em um contexto plural de sociedade, supõe-se,

44
Disponível em: http://w2.vatican.va/content/pius-xii/pt/encyclicals/documents/hf_p-xii_enc_30091943_ divino-
afflante-spiritu.html. Acesso em: 29 abr. 17
45
Limites aqui tomados como fatalidade.
46
Como se verá a seguir, o presente trabalho não defende jamais uma noção de limite como fatalidade à interpretação
jurídica.
40

de saída, que o homem está47 imerso em um número infinito de fatos48 que, interpretados, criam o
locus49 50 denominado “mundo”: dentro deste, busca estabelecer a sua verdade.

É tomado sob essa perspectiva que se inicia o presente Livro, o qual representa o primeiro
passo na elaboração da tese, notadamente ao dispor acerca do “passado que ainda se faz presente”,

47
Aqui, talvez, seria mais adequada a utilização do verbo “estar” tal qual se faz na língua inglesa com o verbo to be,
ao qual se atribui o significado de ser/estar. Voltando à frase, o homem assim o é por ser (e não apenas estar) imerso
nesses fatos, se pensados (e aqui entra o pensamento margeado pela linguagem) tais fatos como integrantes do próprio
sujeito, expressando o que chamará de realidade. Nesse sentido, a abordagem aqui contida não desconhece o fato de
que, independentemente do conhecimento humano, infinitas coisas acontecem no Universo, quer seja este tomado sob
um aspecto macrocósmico (como, por exemplo, eventos que estejam acontecendo nas mais diversas galáxias
desconhecidas), quer sob o aspecto das microentidades ou microestruturas (a exemplo das diversas estruturas contidas
em um átomo). No ponto intercalar, o próprio homem, com uma complexa rede inconsciente que ultrapassa em muito
o que se tem por consciência, e cujos mistérios a Medicina, a Psicologia e a Neurociência, dentre outras abordagens,
tentam desvendar. Além disso, as tormentosas questões do espírito, da mente, e da própria vida, que ainda desbordam
além da ciência, recebendo ponderações do pensamento religioso ou que permeiam um ideal metafísico.
48
Fatos aqui, podem ser tomados como sinônimos de eventos, conforme classificação adotada pela Escola do
Constructivismo Lógico-Semântico, a qual será mais bem abordada no Livro II.
49
Apesar de se tomar o signo locus, o qual aponta para um aspecto notadamente espacial da existência humana, não
se pode desconectar esse conceito de suas coordenadas temporais. Isso porque, o homem é um ser situado espacial e
temporalmente: vive-se em um espaço-tempo determinado. Assim, filosoficamente, Ortega y Gasset (1989, p. 54)
desenvolve com brilhantismo a ideia de geração, a qual vincula sujeitos que ocupam um mesmo “espaço-tempo”
histórico, demarcando características que lhes são peculiares, dentro da compreensão histórica. É assim que enuncia
“[...] cada geração humana traz em si todas as anteriores e é como um escorço da história universal. E no mesmo
sentido é preciso reconhecer que o passado é presente, somos o seu resumo, que nosso presente está feito com a
matéria desse passado, o qual passado, portanto, é atual - é a entranha, o oculto do atual”. Observe-se que o autor
rompe com a dimensão linear de tempo, ao afirmar que o “passado é presente”, à semelhança da elaboração
empreendida por Issac Newton, acerca do conhecimento, ao afirmar que se viu mais longe foi estar sob ombros de
gigantes. Ora, os gigantes a que se refere já estavam provavelmente enterrados, mas conduziam seu pensamento em
sua construção científica, rompendo com a dimensão espaço-tempo tradicional expressa na tradição e no conhecimento
que lhe foram deixados de herança. É nessa mesma medida, com amparo nesta reflexão, é que se erigem os capítulos
desse trabalho, os quais ultrapassam um movimento linear clássico, pelo qual seria fácil identificar precisamente
quando inicia um movimento hermenêutico que culminaria em uma determinada forma de interpretar o mundo, e
quando o mesmo findaria, dando azo a outro movimento. Diferentemente disso, defende-se que o homem está imerso
em todos eles, pois o passado ainda é presente, o presente ainda não se apresenta (e jamais se apresentará como algo
estanque, destacado e independente) como uma individualidade (até mesmo pela fugacidade, dura apenas um instante),
e o futuro é uma construção que, com maior ou menor força, tornar-se-á realidade ao passar a existir. Na verdade, o
futuro jamais existirá, como entidade destacada na qual se possam encontrar todos os aspectos que dela se esperavam:
é um presente postergado e que provoca muitos anseios no ser humano. Tal se dá pela sensação de (des)controle que
provoca, ao mesmo tempo, pelo fato de representar um salto para o vazio, especialmente em épocas de incertezas e de
crises, como a que se vive. No Direito, convém ser destacados, quanto ao futuro, os escritos de Tercio Sampaio Ferraz
Júnior contidos em “O Direito, entre o futuro e o passado” (obra individual) e “A invenção do futuro” (obra coletiva),
nesta tese referenciados.
50
Com origem na reflexão apontada na nota de rodapé anterior, e fazendo conexão com a Ciência do Direito, não se
pode olvidar que esse locus contínuo espaço-tempo foi argutamente percebido na constituição do fato jurídico stricto
sensu, o qual Paulo de Barros Carvalho (2015a, p. 198) faz coro ao assim afirmar: “Quero renovar a ingente necessidade
dos indicadores de tempo e espaço, em termos absolutamente determinados, para que se configure o enunciado factual.
Como condições a priori da sensibilidade (Kant), o conhecimento não se perfaz sem a presença desses dois elementos”.
Assim, apregoa o autor a ideia de que tais coordenadas estruturam o próprio conhecimento, perfazendo elementos
ontológicos à realidade estabelecida.
41

em termos hermenêuticos, contagiando o rio caudaloso da jurisprudência, bem como da Ciência do


Direito. Nesse ponto, merece ser rememorada a observação atenta de Paulo de Barros Carvalho
(2013a, p. 157), para quem “escrever ‘pensando’” dista de ser trabalho fácil, fincando-se a doutrina
dominante “[...] em argumentos de autoridade, como garantia, quase que exclusiva, da procedência
dos enunciados”.

A fim de seguir esse intento, e como será praxe nos demais capítulos, passar-se-á a
introduzir cada um dos “tempos” com apoio em abordagens individualizadas. Não se tem a
pretensão, entretanto, de elaborar conteúdos estanques ou limitados temporalmente, dada a não
adoção de um padrão linear de tempo. Assim, tem-se o Livro I com essa breve história do tempo
na Hermenêutica Jurídico-Tributária.

E essa descontinuidade com o chamado “tempo linear” dá-se por muitos motivos distintos:
aparentemente, o percurso hermenêutico que se segue atinge um mesmo momento legislativo no
Direito Tributário brasileiro. Com efeito, o “passado que ainda se faz presente” se inicia na entrada
em vigor do CTN, o qual vige até a presente data: o CTN também marca os tempos do “futuro que
já se faz presente”, porquanto ainda é norma posta, abrindo caminhos para o que virá.

Não se pode dizer, porém, que o fluxo inicial que permeou a irrupção legislativa deste
diploma, bem como de toda a doutrina e a jurisprudência que o sucederam, seja o mesmo que ora
se observa no Direito Tributário brasileiro com ares de futuro, e isso não só por mudanças no plano
legislativo, porém muito mais pela maneira como o Direito é esboçado na atualidade: com ampla
permeabilidade a diversos agentes em seu processo de construção, ainda que resista “alguém” com
a devida competência para resolver em caráter final os problemas que lhe são conduzidos (a
linguagem competente), bem como pela complexidade das temáticas levadas à apreciação e o
influxo que estas produzem em aspectos mais comezinhos da vida.

Em sendo assim, ao tratar a Hermenêutica Jurídica, ainda que sob as inspirações intensas
da Filosofia, percebe-se que esta se releva como atividade existencial humana, correspondendo aos
atos que conseguem organizar o seu “mundo” e tornar possível o que se chama de vida. Tal
interpretação, no entanto, não ocorre, necessariamente, com apoio em um esforço racional
individual e premeditado no sentido de compreender a si e aos demais: pelo fato de pertencer a
42

uma sociedade51, o homem é presenteado com uma “interpretação da vida”, a qual aglutina um
repertório de ideias e convicções vigentes, a que normalmente se denomina “cultura”, e que
poderão ser definidores do seu ser.

Tal qual premeditado por Telles Junior (2014, p. 328), “[...] o ser humano real, em razão
do qual a inteligência se determina, é um ser no tempo, um fenômeno histórico. O ser humano real
é um ser em seu processo vital, dentro das condições concretas de sua evolução e perfazimento”.
Nessa medida, as “fugas” admitidas pelo sistema ou representam catapultas para outros patamares
do conhecimento ou serão radicalmente enterradas no cemitério da ciência, da filosofia, das
religiões, dentre outras modalidades de conhecimento.

O próprio idioma “habitado” pelo homem já aponta para uma filosofia coletiva, dentro dos
limites de cada língua, “[...] uma elementar interpretação da vida”, que cria amarras indiscutíveis
(ORTEGA Y GASSET, 1989, p. 35). Assim, ainda na fase inicial da vida humana, visto não ter se
dado conta de todos os modelos herdados, passa o homem a ocupar um espaço no mundo, a nele
surgir, e a se impor com procedência nesse “mundo prévio”, nessa “interpretação da vida”, por
meio daquilo que ele próprio passa a experimentar e a conhecer ou, de maneira ainda mais comum,
desde o que ele apre(e)nde por intermédio dos outros (KELLER, 2009, p. 17).

Com isso, as bases desta tese doutoral são estabelecidas epistemologicamente ao se


investigar as possibilidades de conhecimento com início em dois momentos que revelam
movimentos hermenêuticos distintos, com especial foco no Direito Tributário, mas que não estão
isolados temporalmente. A referência a “momentos” neste texto não se isola nas propriedades
temporais. Assim, identificando as características da legislação, da doutrina e da jurisprudência,
com proeminência para o estudo do Direito Tributário, tentar-se-á modelar os paradigmas próprios
de cada um dos movimentos observáveis na Hermenêutica Jurídico-Tributária.

O “passado que ainda se faz presente” decreta a ideia de um padrão, um standard do Direito
Tributário, com o qual ainda se convive, e que se caracteriza com a utilização de institutos
considerados ultrapassados pela Hermenêutica contemporânea, como o apego à literalidade, à

51
Talvez seja mais adequado falar em situação, como “aquilo em que se está. E onde verdadeira e ultimamente está o
homem é em alguma situação” (ORTEGA Y GASSET, 1989, p. 106).
43

interpretação lógica e à subsunção dos fatos a normas, em um procedimento de abstração de


condições históricas e culturais. Nesse ponto, percebe-se uma miscelânea de resquícios da Escola
da Exegese, da Jurisprudência dos Interesses, dentre outros movimentos, havidos como superados
ou aperfeiçoados em sua dogmática.

Explique-se melhor: ao se lidar com o movimento hermenêutico, está-se a fundamentar-se


na dinâmica inerente a todo o conhecimento, que surge com apoio em perguntas possíveis e em
respostas adequadas às questões, que perfaçam aquilo que se compreende como tendo “sentido”.
E tal se dá, pois toda compreensão e toda interpretação remontam a “[...] pressupostos, cuja
investigação e esclarecimento é tarefa da filosofia”, tornando o problema da hermenêutica “o
problema fundamental – no pensamento filosófico do presente.” (CORETH, 1973, p. 1).

Assim, ao se supor antecipadamente que o homem “[...] não precisa restringir sua percepção
apenas àquilo com que se encontra ou àquilo com que está às voltas, mas pode direcioná-la também
a seu próprio fazer e a sua própria vivência” (KELLER, 2009, p. 13), defende o argumento de que
a atividade hermenêutica, como mecânica implícita da vivência humana, situa-se com esteio no
estabelecimento de perguntas possíveis a esse “fazer” filosófico e que produz conhecimento.

Discorrer acerca do conhecimento, “especificamente” científico, todavia, requer uma


atitude de encadeamento dentro dos limites aceitos pela comunidade para essa modalidade de
conhecimento52. Em decorrência disso é que se defenderá a “porosidade” que tem de haver nas
zonas contíguas entre o conhecimento filosófico e o conhecimento científico, a fim de que ambos
possam ampliar seus espectros de conhecimento, supondo-se, de antemão, unidade e complexidade
do ser humano. E isso se revela assaz adequado, ao se investigar os horizontes do passado, do
presente e do futuro, com vistas à delimitação [delimite(ação)] de zonas hermenêuticas

52
Nessa medida, a preocupação se justifica em virtude do diálogo necessário entre o sujeito que faz ciência e que
projeta o resultado para análise intersubjetiva, por toda a comunidade científica, como aqui ocorre. Nesse caso, a
“medição” feita pela academia, lastreada nos diversos pensadores que estruturam a tese, dão a medida de cientificidade.
Conforme defende Albert Keller (2009, p. 54), “[...] a mediação feita na ‘intersubjetividade’, sem a qual nenhum
conhecimento é aceito como científico, parece ser mais bem expressa como postulado de justificabilidade, apresentado
na definição de ciência (e isso quer dizer: representatividade diante de companheiros de diálogo com conhecimentos
especializados)”.
44

diferenciadas ou, ao menos, de padrões de respostas mais adequados aos problemas interpretativos
expressos diuturnamente.

Como toda obra do gênio humano, propor-se a uma abordagem sobre a temática da
Hermenêutica Jurídica necessita, de início, estruturar o esforço que será empreendido para que se
tenha a exata noção dos conteúdos julgados essenciais para melhor se compreender a tese: assim,
ecoa uma pretensão dedutiva de formulação do conteúdo que torne melhor compreensível a
dinâmica a ser expressa. E ao se conectar a grande temática da Hermenêutica Jurídica com o
Constructivismo Lógico-Semântico, o que será especialmente observado desde o Livro II, não pode
ser olvidada uma aproximação com o signo tomado em si mesmo de conteúdo, “hermenêutica”,
com toda a complexidade ínsita a essa aproximação.

De início, algumas dificuldades têm que ser explicitadas, apontando neste trabalho quais
foram as opções de que se dispunha e qual foi o caminho que se considerou melhor na elaboração
do texto. Isso porque o encadeamento lógico-racional teria muitas possibilidades de formatação,
até se chegar a um modelo que melhor descrevesse o fenômeno da interpretação dos textos jurídicos
e, ainda mais, de escritos jurídicos-tributários.

Deve-se ressaltar, contudo, o fato de que a parte inicial ora inaugurada, correspondente a
uma suposta descrição do passado, apresenta-se como o resultado do pensamento positivista, em
que o dever-ser encontrava-se esvaziado de conteúdo e pela qual se intentou eliminar toda e
qualquer problemática do Direito relacionada à sua variabilidade sob o plano do conteúdo, em
especial com procedência em dogmas como o da “certeza do direito”, da “justiça da decisão” e da
“não discricionariedade dos juízes”. (MAGALHÃES, 2005, pp. 129-130).

Por fim, mas não menos importante, uma pausa para se reportar aos limites da interpretação.
Ontologicamente, pode-se dizer que eles estão na gênese deste trabalho, em consonância com
Umberto Eco (1998, p. 49), para quem impor limites ao discurso não significa a negação da
atividade hermenêutica: antes de tudo, é condição para esta atividade. Nessa medida, defende o
autor a noção de que

se assumíssemos que podemos dizer tudo sobre o ser, a aventura da sua


interrogação contínua não teria mais sentido. Bastaria fala dela ao acaso. A
interrogação contínua parece razoável e humana justamente porque
45

assumimos que existe um Limite. Não podemos senão consentir com Heidegger:
o problema do ser se apresenta apenas a quem foi lançado na Existência, no
Dasein – do qual a nossa disposição faz parte e advertir que algo existe, e falar
sobre ele. E na nossa Existência temos a fundamental experiência de um Limite
que a linguagem pode dizer antecipadamente (e então apenas predizer) num único
modo, e além do qual se esvai no silêncio: é a experiência da Morte.

De efeito, essa pausa breve se justifica na medida em que abre perspectivas complexas para
a Hermenêutica Jurídico-Tributária, nomeadamente a apartando dos rigores mecanicistas ilusórios
tão propagados tradicionalmente, mas que não conseguem lidar com aspectos denotativos de
formatos distintos, e que demandam discursos igualmente diferenciados a fim de que se alcance a
tão falada “paz social”. Nesse ponto, apesar de não poder ser enquadrado como zona sem conflitos,
sobre o texto normativo ainda repousa um mínimo de substrato que consegue apaziguar os ânimos
divergentes e dar vazão aos fatos jurídico-tributários constituídos em linguagem competente,
diuturnamente. Aqui, o tênue e gasoso limite que envolve qualquer processo interpretativo.
46

CAPÍTULO 2. PAUSA LONGA: ASPECTOS CIENTÍFICOS


FUNDAMENTAIS PARA O DIREITO. O PROBLEMA DO
CONHECIMENTO E SUAS CONEXÕES COM A HERMENÊUTICA
JURÍDICA
Este segmento da tese funda-se em uma necessidade que há de ser explorada intensamente
na configuração desse “passado que ainda se faz presente”, mormente com origem na dificuldade
em se separar, dentro do que se denominou de Ciência do Direito Tributário, aquilo que é
efetivamente conhecimento científico, distanciando-se dos meros recursos retóricos-
argumentativos que não estabelecem as bases de aproximação com o seu objeto ou de sua
constituição, considerando-se que ele é sempre pela linguagem. E isso não se faz com assomos de
precisão. De tal sorte, mister se faz perpassar o próprio problema do conhecimento e a
identificação, certamente sem pretensões de definitividade, sobre o conceito de conhecimento
científico.

O problema do conhecimento é suscitado por Aristóteles (1984, p. 11). Inaugurando sua


“Metafísica”, enuncia que “[...] todos os homens têm, por natureza, desejo de conhecer: uma prova
disso é o prazer das sensações, pois, fora até da sua utilidade, elas nos agradam por si mesmas e,
mais que todas as outras, as visuais”. Sendo assim, em conexão com o ensinamento que, de tão
repetido, transformou-se em bordão “Conhece a ti mesmo”, inaugura uma das temáticas mais
profundas em sede de conhecimento filosófico.

Percebe-se que, de início, o ato de conhecimento em Aristóteles não deve se confundir com
o próprio conhecimento, misturando-se ao exercício dos sentidos, especialmente ao enaltecer a
prevalência da visão53 sobre as demais modalidades de captura do mundo exterior. Conforme alerta
Ortega y Gasset (2016a, p. 68), no entanto, a verdadeira questão sobre a origem do conhecimento
sempre se viu suplantada pela investigação de seus mecanismos.

53
Revela-se interessante destacar o fato de que Lucia Santaella (2012c, p. 1-2) defende a existência de um grande
número de teorias da percepção que demonstram a predominância massiva do sentido da “visão”, a qual é responsável
por cerca de 75% da percepção humana. Em segundo lugar, ficaria a audição, a qual se mostra responsável,
aproximadamente, por 20% da percepção. A autora justifica essa predominância quase absoluta da visão e da audição
pelo fato de que os olhos e os ouvidos são órgãos do sentido diretamente ligados ao cérebro, “[...] ou melhor, são
buracos que se conectam diretamente com o cérebro, em oposição aos outros sentidos que são buracos ligados às
vísceras, sendo sentidos mais viscerais, portanto”.
47

É lugar comum ao se tratar do conhecimento, desde já identificá-lo como um conceito, no


sentido pesado da palavra, o qual se situa em limites sobejamente difíceis de serem divisados, ou,
na melhor das possibilidades, o qual se encontra em uma dinâmica incessante de identificação dos
novos contornos do saber.

Efetivamente, se questionar acerca do conhecimento aponta para o fato de se estar em uma


dialética incessante entre o saber e o não saber54, reconhecendo esse esta(n)do (KELLER, 2009, p.
25), em uma atividade gerundial ao infinito. Sob a perspectiva de Bachelard (2004, p. 13),
ressaltando um caráter racionalista, seria possível reconhecer a perfeição do conhecimento, a qual
reuniria duas condições opostas: a minúcia e a clareza. Perfaz, assim, uma noção à luz do
racionalismo de Leibniz, para quem o conhecimento, se for simultaneamente adequado e intuitivo,
será perfeitíssimo.

Ao representar o maior milagre do universo, Karl Popper (1999, p. 7) assevera que o


fenômeno do conhecimento constituiria um problema que não será resolvido em breve (talvez
nunca o seja), mas demonstrando um certo otimismo na conceituação do fenômeno do
conhecimento e desde já reconhecendo que é um debate que há mais três séculos está “atolado em
preliminares”. De efeito, prossegue o autor, ao pontuar a necessidade de refazer a distinção entre
dois problemas do conhecimento: “[...] sua gênese ou história, de um lado e, do outro, os problemas
de sua verdade, validez e ‘justificação’” 55, o que quer representar os três componentes essenciais
da definição tradicional de conhecimento, que são a justificação, a verdade e a crença (MOSER;
MULDER; TROUT, 2011, p. 17)

Defende, ainda, o argumento de que, desde Descartes, a Teoria do Conhecimento é


amplamente subjetivista, ao se tomar o conhecimento como um tipo “[...] especialmente seguro de
crença humana, e o conhecimento científico como um tipo especialmente seguro de conhecimento

54
É importante ressaltar que, conforme defende Ortega y Gasset (2016a, p. 69), apenas Platão “[...] entreviu que a raiz
do conhecer, diríamos, sua substância mesma, está precisamente na insuficiência dos dotes humanos, que está no fato
terrível de que o homem ‘não sabe’. Nem o Deus nem a besta têm essa condição. Deus sabe tudo e por isso não conhece.
A besta não sabe nada e por isso tampouco conhece. Mas o homem é a insuficiência vivente, o homem precisa saber,
percebe desesperadamente que ignora. Isso é o que convém analisar. Por que ao homem lhe dói sua ignorância,
como pode doer-lhe um membro que nunca teve?” (destacado).
55
Nesse sentido, Agostinho Ramalho Marques Neto (2001, p. 2) afirma que “[...] a história do conhecimento é,
portanto, um permanente processo de retificação e superação de conceitos, explicações, teorias, técnicas e modos de
pensar, agir e fazer”.
48

humano”. Apesar de se declarar admirador do senso comum, propõe uma teoria objetiva do
conhecimento, a qual visa a erradicar a teoria do senso comum do conhecimento, por considerá-la
uma “asneira subjetivista”. (POPPER, 1999, p. 7).

Defender a ideia de que conhecer é sempre “conhecer algo”, Miguel Reale (1977, p. 44)
deixa refletir sua posição ontognosiológica no sentido da “[...] intencionalidade como sentido
vetorial do espírito”, na esteira da concepção husserliana, inspirada nos escolásticos, e em Franz
Bretano, os quais indicam o caráter intencional da consciência: esse algo, todavia, não indica uma
realidade em si transcendente, plena e definida, que seria apenas “refletida” pela consciência56.

Ainda mais, lembre-se de que a existência do conhecimento nas sociedades é por demais
diversa: assume desde conformações rudimentares57 (empiria imediata, conhecimento mítico,
mágico), até graus mais elevados de elaboração, como o conhecimento artístico, religioso,
filosófico, científico, sendo que estas duas últimas modalidades podem não ser encontradas em
determinadas sociedades (MARQUES NETO, 2001, p. 2). Ressalte-se, ainda, que tais formatos
distintos de estruturação do conhecimento podem estar relacionados, imediatamente, com a própria
língua58 “habitada” pelos homens, a exemplo do que demonstrou Vilém Flusser (2007, p. 68), com
a classificação das línguas em flexionais, aglutinantes e isolantes.

Considerada a multiplicidade de línguas, evidenciar-se-ia a inexistência de uma “realidade


extralinguística”, o que desde já aponta para a relatividade do conhecimento, visto que este é, por

56
É importante ressaltar que, ao se reportar à relação sujeito-objeto, citando N. Hartmann, o qual ressalta a imbricação
necessária de ambos, Miguel Reale (1977, pp. 44-46) esclarece que “[...] a análise fenomenológica do ato de conhecer
– admiravelmente levada a cabo por Husserl e N. Hartmann – não só nos revela o caráter intencional da consciência
e, por conseguinte, a correlação funcional subjetivo-objetiva, como condição do conhecimento, mas também, a meu
ver, a dialeticidade que lhe é inerente, muito embora assim não o pensem esses dois filósofos”. Nesse ponto, este
trabalho, ao fugir do esquema tradicional sujeito-objeto e focar em uma relação que se estabelece sempre entre sujeitos,
afeiçoa-se a uma relação dialógica, que se instaura na e pela linguagem, e que é uma infinita conversa entre sujeitos.
57
Vianney Mesquita (2016, pp. 61-62) elenca nove características do que denomina de “conhecimento vulgar”: “1 Via
de regra, é certo, no entanto, a certeza é espontânea, não se podendo verificar. 2 Resta inscrito nos lindes da verificação
dos fatos; não ultrapassa esses limites. 3 Não é obediente a qualquer método. É saber por saber, na circunstância de
conhecimento não unificado, consoante Spencer. 4 Coincide com informação, na maioria das vezes, correta, todavia
desprovida de explicações ou com esclarecimentos que não resistem a críticas. [...] 7 Seus valores têm curso por
demorado tempo, uma vez que seus conceitos imprecisos têm pouca ou quase nenhuma especificidade, fato que
dificulta e veda o controle experimental. [...] 9 Perfil de conhecimento obtido pelas experiências na ordem
consuetudinária das coisas”.
58
Buscando no próprio Vilém Flusser (2007, p. 41), a língua é “[...] o conjunto das frases percebidas e perceptíveis”
ou o “conjunto de todas as palavras percebidas e perceptíveis, quando ligadas entre si de acordo com regras
preestabelecidas”.
49

definição, sempre limitado ao terreno de uma só língua: o conhecimento, assim, é sempre função
das categorias daquela língua (FLUSSER, 2007, p. 61). Daí, as ingentes dificuldades na atividade
de tradução59 60, as quais foram tão bem teorizadas pelo autor, e que demonstram a complexidade
na versão de sentidos e a impossibilidade de um conhecimento universal, acerca do que quer que
seja (FLUSSER, 1969).

No que diz respeito às necessidades de estruturação intelectual deste trabalho, pode-se valer
da defesa de Agostinho Ramalho Marques Neto (2001, p. 1), para quem “[...] o conhecimento é
indiscutivelmente, um fato: não nos é possível duvidar de sua existência embora possamos
questionar-lhe a validade, a objetividade ou o grau de precisão”. Nessa medida, ao se pensar nas
possibilidades de conhecimento baseado no modelo hermenêutico, faz-se necessário, desde já,
estabelecer a gênese do ato de conhecer, como a medida necessária para identificar, ao final, o
papel da Hermenêutica e suas possibilidades de contribuição para alargar os limites do
conhecimento.

Ainda mais, em se tratando do grande tema desta tese, visa a investigar as possibilidades
hermenêuticas dentro de um tipo específico de conhecimento científico, qual seja, o conhecimento
da Ciência do Direito Tributário, delineando os limites possíveis deste conhecimento, e, por uma
medida reflexa, as possibilidades de limitação do seu uso pragmático, maiormente com base na
análise da doutrina e da jurisprudência tributária brasileira.

Com tudo isso, inicia-se, agora, a aproximação com os conceitos da Teoria do


Conhecimento (ou Epistemologia), com a finalidade de familiarização do que se está tentando

59
É importante ressaltar que Flusser (1969, p. 19), ao tratar da tradução, foge do sentido corriqueiro da palavra, ao
qual se associaria apenas a forma de versão de determinadas frases de uma língua para outra: nesse sentido, entende-
se a tradução apenas quando se consegue verter para o inglês, por exemplo, um texto que estivesse redigido na língua
portuguesa. A dificuldade da tradução demonstrada pelo Filósofo pode, contudo, ocorrer, dentro da mesma língua
escrita. No português, há consideráveis dificuldades em se verter um texto científico para uma língua coloquial: aqui
residiria, assim, um dos maiores obstáculos para a popularização da ciência: “5.5 Traduções entre uma língua
predominantemente denotativa e outra predominantemente conotativa são possíveis de forma relativamente livre. E
transformam o caráter do texto na tradução. Transformam o caráter denotativo do original e conotativa, e inversamente.
5.51 O primeiro caso se dá, por exemplo, na tradução de um texto científico para uma língua coloquial. Neste ponto
está um dos problemas da popularização da ciência. Porque ‘compreender um texto científico’ pode significar
‘traduzi-lo para uma língua coloquial’.” (destacado).
60
A tradução também se revela como processo de compreensão e de interpretação, e consiste na “[...] transposição de
um complexo significativo para outro horizonte de compreensão linguística” (CORETH, 1973, p. 2).
50

tornar conhecido, que é o próprio conhecimento científico do Direito Tributário. Nessa medida,
optou-se por uma abordagem triádica, que ora se dá com suporte nas correntes de conhecimento
que tradicionalmente têm debatido o tema do “ato de conhecer”.

2.1 EPISTEMOLOGIA E GÊNESE DO CONHECIMENTO: ESTUDOS COM BASE NAS


ABORDAGENS EMPIRISTA, RACIONALISTA E INTUICIONISTA E A RELAÇÃO SUJEITO-
OBJETO

Considerando a abordagem inicial, que introduziu a temática do conhecimento61, tomado


em sua acepção mais ampla e, indiscutivelmente, como um fato, parte-se agora, especificamente,
para a seara da Teoria do Conhecimento, também chamada de Epistemologia, como o ramo da
Filosofia que trata dos caracteres relacionados ao conhecimento geral. O teor utilitarista de tal
abordagem é revelado na medida em que se busca situar a Hermenêutica diante das correntes que
tradicionalmente debatem a temática do conhecimento, quais sejam, o empirismo e o
racionalismo. Não se quer deixar de referenciar, aqui, o intuicionismo, o qual revela o importante
papel da criatividade, sempre reveladora das ideias mais destacadas.

Já que se propõe revelar, contudo, o “passado que ainda se faz presente” nesta parte do
trabalho, não se poderia deixar de situar importantes correntes epistemológicas que têm surgido
com o objetivo de criticar, superar ou complementar as teorias62 tradicionais, e que poderiam estar
mais bem situadas no Livro II. Na verdade, são correntes que buscam ainda se sedimentar e
encontrar vozes que as reverberem, em um movimento que visa a promover o “uso continuado”, o

61
Apenas mais uma contribuição acerca do conhecimento e que se revela pertinente para retomar a temática neste
subcapítulo: Jonathan Dancy (1985, p. 39) oferece uma conceituação de conhecimento, ao exprimir que “[...] a
descrição corrente do conhecimento, em torno da qual todos os trabalhos recentes têm sido elaborados, define o
conhecimento como crença verdadeira justificada; defende que a conhece que p se e só se 1 p, 2 a crê que p, 3 a crença
de a de que p é justificada. Como existem três partes nesta definição, ela é chamada a definição tripartida ou descrição
tripartida; define o conhecimento proposicional, conhecimento de (que) p; não define o conhecimento por trato comum
em «a conhece James» nem o conhecimento do como, p. ex. conhecimento de como andar de bicicleta, a não ser que
demonstre que estes de possam reduzir a conhecimento-de-que”. Com suporte em tal conceituação reverbera a
dificuldade/impossibilidade de se apropriar do conhecimento, dada a multiplicidade de espelhos distintos que podem
ser utilizados para refletir a mesma realidade, o que deposita o conhecimento em verdadeira caixa de Pandora. Apesar,
no entanto, de ainda se tatear sobre a vertente da Teoria do Conhecimento, não se pode descurar de propostas mais
“otimistas” ou talvez mais ousadas e pragmáticas, e que ao menos tentem verter luzes sobre a escuridão. Nessa medida,
é que se continua nesta tese, agora sob o viés das modalidades tradicionais de abordagem do conhecimento, a querer
delimitá-lo, pois, do contrário, o trabalho sequer passaria dessa parte inicial.
62
Como teoria, aqui, entende-se a estruturação de um sistema, isto é, a organização “segundo certos princípios”, a qual
“precisa manter-se de acordo consigo mesma” (ADEODATO, 2002, p. 75).
51

qual “[...] torna plausíveis mesmo as concepções mais estranhas e, uma vez plausível, a nova
concepção ganha uma maior função científica.” (KUHN, 2017, p. 246).

Com efeito, citem-se “[...] a dialética dos opostos de Hegel (1992), o racionalismo crítico
de Popper (2006; 2007; 2009), o historicismo de Bachelard (1996), a epistemologia genética de
Piaget (1971), a teoria dos sistemas de Luhmann (1983; 1985) e a complexidade de Morin (2011;
2013)” (BELCHIOR, 2017, p. 35), aos quais se acrescenta a abordagem quântica de Amit Goswami
(2015), o novo realismo pós-modernista de Markus Gabriel (2016a; 2016b)63 e, mais conectado à
Filosofia do Direito, a Teoria Comunicacional do Direito, de Gregorio Robles64e o Constructivismo
Lógico-Semântico, de Paulo de Barros Carvalho (Livro II).

Nas diversas teorias há pouco mostradas, ressalta-se uma problemática genética que as
diferencia prima facie: a abordagem relativa à relação entre sujeito e objeto, a qual se revela como
de fundamental importância para a Epistemologia, ficando as bases conceituais da maneira como
se enxerga o mundo. Em todas essas abordagens o que se vê, contudo, é sempre a linguagem
mediando essa relação, seja identificando o sujeito, o objeto, ou a integralidade (sujeito↔objeto),
motivo pelo qual se defende, desde já, o argumento de que só existe conhecimento mediado pela
linguagem.

Voltando-se, porém, ao “passado que ainda se faz presente”, manifesto em abordagens


tradicionais do conhecimento, iniciar-se-á a temática pelo empirismo65. Esta é a escola que se

63
A abordagem de Markus Grabriel (2016a; p. 13-14) é bem estruturada, na medida em que conjuga metafísica e
construtivismo. No que pertine aos fatos, defende a existência dos fatos em si, bem como daqueles sobre os quais se
reflete. Afirma que “[...] tanto a metafísica quanto o construtivismo fracassam em virtude de uma simplificação
injustificada da realidade, pois entendem a realidade ou como mundo sem espectadores ou como mundo dos
espectadores. O mundo que eu conheço é, porém, um mundo com espectadores, no qual fatos que não se interessam
por mim coexistem com meus interesses (percepções, sentimentos etc.). O mundo não é nem exclusivamente o mundo
sem espectadores nem exclusivamente o mundo dos espectadores”. Desde a virada linguística, no entanto, a linguagem
não é mais a terceira coisa que se põe entre sujeito e objeto: ao contrário, ela é condição de possibilidade de todo o
conhecimento. Daí a dificuldade em se defender uma atitude metafísica neste trabalho. Assim, já não é possível o
conhecimento das coisas em si mesmas consideradas, visto que elas só passam a existir com a mediação da linguagem.
64
Não se pode olvidar da importância fundamental da Teoria Comunicacional do Direito (TCD), de Gregorio Robles,
para este experimento. Nessa medida, esse sistema finca raízes em uma perspectiva do Direito como linguagem, ou,
para ser mais exata, no Direito como suscetível de manifestar-sepor via da linguagem (2011b). Nessa medida, e em
conexão com o movimento pós-Giro Linguístico, é que se constitui o presente (ainda não tão presente) à luz do
Constructivismo Lógico-Semântico. Voltando à escola erigida por Robles, pode-se afirmar que é tendência do
pensamento jurídico que vem se ampliando na Europa, capitaneada por este professor catedrádico de Filosofia do
Direito.
65
Miguel Reale (1999) afirma que se pode utilizar o termo empirismo ou empiricismo.
52

estrutura na suposição de que o conhecimento nasce do objeto e “[...] ao sujeito caberia


desempenhar o papel de uma câmara [câmera] fotográfica: registrar e descrever o objeto tal como
ele é”. Este conceito é fundamental para se compreender todo o desenrolar do pensamento no Livro
I.

Estabelece maneira mais radical em Augusto Comte, revelando-se desde um conteúdo


bastante expressivo no Círculo de Viena66, com o empirismo lógico (MARQUES NETO, 2001, p.
3). Assim, filiam-se a esta corrente todas aquelas escolas que admitem a origem única e
fundamental do conhecimento como dada pela experiência, o que, em última análise, desborda para
a experiência sensorial (REALE, 1999).

Aqui, repousa em atitude de prontidão a obra de John Locke, intitulada “Ensaios sobre o
entendimento humano”, a qual exprime o homem como um ser que nasce com a mente “quase”67
em branco68 e vazia, e cujo “processo” para se alcançar a verdade é margeado pelos sentidos: “[...]
os sentidos inicialmente tratam com idéias [ideias] particulares, preenchendo o gabinete ainda
vazio, e a mente se familiariza gradativamente com algumas delas, depositando-as na memória e
designando-as por nomes.” (LOCKE, 1999, p. 41).

Nesse ponto, pode-se figurativamente abordar tal sistema com suporte no procedimento
contido no jogo “sujeito”←”objeto”. O vetor parte do objeto: assim, um sujeito hermético, isolado,

66
Não é possível esquecer, aqui, as contribuições dos trabalhos desenvolvidos pelo Círculo de Viena para o
Constructivismo Lógico-Semântico, o que não passa despercebido por Paulo de Barros Carvalho (2013a), o qual inicia
o Capítulo XXX com uma breve enunciação sobre a importância desse movimento para a estruturação de sua teoria.
67
É interessante observar que, por profissão, John Lock era médico. Assim, a sua obra é revestida de uma linguagem
médico-científica, na medida em que busca investigar onde estariam impressos, no ser humano, os princípios e ideias
que regem a vida. Com efeito, a utilização do signo “quase” (a mente “quase” em branco e vazia) se dá em virtude de
um importante trecho de sua obra que contradiz a própria afirmação do autor de que a mente seria uma página em
branco. Assim, no Capítulo III, que trata de “Outras considerações acerca dos princípios inatos, tanto especulativos
quanto práticos”, o autor aponta que os recém-nascidos não nascem absolutamente despreparados, sem qualquer
conteúdo de ideias: “Se considerarmos cuidadosamente as crianças recém-nascidas, teremos bem poucos motivos para
crer que elas trazem consigo a este mundo muitas idéias [ideias]. Excetuando, talvez, algumas pálidas idéias [ideias]
de fome, sede e calor, e certas dores, que sentiram talvez no ventre, não há a menor manifestação de idéias [ideias]
estabelecidas nelas, especialmente das idéias [ideias] que respondem aos termos que formam proposições universais
que são consideradas princípios inatos.” (destacado) (LOCKE, 1999, p. 51). Nesse ponto, as matrizes instintivas
parecem integrar a estrutura mínima, à qual vão se acrescentando os conhecimentos adquiridos pela via dos sentidos.
68
Complementando a nota de rodapé anterior, no Livro II da mesma obra, Locke (1999, p. 57) exprime o
questionamento que encerra o conteúdo básico de sua obra e que perlustra o chamado “princípio do inatismo”: “[...]
suponhamos, pois, que a mente é, como dissemos, um papel em branco, desprovida de todos os caracteres, sem
nenhuma idéia: como ela será suprida? (...) A isso respondo, numa palavra: da experiência”.
53

depara um objeto exterior, o qual se pretende apreender objetivamente, em virtude da transparência


que lhe é ínsita. Nessa medida, basta ao sujeito captá-lo empiricamente e a compreensão do objeto,
com base no veículo sensorial, devidamente processada pelo intelecto, decorrerá automaticamente.

Ainda aqui, não se pode deixar de citar que esse modelo espelha aquel’outro contido na
chamada “Filosofia do Ser”, normalmente identificada, na História da Filosofia, com a Filosofia
Clássica, e no qual a “essência” é a “[...] configuração permanente de uma coisa e é pensada em
termos de perfeição e imutabilidade.” (AGUIAR, 1999, p. 30).

Ao enunciar os “princípios básicos do empirismo”, Hilton Japiassu (1977) sintetiza dizendo


que o empirismo radica na impossibilidade de existência de uma intuição intelectual pura69. Nisso,
uma proeminência dos sentidos. No que tange à experiência, com essa se atinge o singular, o qual
carece ser acrescido de operações lógicas e expressas pela linguagem, o que permitiria encontrar
regularidades, constituindo um saber do tipo universal.

Outro princípio básico enunciado por Japiassu (1977), relativamente ao empirismo, parte
do dado perceptivo: este já engloba um conteúdo de significação, o qual é captado pelos próprios
sentidos. Assim, pode-se apreender, pelos conteúdos sensíveis, as modalidades inteligíveis por
meio das quais se retorna ao intelecto, perfazendo conteúdo significativo ao sujeito. Por fim, o
conceito só se revela significativo na medida em que faz referência à realidade empírica: do
inteligível ao sensível. Isto posto, deve-se comprovar o juízo pela experiência, sem a qual não há
que se falar em sentido, em verdade, sendo proposição meramente metafísica.

Finalizando com Marques Neto (2001, p. 5), para a corrente empirista “[...] o conhecimento
flui do objeto, refere-se especificamente a ele e só tem validade quando comparável empiricamente.
O conhecimento é, [...], uma descrição do objeto, tanto mais exata quanto melhor apontar as
características reais deste”. Não se pode negar, por fim, que existem sérias distinções e divergências

69
José Renato Camilotti (2018, p. 11) faz interessante estudo sobre Charles Sanders Peirce, o qual invoca severa crítica
à tradição cartesiana. Por meio desta crítica, desenvolve as quatro incapacidades do ser humano, as quais inviabilizam
o método cartesiano. No que pertine especificamente à intuição, Camilotti revela, com base em Peirce, “que não somos
dotados de capacidade de instrospecção, ou seja, todo e qualquer conhecimento interno que temos deriva-se, por
raciocínio hipotético, do que conhecemos da experiência (fatos externos)” que, ainda mais importante, que “não somos
dotados de poderes de intuição; todas as cognições são produtos de cognições anteriores”.
54

entre os adeptos do empirismo científico, destacando-se os estudos de Ludwig Wittgenstein e


Rudolf Carnap.

Para o que interessa nesta abordagem, ao se cuidar de empirismo, de essências, de verdades


a serem (re)veladas, e especificamente do modo como isso foi traduzido pela Hermenêutica
Jurídica tradicional, ter-se-ia que o papel do intérprete seria o de conseguir extrair o conteúdo do
objeto, (des)velá-lo, (des)ocultá-lo, na medida em que a boa hermenêutica atingiria apenas a
realidade existente em si, ontológica, e que estaria presente nos objetos.

Já no que tange ao racionalismo, muda-se substancialmente o vetor do processo de


conhecimento. Nesse ponto, o fundamento se desloca para o sujeito, sendo o objeto mero ponto de
referência, chegando a ser mesmo ignorado, como ocorre na modalidade extrema de racionalismo,
que é o idealismo (MARQUES NETO, 2001, p. 6).

Em contraposição à obra de Locke, Leibniz publicou “Novos ensaios sobre o entendimento


humano”, o qual se coaduna com o horizonte da Filosofia da Consciência70: a razão não está mais
nas coisas, o “[...] homem não é mais mero ente na grande ordem do cosmos” e a “[...] consciência
passa a ser referência a todas as categorias” (AGUIAR, 1999, p. 31). Noutro giro, Leibniz (2000,
p. 5) afirma que o homem não é “tábula rasa” e, ao revés, “[...] a alma contém originariamente
princípios de várias noções e doutrinas que os objetos externos não fazem senão despertar na devida
ocasião”, na esteira de Platão e fazendo conexão com a passagem da Carta de São Paulo aos
Romanos (Rom 2,15) (BÍBLIA, 2014)71.

Nesse ponto, não se pode olvidar da centralidade da obra de Descartes 72, o “primeiro
homem moderno” (ORTEGA Y GASSET, 2016a), em especial por apontar o porto seguro a partir

70
“De forma sucinta, no antigo contexto filosófico, que poderia ser denominado de ‘Filosofia da Consciência’, o
conhecimento seria uma relação entre sujeito e objeto, mediada pela linguagem. Uma proposição seria verdadeira
quando correspondesse à realidade do objeto (verdade por correspondência), pouco importando os aspectos culturais
que condicionavam a aproximação entre sujeito e objeto ou a situação comunicativa formada pelos sujeitos sociais
que lidaram com as proposições” (destacado) (GAMA, 2014, p. 273).
71
Nesta passagem, o apóstolo Paulo assinala que a Lei de Deus está escrita no coração do homem, ao assim afirmar:
“15 eles mostram que o objeto da lei está gravado nos seus corações, dando-lhes testemunho a sua consciência, bem
como os seus raciocínios, com os quais se acusam ou se escusam mutuamente.” (BÍBLIA, 2014, p. 1451).
72
Não se pode deixar de destacar a observação de Julían Marías (2015, pp. 233-234), para quem Descartes vai além
do racionalismo, impingindo uma versão extremada, materializada no idealismo: “Deus ficara de fora da razão; era
isso que era decisivo. Não é de estranhar, portanto, que se encontre na razão o único ponto firme em que se apoiar.
55

do qual tudo é mediado (Cogito, ergo sum), estabelecendo uma abstração, como “[...] se o homem
fosse um ‘puro eu’ ou um ‘puro sujeito’, concebido sem linguagem e sem história” (AGUIAR,
1999, p. 32). É a partir dele que na época moderna se coloca, pela primeira vez, o problema
filosófico (MARÍAS, 2015, p. 228).

Ainda com Descartes, este promove a mudança radical, das coisas para o sujeito, e a questão
do conhecimento tem por fundamento reconhecer este. Em assim sendo, o conhecimento passa a
ser a “[...] série desesperada de esforços que faz o homem para chegar até o ser. Essa ideia chegada
do intelecto ao real chama-se ‘verdade’.” (ORTEGA Y GASSET, 1989, p. 181).

Aqui, a ênfase no antropocentrismo, a exacerbação do homem como a medida de todas as


coisas (como um retorno ao pré-socrático sofista Protágoras), culminando, na atualidade, na atitude
do juiz solipsista, alvo de tantas críticas por parte de Streck (2014a; 2014b; 2015) e das observações
de Ferraz Junior (2016)73, e que merecerá as devidas observações, especialmente no Livro II desta
tese.

Por fim, não se pode olvidar, jamais, a contribuição decisiva de Kant, que, com o seu
criticismo74, “[...] tenta superar e sintetizar os pontos de vista contraditórios do empirismo e do
idealismo” (MARQUES NETO, 2001, p. 9), com apoio nas noções de conhecimento a priori e a
posteriori: mesmo reconhecendo que, “no tempo, nenhum conhecimento é anterior à experiência”,
há de se admitir a existência de conhecimentos independentes da experiência e das impressões dos
sentidos. Aos primeiros, a denominação de conhecimento a posteriori, enquanto o segundo tipo
abrange o conhecimento a priori (KANT, 2017).

Isso, em meio a tudo, não é novo; o que agora ocorre é que a razão é assunto humano; por isso a filosofia não é
simplesmente racionalismo, mas também idealismo. Procurarão fundar no homem, ou melhor, no eu, toda a metafísica;
a história dessa tentativa é a história da filosofia moderna” (destacado no original).
73
Afirma o Jurista que o momento da convicção, nos julgamentos, não se constitui de “um ato ensimesmado, mas um
ato de pensar num contexto comunicativo” (FERRAZ JR, 2016, 277). Tal concepção se coaduna com o movimento do
“futuro que já se faz presente” desta tese.
74
Ao interrogar sobre as próprias possibilidades da razão, Kant expõe a sua noção de “crítica”: “[...] não se trata,
evidentemente, de fazer o processo da razão assim como o faria uma crítica cética e destrutiva. Trata-se de um exame
crítico da razão, isto é: de um exame que tem por fim – e tal é o sentido etimológico da palavra ‘crítica’ – discernir ou
distinguir o que a razão pode fazer e o que é incapaz de fazer. A preocupação crítica consiste essencialmente em não
se dizer mais do que se sabe. Tal fora a preocupação de Sócrates, cuja ironia visava a dissipar as aparências de um
saber falso; tal fora também a preocupação de Descartes, que tencionava chegar à verdade pela dúvida.” (PASCAL,
2011, p. 32).
56

Filosoficamente, foi Kant quem primeiro enalteceu o aspecto relacional que tem de haver
entre o sujeito e o objeto, e não mais a separação mecanicista das abordagens que o precederam
(MARQUES NETO, 2001, p. 9): assim, pode-se denominar seu método de reflexivo, ao defender
a ideia de que é refletindo sobre os conhecimentos racionais que Kant 75 tenta obter uma ideia
precisa da própria natureza da razão (PASCAL, 2011, p. 33).

Há de se reconhecer ainda, em Kant, outra abordagem inédita na Filosofia, e que também


se conecta à maneira como se dispõe acerca do conhecimento científico aqui neste texto: conforme
enuncia Ian Hacking (2013, p. 15-16), “[...] foi Kant que introduziu a ideia de uma revolução
científica”, o que se justifica pelo período de turbulência que agitava o “mundo” em seu tempo.

Nesse ponto, podem ser associadas com facilidade certas particularidades do racionalismo
ao então novel horizonte da Filosofia da Consciência, o qual desloca o fundamento do real das
coisas para a racionalidade, para a consciência do homem como sujeito teórico e prático, e para o
qual a verdade não é mais atemporal e universal: antes, “[...] precisa da mediação da consciência
humana para exprimir-se como tal”. Nesse ponto, o homem passa a construir seu mundo e a “[...]
verdade não é mais algo contemplado, a essência de algo em-si mesmo, mas a possibilidade do
sucesso adquirido através de um método.” (DESCARTES, 2001; AGUIAR, 1999).

Integrando-se o racionalismo e o viés hermenêutico, já que não há mais essências nas


coisas, mas apenas um sujeito soberano do conhecimento e da ação, transcendentalizado em virtude
de ter sido reduzido à consciência e à razão, sujeito do saber, restando-lhe apenas a consagração
do método, “[...] a partir do qual a verdade pudesse obter uma legitimidade absoluta.” (AGUIAR,
1999). E a ideia de método, que se espraiou como um verdadeiro “senso comum científico”, pode
ser mais bem detalhada com amparo nos quatro preceitos expressos também por Descartes (2001,
p. 78-79):

75
Na obra “A religião dentro dos limites da razão pura”, Kant também propõe um princípio hermenêutico específico
para a interpretação das Sagradas Escrituras. Assim, exige o autor que a interpretação delas deve levar em conta,
exclusivamente, o sentido moral, ainda quando se considere o texto e tal interpretação pareça muitas vezes forçada
(CORETH, 1973, p. 7-8). Como se verá com maior aprofundamento a seguir, todo o horizonte filosófico que aqui se
desborda traz notáveis contribuições e está conectado intimamente à interpretação dos textos, sejam eles bíblicos,
filológicos ou jurídicos.
57

[...] jamais acolher alguma coisa como verdadeira que eu não conhecesse
evidentemente como tal; isto é, de evitar cuidadosamente a precipitação e a
prevenção, e de nada incluir em meus juízos que não se apresentasse tão clara e
tão distintamente a meu espírito, que eu não tivesse nenhuma ocasião de pô-lo em
dúvida. (...) dividir cada uma das dificuldades que eu examinasse em tantas
parcelas quantas possíveis e quantas necessárias fossem para melhor resolvê-las.
(...) conduzir por ordem meus pensamentos, começando pelos objetos mais
simples e mais fáceis de conhecer, para subir, pouco a pouco, como por degraus,
até o conhecimento dos mais compostos, e supondo mesmo uma ordem entre os
que não se precedem naturalmente uns aos outros. E o último, o de fazer em toda
parte enumerações tão completas e revisões tão gerais, que eu tivesse certeza
de nada omitir. (destacado).

O ideal metodológico, sob o viés da dedução pura, é ainda encontrado em Leibniz, que
melhor expressa a busca do “fim-em-si” do problema dos princípios do saber: indo além da escola
cartesiana, cuja investigação dos fundamentos últimos do conhecimento aparece entretecido com
o problema psicológico da consciência de si mesmo, Leibniz concentra esforços em encontrar o
conteúdo original do saber (CASSIRER, 1993, pp. 64-65).

Assim, de braços com essa dinâmica é que se percebe, na Epistemologia, movimentos que
ora tendem ao empirismo ora ao racionalismo, bem como tentativas de mesclagens dessas duas
abordagens. Nesse ponto, o esclarecimento acerca dessas maneiras de se enxergar a dinâmica do
conhecimento só se justifica aqui na medida em que o processo de interpretação, que é inerente ao
próprio viver, reflete-se com apoio em tais concepções, sendo o homem um tanto quanto
“dominado” pelas conformações de mundo espelhadas nas verdades de cada geração76.

Outro movimento que revela visão por demais auspiciosa e interessante para a esta
dinâmica repousa no que Marques Neto (2001, p. 21) denomina de “epistemologias dialéticas”, por
via das quais “[...] a verdade é, pois, algo que se processa, se desenvolve e se realiza, porque a
realidade humana se cria como união dialética entre sujeito e objeto”. De efeito, apta a se manifestar
contrária a todas as modalidades de conhecimento dogmático, que confrontam o próprio conceito
de ciência, a dialética revela possibilidades de questionamento de si mesma e passa a se utilizar do
método de modo distinto das abordagens tradicionais, buscando compreender o processo
cognitivo no interior dele mesmo, o que é bem apropriado ao se falar da linguagem como
condição de possibilidade do próprio conhecimento. É com base nas possibilidades ofertadas por

76
Aqui voltando um pouco o conceito de geração em Ortega y Gasset, já exposto neste trabalho.
58

esta dialética é que constituirá o percurso gerador de sentido no futuro (Livro II), o qual se conecta
à ideia de elaboração coletiva do Direito, por meio do CLS, especialmente sob o viés da alteridade.

Por fim, apesar de não ser consenso entre os estudiosos da Teoria do Conhecimento77,
relativamente a integrar uma espécie de conhecimento apartada do empirismo e do racionalismo,
sendo mesmo tratado como a mistura de que exprimiu há pouco, o conhecimento intuitivo ou
criativo, ou intuicionismo, representa ainda um dos maiores mistérios da Filosofia. Se, no
empirirismo, há o conhecimento direto por via dos órgãos sensoriais e, no racionalismo, tem-se o
conhecimento indireto mediado pelo intelecto, no intuicionismo, ter-se-ia o conhecimento direto
por intermédio dos sentidos e do intelecto (BAZARIAN, 1986, p. 35).

Conforme defende Bazarian (1986, p. 36), a intuição é estudada na História da Filosofia há


longo tempo: desde Platão até os dias atuais, há escolas que podem ser assim caracterizadas78.
Como exemplos, têm-se o Neotomismo (doutrina filosófica da Igreja Católica), o Intuicionismo,
de Henry Bergson, a Fenomenologia, de Edmund Husserl, e o próprio Existencialismo, de Martin
Heidegger. Sem dúvidas, Bergson (1973), Prêmio Nobel de Literatura de 1927, é considerado o
maior expoente ao se falar da intuição79.

Para o que aqui interessa, contudo, não vale a pena a fixação no sentido da palavra
“intuição”80, que pode resvalar para o indizível, sendo a linguagem absolutamente incompleta para
abarcar esse fenômeno81, mas especificamente sobre o que se pode compreender como

77
Bazarian (1986, p. 35) chega mesmo a afirmar que é uma espécie de conhecimento “[...] infelizmente bastante
ignorada nos melhores livros de gnosiologia (ou teoria do conhecimento)”.
78
Ernst Cassirer (1993, p. 64) afirma que Leibniz, assim como Spinoza, dá o nome de “[...] intuición a esta capacidad
primaria y fundamental de la libre formación de los conceptos; y, al igual también que Spinoza, exige que se parta de
las más altas certezas intuitivas, de los testemonios iniciales del pensamento mismo, para recorrer el caminho que lleva
a los conocimientos mediatos que pasa por toda la serie de las ‘causas’ condicionantes”.
79
São dignas de referência as palavras de Jean Guitton (1973, p. 28), no estudo introdutivo à obra “A evolução
criadora”, de Henri Bergson. Ao descrever o movimento de encantamento que Bergson disparava à plateia que o ouvia,
afirmava do autor que ele considerava o “homem mais emotivo do que a mulher” e que, no que se relaciona ao trabalho
intelectual, este “[...] nasce duma concentração do espírito em cuja base se acha uma emoção pura.” (destacado).
80
Vale inclusive citar uma obra absolutamente destacada no Direito e cujo título “Intuição e Direito”, de Luiz Antonio
Rizzato Nunes, resultado de um trabalho de Doutorado defendido na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, e
que revela cerca de 60 acepções distintas para o vocábulo “intuição”. Dentre as mais curiosas, destacam-se:
premonição, adivinhação, magia, sensação estranha, sexto sentido, impulso, inteligência rara, “a pulga atrás da orelha”,
emoção que atrai, invenção, criação, dentre outros (NUNES, 1997, p. 21).
81
Vale ressaltar que Alaor Caffé Alves (2016, p. 23) defende que, “no ser humano, é quase impossível ter um sentido
perceptivo que não venha acompanhado de um sentido linguístico. [...] O discurso linguístico e a intuição sensorial
59

possibilidade de conhecimento arrimado na intuição criativa. Assim, a intuição, que pode ser uma
garantia de experiência viva para o vulgo, no homem intelectualizado, acostumado a tudo explicar
e compreender, encontra sérias limitações, chegando mesmo a desprezá-la, por ser algo misterioso,
estranho e inexplicável (NUNES, 1997, p. 24).

Nesse ponto, a intuição82 83


deve servir aos estudiosos tal qual teria servido a Descartes:
relata Burtt (1991, p. 85) que o matemático, na noite de 10 de novembro de 1619, teria tido uma
experiência notável, e que seria lembrada por ele, muito anos depois, como a “[...] ocasião da
grande revelação que determinou o ponto decisivo de sua carreira”. Expresso em um movimento
que se pode nomear de intuitivo, teve a convicção de que a Matemática seria a chave única para
desvendar os segredos na natureza.

A intuição, assim, revela também o movimento em direção “[...] ao mais profundo de nós
mesmos, o ponto em que nos sentimos mais interiores à nossa própria vida” (BERGSON, 1973, p.
207) e que pode representar uma certa desconexão com o exterior e com a intelectualidade. E essa
ascese temporária, que se dá em um movimento pré-linguístico (?), antes mesmo do conhecimento,
portanto, pode ser a porta de entrada para tantas ideias diferenciadas e que consigam trazer um
lenitivo ao homem, na ingente dificuldade que é viver. Aqui, a Hermenêutica representaria o
movimento de interpretação da próprio Ego84 ou, por que não dizer, da imensidade de coisas entre
o corpo e a alma.

Não se poderia deixar de pontuar, por fim, que, dentre os três pensadores contemporâneos
pós-giro linguístico considerados mais importantes, ressalta a figura de Freud, que “inventou” o
inconsciente, como pensamento central na economia da vida psíquica humana e que abre espaço
para concepções do “[...] homem como ser desejante, incompleto, marcado pela falta” (AGUIAR,

não podem ser separados; é possível distingui-los apenas para efeito de análise”. Assim, parece se afastar dessa intuição
de que se fala neste momento, pois necessariamente estaria mediada pela linguagem.
82
Neste relato de Edwin A. Burtt (1991, p. 85), a intuição que ora se chama parece se aproximar de uma experiência
mística vivida por Descartes, dada a descrição de que a este teria aparecido um Anjo da Verdade, comparada às
iluminações extáticas dos místicos.
83
É José Souto Maior Borges (2015, p. 113) quem noticia que “para a explosão de uma teoria inovadora, tudo
dependerá de uma certa intuição criadora, um fenômeno psicológico juridicamente irrelevante. O ser irrelevante para
o Direito não afasta a sua importância para outras disciplinas científicas, como a Psicologia”.
84
Aqui se fala na noção de Ego, haja vista Nunes (1997, p. 27) afirmar que o fundamento da intuição se encontra no
Ego, “[...] naquilo que denominamos de Eu, isto é, no ponto de ligação entre o corpo e a alma”.
60

1999, p. 34) e, por que não dizer, incapaz de expressar tudo aquilo que lhe permeia, pois, na maior
parte dos casos, sequer sabe que existe.

Ora, se o empirismo e o racionalismo caminham pelas vias tradicionais do conhecimento,


apenas sob perspectivas diferenciadas quanto ao sujeito e ao objeto, o intuicionismo anda por vielas
obscuras, desconhecidas, não trafegadas ou pouco utilizadas pelo ser humano. Aqui reside uma das
perspectivas menos exploradas e talvez mais relevantes para se chegar, afinal, a se conseguir
responder às perguntas que, de há muito, inquietam o ser humano (“quem sou?”, “qual o sentido
da vida?”, “estamos sós no Universo?”, “que é Deus?”).

Nessa medida, abre-se espaço à intuição85 86 87


, neste trabalho, juntamente com as
perspectivas dialéticas que constituem o objeto pela linguagem, como o modo pelo qual o jurista
lida com o Direito (CARVALHO, 2011, p. XVIII), antecipando (e ao mesmo tempo, já vivendo)
esse futuro que já está aí, e cujos lampejos já se encontram espalhados nas diversas intuições dos
estudiosos da Epistemologia e da Hermenêutica que desenvolvem teorias que, nas mais das vezes,
são consideradas “fora da curva” em termos de centralidade do conhecimento. Aqui cabe o mesmo
espanto de outrora, dos que faziam uma leitura rasa da Filosofia da Linguagem88 e concluíam que

85
Ao discorrer sobre “Retórica e Preâmbulo”, Paulo de Barros Carvalho se reporta, brevemente, acerca da intuição,
(2013a, p. 430) ao advertir “[...] que não é qualquer torneio retórico que convém ao discurso da Ciência do Direito ou
mesmo daquel’outros produzidos com o objetivo de convercer a autoridade competente ou o juiz de direito nos
respectivos autos. Por outro lado, é impossível estipular o espaço de variação da possibilidade retórica no recinto do
jurídico, mesmo porque um é o do direito posto, outro o da dogmática. Simplesmente isso. Caberá à intuição, tomada
aqui como órgão, aliás o mais poderoso instrumento cognoscitivo, a chamada ‘ciência direta’, sugerir os critérios
de avaliação do quantum de argumentação retórica que deve ser empregada na construção do discurso científico,
evitando, por todo o modo, o logomaquia e tantas extravagâncias que rondam e ameaçam a pena de quem escreve.”
(destacado).
86
É também Paulo de Barros Carvalho (2013a, p. XXV), ao elaborar o Prólogo do seu “Direito Tributário: Linguagem
e Método”, quem descreve que tal livro possui uma matéria que “[...] foi-se articulando em sequência natural,
intuitiva, buscando na intertextualidade seus assomos de coesão.” (destacado). Tal frase já revela importantes
características do Constructivismo Lógico-Semântico, que serão abordadas desde o Livro II; mas, quanto à intuição,
esta é faculdade sempre enaltecida pelo autor.
87
No Prefácio à obra “Competência tributária: fundamentos para uma teoria da nulidade”, de autoria de Tácio Lacerda
Gama, Paulo de Barros Carvalho (2009, p. XXII) discorre novamente sobre a intuição, ao tratar do fenômeno jurídico:
“Há um fenômeno jurídico subjacente ao modo pelo qual o direito escrito aparece à nossa intuição sensível. O jurista,
atento à linguagem técnica empregada pelo legislador, seja ele o Parlamento, o Poder Judiciário, o Poder Executivo ou
o próprio setor privado, o jurista, repito, constrói o sentido que outorga ao documento normativo. A compostura dos
institutos, categorias e formas do direito posto advêm dessa relação entre o sujeito do conhecimento e o objeto do qual
se aproxima. É obra do espírito humano, premidos pelas circunstâncias que o tornam um ser carente e finito: é objeto
cultural; é aquele espírito objetivo a que se referiu Hegel”.
88
Acerca desse importante movimento da Filosofia, explica Tácio Lacerda Gama (2014, p. 273): “Após o
estabelecimento da chamada ‘Filosofia da Linguagem Contemporânea’, marcadamente com os trabalhos do
61

a asserção de que “linguagem cria a realidade” representaria uma negação da existência física dos
objetos, por exemplo.

Identicamente, em obra que inaugura novo fundamento da ordem jurídica, Goffredo Telles
Junior (2014) defende a tese de que a ordenação jurídica faz parte da própria ordenação universal,
em um movimento que associa caracteres das chamadas Ciências Naturais com o próprio Direito.
Longe de contrariar a grandeza e a complexidade ínsita às Ciências Sociais, nas quais o homem
depara um objeto sui generis, que é a própria dinâmica social, Telles Junior (2014) aproxima as
ciências, demonstrando que a dialética entre conhecimentos pode trazer respostas fecundas e
originais, e que se situam acertadamente em um “futuro que já se faz presente”89.

2.2 CONHE(CIMENTO) CIENTÍFICO, EDIFICANDO PARA RUIR: LUZES SOBRE O QUE O


CONHECIMENTO CIENTÍFICO É E, MAIS AINDA, SOBRE O QUE ELE NÃO É90 91

Ao se caminhar um pouco mais no âmbito da Epistemologia, e admitida a singela noção de


que o conhecimento é um fato92, parte-se agora para a identificação do conhecimento científico
propriamente dito. Isso porque, considerada a abordagem já aqui proposta, tradicionalmente se
“divide” o conhecimento de acordo com as maneiras peculiares de sua manifestação: nesse ponto,

‘primeiro’ Martin Heidegger e do ‘segundo’ Ludwig Wittgenstein, ‘sujeito’, ‘objeto’, ‘verdade’ passam a ser
compreendidos como construções de linguagem. Isso porque se torna difundida a ideia de que toda e qualquer forma
de compreensão se dá na linguagem e segundo os seus limites. Conhecer algo é antes conhecer a linguagem que torna
esse algo compreensível. De forma inversa, antes da linguagem não há compreensão. Trata-se, pois, de uma completa
reviravolta na concepção do que é conhecer algo, bem como na importância que a linguagem exerce nesta tarefa”.
(destacado).
89
Aqui vale ressaltar a aproximação entre a abordagem de Telles Junior (2014, pp. 330-331) e aquela contida nesta
tese, ao enfatizar a experiência jurídica como uma “[...] atualização objetiva de um estado de consciência da uma
comunidade”, considerando o homem como ser histórico, e “[...] condição subjetiva de compreensão da experiência
objetiva”, vivendo em um mundo também “histórico”, marcado pela “duração humana”.
90
A ênfase no que o “conhecimento não é” sobreleva de importância na medida em que se abandonam posições
essencialistas e se passa a buscar o significado de termos ou expressões. Tal movimento também é observado no direito,
conforme relato de José Lamego (2016, p. 283): “Relativamente às questões definicionais, há muito que a filosofia
abandonou posições ‘essencialistas’, que concebiam a essência como sendo o correlato ontológico da definição: o
‘essencialismo’ está representado, sobretudo, no platonismo antigo e no realismo escolástico medieval. Ao invés, a
orientação analítica na filosofia entende as questões definicionais como questões de especificaçãodo significado de
termos ou expressões. Para a filosofia analítica, os objectos só têm propriedades ‘essenciais’ na medida em que tais
propriedades sejam condições necessárias para o uso do termo”.
91
Com Hugo de Brito Machado Segundo (2008, p. 67) justifica-se a opção pelo conceito “negativo” de conhecimento
científico: “O conhecimento científico, contudo, é atualmente definido por exclusão. É científico, basicamente, o
conhecimento que não é dogmático, pelo que talvez seja adequado, pelo menos, reavaliar o uso da expressão ciência
dogmática do Direito”.
92
Sabe-se que tal abordagem é simplista e que a Filosofia jamais chegou (talvez nunca chegue) a um consenso quanto
ao que seria o conhecimento.
62

há “conhecimentos” filosófico, artístico, religioso, ético, científico, dentre outros. Tal divisão se
revela assaz importante, na medida em que este Livro I pretende se aproximar do modelo que
caracteriza o “passado que ainda se faz presente” e cuja heterogeneidade na manifestação
doutrinária é bastante intensa e, mesmo, existem dúvidas quanto ao caráter científico de alguns
textos.

Como se verá mais à frente, saber se um determinado texto se enquadra ou não como
manifestação científica é fundamental em um momento em que o Direito Tributário ainda se
sedimenta, o que culmina com a produção de conhecimento desconectado de qualquer rigor, sem
que haja um percurso lógico estruturado, e que serve, nas mais das vezes, para sustentar argumentos
de autoridade93.

Voltando-se, entretanto, aos diversos “tipos” de conhecimentos” apontados anteriormente,


aquele que se sedimentou ao longo do tempo como sendo o mais confiável foi o conhecimento
científico, pelo seu caráter de experienciação. Essa experienciação produziu, inevitavelmente, uma
profusão de teorias diversas, que, no ápice da sua dialeticidade, expressam o processo de transição
entre o ser e o dever-ser (VASCONCELOS, 2008, p. 72).

Para o que aqui interessa, ao lidar com a Hermenêutica, impende ressaltar que esta não
representa uma modalidade de conhecimento “em si”, mas a dinâmica a ser empreendida pelo
sujeito a fim de se chegar a conhecer algo ou, ao menos, ao se aproximar de algo que se intenta
conhecer. Tal dinâmica terá vetores diferenciados, a depender da corrente que se adote: se é o
empirismo, a Hermenêutica terá um vetor que parte do objeto; se é racionalismo, um vetor que

93
O Brasil possui uma peculiaridade na própria especificidade dos seus cientistas do Direito que destoa da dinâmica
observável em outros países, como é o caso de Portugal. Neste país, é comum àqueles professores que se dedicam à
academia não possuírem outra atividade remunerada fora das faculdades, incluindo o próprio exercício da advocacia
ou o serviço público. Em certa medida, não pode o pesquisador, que é humano, achar-se seriamente desconectado dos
valores que se relacionam à sua atividade profissional. Aqui no Brasil, diferentemente disso, a pergunta sobre a
atividade profissional de professor vem seguida de um advérbio de exclusão que demonstra a cultura do brasileiro.
Assim, “- O senhor é apenas professor?”, ainda vem eivada de preconceitos, em um país que não prestigia essa classe
de profissionais. Com isso, é muito comum os juristas serem advogados ou servidores públicos atuantes que, nas mais
das vezes, transitam entre os dois mundos sem observar o rigor que representa erigir determinado trabalho à qualidade
de verdadeira ciência. Nesse tocante, longe de recriminar, fica a observação sobre o cuidado que estes profissionais
(dentre os quais se inclui esta autora) devem ter ao escreverem artigos científicos, dissertações ou teses, que sempre
partem de problemas para cujas soluções o autor não tem respostas prontas (sob pena de não haver dúvida), mas cientes
de que toda essa dinâmica deve ocorrer com a maior seriedade possível. Em outra vertente, ao exarar seus pareceres,
em defesa de uma causa, estar-se-á na legítima defesa dos interesses daqueles que o contrataram.
63

parte do sujeito; caso se cuide de uma abordagem dialética, pugna-se por uma inseparabilidade
sujeito-objeto. No que se refere ao intuicionismo, pode-se compreendê-lo como um impulso que
se inicia em um momento pré-linguístico e que, para ser processado, interpretado, carece ser
“traduzido” em palavras, com suporte na racionalidade ou nos próprios sentidos da pessoa.

Ainda mais é digno de nota que o resultado do labor hermenêutico pode partir de qualquer
formato de conhecimento, isto é, pode-se interpretar o conhecimento artístico, o conhecimento
científico ou o conhecimento religioso, por exemplo, e se produzir mais conhecimento, a ser
novamente compartimentado por aquele que o produz.

Nesse movimento, com origem na interpretação de uma obra de arte, pode-se produzir
conhecimento religioso, quando, por exemplo, interpretam-se artes sacras ou cantos gregorianos
em sua conexão com o divino. Pode-se iniciar de um conhecimento tradicionalmente religioso,
como seria o estudo dos livros bíblicos, e se chegar ao conhecimento histórico do povo cuja vida
também é relatada naquele texto; pode-se estabelecer o que se tinha como ciência, à época, com
amparo nos modos de cura particulares; pode-se constituir conhecimento filosófico, ao se idealizar
o modo como tais pessoas enxergavam o Universo. Tais possibilidades são inauguradas por
Schleiermacher, desde o momento em que este tomou o problema bíblico-hermenêutico da correta
compreensão e interpretação da Sagrada Escritura sob o horizonte mais amplo da interpretação
histórica e literária (CORETH, 1973, p. 18).

Em decorrência de tudo isso, percebe-se o quão complexo é lidar com o conhecimento e o


quanto refoge de uma temática linear. Nessa medida, como a aproximação pretendida visa a trazer
os contornos do conhecimento científico, em especial em um momento em que, a duras penas, a
ciência se (a)firma como portadora da verdade última, mostra-se fundamental esmiuçar as bases
sobre as quais se assenta o que hoje é considerado ciência, com encosto em critério negativo: as
luzes da ciência são apontadas, assim, desde o que não deve ser enquadrado sob o rótulo da ciência.
Isso porque, ao se falar em um “passado que ainda se faz presente”, as noções de ciência defendidas
na atualidade reverberam na própria Ciência do Direito Tributário.

Tal tentativa de fixação de novas luzes justifica-se na medida em que se percebe a


necessidade de se admitir maior porosidade entre o conhecimento científico e o conhecimento
filosófico, com vistas ao desenvolvimento de uma verdadeira teoria geral da interpretação,
64

permitindo-se “[...] retomar o direito a partir de uma filosofia prática.” (CARNEIRO, 2011, p. 38-
39).

Como o que se está a fazer aqui se pretende rotular como “ciência”, dada ser esta a maneira
predominante de vida pós-Idade Moderna94 95
, “[...] como determinante primário da cultura”
(SMITH, 2014, p. 22) e da qual não pode fugir uma abordagem jurídica na atualidade – é
importante deixar pontuado sob quais aspectos se reconhece ingressar nesse feito de conhecimento,
adentrando verdadeiramente seus limites, ainda que não muito bem precisos, e que servirão para
serem estabelecidas as possibilidades hermenêuticas jurídicas. À semelhança de Tomás de Aquino,
ao tratar de Deus, buscar-se-á identificar o que não é ciência.

Um fato que hoje é digno de consideração é que, apesar de elevada à verdadeira religião da
modernidade, a ciência tem deparado alguns apuros para justificar as bases sobre as quais se erigiu,
notadamente com a ideia de experimentação, de método e no tradicional modo de mensuração da
realidade96. É inconteste, ainda, a noção de que, mesmo as chamadas ciências “duras”, como a
Física, que trazem a nota da cientificidade por excelência, estão profundamente abaladas após o

94
Apesar de todas as remodelações e contestações ao modo como se estrutura a Ciência, esta continua sendo, na
atualidade, o que a Religião foi para o homem da Idade Média. Nesse ponto, é segura a observação de Ortega y Gasset
(1989, p. 78), ao cuidar dessa transição, e que bem identifica o novo homem que surge desde os deuses erigidos pelo
conhecimento científico: “Não basta que algo apareça como verdade dentro da óptica especial de uma ciência para que
seja, sem mais, verdade definitiva, executiva verdade. Só a teologia e a filosofia são, em última instância, dignas de
crédito. Traduzindo esse fato tão notório para nossa terminologia, diremos que na Idade Média e até 1550 as ciências
não fazem mundo; como exagerando, acrescentaremos que não faz mundo hoje a técnica do xadrez. Por conseguinte,
para que um invento da ciência particular como a idéia copernicana produzisse efetiva mudança de mundo, era mister
que antes os homens se houvessem decidido a aceitar que, em geral, a verdade científica é uma verdade de primeira
ordem, digna de crédito. [...] Isso demonstra que a perspectiva da vida é diferente da perspectiva da ciência. Na Idade
Moderna ambas se confundiram: precisamente essa confusão é a Idade Moderna. Nela o homem faz que a
ciência, a razão pura, sirva de base às suas concepções. Vive-se da ciência. Por isso Taine notava que como em
outro tempo o homem recebia seus dogmas dos Concílios, optou depois por recebê-los da Academia e das
Ciências.” (destacado).
95
Ainda com Ortega y Gasset (2016b, p. 102), é interessante observar que a denominação do período pós-Idade Média
como Idade Moderna, na qual ocorreu essa plenificação da ideia de ciência, representa um ideal genuíno de que se
chegara à “altura dos tempos”, à plenitude: “o sentido original de ‘moderno’, ‘modernidade’, com que os últimos
tempos batizaram a si mesmos, expressa muitíssimo bem essa sensação de ‘altura dos tempos’ cuja análise ora se
empreende. Moderno é o que está segundo o modo: entenda-se o modo novo, modificação ou moda que surgiu em tal
presente contra os modos velhos, tradicionais, usados no passado. A palavra ‘moderno’ expressa, portanto, a
consciência de uma nova vida, superior à antiga, e, ao mesmo tempo. o imperativo de estar à altura dos tempos. Para
o ‘moderno’, não o ser equivale a cair abaixo do nível histórico.” (destacado).
96
Essas três ideias serão mais bem repassadas no próximo subcapítulo, ao se descrever como se estrutura o método no
passado que ainda se faz presente, inclusive identificando-o em obras científicas do Direito e que se encontram em
plena utilização pelos intérpretes jurídicos, sejam eles advogados, juízes ou integrantes da da Administração Pública.
65

aprofundamento dos estudos advindos da Física Quântica: conforme afirmou Richard Feynman,
Prêmio Nobel de Física e um dos maiores cientistas do século XX, “[...] ninguém entende a
mecânica quântica”. E isso retoma, sem assombros, o tema central da chamada Física
contemporânea.

Ora, se ninguém a entende, como surgem tantas teorias a respeito dessa nova maneira de
enxergar o mundo? Como é admitido o desenvolvimento desse novo paradigma científico se os
cientistas ainda não conseguem lidar como tal realidade? Isso representaria a vitória final do
irracionalismo e tudo não passaria de um mito cientificista? (SMITH, 2014). Para essas e outras
perguntas, as quais revelam a complexidade do conceito de ciência na atualidade, restam apenas
alguns lampejos que podem aqui ser aproveitados, como daquilo que não será considerado ciência
sob a configuração tradicional.

No Direito, a situação não se revela mais confortável: pelo contrário, a pretexto de se erigir
conhecimento científico, percebe-se uma profusão de textos que não obedecem ao menor rigorismo
conceitual. Nesse ponto, não indicam os cortes metodológicos realizados e sequer fazem referência
às teorias de base do raciocínio pretendido, realizando, muitas vezes, aquilo que Lenio Streck
(2014b) denomina de mixagem teórica97, a qual encontra, na legislação brasileira, um campo
propício e fértil para o descontrole.

97
Interessante é observar a clareza da exposição de Streck (2014b), ao identificar momentos absolutamente distintos
nos principais diplomas legislativos brasileiros: “Essa mixagem encontra um terreno fértil no Direito brasileiro, em
que a) o Código Civil é proveniente de uma sociedade pré-liberal e urbana; b) o Código Penal é produto de uma
sociedade que há pouco saíra de um modelo agrário-exportador, voltado a uma (nova) clientela fruto da mudança da
economia ocorrida a partir da revolução liberal de 1930; o Código Comercial é do século XIX (agora ‘incorporado’
pelo Código Civil); d) o Código de Processo Civil, que estabelece mecanismos que protegem explicitamente os direitos
reais em detrimento dos direitos pessoais, além de apostar no instrumentalismo, a partir de uma clara opção em favor
do protagonismo judicial, circunstância que se repete no Projeto do novo CPC; e, e) o Código de Processo Penal, que
adota nítida matriz inquisitorial, ainda apostando na livre apreciação das provas, explícita opção pelo paradigma da
filosofia da consciência”. Nesse mesmo movimento, poder-se-ia, sem dúvidas, inserir o Código Tributário Nacional
que ainda se mostra preso a uma atuação de uma Administração Tributária centralizadora e na qual a figura da
autoridade administrativa representaria o “Super-Homem” na constituição do crédito tributário. Ademais, ao admitir
uma incidência automática e infalível, desprestigia correntes mais modernas no Direito e que melhor explicam a
realidade jurídico-tributária, pela qual se faz absolutamente necessária a atuação humana (ainda que de modo indireto,
por meio de mecanismos de tecnologia da informação massivos), para fins de verter em linguagem competente os
eventos em fatos. Aqui reside a importância das provas no Direito e, para o que aqui interessa, especificamente das
provas em matéria tributária, cuja obra central de Fabiana Del Padre Tomé (2016) enaltece os principais aspectos do
instituto.
66

É nesse contexto que se pode fazer o primeiro corte para se chegar à ideia de ciência: o
senso comum não é ciência; o mito não é ciência (SMITH, 2014). Conforme explica Agostinho
Ramalho Marques Neto (2001, p. 44), o senso comum, também chamado de conhecimento comum,
é “aquele tipo de conhecimento eminentemente prático e assistemático que rege a maior parte de
nossas ações diárias”. Trata-se, então, de mera reprodução de fatos observáveis no mundo, não
havendo qualquer contrariedade a ser desvendada. As coisas são como são. O autor ainda ressalta
que este conhecimento passa a ser mais preciso e confiável na medida em que é ratificado por mais
pessoas, que presenciam ou conhecem os fatos: depende, assim, de um consenso de opiniões.

Nesse sentido, partindo de uma forma de conhecimento que é assistemática, ambígua,


empírica, prática, colada aos dados perceptivos e que é casual (MARQUES NETO, 2001, p. 44-
46), não se pode pretender erigir uma forma diferenciada de interpretação do mundo: nesse ponto,
diante da complexidade presente na conformação humana, não existem padrões previamente
estabelecidos e que possam envelopar o sentido comum. Contudo, não se pode olvidar que, ainda
que se trate de senso comum, dois guias ajudam a trazer conexão à forma peculiar de ver um mundo
de determinada sociedade: a linguagem habitada pelos intérpretes, bem como a geração 98 daquele
que interpreta.

Há de se ressaltar, ademais, a ideia de que o conhecimento científico não é mero


aprofundamento do senso comum: fazer ciência não é meramente transformar os fatos constatáveis
na realidade. Como acentua Marcelo Gleiser, em debate com Frei Betto e Waldemar Falcão (2011,
p. 98), ao contrapor a intencionalidade com o acaso no estudo da ciência, esta serviria para explicar
“como” funciona o mundo, e não “por que” o mundo funciona.

Arnaldo Vasconcelos (2008, p. 73), ao elucidar o necessário desencontro teoria e realidade,


assevera que aquela se afirma como boa na medida em que não coincida com a realidade e que um
“juízo de dever-ser – que é o que é a teoria – que estivesse de acordo com o que é – a realidade –

98
O conceito de geração, tal qual exposto por Ortega y Gasset (2016b), já aqui explicitado, será mais à frente conciliado
ao conceito de tradição deduzido do eixo Gadamer-Heidegger e horizontes culturais de Paulo de Barros Carvalho, e
que se alinha ao de uma pré-compreensão.
67

seria autêntico contra-senso, um rematado absurdo”. Aqui, então, faz vir à tona a questão da teoria
e da prática, que são de suma relevância para a ciência e, em especial, para o próprio Direito.

Nesse ponto, ao se admitir um conhecimento científico que não se identifica com o senso
comum, com aquilo que vulgarmente se chama de “realidade”, deve-se ter em mente a noção de
que a ciência cria as próprias realidades, mediadas pela linguagem, diferenciando o que seria o
objeto real do chamado objeto de conhecimento. E disso, a ciência do Direito não pode se afastar:
a “realidade” jurídica é construída com base em determinadas teorias, que estruturam o modo como
o “mundo” jurídico será formatado. Talvez essa seja uma das maiores dificuldades para o jurista
em termos hermenêuticos: compreender que a realidade por ele deparada é sempre artificial.

A desidentificação do objeto real em relação ao objeto do conhecimento é fundamental para


que se acessem os lampejos daquilo que há de ser considerado ciência. Conforme ressaltado por
Marques Neto (2001, p. 69), o contato entre a parte teórica, que se identifica com as teorias, com
as hipóteses, com a experimentação ou com a prova, e a realidade (dita “real”), não se dá
diretamente, mas sempre por intermédio do objeto do conhecimento, isto é, de um objeto
construído e sobre o qual recaem as teorias. Fazendo uma alusão ao Direito, seu objeto real são as
próprias relações intersubjetivas, a vida em sociedade, a qual pode produzir objetos de
conhecimento distintos, a depender da “lente” que se escolha para visualizá-la: utilizando-se da
lente verde do Positivismo Jurídico99, ter-se-ia um objeto esverdeado e que se assemelha ao
chamado objeto real, mas que com ele não se confunde.

E assim, muitas maneiras distintas de ver o mundo são encontráveis em qualquer ciência: a
depender da teoria estruturada, ter-se-á um jeito diferente de enxergar a realidade. E aqui reside
uma diferenciação do modo de se criar esse objeto do conhecimento no “passado que ainda se faz
presente”: com um forte viés empirista, o objeto do conhecimento praticamente se oferece (ou

99
Mais à frente será abordado o positivismo jurídico; contudo, desde já se antecipa que ele é identificado como “postura
metodológica específica que estabelece determinados pressupostos de objeto e método para a análise do fenômeno
jurídico. No que tange ao objeto, o positivismo jurídico exclui de sua esfera de análise qualquer contéudo transcendente
ao direito positivo [...], limitando-se a descrever e organizar apenas o direito produzido pelo convívio humano,
chamado direito positivo. [...] Na perspectiva do método, o positivismo realiza uma radical separação entre a ciência
do direito (ponto do observador) e o das práticas jurídicas efetivas (ponto observado) e coloca entre eles um ideal de
neutralidade: a descrição efetuada deve ser realizada de modo que nenhum elemento ideológico, psicológico ou político
influencie o observador.” (ABBOUD; CARNIO; OLIVEIRA, 2015, p. 77).
68

oferece àquele que se posta como observador), insinua-se já com todos os caracteres nele inscritos,
bastando ao observador simplesmente “abrir os olhos” e captar aquilo que já foi previamente
ofertado. Daí uma atitude de mera descrição. Ao se tratar do método, ficará mais clara a imbricação
desse movimento no jeito como a Hermenêutica irá se espelhar neste “passado que ainda se faz
presente”, inclusive com suporte em exemplos da jurisprudência e da doutrina que ainda são
sensíveis na realidade jurídica brasileira.

Para o “presente”, contudo, a ciência não comportaria mais uma atitude de mera descrição
ou de explicação superficial de seus fenômenos: sua atitude há de ser proativa no tocante aos
fenômenos, buscando nestas suas potencialidades preditivas, a dizer, indicando as ocorrências
possíveis dentro de um determinado contexto, criando as próprias realidades. Nesse ponto, apesar
de Paulo de Barros Carvalho (2015b, p. 37) ensinar que o discurso do cientista do Direito é formado
por “proposições descritivas”, não se esqueceu de que a relevância do labor científico do jurista o
erige à “[...] única pessoa credenciada a construir o conteúdo, sentido e alcance da matéria
legislada”.

Assim explicita Arnaldo Vasconcelos (2008, p. 212):

O tempo da ciência puramente descritiva passou, faz séculos. Foi a época de


Aristóteles e da Escolástica, da Antiguidade e da Idade Média. Depois veio o
Renascimento e Galileu, e com eles, a ciência explicativa, que esquadrinhou os
céus a fim de torná-los inteligíveis através de esquemas matemáticos. Com Bacon
e a Modernidade, surge a ciência construtiva que, a partir de Kant, vê-se
autorizada a criar seu próprio objeto. Passa a falar-se dela, então, como
empreendimento ou processo criativo. Exige-se-lhe que seja fértil e eficaz. [...]
A ciência contemporânea já não coloca como objetivo principal a descrição da
realidade, embora necessite de antemão conhecê-la. (destacado).

Aqui há de se destacar o fato de que, na qualidade de empreendimento criativo, que se


utiliza do raciocínio para inovar100, para ir além do que já existe, criando coisas, a ciência, contudo,
deve fazê-lo com uma humildade que seria própria de seu método, de sua natureza e de seu caráter,

100
O raciocínio é entendido como a “experiência que envolve algo velho e algo desconhecido (até então)”
(CAMILOTTI, 2018, p. 15). Dessa maneira, além de inovar, criando coisas novas, o raciocínio pode representar a
manutenção da tradição, do status quo, o que, aqui, parece se conectar mais à ideia de estagnação.
69

que se expressa no calar diante do inexplicável, do desconhecido (BETTO; GLEISER; FALCÃO,


2011, p. 148).

Tal acepção do que não deve ser considerado ciência advém do modelo epistêmico de
Aristóteles (filosofia primeira ou metafísica; ciência ou episteme; técnica ou arte; prudência)
(CARNEIRO, 2011), para quem a ciência se perfaria como conhecimento apodíctico, na ideia de
um silogismo científico que alia causa e demonstração. Nessa medida, o silogismo demonstrativo,
ou raciocínio analítico, parte de verdades apodícticas e, por isso mesmo, permite conclusões
necessárias, o que se revela assaz dificultoso quando se fala do Direito, na medida em que este não
se assenta em verdades, mas em verossimilhanças, sendo mais apropriado ofertar-lhe um silogismo
dialético, o qual parte de postulados sempre questionáveis, o que torna a conclusão relativa
(CUNHA, 2005, p. 342). Tais perspectivas, contudo, aderem-se mais ao presente e ao futuro, na
proposta deste trabalho.

Voltando ao senso comum, longe de qualquer rigor científico que se apregoe desde a Idade
Moderna, a communis opinio não responde à altura ao ideal de conhecimento superior, ainda que
sirva para responder às questões corriqueiras da vida humana. Com isso, o caráter cientificista que
se erige desde Galileu e de Descartes fundamenta-se nas demonstrações matemáticas e os saberes
especializados das ciências se isolam dos outros saberes, aliando-se a uma “[...] técnica reprodutiva
que coloca o homem à sua disposição.” (CARNEIRO, 2011, p. 39).

Outra afirmação bem relevante nesse estádio, e que foi ressaltada há pouco, é a de que o
conhecimento científico não é dogmático. Essa característica é fundamental de ser apontada em
virtude do evidente “endeusamento” das ciências, e que leva inúmeras pessoas a encerrarem
discussões exacerbadas ao simples argumento de que “a ciência já provou isso...”. Para desmitificar
essa deificação, Karl Popper identificara o conhecimento científico com uma conjectura, só
podendo se caracterizar como verdadeira ciência aquilo que pode ser refutado. Daí, não há que se
falar em perenização do conhecimento científico, visto que é de sua natureza a instabilidade, a
brevidade e a falseabilidade.

Fazer ciência não é tarefa dos deuses nem ciência é privilégio de cientistas trancafiados em
laboratórios modernos e arrojados. Ciência é, então, um “[...] conjunto de procedimentos teóricos
e metodológicos que visam à criação do saber, ou seja, à produção de teorias científicas”, as quais
70

“[...] resultam de um trabalho de construção e retificação de conceitos.” (MARQUES NETO, 2001,


p. 55).

Para Thomas S. Kuhn (2013, p. 60), “[...] ciência é a reunião de fatos, teorias e métodos
reunidos nos textos atuais” e, conforme Tércio Sampaio Ferraz Jr (2014b, p. 1), “[...] o termo
ciência não é unívoco; se é verdade que com ele designamos um tipo específico de conhecimento,
não há, entretanto, um critério único que determine a extensão, a natureza e os caracteres deste
conhecimento”.

Faz-se necessário também destacar, na esteira de um aprofundamento a partir do


Constructivismo Lógico-Semântico, a ser aprofundado no Livro II, que “[...] o empirismo lógico
prescrevia que todos os enunciados e conceitos referentes a um dado fenômeno deveriam ser
traduzidos em termos observáveis (objetivos) e testados empiricamente para verificar se eram
falsos ou verdadeiros” (DEMO, 2000, p. 111). Para esta observação, utiliza-se da Lógica e da
Matemática como os instrumentais necessários para se estabelecer a linguagem.

Esse modo de reduzir as ciências àquilo que pode ser provado empiricamente, observado,
naturalmente conduziria à exclusão antecipada de muitos dos fenômenos sociais, visto que não há
como se reproduzir em laboratório, por exemplo, um comportamento criminoso de um homicida,
sob pena de se estar praticando um novo delito. Esse aprisionamento da ciência, no entanto, passou
a ser questionado por alguns cientistas contemporâneos, como Popper, Kuhn, Lakatos e
Feyerabend, cujos pensamentos destruiriam os dois pilares do positivismo: a objetividade da
observação e a legitimidade da indução (DEMO, 2000, p. 112).

Com isso, desmistificando o conhecimento científico como algo desproposital, em que o


cientista era uma pessoa neutra e descompromissada em relação a ideologias, o relativismo
demonstra que o próprio olhar do sujeito é impregnado de valores. Quanto à indução, Karl Popper
(1982, p. 309) afirmou que “[...] esse critério não exclui proposições que são obviamente
metafísicas; exclui, porém, as afirmativas científicas mais importantes e interessantes – isto é, as
teorias científicas, as leis universais da natureza”.

Com efeito, desconstruiu-se a estrutura que impedia o acesso das ciências sociais ao
referencial. Ademais, essas, que eram consideradas como “verdadeiras” ciências, como a Física, a
71

Química e a Matemática, tiveram de conviver, no século XX, com a grotesca destinação que lhes
foi dada, com inúmeros engenhos desenvolvidos pelo homem contra o próprio homem (SILVA,
2009, p. 171) e, mesmo, com a fatalidade de deparar objetos tão metafísicos quanto os das ciências
sociais (SMITH, 2014).

Com isso, no momento em que emergem profundas discussões sobre o papel da ciência nas
relações sociais, constata-se que, apesar de todo o desenvolvimento científico alcançado, expresso
no plano material, o próprio homem ainda é uma incógnita de si mesmo. Assim, a humanidade
conhece o universo que a circunda mas é incapaz de aplacar a depressão no íntimo do ser humano:
assim, no mesmo movimento da Filosofia da Linguagem, mas desde Sigmund Freud, aplacando o
sentido de ser humano-intérprete que seria neutro axiologicamente, deificado em si mesmo,
expressão da máxima racionalidade, surge a consciência e a inconsciência com origem no papel
fundamental que esta assume para se identificar os limites do pensamento (AGUIAR, 1999, p. 34).

Nesse movimento, de exaltação do próprio homem e de compreensão de suas limitações,


pode-se afirmar que as ciências sociais são, sim, verdadeiro conhecimento científico. Pressupondo-
se que se deve ressignificar o papel dos métodos para o reconhecimento do que seja
verdadeiramente ciência, seja pela clareza do discurso científico, seja pela possibilidade de que
essa qualificação venha da explicação dos fenômenos e não de sua mera descrição, há de se ter em
mente a ideia de que o critério referente à capacidade de teorização tem que ser flexibilizado,
alcançando, também, as ciências sociais (DEMO, 2000, p. 127).

Por fim, voltando ao tema da ciência dogmática (o que pode ser uma contradição em seus
termos)101, faz-se necessário delimitar em que medida esta obra aceita tal expressão. Nesse ponto,
a resposta mais adequada encontra reverberação nos estudos de Miguel Reale (1999, pp. 323-324),

101
Tal análise não passou despercebida por Hugo de Brito Machado Segundo (2008, pp. 67-68), em um ensaio
especialmente direcionado a responder à indagação: “Por que Dogmática Jurídica?”. Conclui o autor, acerca da
Dogmática Jurídica que: “a) [...] O cunho dogmático de tal conhecimento decorreria do fato de que as normas não
serão discutidas, nem serão aceitas soluções que delas não decorram. [...] c) Outra causa – [...] – é a sonoridade da
expressão dogmática jurídica, que atribui aparentes importância e distinção a quem sobre ela discorre. [...] e) A
dogmática jurídica tem seus germes no trabalho dos glosadores do Direito Romano e na escola histórica do Direito.
Seu paralelismo é bastante grande, contudo, com a chamada Escola da Exegese, tendo sido propagada e largamente
utilizada a expressão em função da difusão do positivismo jurídico, especialmente de cunho legalista, [...]. f) As
insuficiências do positivismo jurídico, e de uma visão dogmática do Direito, levaram teóricos contemporâneos a
defender a manutenção do uso dessa expressão, mas com inúmeras ressalvas e complementos”.
72

o qual separa a Ciência do Direito, com teor mais amplo, da tradicionalmente conhecida
“Dogmática Jurídica”:

A Ciência do Direito é, portanto, uma ciência complexa, que estuda o fato


jurídico desde as suas manifestações iniciais até aquelas em que a forma se
aperfeiçoa. Há, porém, possibilidade de se circunscrever o âmbito da Ciência do
Direito no sentido de serem estudadas as regras ou normas já postas ou vigentes.
A Ciência do Direito, enquanto se destina ao estudo sistemático das normas,
ordenando-as segundo princípios, e tendo em vista a sua aplicação, toma o
nome de Dogmática Jurídica, conforme clássica denominação. [...] Para nós, a
Dogmática Jurídica não é um outro nome da Ciência do Direito, nem
tampouco se reduz a um simples processo artístico. No nosso modo entender a
Dogmática Jurídica corresponde ao momento culminante da aplicação da
Ciência do Direito, quando o jurista se eleva ao plano teórico dos princípios
e conceitos gerais indispensáveis à interpretação, construção e sistematização
dos preceitos e institutos de que se compõe o ordenamento jurídico. Como
veremos, ao tratar da Teoria Geral do Direito, quando esta determina as estruturas
lógicas da experiência jurídica, no âmbito e em função das exigências normativas
constantes do ordenamento, toma o nome de Dogmática Jurídica. (destacado).

Nesse ponto, longe de se pretender uma ciência dogmática, manter-se-ia, até por tradição,
o emprego do termo Dogmática Jurídica ao momento de culminância do sistema, que se
identificaria com a plenitude descrita no Plano S4, de Paulo de Barros Carvalho (2013a, 2015), em
seu percurso gerador de sentido, no qual se perfazem todas as relações de coordenação e de
subordinação normativas, e não com a ideia de dogmatismo positivista, tal qual descrito por Karl
Popper (2007). Nessa medida, ressoa a ideia de positivação e de derivação, o qual culmina com o
trabalho do jurista de compor “[...] o cálculo das normas, conjugando-as para agrupá-las, mediante
iniciativas de coordenação ou em movimentos ascendentes e descendentes sugestivos de
subordinação.” (CARVALHO, 2011, p. XIX). No que respeita à positivação, essa corresponde à
“[...] institucionalização cultural da mutabilidade do direito” (FERRAZ JR, 2014a, p. 4).

Outro ponto que há de ser ressaltado, mas que se choca com a falta de aceitação por parte
do ser humano, é que, se não há pretensão a ser verdade absoluta, faz parte do conhecimento
científico, como imprecisão, a ocorrência do erro. Moles (1995, p. 299-300) acentua, então, que
“[...] os mais vagos domínios do conhecimento são, por isso, os mais sujeitos ao erro, pois o falso
só aparece neste caso como tal após uma sequência mais longa de procedimentos”. Prossegue
concluindo que, fatalmente, o negativo é mais claro do que o positivo, só aparecendo a verdade em
contraste com o falso.
73

De tal sorte, esse caráter dogmático se aparta, evidententemente, da ciência construtiva


prevalente com origem no horizonte da Filosofia da Linguagem, que não se contenta com atitudes
meramente descritivistas, porquanto não há como se conceber uma flexibilização daquelas crenças
irresolutas e fechadas, limitadas na descrição dos eventos e desarticuladas relativamente ao
processo de inovação. De maneira idêntica, dogma não se coaduna com a criatividade, caractere
fundamental da ciência contemporânea, e que permanece ainda na indignidade de maiores
aprofundamentos como nível de conhecimento autônomo (intuicionismo).

Finalizando: pode-se afirmar que o conhecimento, para que seja reconhecido como
científico, e, em especial para a Ciência do Direito, deve se fazer acompanhar de aprofundamente
relativos ao “[...] fato jurídico desde as suas manifestações iniciais até aquelas em que a forma se
aperfeiçoa.” (REALE, 1999, pp. 323-324). Pode-se admitir, ainda, que a Ciência do Direito seja
destinada ao “[...] estudo sistemático das normas, ordenando-as segundo princípios, e tendo em
vista a sua aplicação” (REALE, 1999, pp. 323-324), não se esquecendo de que o intérprete não
pode tomar para si a atitude de “juiz solipsista”, tao bem desenhada por Lenio Streck (2014b), e
que pode dizer o que quiser acerca das normas. Diferentemente disso, deve fundamentar a própria
interpretação, como que a apontar a justificativa para a escolha realizada, diante de tantas outras
possibilidades que o contexto normativo certamente oferece.
74

CAPÍTULO 3. PAUSA ÚLTIMA: PELA COMPREENSÃO DE ASPECTOS


DA HERMENÊUTICA TRADICIONAL
Com procedência de abordagem que permita o acesso a traços históricos relativos à
Hermenêutica Geral, pode-se compreender melhor o caminho que foi delineado para a constituir a
doutrina e a jurisprudência no Direito Tributário, como propostas que contêm o resultado de um
labor interpretativo do cientista do Direito, do juiz e de todo aquele que se debruce sobre um texto
legislado e pretenda compreendê-lo, determinando-lhe o sentido102.

Assim, ao se tomar a Ciência do Direito como Teoria da Interpretação103, o que representa


uma das possibilidades expostas por Tercio Sampaio Ferraz Jr, pode-se confrontar com a ideia
originária de Savigny, que esboça “[...] o problema da constituição da Ciência do Direito a partir
de um modelo hermenêutico” (FERRAZ JR, 2014b, pp. 83-85). Assim, ultrapassando as técnicas
interpretativas, Savigny ruma ao estabelecimento de uma verdadeira “teoria” hermenêutica104, o
que, em última análise, pressupõe a possibilidade de identificação do paradigma para
reconhecimento de uma interpretação autêntica do texto da lei. A resposta, à época, foi ofertada

102
Note-se a oportunidade desta abordagem, na medida em que respeita a mesma linha traçada por Emilio Betti (2007),
o qual desenvolve uma das obras mais significativas para a Hermenêutica Jurídica. Assim, no prefácio à primeira
edição italiana, o autor faz a seguinte observação acerca da necessária concatenação da interpretação geral com a
interpretação jurídica: “Sem considerar a sinceridade da elaboração que resulta do comportamente adotado, este estudo
não tem outro mérito a não ser o de situar a problemática da interpretação jurídica naquela da interpretação
geral, percebendo sua íntima conexão recíproca. Do modo como foi elaborada e construída, a presente teoria é
apenas um capítulo de uma problemática geral da interpretação, sobre a qual a reflexão do autor se deteve desde
quando, para os bons europeus, começou a delinear-se a tragédia da Europa e, mais intensamente, a partir de 4 de
janeiro de 1947, após uma conferência de D. Fabbri sobre a representação dramática moderna.” (BETTI, 2007, p. XV).
É nessa esteira que autores primevos, como Schleiermacher e Dilthey, serão revisitados, pela necessidade de desenho
do standard hermenêutico que define o “passado que ainda se faz presente”. Nesse ponto, ainda que distante, tais vozes
ainda ecoam na cultura jurídica, levando os aplicadores do Direito a ainda delas se valerem, mesmo que sem questionar
por que assim agem.
103
Curiosamente, identificado como um jurista enquadrado no “futuro que já se faz presente”, Paulo de Barros
Carvalho (2013), em sua obra mais extensa (“Direito Tributário: Linguagem e Método), insere na Primeira Parte da
obra (“Método analítico e hermenêutico”) o Capítulo 3, denominado “Teoria hermenêutica”, e cujos desdobramentos
abordam: 3.1 O movimento do “giro-linguístico” e a superação dos métodos científicos tradicionais; 3.2 Direito e
valores; 3.3 Direito e interpretação e 3.4 Ciência e experiência. Não se pode afirmar que o autor pretenda, à maneira
de Savigny, encontrar “a” solução para o problema da interpretação, pois, ao admitir no subitem 3.3.6.3 a
“inesgotabilidade da interpretação”, já expõe a incerteza do território que percorre. À semelhança do que identifica
Ferraz Junior (2014b), no entanto, ao tratar da Ciência do Direito como Teoria da Interpretação, Carvalho (2013)
admite o caráter dogmático do ponto de partida da atividade hermenêutica, ao considerar a presença textual da norma
a ser interpretada (FERRAZ JR, 2014b) ou o Plano S1 no percurso gerador de sentido (CARVALHO, 2013, p. 186).
104
Jerzy Wroblewski (1985) também intenta estabelecer uma teoria geral da interpretação e, para tanto, erige
determinados cânones a serem observados quando da interpretação constitucional. Deve-se enaltecer que o autor
prestigia a chamada linguagem natural comum, à qual deve ser levada em conta quando da interpretação jurídico-
constitucional,
75

em termos de identificação do texto da lei como “expressão da mens legislatoris”, o que leva
Savigny a “[...] afirmar que interpretar é compreender o pensamento do legislador manifestado no
texto da lei” (FERRAZ JR, 2014b, p. 85).

Ora, tudo isso soa com ares de enorme familiaridade no paradigma do “passado que ainda
se faz presente”, especialmente com a fundamentação exposta nas decisões dos tribunais
superiores, como se verá a seguir, mas não se pode deixar de conectá-lo a um momento do
desenvolvimento da chamada “Hermenêutica Geral”, em que a interpretação deveria ser o
movimento em que se passasse a conhecer o pensamento do autor (mens legislatoris) melhor do
que seria possível a ele mesmo conhecer.

E fatalmente isso se conecta às teorizações de Schleiermacher: ao iniciar seus estudos, que


se situam no âmbito da Teologia Protestante, aproxima-se o século XIX e, com ele, o espírito
idealista. Nesse ponto, nada obstante a predominância do idealismo, o Filósofo polonês pensou sob
o signo de sua unificação com o realismo, unindo o universal ao particular, o ideal ao histórico
(BRAIDA, 1999, p. 11). A Hermenêutica, até o desenvolvimento de seus estudos, tinha sido
compartimentada, segregando-se as funções que agem em conjunto, dividindo-as em interpretação
gramatical, histórica, estético-retórica e de conteúdo (DILTHEY, 1999, p. 26)105.

Ao identificar a Hermenêutica como arte106, o Filósofo polaco revela o conteúdo das três
disciplinas particulares que dariam azo a uma Hermenêutica Geral ou Universal: as Hermenêuticas
Legal (ou Jurídica)107, Bíblica e Filológica (ou Histórico-Filológica) (CORETH, 1973, p. 2)108.

105
Tal modelo se identifica com aquele encontrado no paradigma da Ciência do Direito, de modelo hermenêutico. É
descrito por Tercio Sampaio Ferraz Jr (2014b), ao tratar das técnicas interpretativas. Assim, enuncia o autor: “Para
realizar sua tarefa interpretativa, o jurista se vale de diferentes técnicas. Fala-se em interpretação gramatical, lógica,
sistemática, teleológica, histórico-evolutiva etc. A multiplicidade terminológica para técnicas que não se opõem mas
se completam ou se incluem, por vezes, mutuamente, coloca um problema de exposição”.
106
Schmidt (2016, p. 26) explica de modo bastante esclarecedor a utilização do signo “arte” por Schleiermacher: “[...]
com arte, Schleiermacher não quer dizer que a hermenêutica é meramente um processo criativo e subjetivo. Em vez
disso, naquela época ‘arte’ incluía o sentido de saber como fazer alguma coisa, que é o significado compartilhado nos
termos ‘artes técnicas’ e ‘belas artes’. Enquanto uma arte, a hermenêutica inclui regras metodológicas, mas sua
aplicação não é restrita por regras, como seria o caso num procedimento mecânico”.
107
Que representa a de maior interesse neste trabalho.
108
Partindo de uma análise que permeia a história da Hermenêutica, Coreth (1973, p. 2) ressalta que a palavra
“hermenêutica” foi utilizada primeiramente no domínio teológico e que, nos séculos XVII e XVIII, foi usada no sentido
de “arte da compreensão”. Faz-se necessário, ainda, estabelecer as afinidades que existem entre as três “formas” de
interpretação (jurídica, bíblica e filológica): “[...] a hermenêutica bíblica, por um lado, tem muita afinidade com a
hermenêutica histórico-filológica, dado que cumpre, em primeiro lugar, tratar e compreender os textos da Escritura
76

Desde já, deve-se esclarecer que seus trabalhos têm uma propensão maior para as chamadas
Hermenêuticas Bíblica e Filológica, tendo em vista que o próprio autor reconhece que “[...] a
hermenêutica jurídica não é completamente a mesma coisa. Ela lida, na maior parte das vezes, com
a determinação da extensão da lei, isto é, com a relação dos princípios gerais com o que neles não
foi concebido claramente.” (SCHLEIERMACHER, 1999, p. 29).

Schleiermacher expressa a ideia de que a Hermenêutica há de ser aplicada a todo texto


escrito, mas ainda também sempre que ocorre apreender pensamentos ou encadeamentos de
pensamentos por via de palavras, e não apenas no domínio clássico, mas ele pratica o seu trabalho
em toda parte onde existirem escritores e, ainda, em sua vida particular, tentando entender outras
pessoas (SCHLEIERMACHER, 1999, pp. 31-33).

O autor encerra a tarefa da Hermenêutica entre dois extremos: do estranhamento ao não


estranhamento. Assim, como algo relativo, subsiste a tarefa de interpretação quando o que é para
ser compreendido fosse completamente estranho àquele que deve compreender. No extremo
oposto, quando nada fosse estranho entre aquele que escreve e aquele que lê109, a compreensão
seria dada simultaneamente com a leitura e a audição, ou, talvez, sempre dada divinatoriamente, e,
portanto, completamente autocompreendida por si mesma. Assim, “[...] em todo lugar onde houver
qualquer coisa de estranho, na expressão do pensamento pelo discurso, para um ouvinte, há ali um
problema que apenas pode se resolver com a ajuda de nossa teoria” (SCHLEIERMACHER, 1999,
p. 31).

Aqui, dá azo a um questionamento que se mostra absolutamente fundamental para a


interpretação jurídica: o que deve ser interpretado? Existem textos que dispensam a interpretação,
tal qual se postula pelo brocardo in claris cessat interpretatio, ou toda a Hermenêutica Jurídica se
estrutura desde a interpretação? Existem textos “impossíveis” de serem interpretados? É possível,
ou ao menos desejável, que, com origem na interpretação, chegue-se à chamada “vontade do

(...) como testemunhos literário-históricos, iguais a outros textos escritos do mesmo gênero. Por outro lado, a
hermenêutica bíblica tem certo parentesco com a jurídica, enquanto em ambas se trata de textos que falam
normativamente e autoritariamente, tendo por si pretensão a validez e obrigatoriedade, e neste sentido são apresentados
ao intérprete, para serem compreendidos e expostos em todos os seus detalhes com esse caráter”.
109
Tal ideia, no Direito, combina aquela expressa pelo brocardo in claris cessat interpretatio, que será discutida a
fundo mais à frente.
77

legislador”? Ou estariam os textos desconectados de quem lhes formulou, sendo mais apropriado
falar-se na “vontade da lei”? Ou ambas as aparentes soluções não permitem lidar com toda a
complexidade ínsita à atividade hermenêutica?

Ao estabelecer os dois métodos interpretativos dos textos escritos (divinatório e


comparativo), Schleiermacher (1999, p. 43) defende a utilização simultânea dos mesmos desde que
“a compreensão segura e completa não se realiza[e] simultânea e imediatamente com a percepção”,
até que no intérprete “surja uma satisfação tão semelhante quanto possível à da compreensão
imediata”. Tal não deixa de apontar para um traço absolutamente subjetivista e que demonstra o
poder inerente à atividade do hermeneuta110: este tem diante de si a possibilidade de indicar o
momento da satisfação dos sentidos, da racionalidade e da criatividade na interpretação dos textos.

Voltando-se à compreensão divinatória, esta só seria possível entre espíritos “aparentados


e significando uma adivinhação espontânea, oriunda de uma empatia viva, de uma vivência naquele
que se quer compreender”. Já a compreensão comparativa se apoiaria em uma “multiplicidade de
conhecimentos objetivos, gramaticais e históricos, deduzindo o sentido a partir da comparação ou
do contexto dos enunciados”: a utilização de ambos os métodos não deixa de apontar para uma
forma de círculo hermenêutico (CORETH, 1973, p. 19).

O que deve ser enfatizado, ainda, em Schleiermacher (1999), é que o processo interpretativo
pode não depender apenas da língua stricto sensu, mas também da situação histórica do povo ou,
até mesmo, da “exata concepção do processo interior do autor” do texto, “naquilo que é produto de
sua originalidade pessoal na língua e do conjunto de suas relações”, o que tornaria o processo de
compreensão mais tortuoso ou mesmo inviabilizaria o processo para a interpretação de textos de
autores que não lhe sejam mais “aparentados”. Nesse ponto, “das palavras particulares e das suas

110
Aqui se faz conexão com o resultado do labor interpretativo identificado no Plano S3, do percurso gerador de
sentido, de Paulo de Barros Carvalho (2013; 2015), e que comunga com a estruturação da norma jurídica em sentido
estrito como “[...] unidade mínima e irredutível de manifestação do deôntico, com sentido completo”. Quando o
intérprete pode se dar por satisfeito na geração desse sentido, quando pode afirmar categoricamente que seu trabalho
de elaboração normativa deu-se por encerrado? Para tais perguntas, o autor estrutura o que denominou de Regra-Matriz
de Incidência Tributária, a qual, com esteio em critérios identificáveis objetivamente, conseguiria eliminar o
subjetivismo do intérprete na construção normativa e poderia guiar o processo hermenêutico por caminhos mais
seguros (ou menos inseguros), como se debate mais à frente.
78

conexões deve ser interpretado o todo da obra, e no entanto a compreensão completa do particular
já pressupõe a do todo” (DILTHEY, 1999, p. 30).

Com efeito, em Schleiermacher (1999, p. 42), poder-se-ia objetar que suas abordagens
hermenêuticas se cingissem mais para o lado gramatical, identificando a totalidade da língua, bem
como abordagens mais “psicológicas” da interpretação, as quais se identificariam mais com a
compreensão dos textos “[...] como um ato da produção contínua das ideias”, buscando as
motivações do autor. Nessa medida, a compreensão “completa” respeitaria ambos os patamares.
Para a interpretação gramatical, desenvolve 24 cânones, sendo que dois deles devem ser
ressaltados: o primeiro, o de que a carência de determinação de algo em dado contexto só pode
tomar como referência o campo de linguagem partilhado pelo autor e seu público inicial; e segundo,
o significado de dada palavra é dado via referência às palavras que o rodeiam (BLEICHER, 2002,
p. 28).

O que deve ser identificado no Filósofo, contudo, é que ele descartou a divisão do processo
de interpretação (gramatical, histórica, estética e de conteúdo), deixando esclarecido que tais
distinções devem estar disponíveis quando a interpretação se inicia, restando ao intérprete as duas
facetas que subsistem no reconhecimento de uma criação espiritual: a interpretação gramatical e a
interpretação psicológica (DILTHEY, 1999, p. 31).

Para o autor, deve haver duas classes distintas de intérpretes, que se dividirão na arte de
interpretar: uma classe mais dirigida para as relações linguísticas de todo escrito e a outra mais
conectada ao processo psíquico original da produção e concatenação de ideias e imagens. Nesse
ponto, evidenciando uma provável segmentação do processo hermenêutico, há especializações dos
intérpretes, o que denota a capacidade de cada um deles prestigiar apenas uma das possibilidades
na interpretação: ao se fixar em uma literalidade textual, determinado tipo de intérprete se
desconecta do universo íntimo do autor, e vice-versa.

Nesse ponto, ao realizar uma síntese do pensamento de Schleiermacher, percebe-se que,


apesar de ser o primeiro a efetivar a tentativa de uma hermenêutica universal, já há o abandono das
noções compartimentadas de interpretações gramatical, histórica, estética e de conteúdo. O alvo
final do procedimento hermenêutico neste filósofo, especialmente pela interpretação psicológica,
é compreender o autor melhor do que ele se compreendeu, não restando outra opção ao intérprete:
79

este deve se fiar naquilo que subsiste na criação espiritual, com suporte nos sinais linguísticos, isto
é, deve promover a realização da interpretação gramatical (da parte para o conjunto da obra) e,
ainda, na interpretação psicológica, que visa a devassar o processo criativo interno do autor.

Assim, defende que o ponto de vista consoante o qual, havendo um conhecimento histórico
e linguístico adequado, o intérprete conseguiria confeccionar o “fio do pensamento” do autor
melhor do que ele mesmo, pela possibilidade de trazer para o nível do consciente elementos que
estivessem no plano da inconsciência do autor (BLEICHER, 2002, p. 28; DILTHEY, 1999). Daí
um intenso teor subjetivista em sua interpretação. Em assim sendo, a compreensão se plenifica ao
se “[...] compreender na linguagem e compreender no falante. A interpretação é arte por causa deste
duplo compreender” (SCHLEIERMACHER, 1999, p. 68-69), dando-se tal combinação no que
denomina de aplicação.

Nesse ponto, ao conectá-lo com a Hermenêutica tradicional, pode-se perceber sua


influência sobre a obra de Carlos Maximiliano (2017, p. 153), por exemplo, jurista a qual ainda se
recorre bastante nas decisões judiciais brasileiras, para quem

[...] o intérprete não traduz em clara linguagem só o que o autor disse explícita e
conscientemente; esforça-se por entender mais e melhor do que aquilo que se
acha expresso, o que o autor inconscientemente estabeleceu, ou é de presumir
ter querido instituir ou regular, e não haver feito nos devidos termos, por
inadvertência, lapso, excessivo amor à concisão, impropriedade de vocábulos,
conhecimento imperfeito de um instituto recente, ou por outro motivo semelhante.

Outro autor também relevante para o desenvolvimento da Hermenêutica é Wilhelm Dilthey,


cujo trabalho é dos mais importantes para a Filosofia contemporânea, tendo-se prefigurado nele
uma crítica ao projeto crítico kantiano, o qual se desconectou da base histórico-material que
constitui o conhecimento (CASANOVA, 2010, p. VI). Nesse ponto, a profundidade com que
discorre acerca da interpretação se revela desde logo, pois elabora a sua hermenêutica “[...] a partir
da ideia de que cada tempo é marcado por uma visão de mundo específica e de que essa visão de
mundo se mostra como a concreção do espírito objeto do tempo.” (CASANOVA, 2010, p. VII).

O traço diferenciador de Dilthey se projeta na assunção da dualidade do processo de


compreensão das ciências da natureza e das ciências do espírito: às primeiras seria adequado um
método analítico-esclarecedor, enquanto às segundas se aplicaria um procedimento de
80

compreensão descritiva (CORETH, 1973, p. 20). Nesse passo, realiza um projeto que tem como
objetivo justificar filosoficamente uma metodologia para as ciências humanas (SCHMIDT, 2016,
p. 55).

Antes, porém, de propugnar por uma divisão lógica entre as ciências humanas e as ciências
naturais, com apoio em categorias de fatos distintos, afirma que as ciências humanas se utilizam
dos fatos das ciências naturais: como exemplo, aponta o estudo da linguagem, o qual depende tanto
de uma análise da fisiologia dos órgãos do sentido, isto é, da fala, quanto de uma teoria do
significado. Nesse ponto, reverbera a característica fundamental das ciências humanas, e que se
relaciona de maneira estruturante com o processo hermenêutico. Tal diz respeito à descoberta de
algo que não é dado com arrimo nas sensações, mas que revela o próprio mundo interno, espiritual,
criativo e, também, responsável, que pairaria soberano sobre o ser humano e pelo qual a vida tem
valor, propósito e significado (SCHMIDT, 2016, pp. 58-59).

O que é mais marcante na obra de Wilhelm Dilthey e que se pode concatenar à


Hermenêutica Jurídica tradicional, reverberando já nas fases mais atuais da Hermenêutica,
relaciona-se com o aceite da compreensão como método para se alcançar a validade nas ciências
humanas. Já Tercio Sampaio Ferraz Jr (2014b, pp. 85-86), ao dispor acerca da Ciência do Direito,
de modelo hermenêutico, expressa esse problema básico da atividade jurídica: “[...] não é apenas a
configuração sistemática da ordem normativa, mas a determinação de seu sentido. Isso instaura as
condições para o aparecimento de um método peculiar, ligado à ideia de compreensão (que hoje
nos permite falar em método compreensivo)”, o qual será amplamente utilizado na ideia de “futuro
que já se faz presente”.

Com efeito, a compreensão nas ciências humanas envolve o entendimento dos sistemas
legais, dos costumes, das culturas. A interpretação, assim, seria a “[...] compreensão orientada por
regras de manifestação da vida permanentes, e como a mente ou o espírito encontra sua expressão
na linguagem, e a compreensão orientada por regras na linguagem é a ciência hermenêutica”
(SCHMIDT, 2016, p. 74), a Hermenêutica se erigiria como o modelo para a própria compreensão
das ciências humanas.

Nesse ponto, é importante frisar que, para o Filósofo, “o ponto de partida é o vivenciar”:
não haveria a incorporação a posteriori dos dados que constituiriam uma visão de mundo. Pelo
81

contrário, o homem se encontra mergulhado, imediatamente ligado à visão de mundo de seu tempo,
sendo a vivência o vínculo que preside tal ligação. Daí atribuir-lhe um caráter imediato e intuitivo.
Assim, ao interpretar se revela no ser humano uma atividade particular mas que está sufragada por
uma visão de mundo compartilhada, desde a “[...] assunção plena de sua base histórica
incontornável, uma base que possui um traço diacrônico indelével.” (CASANOVA, 2010, pp. XI-
XIII).

É interessante perceber a complexidade com que Dilthey (2010, p. 7) engendra um método


para a concepção do próprio conhecimento, constituindo um sujeito cognoscente real, e afastando-
se de pensadores como Locke, Hume e Kant, pela estruturação de uma verdadeira “crítica da razão
histórica”111:

[...] mantenho cada componente do pensar abstrato e científico atual junto a toda
a natureza humana tal como a experiência, o estudo da linguagem e da história a
revelam, e busco ao mesmo tempo a sua conexão. Daí resulta o fato de os
componentes mais importantes de nossa imagem e de nosso conhecimento da
realidade efetiva, componentes tais como a unidade pessoal da vida, o mundo
exterior, os indivíduos fora de nós, a sua vida no tempo e a sua ação recíproca,
poderem ser todos explicados a partir dessa natureza humana como um todo, uma
natureza cujo processo de vida real não possui senão os seus diversos lados no
querer, no sentir e no representar. Não é a hipótese de um a priori rígido de nossa
faculdade cognitiva, mas apenas a história do desenvolvimento que parte da
totalidade de nosso ser, que todos nós temos de dirigir para a filosofia.

Assim, aos olhos de W. Dilthey, a Hermenêutica só atinge sua essência quando deixar de
estar a serviço da dogmática e assumir a sua função de “organon histórico” (GADAMER, 2014, p.
246). Aqui talvez resida a maior contribuição de Dilthey e que será importante para este estudo: a

111
Para expressar de modo simples aquilo que representa a complexidade da chamada “Crítica da Razão Histórica”,
de W. Dilthey, Josef Bleicher (2002, p. 34) assim se manifesta: “A Crítica da Razão Histórica de Dilthey representa
a contrapartida da da razão pura e, simultaneamente, uma crítica desta última: «Histórica», por oposição à razão «pura».
Esperava-se que a compreensão de tudo o que é humano através da história, levasse às mesmas profundezas que Kant
explorara – e que para Dilthey residiam na «consciência metafísica» do homem – ao mesmo tempo que lhe permitiriam
ultrapassar Kant, demonstrando que a própria razão pura assentava na Vida. Quer dizer, Kant vê apenas isoladamente
os factores da vida mental, desprezando duas outras componentes vitais da existência do homem: o sentimento e o
desejo de acção. Como consequência da incapacidade de considerar a totalidade do eu, a Vida, como a união destas
actividades que requerem as suas próprias categorias específicas, tornou-se mais pronunciada na obra dos filósofos
pós-kantianos”. E, um pouco mais adiante, prossegue o autor, ao afirmar a contribuição de Hegel, notadamente ao
comparar a sua obra à de Kant: “Além disso, a abordagem a-histórica de Kant levou-o a conceber uma ciência
específica e historicamente situada, a mecânica de Newton, como modelo do conhecimento, deixando assim, antever
as suas raízes no Iluminismo. Em contraste, uma das proezas mais significativas de Hegel foi o facto de ter salientado
a historicidade do pensamento. Tal como a acção, o pensamento tem de ser considerado dentro das coordenadas do
tempo e do espaço que influenciam até os princípios sobre os quais assenta”.
82

fixação do caráter histórico do homem e a historicidade do conhecimento (BLEICHER, 2002, p.


41), o que, no percurso gerador de sentido, de Paulo de Barros Carvalho (2013a, 2015), identifica-
se com os horizontes culturais do intérprete. Nesse ponto, o ser humano, por estar sempre pontuado
no tempo e no espaço, não consegue fugir desse contexto ao deparar o processo hermenêutico.

Ao encerrar esse subcapítulo, percebe-se que ficaram à mostra pontos fundamentais de uma
intelecção da Hermenêutica que se inicia como uma “arte” da compreensão e que se relacionava
com a “práxis” do trabalho exegético. Para tal intento, mostrava-se relevante “[...] o conhecimento
das respectivas línguas, do ambiente histórico e cultural em que a obra surgiu, a consideração da
peculiaridade literária e estilística, da situação concreta e da intenção do autor, a interpretação do
texto em particular através do contexto.” (CORETH, 1973, p. 3).

Enfatiza-se, por fim, o fato de que a fuga da ideia da interpretação como um processo
complexo, que se realiza não apenas em um sentido interno do intérprete, mas que é revelador da
visão de mundo compartilhada por ele em sociedade, não permite que a Hermenêutica atinja a
plenitude já defendida desde os idos do século XIX. Do mesmo modo, o isolamento em métodos
interpretativos parciais e a utilização da “interpretação” histórica como mero procedimento
retórico, sem que se vivenciem os contextos ligados à feitura dos textos, plasmam um sentido
hermenêutico que de há muito vem sendo combatido no âmbito da Filosofia e que, invariavelmente,
enseja reflexos na Hermenêutica Jurídico-Tributária.
83

CAPÍTULO 4. ALGUMAS OBSERVAÇÕES ACERCA DO MÉTODO112: A


MENSURAÇÃO DA REALIDADE NO “PASSADO QUE AINDA SE FAZ
PRESENTE” DESDE A PROBLEMÁTICA NOÇÃO DE LIMITES À
INTERPRETAÇÃO
Este módulo, que se revela fundamental para os contornos desse “passado que ainda se faz
presente”, inicia-se com o mito do “leito de Procusto” que, como se verá, guarda conexão direta
com os métodos (ou outros termos que venham a ter a mesma carga semântica) que são utilizados
pela Hermenêutica Jurídica tradicional, maiormente no Direito Tributário. Isso porque, parte da
doutrina tributarista, bem como alguns dos julgados dos tribunais superiores, ainda se aferram à
ideia de utilização dos métodos de interpretação como verdadeiras clausuras a que se devem
submeter os textos jurídicos, com vistas à produção normativa, em uma “inocência
metodológica”113 reducionista (BITTAR, 2005, p. 185).

Na verdade, para os propósitos deste trabalho, a noção de método, especialmente como


ainda utilizada no Direito Tributário brasileiro, conecta-se à de caminho certo e cujo caminhar
levará à correção na aproximação do objeto pretendido. E essa linearidade, que ainda permeia o
modo de ver o mundo por parte das pessoas, vem cedendo fortemente a vias alternativas e com
uma complexidade que não será solvida pelas dinâmicas tradicionais.

Logo após a Segunda Guerra Mundial, Tullio Ascarelli é o iniciador de um movimento que
visa a renovar os métodos interpretativos, enaltecendo o valor criativo da interpreteção jurídica e

112
A ideia a ser explorada aqui se conecta ao pensamento de Gregorio Robles (2015, p. 370), que defende a utilização
dos métodos, ao se fazer ciência, contudo, com temperamentos, a fim de que eles não obstaculizem a própria realização
da ciência. No “passado que ainda se faz presente”, a crítica na Hermenêutica Jurídico-Tributária se faz na medida em
que os métodos passaram a ser “cartas na manga” daquele a quem compete dizer o Direito em determinadas questões,
não propiciando aprofundamento científico propriamente dito. Nesse ponto, concorda-se com o Filósofo espanhol
quanto à importância no rigor metódico, sem ultrapassar certos “limites” na elaboração científica: “Estoy de acuerdo
en que no se debe caer en la obsesión por el método, pues la rigidez en lo instrumental puede condicionar demasiado
la libre investigación científica. Es sabio, sin duda alguna, estar alejado de toda obsesión. Pero este reconocimiento no
debe ser óbice para aceptar algo que parece no menos evidente: el conocimiento y la práctica de las regulae artis
constituyen el camino insustituible para la creación posterior”.
113
A “inocência metodológica” de que trata Eduardo Bittar (2005, p. 185) revela-se com base em Gadamer, que
confronta o ideal de neutralidade do método, sob a perspectiva do positivismo do século XIX. Aduz o autor que,
“segundo Gadamer, as ciências do espírito são contaminadas pela experiência de mundo, pela historicidade de seu
engajamento, pela contextualidade de sua produção. É muito menos a ciência um procedimento rigoroso de
constituição de seus objetos, e mais um método de depuração dos preconceitos vividos e inter´pretados pelo agente do
conhecimento, em que desponta a instância linguística [sic] como fundamental. Dizer o contrário é correr o risco de
aceitar a inocência metodológica que reduz os fenômenos sociais a meras fatias do saber do mundo dispostas para
análises laboratoriais”.
84

levando os juristas a identificar duas realidades hermenêuticas distintas: aquela que se relaciona ao
que eles creem que seja o trabalho do hermeneuta e aquela que este trabalho realmente é. E esse
diferença entre os métodos repousa nas diferenças ideológicas, isto é, nos variados modos de
conceber as relações da pessoa com a sociedade (BOBBIO, 2016, p. 48).

Assim, expressões como “vontade do legislador”114, “vontade da lei”, “interpretação como


extração de conteúdo”, “in claris cessat interpretatio”115 116
, “método literal”, “a interpretação
correta”, dentre outras, ainda são encontradas em textos da Ciência do Direito e, por decorrência,
espraiam-se pela jurisprudência, representando resquícios de um movimento linear e certo de
apropriação do dado jurídico.

114
Uma pausa breve para tratar da “vontade do legislador”, a qual se configura como um resquício, na atualidade, da
Escola da Exegese. Como bem explica Rafael Simioni (2014, p. 40), tal escola combinava o formalismo da lógica
dedutiva com o formalismo do conteúdo sintático do texto legal. Nem todos os casos, contudo, poderiam ser assim
resolvidos: às vezes, pairavam dúvidas sobre a dedução lógica correta do texto legal. Assim, “[...] para os casos de
dúvida sobre a interpretação correta, e somente no caso de dúvida, admitia-se a necessidade do recurso a um valor
excepcionalmente utilizado na interpretação jurídica, que era o recurso à vontade do legislador. Essa vontade não
poderia ser, contudo, suposta ou argumentada simplesmente como razoável ou justa ou qualquer outro argumento. A
vontade do legislador deveria ser comprovada sobretudo através da pesquisa dos trabalhos preparatórios à
edição da lei. Essa vontade do legislador era entendida como uma vontade racional a priori, já justificada no âmbito
da política. De modo que a vontade do legislador figurava como um elemento de valor decisivo para complementar a
técnica da interpretação dos textos legais no caso de dúvida. E essa vontade do legislador não poderia ser discutida,
pois tratava-se de uma razão política contra a qual o judiciário não poderia questionar”.
115
Como bem alertado por Fabiana Del Padre Tomé e Fernando Favacho (2017, p. 277), “in claris cessat interpretatio:
disposições claras não comportam interpretações. O brocardo resume a ideia de que é exitoso o legislador que
dispensa o jurista de interpretação; contudo, o decodificador sempre interpreta, de modo que é impossível não
interpretar. Paulo de Barros Carvalho (2003, p. 106), com base em Ferdinand de Saussure, afirma que o intérprete
não pode ser tolhido de buscar a significação contextual justamente porque não há texto sem contexto. Para o
Constructivismo Lógico-Semântico, por isso mesmo, não é possível dizer que o sentido está ‘no texto’: a lei é somente
o suporte físico, de onde surgirão interpretações desde o contato do hermeneuta com esse suporte” (destacado). Nesse
ponto, os autores trabalham com um conceito estático de interpretação, como se a clareza fosse um a priori das
disposições.
116
Diferentemente da interpretação acima transcrita, de Fabiana Del Padre Tomé e Fernando Favacho (2017, p. 277),
Ferraz Jr (2014b, p. 92), ao tratar das técnicas interpretativas utilizadas pela Ciência do Direito, no modelo
hermenêutico, alerta para o propósito do aforismo jurídico aqui citado, e que pretende aludir a que, “[...] para elucidar
o texto normativo não é necessário ir sempre até o fim, mas até o ponto em que os problemas pareçam razoavelmente
decidíveis. (...) Nestes termos, o intérprete, ao colocar o texto normativo em presença dos dados atuais de um problema,
para determinar-lhe a força e o alcance, o observando que a norma, pela sua própria estrutura, prevê um comportamento
que ela regula, tende a começar pela consistência onomasiológica do texto; isto é, entendendo-se por onomasiologia a
teoria da designação nominal, o primeiro passo na interpretação é verificar o sentido dos vocábulos do texto, a sua
correspondência com a realidade que ele designa”. No caso, o autor trabalha com um conceito dinâmico da
interpretação, que parece mais adequado ao se utilizar do verbo “cessar”, que traduz a ideia de algo que vinha
acontecendo e foi interrompido ou suspenso. Assim, a proposta é de que a atividade do intérprete vem ocorrendo e, ao
se dar por satisfeito, quando o problema pareça razoavelmente decidível, o processo é interrompido, por um caráter
que, no mínimo, é utilitarista: não há mais necessidade de seguir com o processo.
85

Deve-se ressaltar que, nesta parte, tem-se um foco predominante na obra clássica de Carlos
Maximiliano, “Hermenêutica e Aplicação no Direito”, que aufere fôlego renovado na doutrina, e
que em muito se alia ao que aqui se chamaria de “passado que ainda se faz presente”. É texto dos
mais ousados à época em que fora publicado, tendo o autor reconhecidamente intentado um
trabalho formidável junto às melhores obras mundiais sobre o tema. Não se pode desprezar,
contudo, que o prefácio à primeira edição é datado de 1924, época em que ainda predominava a
óptica civilista117, com todas as peculiaridades que a caracterizam, e que determinava um modo
diferenciado para a consecução da Hermenêutica Jurídica.

Tanto é assim que o próprio autor declara que a obra versa “[...] sobre a interpretação do
Direito Civil, escrito ou consuetudinário. Completam-na sínteses dos preceitos que especialmente
regem a exegese de Atos Jurídicos, Direito Constitucional, Comercial, Criminal e Fiscal”
(MAXIMILIANO, 2017, p. XV). Dessa maneira, sem dúvidas, revelando-se promissora para a
época, alguns dos conceitos lá defendidos não deveriam ser utilizados sem maior criticidade,
especialmente após o reconhecimento do giro linguístico e de todas as suas decorrências para as
ciências sociais e, mais importante ainda, com o enaltecimento do papel que as constituições
passaram a ter pós-Segunda Guerra Mundial.

Nesse ponto, apesar de todos os caracteres há pouco indicados, é doutrina utilizada com
grande regularidade pelos tribunais superiores brasileiros, ainda que após a Constituição Federal
de 1988118, o que impinge o caráter ainda mais de transição entre duas realidades temporalmente
marcadas, e que ainda convivem em relativo equilíbrio na atualidade.

Em sentido oposto, como aqui também será retratado, Maximiliano (2017) já traz conceitos
que se harmonizam com os ideais do Constructivismo Lógico-Semântico, como essa ideia de
“futuro que já se faz presente”, e que corresponderia ao modelo de uma sociedade em que o real
jurídico parece ter sido erodido pelo mundo virtual (FERRAZ JUNIOR, 2014a, p. 29), cuja noção

117
Não é demais enaltecer que o mesmo ocorre com a principal obra de Emilio Betti (2007, p. XV) sobre interpretação
jurídica (“Interpretação da lei e dos atos jurídicos”), em cujo prefácio fica patente que tal texto é fruto de aulas
ministradas na Universidade de Roma, em um curso de Direito Civil, no fim dos anos de 1940.
118
Conforme se depreende da doutrina utilizada nos julgamentos da ADI nº 2.777, cujo julgamento ocorreu em 19 de
outubro de 2016, bem como do HC nº 139612/MG, cujo julgamento se deu em 25 de abril de 2017. Disponíveis em
www.stf.jus.br.
86

de limite assemelha-se muito mais à ideia de uma fumaça do que de um traço. Pela
incompatibilidade no modo de se enxergar o movimento hermenêutico (extração e não construção),
contudo, é que será tomado como paradigma de um movimento do passado, mas ainda não
ultrapassado.

Feitas essas observações iniciais, volta-se ao mito de Procusto indicado no início deste
Capítulo. Conforme noticia o historiador André Rodrigues (2013),

Procusto, segundo a mitologia dos gregos antigos, era um malfeitor que morava
numa floresta na região de Elêusis (península da Ática, Grécia). Ele tinha
mandado fazer uma cama que tinha exatamente as medidas do seu próprio corpo,
nem um milímetro a menos. Quando capturava uma pessoa na estrada, Procusto
amarrava-a naquela cama. Se a pessoa fosse maior do que a cama, ele
simplesmente cortava fora o que sobrava. Se fosse menor, ele a espichava e
esticava até caber naquela medida. A simbologia por trás desse mito representa a
intolerância diante do outro, do diferente, do desconhecido. Representa uma visão
de mundo totalitária daquele sujeito que quer modelar todos os seres a sua própria
imagem e semelhança. É a recusa da multiplicidade, da diversidade, da
criatividade, da originalidade. Procusto ou ‘as cegueiras do conhecimento’ esteve
presente, por exemplo, na consciência dos juízes de Sócrates, quando
condenaram-no a morte por ter “corrompido” a juventude ateniense; esteve
presente também no imaginário dos soldados romanos que perseguiam e matavam
cristãos por seguir uma religião que se opunha ao paganismo e a figura sagrada
do Imperador; (...).

Ora, ao se analisar as técnicas que a Hermenêutica tradicional exprime como necessárias e


suficientes para “(des)cobrir”, “(des)velar” o sentido dos dispositivos normativos, os métodos
passam a funcionar como verdadeiro “leito de Procusto”: na verdade, é apenas um modelo retórico
para fazer com que o corpo da pessoa capturada, no caso, o texto normativo, caiba ou comporte a
interpretação que se defende como sendo a mais adequada.

Nesse ponto, Carlos Maximiliano (2017, p. 1) inicia sua obra clássica ao assinalar que “[...]
o executor extrai da norma tudo o que na mesma se contém: é o que se chama interpretar, isto é,
determinar o sentido e o alcance das expressões do Direito.” (destacado). A seguir, traça o
pontilhado que separa a Hermenêutica da Interpretação, sendo aquela a “[...] teoria científica da
arte de interpretar.” (MAXIMILIANO, 2017, p. 2).

Desse modo, a determinação do sentido e do alcance dos textos não ocorre apenas com
suporte no conhecimento das regras aplicáveis: faz-se necessário “[...] reuni-las e, num todo
87

harmônico, oferecê-las ao estudo, em um encadeamento lógico”. Com base nisso, “[...] descobertos
os métodos de interpretação, examinados em separado, um por um; nada resultaria de orgânico, de
construtor”, se não fossem enfeixados “[...] em um todo lógico, em um complexo harmônico”
(MAXIMILIANO, 2017, pp. 4-5).

Com isso, a interpretação seria o resultado de um trabalho prévio organizado,


metodicamente estruturado, o qual, da síntese à análise, sistematizaria os processos aplicáveis para
a determinação do sentido e do alcance das expressões do Direito (MAXIMILIANO, 2017, p. 5).
Disso decorreria uma certeza: com organização e paciência, o intérprete alcançaria o sucesso da
empreitada, representado por um objeto final enxuto e assertivo.

Essa ideia se associa à noção de limite como fatalidade: é inexorável a determinação do


sentido e do alcance das expressões do Direito, com base em uma extração de seu conteúdo, como
a revelar uma verdadeira cirurgia a ser operada no texto normativo119. Diante de tal procedimento
“cirúrgico”, a aplicação do Direito120 consistiria no “[...] enquadrar um caso concreto em a norma
jurídica adequada”, procurando e indicando “o dispositivo adaptável a um fato determinado”
(MAXIMILIANO, 2017, p. 6).

Perceba-se que o autor, longe de trilhar por um caminho que imprima racionalidade sem
subjetivismos, o que pareceria se alinhar com o ideal positivista da época, defende uma situação
pela qual ao intérprete cabe apenas “vestir” a situação com a norma mais adequada, a partir do rito
previamente disposto:

119
Em suas palestras, Paulo de Barros Carvalho, ao tratar do tema da Hermenêutica Jurídica, costuma relatar um
encontro havido na Universidade Federal de Pernambuco, na qual um grupo de professores da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo costumava assistir aulas de Lourival Vilanova e de outros estudiosos e, em certa ocasião, foi
palestrante o linguista brasileiro Luiz Antonio Marcuschi. Conta Barros Carvalho que, ao lhe ser entregue um volume
do “Hermenêutica e Aplicação do Direito”, de Maximiliano, causou espanto ao palestrante a utilização do verbo
“extrair”, ao descrever o movimento de interpretação jurídica. Isso porque, apesar de o Direito ainda se utilizar de uma
obra clássica, com fortes lampejos da Filosofia do Ser, a Linguística já não defendia a ideia de que o sentido poderia
ser extraído do texto, tal qual se tirasse uma palavra de um copo de água, mas que a interpretação representa,
basicamente, construção de sentido.
120
Eurico Marcos Diniz de Santi (2010, pp. 63-64) elenca algumas acepções do termo “aplicação”, empregadas pela
doutrina: “(i) como ato de subsunção da norma ao fato, efeito da incidência da norma da norma sobre o fato que o
torna fato jurídico; (ii) como o ato mesmo do qual resultam efeitos jurídicos quaisquer; (iii) como ato de observância
do mandamento da norma jurídica primária, i.é., a conduta oposta àquela que constitui o pressuposto da norma
sancionadora; e (iv) como o ato de aplicação da coação, o ato material de execução da sanção de uma norma, ou seja,
como o ato de força que realiza factualmente o prescritor da norma secundária (a sanção)”.
88

Busca-se, em primeiro lugar, o grupo de tipos jurídicos que se parecem, de um


modo geral, com o fato sujeito a exame; reduz-se depois a investigação aos que,
revelam semelhança evidente, mais aproximada, por maior número de faces; o
último na série gradativa, o que se equipara, mais ou menos, ao caso proposto,
será o dispositivo colimado (1). (MAXIMILIANO, 2017, p. 7).

Daí, “eureka!”121... Não se pode deixar de evidenciar momento a posteriori no texto


clássico em que o autor, após afirmar que o hermeneuta pratica “uma verdadeira arte”, apesar de
guiado cientificamente, tal arte não seria jamais substituída pela ciência. A Hermenêutica, assim,
seria “[...] o capítulo menos seguro, mais impreciso da ciência do Direito; porque partilha da sorte
da linguagem” (destacado). Então, como que a estabelecer contraposição a tudo o que havia sido
edificado no início, aduz que “[...] não existe medida para determinar com precisão matemática o
alcance de um texto; não se dispõe, sequer, de expressões absolutamente precisas e lúcidas, nem
de definições infalíveis e completas.” (MAXIMILIANO, 2017, pp. 10-11).

Dessa maneira, oscila Carlos Maximiliano (2017) entre uma atitude interpretativa cujos
limites são fatalistas, tal qual uma ciência exata “[...] não lhe compete apenas procurar atrás das
palavras os pensamentos possíveis, mas também entre os pensamentos possíveis o único
apropriado, correto, jurídico” (destacado) (MAXIMILIANO, 2017, p. 15)], e o reconhecimento
da impossibilidade de limites matematizados, diante do dado da linguagem, e, nesse ponto,
associando a Hermenêutica a uma verdadeira arte. E esses dilemas, certeza/incerteza, ciência/arte,
reverberam no texto doutrinário.

Algo que merece ser enaltecido na doutrina de Carlos Maximiliano, e que representa um
desenvolvimento para a Hermenêutica da época, é a superação da falsa ideia de que seria acessível
uma “vontade do legislador”, a qual pareceria reduzir o trabalho hermenêutico a, muitas vezes,
sessões de encontros mediúnicos. Ora, conforme já aduzia Maximiliano (2017, p. 21) no início do
século XX,

[...] se descerem a exumar o pensamento do legislador, perder-se-ão em um


báratro de dúvidas maiores ainda e mais inextricáveis do que as resultantes do
contexto. Os motivos que indiziram alguém a propor a lei, podem não ser os
mesmos que levaram outros a aceitá-la. Não parece decisivo o fato de haver um
congressista expedindo um argumento e não ter sido combatido; a urgência, a

121
A expressão utilizada por Arquimedes, aqui utilizada, justifica-se na medida em que dá a impressão de que haveria
o que ser encontrado, demonstrando o sucesso do intérprete ou do aplicador do Direito, no caso concreto.
89

preocupação de não irritar um orgulhoso cuja colaboração se deseja, ou cuja


obstrução ao projeto receia; uma indisposição individual, sobretudo um leader de
câmara ou relator de Comissão Permanente; mil fatores ocasionais podem
concorrer para um silêncio forçado; daí resultaria a falsa aparência de concretizar
uma frase, emenda ou discurso as razões do voto no plenário, a intenção
predominante, a diretriz real da vontade da maioria.

Acresça-se a tudo isso, na atualidade, algo que se descortina na fase em que se vive no
Brasil, com base nas investigações empreendidas no âmbito da Operação Zelotes, bem como da
própria Lava Jato, revelando que as aprovações de alguns textos normativos faziam parte de um
amplo esquema nada convencional122 de compra e venda de legislações. Nesse ponto, empreender
a interpretação correta de um dispositivo normativo cuja “vontade do legislador” conta com
objetivos escusos, revelaria um verdadeiro descalabro hermenêutico.

Quando se fala especificamente nas construções da Ciência do Direito, notadamente


realizada pelos estudiosos do Direito Tributário, a doutrina vem ainda mais recheada dos
paradigmas da Filosofia do Ser, buscando a “extração” do sentido e do alcance dos textos jurídico-
tributários, bem como se aferra a uma literalidade que não tem como representar um método em
si.

Isso porque, é da “qualidade” do método ser o caminho a ser trilhado para se alcançar
determinado resultado. A ideia de caminho, também, traz a noção de um lugar ao qual se chegaria,
de ponto final, de “Shangri-La”, tendo em conta que todo caminhar leva a algum lugar, ainda que
não se saiba para onde se quer ir. Desse modo, o positivismo tem se utilizado dele como a pílula
que conduziria a verdade, ou a fórmula mediante a qual se atribuiria grau de cientificidade ao
conhecimento. E isso se harmoniza com a Hermenêutica tradicional, a qual sustenta a “correção”
do resultado do processo interpretativo que conduz pelo método, “[...] supremo momento da
subjetividade” (STRECK, 2014, p. 222).

Na doutrina tributarista, pode-se afirmar que há uma hegemonia na utilização de métodos


de interpretação jurídica baseados em quatro elementos de interpretação, característicos da Escola
Histórica da Direito123, e que são os chamados “métodos” gramatical, lógico, histórico e

122
Para não dizer, criminoso, antiético, espúrio.
123
Conforme Rafael Lazzarotto Simioni (2014, pp. 51-77), a Escola Histórica do Direito pode ser caracterizada como
um movimento que surge em contraposição à Escola da Exegese e que se caracteriza pelo fato de reagir contra a
90

sistemático, seguidos da posterior adição, por Jhering, do chamado método “teleológico” ou


finalístico, também bastante repetido pela doutrina e jurisprudência nacionais.

A interpretação gramatical,

[...] realizada através da lógica-formal da análise sintática da linguagem que,


abstraída de seu contexto material de significação, permite apenas um controle de
coerência lógica entre sujeito e predicado, substantivo e adjetivo, pronomes
relativos (que, quem, qual, cujo, onde, como e quando) e pronomes
demonstrativos (esse, este, aquele, isso, isto, aquilo). A interpretação gramatical
é, portanto, um tipo de interpretação genuinamente formal e lógica – uma
formalidade lógica restrita à análise das conexões entre os elementos sintáticos do
texto objeto da interpretação (SIMIONI, 2014, p. 66).

Desse modo, a interpretação gramatical seria sinônimo de interpretação literal124 ou


vocabular, apegada ao texto legislado, e representaria uma maneira de interpretação estrita, não

ahistoricidade do racionalismo iluminista. Pode-se identificar a evidenciação dos ciclos históricos da cultura humana
levada a cabo por Giambattista Vico, o qual desenvolveu uma dimensão histórica do entendimento no século XVI.
Como principal representante desse movimento tem-se Savigny, sob a influência de Kant, Schelling e Hegel. Com
base nesta escola, “[...] o direito deixa de ser concebido como ‘produto racional do legislador’ para ser concebido
como produto histórico da cultura de cada povo. Cultural no sentido de que o direito pode ser diferente conforme a
cultura de cada povo. E histórico no sentido de que o tempo interfere de modo não sincronizado nos processos
evolutivos de diversificação dessas expressões culturais”. Conforme será detalhado neste subcapítulo, tal Escola “teve
o mérito de pensar uma metodologia científica prática para a interpretação jurídica. Os métodos gramatical, lógico,
histórico, sistemático e teleológico da interpretação jurídica avançam bastante sobre a ideia simplista da exegese de
textos”. Ao fim, contudo, “[...] resultou em uma metodologia de interpretação e decisão jurídica baseada na ideia
estritamente analítica de sistema como sistema conceitual, como um sistema de proposições jurídicas gerais e abstratas,
historicamente fundamentado, mas dogmatizado a ponto de já prescindir da sua fundamentação histórica”.
124
Paulo de Barros Carvalho (2015, pp. 108-116), ao tratar dos métodos de interpretação do Direito, elenca os métodos
de interpretação normalmente utilizados pela doutrina, apartando-se de expressar um consentimento quanto à utilização
desses critérios e defendendo a chamada interpretação sistêmica do Direito ou utilização do método sistemático.
Especificamente ao tratar do “método literal”, assim enuncia o autor: “A doutrina tem aconselhado vários métodos de
interpretação. (...) Entendem que o método literal seria aquele em que o intérprete toma em consideração a literalidade
do texto, cingindo-se à construção gramatical em que se exprime o comando jurídico, procurando colher as inferências
declaratórias que são o escopo do labor interpretativo”. Ao assim dispor, identifica o método literal com a interpretação
gramatical. Mais à frente, em seu texto, deixa explícito o raciocínio que aqui também se defende, e que também se
coaduna com o de Rafael Simioni (2014): “Na análise literal prepondera a investigação sintática, ficando impedido o
intérprete de aprofundar-se nos planos semânticos e pragmáticos. Certificamo-nos, com ela, se as palavras da oração
prescritiva da lei estão bem colocadas, cumprindo os substantivos, adjetivos, verbos, advérbios e conectivos suas
específicas funções na composição frásica, segundo os cânones da gramática da língua portuguesa. Só a arrumação
dos signos tem a virtude de formar aquilo que se conhece por validade sintática, nada mais. (...) O desprestígio da
chamada interpretação literal, como critério isolado de exegese, é algo que dispensa meditações mais sérias, bastando
arqguir que, prevalecendo como método interpretativo do direito, seríamos forçados a admitir que os meramente
alfabetizados, quem sabe com o auxílio de um dicionário de tecnologia jurídica, estariam credenciados a elaborar as
substâncias das odens legisladas, edificando as proporções do significado da lei. O reconhecimento de tal possibilidade
roubaria à Ciência do Direito todo o teor de suas conquistas, relegando o ensino universitário, ministrado nas
faculdades, a um esforço estéril, sem expressão e sentido prático de existência. (...) Tenha esse discurso alguma
procedência e terá sido inócuo o intento do legislador ao determinar, no art. 111 do Código Tributário Nacional, que a
91

extensiva, abstraindo-se de quaisquer valores, condições históricas, sentido ético, que possam
eventualmente ser contrastados em quaisquer textos que se interprete125: “[...] mesmo regida por
um princípio de economia do pensamento, a hermenêutica jurídica raras vezes consegue limitar-se
ao sentido vocabular do texto, quer comum, quer técnico.” (FERRAZ JR, 2014b, p. 94). Assim,
alia-se a um “passado que ainda se faz presente”, na medida em que ainda há ampla utilização do
art. 111 do CTN, especialmente pelas administrações tributárias, mas se resfestela na possibilidade
de um texto sem contexto, o que deságua em desbaratado absurdo, já recomposto, em grande
medida, pela doutrina do "futuro que já se faz presente”.

No que respeita à interpretação lógica126 127


, é reconhecido que ela “[...] possui um certo
grau de construtivismo, pois a lógica permite deduções e induções”. Com isso, ultrapassando o
plano sintático, estabelece as relações formais (indução e dedução) entre a proposição jurídica e
coerência e consistência quanto aos fatos (SIMIONI, 2014, p. 66).

Já no tocante à interpretação sistemática, Carlos Maximiliano (2017, p. 115) assevera que


este consiste “[...] em comparar o dispositivo sujeito a exegese, com outros do mesmo repositório
ou de leis diversas, mas referentes ao mesmo objeto. Por umas normas se conhece o espírito das
outras”. Mais à frente, como se verá, Paulo de Barros Carvalho (2013a, p. 205) defende o
argumento de que é o “[...] método por excelência”, por se tratar do único que, isoladamente, “[...]
tem condições de prevalecer”.

Quanto à interpretação histórica, esta se relaciona com a “[...] compreensão dos motivos
históricos que levaram à formação de determinada proposição jurídica”, sendo “a pesquisa das

interpretação deva ser literal nos casos de suspensão ou exclusão do crédito tributário, outorga de isenção e dispensa
do cumprimento de obrigações acessórias”.
125
Em sentido diverso, Sacha Calmon Navarro Coelho (2008, p. 666) assevera que “[...] interpretação literal não é
interpretação mesquinha ou meramente gramatical. Interpretar estritamente é não utilizar interpretação extensiva.
Compreenda-se. Todas devem, na medida do possível, contribuir para manter o Estado. As exceções devem ser
compreendidas com extrema rigidez.” (destacado).
126
Ao tratar do que denomina de “processo lógico”, Carlos Maximiliano (2017, p. 111) o identifica como aquele que
“[...] consiste em procurar descobrir o sentido e o alcance de expressões do Direito sem o auxílio de nenhum elemento
exterior, com aplicar ao dispositivo em apreço um conjunto de regras tradicionais e precisas, tomadas de empréstimo
à Lógica geral. Pretende do simples estudo das normas em si, ou em conjunto, por meio do raciocínio dedutivo, obter
a interpretação correta”.
127
Tal técnica interpretativa, juntamente com a chamada “interpretação sistemática”, dirige-se ao chamado “sentido
contextual da norma.” (FERRAZ JR, 2014b, p. 94).
92

exposições de motivos das leis ou a pesquisa das razões que justificaram determinada proposição
normativa” o resultado obtido com a utilização desse método ou, para alguns, desse processo.

Por fim, quanto à interpretação teleológica, leva-se em consideração o que constitui a


finalidade ou o objetivo da norma jurídica (SIMIONI, 2014, p. 67). Partindo de Jhering a
introdução dessa perspectiva na interpretação jurídica da Escola Histórica do Direito, alia a
necessidade de conhecimento do passado,

importante não só para se conhecer os motivos e as razões de uma determinada


proposição jurídica tradicional, mas também para se conhecer aquilo que se quer
para o futuro. E com efeito, essa referência ao futuro constitui uma das maiores
portas abertas para a interpretação e argumentação jurídica, pois posto que o
futuro sempre ainda não aconteceu, ele só pode se apresentar na forma de um
horizonte de possibilidades em aberto. Diante do qual a interpretação procura
determinar, argumentativamente, a possibilidade que a constitui como
interpretação correta de um dever. (SIMIONI, 2014, pp. 67-68).

No que diz respeito à utilização, pela doutrina e jurisprudência nacionais, dos métodos há
pouco explicitados, causa bastante espanto que eles ainda sejam utilizados como instrumentos de
dogmatização da interpretação jurídica típicos da Escola Histórica do Direito, estando insertos “[...]
em quase todos os manuais de interpretação jurídica vendidos nas faculdades de direito e cobrados
em exames e concursos públicos brasileiros” (SIMIONI, 2014, p. 69). Desse modo, perpetuam-se
as gerações que vão sendo formadas sem a necessária confrontação crítica com essas ideias.

Nesse ponto, o disposto até aqui se afina e encontra reverberação em alguns dispositivos
do Código Tributário Nacional. Ao trazer um capítulo específico para a “Interpretação e integração
da legislação tributária”, condicionou a perspectiva da doutrina pelo caminho menos crítico,
tomando como reta aquela que havia sido definida normativamente. Nesse ponto, a análise desse
“passado que ainda se faz presente”, especificamente no que concerne à legislação tributária, e em
especial do CTN, bem como seus influxos sobre a doutrina tributarista, será efetuada a seguir.
93

CAPÍTULO 5. O TEXTO COMO MEDIDA DE CONTENÇÃO: CTN E OS


CÂNONES DA INTERPRETAÇÃO. O PORQUÊ DA ESTAGNAÇÃO NO
PASSADO E A SACRALIDADE DAS NORMAS TRIBUTÁRIAS
Um dos caracteres que mais chamam a atenção ao se deparar o intérprete com os
dispositivos normativos do CTN repousa, especificamente, na maneira como foi tratada a
interpretação da legislação tributária. Isso porque, no Livro Segundo (“Normas gerais de Direito
Tributário”), Título I (Legislação tributária), Capítulo I (Disposições Gerais), Seção III (Normas
complementares), os Capítulos III e IV referem-se, respectivamente, à aplicação da legislação
tributária e à interpretação e integração da legislação tributária.

O caractere de “exagerado” ora atribuído faz-se por comparação: ao se percorrer os textos


dos demais códigos vigentes no Brasil, não se identifica, em qualquer deles, a criação de capítulos
específicos para tratar dessa matéria, a qual representa um movimento de “trilhar previamente” o(s)
caminho(s) pelo(s) qual(is) deve passar o intérprete. Dentre os diplomas vigentes no Brasil, pode-
se dizer que o que mais se aproxima do modelo tributário seria o Código de Processo Penal Militar
(CPPM) (Decreto-lei nº 1.002, de 21 de outubro de 1969), que, apesar de não criar capítulos
específicos, elenca disposições cujo título já aponta para regras de interpretação128:

Interpretação literal
Art. 2º A lei de processo penal militar deve ser interpretada no sentido literal de
suas expressões. Os têrmos técnicos hão de ser entendidos em sua acepção
especial, salvo se evidentemente empregados com outra significação.
Interpretação extensiva ou restritiva
§ 1º Admitir-se-á a interpretação extensiva ou a interpretação restritiva, quando
fôr manifesto, no primeiro caso, que a expressão da lei é mais estrita e, no
segundo, que é mais ampla, do que sua intenção.
Casos de inadmissibilidade de interpretação não literal
§ 2º Não é, porém, admissível qualquer dessas interpretações, quando:
a) cercear a defesa pessoal do acusado;
b) prejudicar ou alterar o curso normal do processo, ou lhe desvirtuar a natureza;
c) desfigurar de plano os fundamentos da acusação que deram origem ao processo.
Suprimento dos casos omissos
Art. 3º Os casos omissos neste Código serão supridos:
a) pela legislação de processo penal comum, quando aplicável ao caso concreto e
sem prejuízo da índole do processo penal militar;
b) pela jurisprudência;

128
Não se pode interpretar o vocábulo “regras” aqui utilizado no sentido de possibilidade de ofertar escolhas. Isso
porque, a literalidade, no CPPM, é fatal, o que se coaduna com um diploma de um período de exceção neste País e,
mais ainda, regente de um processo com níveis de especificidade extremos, como é o caso do processo penal militar.
94

c) pelos usos e costumes militares;


d) pelos princípios gerais de Direito;
e) pela analogia.

Aqui no CPPM, diferentemente do CTN, que privilegia alguns casos em que será
empregada a interpretação literal, aquele código determina que toda a lei de processo penal militar
deve ser interpretada literalmente. Quanto aos demais códigos vigentes no Brasil129, vê-se a
utilização do signo “interpretação” em situações esparsas e especialmente conectadas a
apontamentos específicos, nos quais resta a necessidade de se indicar o modo como devem ser
interpretados os institutos.

Esse movimento de conter a interpretação da legislação tributária, que aqui se defende como
um verdadeiro movimento de sacralização das normas postas, parece se afinar com uma dupla
dinâmica que ainda se percebe na interpretação das normas tributárias. Sob o viés de interpretar,
nem o Estado nem os contribuintes poderiam ampliar ou reduzir a base imponível, o que enseja
movimentos igualmente intensos mas de sentidos diversos, cobrando tributos além do devido ou

129
Em consulta ao texto dos Códigos vigentes no Brasil, disponíveis no Portal da Legislação, no Planalto, com exceção
do CTN e do CPPM, chega-se ao seguinte resultado quanto à utilização da palavra “interpretação” com o sentido de
orientação do processo hermenêutico:
1) Código Civil (Lei nº 10.406, de 2002): arts. 113, 114, 423, 819, 843 e 1899. Em nenhum deles há qualquer
apontamento para o emprego de métodos específicos;
2) Código de Processo Civil (Lei nº 13.105, de 2015): arts. 1º, 322 e 489. Vale ressaltar que, no tocante ao art. 1º, este
inaugura dispositivo absolutamente harmonizado com o patamar reconhecido à CF/88, ao assim dispor: “Art. 1 o O
processo civil será ordenado, disciplinado e interpretado conforme os valores e as normas fundamentais
estabelecidos na Constituição da República Federativa do Brasil, observando-se as disposições deste Código”
(destacado);
3) Código Penal (Lei nº 2.848, de 1940): não há qualquer dispositivo;
4) Código de Processo Penal (Decreto-lei nº 3.689, de 1941): arts. 3º e 186;
5) Consolidação das Leis do Trabalho (Decreto-lei nº 5.452, de 1943): não há qualquer dispositivo;
6) Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078, de 1990): art. 47;
7) Código de Trânsito Brasileiro (Lei 9.503, de 1997): art. 90;
8) Código Eleitoral (Lei nº 4.737, de 1965): não há qualquer dispositivo;
9) Código Florestal (Lei nº 12.651, de 2012): não há qualquer dispositivo;
10) Código das Águas (Decreto nº 24.643, de 1934): não há qualquer dispositivo;
11) Código de Minas (Decreto-lei nº 227, de 1967): não há qualquer dispositivo;
12) Código Penal Militar (Decreto-Lei nº 1.001, de 1969): não há qualquer dispositivo;
13) Código Brasileiro de Aeronáutica (Lei nº 7.565, de 1986): não há qualquer dispositivo;
14) Código Brasileiro de Telecomunicações (Lei nº 4.117, de 1962): art. 4º;
15) Código Comercial (Lei nº 556, de 1850): art. 673.
95

deixando de recolher aqueles que sejam devidos. Não se pode pretender com isso afirmar que,
pragmaticamente, há segurança jurídica nas relações tributárias na atualidade.

Aqui fica evidente a utilização de técnicas de interpretação que são próprias ainda da Escola
da Exegese, as quais permitem “[...] práticas contemporâneas de interpretação restritiva, como
acontece especialmente no campo do direito tributário e do direito penal.” (SIMIONI, 2014, p. 42).
Não se esquecendo de que esse “passado que ainda se faz presente”, que muito traz daquela escola,
“[...] não é apenas inconveniente para uma pretensão de compreensão mais sofisticada e abrangente
do direito, mas sobretudo impossível de ser realizada.” (SIMIONI, 2014, p. 42).

Associado a isso, que representa a expressão do campo legislativo, some-se uma doutrina
que, no plano desse “passado que ainda se faz presente”130, ainda é dominante sob um “[...] viés de
tradição meramente expositiva, fincada em argumentos de autoridade, como garantia, quase que
exclusiva, da procedência dos enunciados” (CARVALHO, 2013a, p. 157), com um modo repetitivo
no trato com a matéria jurídico-tributária (CARVALHO, 2015, p. 23).

Assim, o ideal de contenção indicado pelos dispositivos normativos do CTN tornou-se a


via pela qual uma série de novos estudiosos do Direito Tributário vem sendo gestada, sem que se
tenha um labor crítico na maior parte das obras que são “consumidas” por aqueles que desenvolvem
argumentação e exaram decisões em matéria tributária131. Tal código, diante do movimento de

130
Como se defenderá no Livro II desta obra, o movimento denominado como “futuro que já se faz presente”
caracteriza-se, na doutrina tributarista, por uma tomada de cientificidade (ou de racionalidade), completamente distinta
da chamada doutrina tradicional. Nesse ponto, como postula Paulo de Barros Carvalho (2013, p. 159), defende-se aqui
o “escrever bem e pensando”, o que pode caracterizar o Constructivismo Lógico-Semântico (CLS). Assim, a doutrina
a partir do CLS tem o cuidado na elaboração de suas asserções, fundadas em premissas explícitas e fazendo uso de
“expedientes epistemológicos ricos em métodos, que visam a aprofundar o conhecimento da matéria”.
131
Aqui, excepcionalmente, peço permissão para me exprimir na primeira pessoa do singular, enquanto autora desta
tese e que desenvolve a atividade profissional de Auditora Fiscal Jurídica da Receita Estadual do Ceará (SEFAZ/CE),
há quase dez anos. Atualmente, conduzo a equipe de Consultoria e Normas Tributárias daquele órgão e, por conta
dessa dinâmica profissional, recebo inúmeros contribuintes, e, especialmente, seus advogados e contadores. Quanto a
estes, constato a fragilidade de um discurso teórico desconectado da práxis jurídica e contábil, promovendo um
insulamento dos conceitos, fruto de uma formação profissional frágil e da falta de aprofundamento teórico. Nessa
medida, raras são as oportunidades argumentativas em que se consegue dominar a noção de sistema jurídico, ou mesmo
questionar os dispositivos do CTN frente aos mandamentos constitucionais. Muitas vezes, quer-se apenas encontrar a
“brecha” na norma que permita não ter que pagar o tributo. E assim, mesmo com a CF/88, continua-se a aceitar que os
deveres instrumentais podem ser instituídos por instruções normativas, que existe obrigação sem crédito, que o
lançamento é ato exclusivo da autoridade administrativa, que a interpretação deve ser apenas por esta realizada, em
uma incorporação de conceitos acrítica. Já da parte das autoridades administrativas percebe-se que o temor de
responder um processo administrativo na corregedoria do órgão é superior àquele de ser denunciado por excesso de
exação, fazendo com que sejam lavrados autos de infração muitas vezes sem fundamentação ou, pior ainda, lavrando-
96

interpretação linear e enfatizando o uso de métodos que conduzem “ao caminho correto”,
inapelavelmente, cria expectativas irreais em face da complexidade nas relações observáveis na
atualidade.

Dessa maneira, faz parte desse “passado que ainda se faz presente” observar determinados
arranjos de atividades econômicas, por exemplo, e para os quais há a incidência do ICMS ainda
hoje, e pensar estritamente sob o modo dedutiva, observando o passado, isto é, as decisões que já
foram tomadas em casos semelhantes, e tentando projetar esses comportamentos para situações
que possivelmente ainda ocorrerão.

Inacreditavelmente, porém, essa forma não responde mais a determinadas perguntas


tradicionais. Vive-se hoje em um mundo no qual a empresa que mais aterroriza a indústria
automobilística não pertence a este mesmo ramo. As tradicionais Volwagen, General Motors e Fiat,
por exemplo, tem muito mais receio das inovações a serem trazidas no modo de utilização dos
meios de transporte pelas pessoas que a Tesla está projetando, que é uma empresa de tecnologia,
do que das suas demais concorrentes no mercado.

Sob o viés do Estado, se hoje o ICMS convive com uma lógica para a tributação dos
combustíveis fósseis e outra para a tributação da energia elétrica, inclusive com alíquotas distintas,
como reinterpretar os institutos diante da utilização da energia elétrica como combustível e, ainda
mais, como alcançar a tributação ideal para o Estado e reinterpretar esses institutos, se a energia
elétrica será enormemente gerada pelos próprios consumidores finais, em painéis solares instalados
em suas próprias casas? Como lidar com a incidência do ICMS na injeção na rede elétrica e na
restituição desse bem que tenha sido produzido por um micro ou minigerador132? Questões desse
jaez não são solucionáveis pelas vias tradicionais; entretanto, nem todos ainda perceberam isso.

os mesmo que o contribuinte demonstre, durante a etapa de fiscalização, provas que descaracterizam os fatos. Nesse
ponto, um diálogo difícil de ser levado adiante: nessa dialética, em uma relação dominada pela desconfiança recíproca
entre pessoas, é a própria sociedade a maior vilipendiada, pelo fato de se sentir aviltada na relação e, ao mesmo tempo,
ser a maior prejudicada com as consequências maléficas da corrupção.
132
Essas e outras questões foram detalhadas por Fernanda Mara Macedo Pacobahyba e Germana Parente Neiva
Belchior (2017, pp. 211-218) que, relativamente à incidência do ICMS, concluem que: “Assim, em um momento
inicial, o micro ou o minigerador, conectado à rede de distribuição, injeta energia elétrica por ele produzida na rede de
distribuição. Juridicamente, trata-se de um empréstimo gratuito de bem fungível, isto é, ocorre um contrato de mútuo,
pelo qual se transfere a propriedade da coisa. A seguir, após o fornecimento de energia elétrica ativa pelo
97

Há ainda uma pecualiaridade nessa matéria e que se corporifica naqueles personagens da


maior importância, especificamente previstos no CTN, e que dão azo à grande movimentação de
normas individuais e concretas relativas à constituição do crédito tributário. Aqui se fala
especificamente da “autoridade administrativa”, normalmente identificada nos auditores fiscais,
integrantes de carreira de Estado, e que, nas mais das vezes, estão na proximidade do mundo
fenomênico, à procura da corporificação de fatos geradores de tributos.

Tais profissionais, longe de possuírem preparo jurídica específico, normalmente possuem


formações universitárias bem diversificadas, não sendo incomum achar-se, dentre eles, dentistas,
engenheiros, veterinários, contadores, dentre outros. Dessa maneira, longe de desenvolverem uma
atividade de interpretação sob um viés sistemático mais amplo, não raro se apoiam no texto do
CTN com intenso fervor133, fazendo bastante sentido para eles falar-se, assim, em interpretação
literal, em obrigação tributária sem crédito134, e em lançamento como atividade administrativa
privativa dessas autoridades.

De outra parte, uma massa imensa de contribuintes de tributos só se acerca de profissionais


do Direito135 quando há problemas mais graves a serem resolvidos, podendo-se afirmar que a maior

concessionário de serviço público, com efetivo consumo pelo micro ou pelo minigerador, realiza-se o critério material
do ICMS, pelo fato de se configurar juridicamente uma operação de circulação de energia elétrica, dando azo à
tributação. Por fim, em um terceiro momento, dado que a concessionária de energia elétrica deve restituir a energia
transferida a título de mútuo, e que o Estado brasileiro opta por estimular tal medida, deve-se implementar medidas
que assegurem que essa transferência de titularidade ocorra sem incidência tributária, motivo pelo qual o Convênio
ICMS nº 16, de 2015, vem a representar esse papel. Com tudo isso, conclui-se da necessidade do convênio e da sua
coerência como medida de incentivo a condutas ambientalmente desejadas. Nessa esteira, não se pode olvidar que a
adoção de medidas com um maior viés ambiental talvez representasse um movimento mais contundente do Estado
brasileiro em prol do art. 225 da CF, tais como a própria alteração da Lei Complementar nº 87, de 1996, passando a
inserir tais operações sob o âmbito da não incidência do ICMS, ou mesmo alterando a forma de composição da base
de cálculo do imposto”.
133
Em um sentido dogmático-religioso, tal qual um artigo de fé. Ao deparar um determinado inciso que pareça ter a
resposta pronta para o caso, agarra-se a ele com unhas e dentes, fundamentando seu Auto de Infração em uma norma
de hierarquia duvidosa e olvidando todo o restante do sistema tributário.
134
É digna de nota a crítica feita por Paulo de Barros Carvalho (2013, p. 500) à doutrina que, sedimentada na
literalidade do CTN, acredita ser possível a existência de obrigação sem crédito: “Pois bem, voltemos à ideia nuclear
de esquematização relacional. O direito subjetivo de que está investido o sujeito ativo de exigir o objeto, denominamos
‘crédito’. E o dever jurídico (ou também dever subjetivo) que a ele se contrapõe, de prestar o objeto, designamos
‘débito’. Revela-se, por isso, inominável absurdo imaginar-se obrigação sem crédito. No domínio dos desatinos,
equipara-se à concepção do vínculo obrigacional sem sujeito ativo, ou sem sujeito passivo, ou sem objeto. Todos,
conjugados e coalescentes, mantendo, entre si, os nexos que salientamos, outorgam ao liame o porte e a dignidade
categorial de obrigação”.
135
Ao tratar especificamente do discurso da norma, tema que será melhor abordado no Capítulo 3, Tércio Sampaio
Ferraz Junior (2015, p. 148) deixa evidenciada a posição dos partícipes que “[...] devem assumir a decisão normativa
98

parte da dinâmica estabelecida pelo CTN é resolvida por profissionais que não possuem formação
jurídica, notadamente da Contabilidade136. Nessa medida, percebe-se que, diante da imensa
configuração de fatos geradores de tributos que ocorrem diuturnamente137, as possibilidades de
interpretação a serem efetuadas por profissionais do Direito talvez não tenham tanta expressividade
numérica, mas ganhando ares astronômicos em termos de expressividade de valores envolvidos138.

Assim, malgrado direcionar o intérprete para uma interpretação chamada tradicional,


mesmo diante de novas possibilidades hermenêuticas, como se verá no Livro II, o texto normativo
do CTN promove sempre giros hermenêuticos dentro de estruturas tradicionais139. Tal evidencia
uma pouca permissibilidade a novas correntes interpretativas, bem como à própria evolução da
disciplina.

Não se pode deixar de apontar, ainda, que a análise acima expendida, acerca da formação
daqueles que lidam com a prática jurídico-tributária é superficial, dadas as pretensões deste
trabalho140 e a complexidade ínsita ao tema, mas representa apenas uma vertente a ser explorada a
fim de se investigar o porquê do “passado ainda se fazer presente” em se tratando da Hermenêutica

como premissa modificadora de expectativas e instituidora de comportamentos”. E assim faz ressaltar a participação
ativa estabelecida dialogicamente, mas que, no fundo, garante uma passividade daqueles a quem compete aplicar o
Direito: “Embora a esse grupo seja atribuída uma participação ativa, pelo estabelecimento de certas regras dialógicas
como a da publicidade das normas, a de que a ninguém é permitido escusar-se do cumprimento da lei alegando
ignorância etc., sabemos que, na prática, isso não ocorre. Há, ao contrário, uma grande indiferença, ninguém lê diários
oficiais, a torrente de informações dificulta ainda mais a comunicação. Na verdade, a regra da publicidade, por
exemplo, visa antes e paradoxalmente a garantir uma certa passividade desse grupo, passividade esta que os meios
modernos de comunicação de massa ajufam a acentuar: todos têm a impressão de comtrole, que tudo se submete a
todos para uma ‘decisão’. A passividade desse grupo não pode, contudo, ser explicada por uma mera constatação, mas
tem de ser entendida a partir da própria situação discursiva da norma”.
136
A expressão “profissionais da Contabilidade” envolve tanto o antigo contabilista, aquele profissional que possui
formação técnica em Contabilidade, como o contador, que possui diploma de graduação em Ciências Contábeis. A
regulamentação da atividade desses profissionais está prevista no Decreto-lei nº 9.295, de 1946, o qual também cria o
Conselho Federal de Contabilidade.
137
Aqui se fala, especificamente, no aspecto quantitativo e não necessariamente em termos de expressividade de
valores envolvidos.
138
Aqui não se poderia deixar de citar interessante matéria publicada no Conjur, ainda em 2013, e que revela a
importância que as chamadas “boutiques” que lideram o ranking tributário. Vide matéria completa disponível em:
https://www.conjur.com.br/2013-mar-17/boutiques-lideram-lista-bancas-recomendadas-area-tributaria. Acesso em 12
out. 2017.
139
Nessa medida, apesar de se defender a inesgotabilidade dos sentidos, não se pode deixar de pretender uma
readequação do próprio texto, de tempos em tempos, para adequá-los à nova pragmática: “Os fatores pragmáticos que
interferem na sequência discursiva, todavia, estarão sempre reclamando alterações do texto, de tal sorte que convém
ao autor, de tempos em tempos, rever os conteúdos de seu pensamento, objetivados em linguagem, para atualizar o
trabalho.” (CARVALHO, 2013, p. 517).
140
Certamente, questões desse jaez poderiam ser exploradas em trabalhos afetos ao ensino jurídico, por exemplo.
99

realizada no Direito Tributário. Nessa medida, certamente, estudos mais aprofundados sobre a
dinâmica tributária podem revelar aspectos que aqui sequer foram citados, agregando qualidade à
discussão.

E para tornar ainda mais complexo este aspecto, ao denominar esse processo de uma
patologia que “parece ser mais psicanalítica que jurídica”, Rafael Pandolfo (2017) aponta a
existência de, ao menos, quatro sistemas tributários coexistentes, em matéria apenas de tributos
federais, e que formam o pandemônio pelo qual transita o intérprete: 1) o sistema criado pelo
legislador; 2) o sistema definido pela Receita Federal do Brasil; 3) o sistema definido pelo
Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF) e 4) o sistema fixado pelo Poder Judiciário
(que pode ser ainda dividido em STF e em STJ)141.

Como, porém, o objeto deste estudo não é especificamente a análise hermenêutica dos
dispositivos do CTN, mas o delineamento dos momentos característico da interpretação jurídico-
tributária e as contaminações geradas na doutrina e na jurisprudência, serão abordados alguns
dispositivos específicos, os quais evidenciam de modo mais patente as características desse
“passado que ainda se faz presente”. Neste ínterim, quando possível, serão feitas as incursões
devidas aos textos da Ciência do Direito que buscam descrever esses fenômenos e qual o
movimento hermenêutico que eles instauram.

5.3 OS ARTS. 107, 108 E 110 DO CTN E A QUESTÃO DO VETOR INTERPRETATIVO


Começar esta seção pelo art. 107 proporciona uma aparente tranquilidade, característica
desse “passado que ainda se faz presente”: imagine-se afirmar a um estudante da gradução em
Direito que, no que se relaciona ao Código Tributário Nacional, este prescreve um caminho certo
e sem percalços pelo qual “[...] a legislação tributária será interpretada conforme o disposto neste
Capítulo”, apresentando, logo a seguir, mais cinco artigos que, em tese, viabilizariam toda a

141
Bastante interessante o artigo de Rafael Pandolfo (2017) pelo qual o autor praticamente expressa um “pedido de
socorro” frente à dinâmica atualmente observada no Direito Tributário. Com um título chocante (“Revoguem a
legalidade tributária: a sonegação e a legalidade-ameaça forma as duas faces da mesma perversa moeda”), o Jurista
apresenta o caos subjacente ao sistema tributário, e que ameaça a estabilidade e as relações que se processam
diuturnamente.
100

Hermenêutica Jurídica-Tributária. Instantes efêmeros de graça e alegria... Essa tranquilidade,


todavia, não passa de segundos em uma discussão, ainda que rasa, relativa ao ICMS.

Assim, pensar na proposta levada a cabo pelo legislador nacional há momentos mencionada
induz ao erro qualquer intérprete, na medida em que a interpretação não se realiza de modo
cirúrgico e asséptico como pretendida. Nesse ponto, não se admite que esse art. 107 do CTN possa
prescrever menos do que foi prescrito pelo legislador nacional processual civil, ao inaugurar a Lei
nº 13.105, de 2015, com a seguinte redação: “O processo civil será ordenado, disciplinado e
interpretado conforme os valores e as normas fundamentais estabelecidos na Constituição da
República Federativa do Brasil, observando-se as disposições deste Código”.

É com base nesse “mar calmo”, porém, que uma parcela da doutrina tributarista tenta
encontrar justificativas para o artigo 107, em um movimento que disfarça a realidade: toda a
ordenação normativa tributária, no Brasil, tem sede capital na própria Constituição Federal. E ainda
que assim não fosse, não há como se pretender uma exclusão dos valores e normas fundamentais
lá estabelecidos, na atividade hermenêutica. Assim, não há como se defender a ideia de que tal
artigo tenha sido recepcionado pela CF/88 se o mesmo pretende esgotar o processo gerador de
sentido das normas tributárias apenas no que apregoa o CTN.

A seguir, o art. 108 do CTN, cujo caput visa a disciplinar as atividades das autoridades
administrativas determina uma ordem sucessiva para aplicar a legislação tributária:

Art. 108. Na ausência de disposição expressa, a autoridade competente para


aplicar a legislação tributária utilizará sucessivamente, na ordem indicada:
I - a analogia;
II - os princípios gerais de direito tributário;
III - os princípios gerais de direito público;
IV - a eqüidade.
§ 1º O emprego da analogia não poderá resultar na exigência de tributo não
previsto em lei.
§ 2º O emprego da eqüidade não poderá resultar na dispensa do pagamento de
tributo devido.

Na primeira parte do caput do artigo, o legislador do CTN aparentemente traz a indicação


para emprego deste dispositivo: só se deve recorrer a ele em caso de ausência de disposição
expressa. Desde já, contudo, vale repensar no questionamento apresentado por Cristiano Carvalho
(2008, p. 275): “[...] a expressão ‘ausência de disposição expressa’ significa literalmente uma
101

lacuna normativa ou uma situação na qual haja regra, porém ambígua, frente ao caso
particular, também se enquadra no disposto?” (destacado).

Em ambos os casos, admite-se, desde já, a possibilidade da incompletude do ordenamento,


ou, melhor expressando, de “completabilidade” (CARVALHO, 2013c, p. XXVI), diferentemente
da Escola da Exegese, por exemplo, para a qual inexistiriam lacunas no Direito para a decisão dos
casos e, se estas ocorressem, “[...] a resposta já estaria previamente dada: um pedido sem resposta
na lei é um pedido sem fundamento jurídico, que deve, portanto, conduzir à improcedência da
demanda.” (SIMIONI, 2014, p. 37-38).

Na segunda parte do artigo, porém, há um indicativo que aparentemente significaria relegar


o processo interpretativo apenas ao Estado: somente as autoridades competentes deparariam estas
lacunas e estariam autorizadas legalmente a se utilizar, na ordem indicada, da analogia, dos
princípios gerais e da equidade? Aqui, um ponto fundamental sobre uma legislação cujo texto
praticamente não reverbera mais a pragmática da arrecadação dos tributos, tratando de um passado
que verdadeiramente está no passado: a exacerbação do papel dos contribuintes na constituição do
crédito tributário.

Assim, dado o fato de que a maior parte dos tributos existentes no ordenamento brasileiro
demandarem uma atuação dos contribuintes no que a doutrina denominou de autolançamento, a
restrição aos agentes da Administração Tributária para emprego desses mecanismos em caso de
lacunas na lei torna-se praticamente inviável. Longe disso, é possível que o próprio sujeito passivo
da obrigação tributária, diante do caso concreto, utilize-se da analogia para guiar o seu
comportamento tendente ao cumprimento de suas obrigações.

Como exemplo, imagine-se um contribuinte que tenha consultado o Fisco estadual sobre o
procedimento para escrituração e baixa de mercadorias inservíveis, por ultrapassarem o prazo de
validade. Nesse caso, em resposta por escrito, o fisco ditou-lhe os requisitos que deveriam ter a
nota fiscal para assegurar que seus deveres instrumentais estejam em conformidade com a
legislação e, ainda mais, possam dar azo à restituição pelo pagamento de tributos pagos por
substituição tributária, já que o fato gerador não se configurará, propriamente, em fato, pois a
mercadoria será descartada e não será comercializada para um consumidor final.
102

O contribuinte, entretanto, tempos após a emissão de tal parecer, vê-se diante de uma
situação fática análoga: constata a existência, em seu estoque, de vários itens quebrados ou
sinistrados, e que não poderão ser objeto de mercancia. Nesse caso, poderia utilizar-se da mesma
resposta de consulta, adotando-lhe os procedimentos expendidos, a fim de se desfazer da
mercadoria em estoque. Como medida de proteção da sua boa-fé, poderia protocolizar pedido de
convalidação desses procedimentos, os quais seriam passíveis de ser recebidos como denúncia
espontânea (com base no art. 138 do CTN), caso o Fisco entendesse de modo diverso,
obstaculizando a aplicação de penalidades.

Com isso, apesar da parte inicial do caput do art. 108 do CTN não se encontrar estritamente
em conformidade com uma hermenêutica tradicional, sua parte final ainda traz o ranço desta: leva
à conclusão de que a atividade de aplicação, isto é, a interpretação das situações práticas diante do
contexto normativo, seria uma atividade exclusiva do Estado, o que não se pode aceitar na
atualidade.

A seguir, elucidando o “caminho” a ser trilhado pelo intérprete, o CTN indica que ele deve
iniciar pela analogia, como no exemplo acima trazido da consulta tributária, o que revela uma
conexão direta com a exegese tradicional, pela utilização da chamada analogia legis, bem como da
analogia iuris, na medida em que,

[...] diante de uma dificuldade na lógica de subsunção da narrativa à sintaxe da lei


ou no silogismo entre a premissa maior e a menor – a decisão poderia recorrer a
métodos de integração igualmente lógicos e dogmatizados, como a analogia, em
um primeiro momento, e os princípios gerais, em último caso – ou, em nossa
perspectiva, a decisão poderia recorrer a suplementos lógicos (analogia) ou a
suplementos ontológicos (os princípios gerais), transcendentes ao sistema de
referência que era o texto da lei. A analogia era chamada de legis e sua utilização
era realizada através da justificação, por meio da argumentação, da existência de
similaridade entre o caso em questão e o caso previsto na lei – entre a narrativa
provada e a narrativa esperada pelos elementos sintáticos do texto legal. Já a
referência a princípios gerais, que era denominada de analogia iuris, somente
poderia ser utilizada em último caso, quando não era possível justificar a
utilização da analogia legis. (SIMIONI, 2014, p. 46).

Ao elencar que devem ser utilizados os “princípios gerais de direito tributário” e os


“princípios gerais de direito público”, um estudante desavisado pode ser levado a acreditar que
estes têm o mesmo conteúdo semântico dos princípios constitucionais tributários e dos princípios
constitucionais gerais, constantes sempre no Texto Constitucional. Antes da CF/88, contudo, os
103

“princípios gerais de direito tributário” seriam aqueles “[...] estabelecidos na codificação tributária,
como sendo os de direito fiscal” (LEITE FILHO, 1986, p. 30) e os “[...] princípios gerais de direito
público” corresponderiam àqueles “[...] fundamentos basilares ligados não só ao Direito
Administrativo, assim como qualquer norma de direito público, desde que, aplicável ao direito
tributário.” (LEITE FILHO, 1986, p. 31).

E se torna até absurdo, perante um sistema que se estrutura em princípíos constitucionais,


pensar que a analogia fosse uma etapa anterior e necessária no processo hermenêutico, e que
mesmo o emprego dela, isoladamente, estaria desconectado da utilização dos princípios
constitucionais gerais e específicos do Direito Tributário. Não se pode olvidar que “[...] a analogia,
por si só, não é um argumento auto-suficiente. Para que se possa integrar o sistema com uma
analogia, é mister justifica-la com base em algum princípio ou metaregra.” (CARVALHO, C. 2008,
p. 276).

No CPC, como já se alertou anteriormente, percebe-se uma mudança de orientação no papel


da Hermenêutica Jurídica e no vetor que deve movimentar o movimento hermenêutico. Ao
enunciar que o processo civil deve ser “[...] interpretado conforme os valores e as normas
fundamentais estabelecidos na Constituição da República Federativa do Brasil” e
“observando-se” as disposições do CPC, afasta-se significativamente do ideal ainda encontrável
textualmente no CTN, mas para o qual não se encontram saídas adequadas que possam vitalizar-
lhe na Hermenêutica Jurídico-Tributária.

Nesse ponto, comparativamente aos demais diplomas ainda encontradiços na legialação


brasileira, percebe-se que o CPC se coaduna com a construção de um sistema que se inicia que se
inicia com os valores142 e das normas fundamentais estabelecidos na CF/88, elevando a

142
Conforme conceitua Tercio Sampaio Ferraz Junior (2015, p. 150), “[...] valores são símbolos de preferências para
ações indeterminadamente permanentes (por exemplo, segurança, liberdade, riqueza, patriotismo). Nesse nível de
abstração, eles podem ser entendidos, e, de fato, afirmados sem inibições, como fórmulas integradoras e sintéticas para
a representação de consenso social. Por outro lado, é preciso, porém, assinalar que, justamente quando ocorre a
necessidade de se estabelecer uma ação ou projeto de ação, devemos decidir sobre um conflito de valores: para isso,
entretanto, não há, no mesmo nível de abstração supramencionada, nenhuma regra de validade genérica. Isso significa
que, se podemos abstrair pontos de vista valorativos, o mesmo não é possível quanto às relações, hierárquicas ou
circulares, entre os valores. Nesse sentido, os valores inerentes ao discurso da norma não são dados (Gegebenheiten),
nem mesmo tarefas (Aufgegebenheiten), absolutos, mas postulados. A palavra ‘postulado’ não significa, desde logo,
relativismo axiológico, mas quer dizer que os valores são são entidades independentes, que permitem uma expressão
unívoca, mas fatores que se determinam – instavelmente – num processo global”.
104

interpretação a momento de poderosa definição dos institutos que regerão o processo civil
brasileiro.

Voltando-se ao CTN, porém, o art. 110 assim prescreve:

A lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos,


conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela
Constituição Federal, pelas Constituições dos Estados, ou pelas Leis Orgânicas do
Distrito Federal ou dos Municípios, para definir ou limitar competências
tributárias.

Inicialmente, é uma oração longa e que se utiliza de várias palavras que têm significado
aproximado: assim, em vez de dizer que “a lei tributária não pode alterar a definição de institutos
de direito privado”, o legislador preferiu utilizar-se de sinônimos para algumas palavras, o que
dificulta a compreensão, especialmente ao se chegar ao final do artigo. Em uma redação mais
“enxuta”, no entanto, fica mais fácil vislumbrar o que hoje pode ser defendido como “inversão
hermenêutica” que ele promove: “[...] a lei tributária não pode alterar a definição de institutos de
direito privado utilizados pela Constituição Federal para definir competências tributárias”.

A ressalva quanto ao que hoje pode ser defendido como “inversão hermenêutica” justifica-
se na medida em que, quando da promulgação do Código de 1966, e fruto dos debates ocorridos
na Europa, defendia-se uma certa autonomia no que respeita aos efeitos tributários, mas limitava o
alcance da legislação tributária quanto à definição de direito privado. Após a CF/88, porém,
inaugura-se um movimento, que se caracteriza pela existência de autênticos conceitos
105

constitucionais para diversos termos utilizados na repartição da competência tributária (BRITTO,


2018, p. 6)143 144.

No primeiro sentido, como defendeu Cristiano Carvalho (2008, p. 277), o sentido normativo
desse dispositivo seria o de uma verdadeira “metaregra [sic] antificção”: “é metaregra [sic] pois
refere-se ao processo de produção normativo; e antificção porque veda a desconsideração de
formas, institutos e conceitos de direito privado para fins de efeitos tributários”. Nessa medida, a
percepção que se desenvolve é a de que a Constituição Federal parece se envergar diante de textos
que lhe são subordinados, porquanto a eles deve recorrer para a definição, o conteúdo e o alcance
dos institutos que tenham sido utilizados [pela Constituição] para definir ou limitar as competências
tributárias. E isso representa um olhar mais afeiçoado a uma dinâmica em que a CF não possuía a
densidade que hoje ostenta.

Assim, propõe-se uma perspectiva diferenciada: reconhecendo-se que a CF define as


competências tributárias relativas aos impostos, por exemplo, e que tem ampla liberdade para
moldar os institutos que pretende fazer com que sejam gravados pelos entes, não há sentido em se

143
Além desses dois momentos, Lucas Galvão de Britto (2018, pp. 6-7) defende, ainda, a ocorrência do terceiro
momento na discussão acerca da autonomia conceitual do Direito Tributário: “O terceiro sobreveio com o advento da
Lei nº 10.406, o Código Civil de 2002, que substituiu o Diploma Privado de 1916 dando origem a uma série de escritos
que se prestavam a esclarecer os impactos no domíno dos tributos das mudanças nos mecanismos e conceitos do direito
civil modificados pela nova disciplina civilista. Aqui, para além do problema da diacronia normativa na interpretação
das normas jurídicas tributárias, colocou-se em pauta uma leitura do direito tributário baseada em uma eficácia positiva
do princípio da capacidade contributiva, coibindo os ‘abusos de forma’ praticados pelo contribuinte, prestigiando-se a
‘substância econômica’ como critério para a verificação e quantificação da incidência tributária em detrimento até
mesmo da licitude dos documentos privados produzidos pelo contribuinte”. No caso em tela, não se concorda com o
autor na ideia de que o Código Civil represente um terceiro momento nessa discussão, dado que se defende a ideia de
que os institutos, conceitos e formas utilizados na definição ou limitação de competências tributárias, com a CF/88,
serão sempre conceitos constitucionais. Assim, o Código Civil não vem a representar uma superação desse paradigma;
contudo, o alinhamento ao entendimento do jurista pode-se dar na medida em que se admitem novas leituras nos
princípios constitucionais, como é o caso da supracitada capacidade contributiva, nas novas fusões de horizontes
proporcionadas pelos textos normativos.
144
Em sentido oposto, Thatiane dos Santos Piscitelli (2007, pp. 90-91) defende que “a eleição do disposto no art. 110
do Código Tributário Nacional como limite objetivo à interpretação das normas que fixam competência tributária não
significa submissão da Constituição da república a textos infraconstitucionais ou, ainda, a assunção do ‘primado do
direito privado’ em relação ao direito tributário, conforme desenvolvido por ENNO BECKER e fortemente criticado
por TÔRRES. Trata-se, sim, conforme entendimento esposado por BALEEIRO, de garantir o reconhecimento de
conceitos e formas de direito privado utilizados para definir as competências tributárias, nas ocasiões em que as
normas (constitucionais) de direito tributário não dispusessem de forma diversa [...]” (destacado).
106

limitar esse exercício a um vetor que parte da norma infraconstitucional para a norma
constitucional.

Admite-se, com efeito, que, ao se utilizar determinados institutos (como é o caso de


mercadorias, de serviços, de doação, de causa mortis, de renda, por exemplo), a CF criará as
próprias realidades, contaminando o direito privado, e não o contrário: os institutos, os conceitos e
a formas não são de direito privado e foram utilizados pela CF. Ao revés, são constitucionais e
podem ser delimitados, quando permitido, pelas normas infraconstitucionais. Assim, em um
sistema que deriva sempre da CF/88, não há como se defender “o império do Direito Civil”
(BALEEIRO, 2005, p. 687)145, pois este fora substituído pelo “império da Constituição Federal”.

Em assim sendo, o CTN contém um verdadeiro “conjunto de regras de interpretação”.


Como se verá a seguir, tanto a interpretação dos textos jurídicos, quanto a interpretação dos textos
sagrados, normalmente, valem-se de expedientes dessa natureza, com o fito, exatamente, de conter
aquilo que é, ontologicamente, incontível: o verbo, a palavra.

145
É interessante um estudo do Capítulo IV (“Interpretação e integração da legislação tributária”), na obra clássica de
Aliomar Baleeiro, intitulada “Direito Tributário Brasileiro”. Até pelo prestígio do autor, que chegou a ser ministro do
STF por dez anos, nomeado pelo cearense Humberto Castello Branco, não há como descurar do seu empenho na
elaboração de uma Ciência do Direito Tributário com o que havia de melhor à época. Este importante jurista faleceu
em 1978, não tendo a oportunidade de viver sob os influxos da CF/88. (Dados históricos disponíveis no site do STF:
http://www.stf.jus.br/portal/ministro/verMinistro.asp?periodo=stf&id=198. Acesso em 09 fev. 2018). Dada, porém, a
importância da obra, foram promovidas as devidas atualizações à CF/88 por Misabel Abreu Machado Derzi. Esta
jurista, assim, nas notas que insere em caractere itálico na obra de Baleeiro, adapta-a aos institutos mais atualizados da
Hermenêutica Tributária, inaugurando esse “futuro que já se faz presente” que será tratado no Livro II. Dessa maneira,
afirma Misabel Derzi, nos comentários à obra de Baleeiro (2005, p. 675): “De fato, hoje se afirma em toda a parte o
papel criador do juiz. O abandono da caduca concepção de uma aplicação da leei, como um silogismo lógico dedutivo,
em favor de uma compreensão jurídica, parece uma aquisição definitiva. A evolução da Hermenêutica jurídica,
desencadeada pelo impulso notável que lhe deu Betti, ao inseri-la numa teoria geral da interpretação e, sobretudo,
pela obra não menos fundamental de Hans George Gadamer, reforçou as tendências já apontadas. Se a interpretação
do Direito, em fase inaugural, se centrava na busca da intencionalidade primário do legislador, em uma segunda
etapa desloca-se para o exame objetivo da obra jurídica (desvinculada das subjetividades de seu autor), como
totalidade e sistema integrado de normas. Finalmente, a partir da década de 60, coube a Gadamer acrescentar-lhe a
perspectiva histórica do intérprete. Toda interpretação, inclusive a jurídica, é uma intermediação entre a nossa visão
linguística do mundo e a linguagem do texto.” (destacado no original).
107

5.1 O ART. 106, INCISO I, DO CTN, E A ANÁLISE DA LEI EXPRESSAMENTE


INTERPRETATIVA PARA A CONFIGURAÇÃO DE FATOS GERADORES DE OBRIGAÇÃO
TRIBUTÁRIA PRINCIPAL: O DOGMA DA SOBERANIA DO PARLAMENTO NA LEGISLAÇÃO
BRASILEIRA E A AFRONTA AO ART. 150, INCISO III, ALÍNEA “A”, DA CF/88

A questão da possibilidade de leis interpretativas é tema já bastante discutido pela doutrina


e pela jurisprudência. Tal abordagem, no entanto, aqui se faz importante na medida em que revela
esse “passado que ainda se faz presente”, dada a sua importância no Direito Tributário,
notadamente a partir da redação do art. 106 do CTN. Não se pode olvidar a importância dos textos
normativos para a construção de sentido em um determinado sistema, porquanto eles representam
o ponto inicial da interpretação (CARVALHO, 2013a), fato revelador de que, apesar de se estar
em uma outra dimensão hermenêutica, continua-se a utilizar-se de expedientes dogmáticos
tradicionais e que não verberam a qualidade de constituição da atividade hermenêutica.

Nesse ponto, o art. 106, inciso I, do CTN, traz exceção à irretroatividade das leis tributárias,
com o seguinte texto normativo:

Art. 106. A lei aplica-se a ato ou fato pretérito:


I – em qualquer caso, quando seja expressamente interpretativa, excluída a
aplicação de penalidade à infração dos dispositivos interpretados;

Aqui, firmam-se duas premissas que caem como uma luva para os que enxergam a
Hermenêutica sob um viés tradicional: primeiro, que em “qualquer caso”, o Poder Legislativo pode
se valer de sua função primordial, que se concatenaria com a introdução de normas gerais e
abstratas, para interpretar normas que já tenham sido por ele postas, certamente com o fito de
aclarar textos que não tenham se amoldado, “à perfeição”, àquilo que seria de sua “vontade”
original.

A outra premissa cria uma blindagem necessária para os contribuintes ao se exercer essa
possibilidade ampla de complementação legislativa de norma posta: o resultado dessa atividade
legislativa a posteriori não pode resultar em aplicação de penalidade à infração dos dispositivos
interpretados.

Ora, ainda que sob os auspícios da Hermenêutica tradicional, rechaça-se a ideia contida na
redação do art. 106, inciso I, do CTN, relativamente à possibilidade da chamada “interpretação
autêntica”, baseando-se na separação dos poderes e na segurança jurídica. E tal defesa doutrinária
108

torna-se mais oportuna com a utilização do ferramental oferecido pós-movimento do giro


linguístico, bem como pelo reconhecimento de que se lida com o dado volátil da linguagem, que
permeia o Direito de ambiguidade e de vagueza146 (ROSS, 2007).

Na verdade, historicamente, justifica-se a interpretação autêntica na medida em que ela


seria a de maior prestígio em certas épocas, dado que seria a única a aclarar a “vontade” daquele
que pusera a norma inaugural: desse modo, configuraria o denominado “[...] dogma da soberania
do Parlamento” (MARTINS; MENDES, 2009, p. 43). Dessa forma,

o Imperador Justiniano repelia qualquer outra exegese, isto é, a que não


procedesse dele próprio. Generalizou-se o preceito seguinte: “Interpretar incumbe
àquele a quem compete fazer a lei”. (...) O Digesto exara as duas regras seguintes,
atribuída a Juliano a primeira; a Ulpiano a segunda: 1) (...) “não podem ser todas
as questões compreendidas pelos senatus consultos e leis; porém, quando sobre
outro assunto a solução propiciada pelos textos referidos é manifesta, aquele que
preside o julgamento deve estendê-la aos casos semelhantes e assim ministrar
justiça” (...) 2) (...) “pois, conforme diz Pédio, toda vez que é por lei algo
estabelecido, um só ou diversos; boa oportunidade se nos antolha para serem
acrescentados, por meio da interpretação ou da competente administração da
justiça, outros mais, tendentes à mesma utilidade”. (...) Prosseguiu a evolução no
mesmo sentido, de dilatar dia a dia o campo da exegese doutrinal e restringir o da
autêntica: esta “filha do absolutismo” é hoje uma exceção, rara e antipática
exceção, em todos os países cultos: assim declara a torrente unânime dos
civilistas. (destacado) (MAXIMILIANO, 2017, pp. 83-84)

No Brasil, a Constituição de 1824, sob influência francesa, outorgou competência ao Poder


Legislativo para este “[...] fazer leis, interpretá-las, suspendê-las e revogá-las”, bem como “velar
na guarda da Constituição” (art. 15, n. 8º e 9º). Com isso, concatenando-se até com a possibilidade
de uma “perfeição hermenêutica”, também constante em Schleiermacher (compreender o autor
melhor do que ele se compreendeu), não se pode apartar o texto do CTN deste ideal.

No julgamento da Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 605/DF, que


trata especificamente da possibilidade de retroação de leis interpretativas, pelo voto do ministro
Celso de Mello, a Corte deixa assente que

146
Didaticamente, Tacio Lacerda Gama (2011) explicita com mais detalhes a diferença entre esses dois signos: “são
dois os problemas fundamentais do sentido: num deles, há objetos de naturezas distintas na denotação do termo,
tornando-o ambíguo. Noutros casos, os critérios de uso de uma expressão não são suficientemente precisos para
distinguir o seu significado do significado de outras expressões. Quando isso ocorre, temos um caso de vaguidade”.
(destacado).
109

[...] o princípio da irretroatividade somente condiciona a atividade jurídica do


Estado nas hipóteses expressamente previstas pela Constituição, em ordem a
inibir a ação do Poder Público eventualmente configuradora de restrição gravosa
(a) ao “status libertatis” da pessoa (CF, art. 5º, XL)147, (b) ao “status subjectionis”
do contribuinte em matéria tributária (CF, art. 150, III, “a”)148 e (c) à segurança
jurídica no domínio das relações sociais (CF, art. 5º, XXXVI)149. (...) As leis, em
face do caráter prospectivo de que se revestem, devem, ordinariamente, dispor
para o futuro. O sistema jurídico-constitucional brasileiro, contudo, não assentou,
como postulado absoluto, incondicional e inderrogável, o princípio da
irretroatividade. (destacado) (STF, MEDIDA CAUTELAR NA AÇÃO DIRETA
DE INCONSTITUCIONALIDADE: ADI 605/DF. Relator: Min Celso de Mello.
DJ publicado em 05/03/1993. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/
paginador.jsp?docTP=AC&docID=346493. Acesso em 07 fev. 2018)

Ao se falar da norma tributária, nos termos do CTN, duas possibilidades estariam


preordenadas ao legislador: pela primeira, decorrente da incidência normativa, podem (fazer)150
surgir fatos geradores de obrigação principal e fatos geradores de obrigação acessória (arts. 114 e
115, CTN).

No concernente às leis que perfaçam o desenho da Regra-Matriz de Incidência Tributária


(RMIT), dando azo ao surgimento dos fatos geradores de obrigação principal, ou se admite que
todos os critérios estão contidos na lei vigente, ou não se pode defender a possibilidade de que a
incidência venha a ocorrer ulteriormente para eventos sucedidos anteriormente, estando uma
porção de requisitos constantes na primeira lei e a outra porção na outra lei. Neste tocante, a CF
deixa assente a proibição de cobrar tributos relativos a fatos geradores ocorridos antes do início da
vigência da lei que os houver instituído ou aumentado.

147
CF, art. 5º, inciso XL: “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se
aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à
segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] XL - a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu; [...]”.
148
CF, art. 150, inciso III, alínea “a”: “Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado
à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: [...] III - cobrar tributos: a) em relação a fatos geradores
ocorridos antes do início da vigência da lei que os houver instituído ou aumentado;
[...]”.
149
CF, art. 5º, inciso XXXVI: “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-
se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à
segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] XXXVI - a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico
perfeito e a coisa julgada; [...]”.
150
Dado que não se admite aqui a chamada “incidência automática e infalível” (BECKER), defende-se a ideia de que
a norma é incidida, na medida em que a incidência não se dará “[...] se não houver um ser humano fazendo a subsunção
e promovendo a implicação que o preceito normativo determina.” (CARVALHO, 2015, p. 35).
110

A se defender o princípio geral da irretroatividade das leis, tecnicamente, pode-se até


apontar que há uma impropriedade semântico-pragmática na alínea “c”, inciso III, art. 150, CF: tal
se dá, pois “fato” se refere àquilo que foi feito. Ora, a configuração do fato jurídico requer ao menos
três caracteres bem definidos na legislação (no caso do Direito Tributário, em especial nas leis
ordinárias, relativamente aos chamados fatos geradores de obrigação principal): materialidade,
espacialidade e temporalidade.

Ora, se as leis têm efeito prospectivo151, não existem fatos geradores antes do início da
vigência da lei, pois fato é o que foi feito, e, juridicamente, os eventos ocorridos no mundo seriam
indiferentes juridicamente, antes da vigência de norma que os eleja importantes para o Direito e,
ainda mais, como se defenderá no Constructivismo Lógico-Semântico, que haja a incidência da
norma, pela aplicação.

De outra toada, o acolhimento do art. 150, inc. III, alínea “c” só faria sentido caso se
admitisse que a retroatividade das leis fosse a regra, conforme pode se depreender do julgamento
da Medida Cautela na ADI nº 605/DF, dado que a irretroatividade não é de princípio absoluto e
que somente condicionaria a atividade do Estado em três hipóteses particularizadas. Aqui se
chocam, entretanto, as categorias da Teoria Geral do Direito, principalmente ao tratar dos conceitos
de existência, validade e vigência, que não se divorciam dos caracteres de tempo,
irremediavelmente ocorrentes no Direito.

Desse modo, a irretroatividade das leis tributárias que fazem surgir fatos geradores de
obrigação tributária principal novos ou maiores do que os anteriormente existentes não admite
exceções. A edição de leis, contudo, que diminuíssem o quantum de obrigações tributárias
principais, apesar de não haver impedimento constitucional, esbarra em obstáculos de ordem
pragmática: como uma lei promulgada em 2017 poderia diminuir a alíquota do ICMS para todo o
exercício de 2016 se os fatos geradores já surgiram e se já houve a incidência e aplicação da lei

151
No Direito Tributário, esse efeito prospectivo abriga-se em um dispositivo específico do CTN, quando este dispõe
que “a legislação tributária aplica-se imediatamente aos fatos geradores futuros e aos pendentes, assim entendidos
aqueles cuja ocorrência tenha tido início mas não esteja completa nos termos do artigo 116” (art. 105). Ora, no que
concerne aos “fatos geradores pendentes”, não se defende a possibilidade de existência destes, dado que, se não há
integridade dos critérios, não há propriamente fato. Assim, os fatos pendentes são, também, fatos futuros.
111

que previa alíquota mais grave? Aqui, problemas de ordem financeira somar-se-iam aos de natureza
tributária, o que geraria a necessidade de um aprofundamento teórico ainda maior.

Voltando-se à possibilidade de lei interpretativa, especificamente se a suposta lei


interpretada diz respeito à incidência de tributo, e que venha resultar no pagamento de tributo ou
de penalidade pecuniária. Tal lei, certamente, trará um âmbito de materialidade que se pretende
ferir no mundo realístico, com vistas a juridicizar tais fatos, fazendo surgir o fato jurídico 152-
tributário. Nessa medida, ou esta lei traz de maneira completa o desenho de sua materialidade, ou
não se pode dizer que seja possível a incidência.

Não se poderia admitir, no caso, que desta lei não se pudesse construir uma “[...] unidade
mínima e irredutível de manifestação do deôntico com sentido completo” (destacado)
(CARVALHO, 2013a; 2015), que corresponde à norma jurídica em sentido estrito. Não haveria
unidade, pois nem todos os critérios seriam identificáveis nem se pode defender a posição de que
há sentido completo.

De outra maneira, se a lei posterior tem apenas o condão de interpretar, no sentido de aclarar
o sentido exposto na lei anterior, ocorre verdadeiro “sem-sentido deôntico”, o que a fulmina pelo
caractere da necessidade a própria atividade legislativa. Ora, se se admite que “[...] ninguém será
obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa, senão em virtude de lei” (art. 5º, inciso II, CF)
ou que não se pode “[...] exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça” (art. 150, inciso I,
CF), não se pode fugir então do conceito de lei com seu conteúdo deôntico completo, o que
dispensaria a necessidade de lei posterior interpretativa.

Ademais, o CTN, ao indicar que essa lei posterior seja “expressamente interpretativa”
parece afastar-se ainda mais dos requisitos que compõem o sentido deôntico de qualquer norma:
não se pode admitir que ao afirmar indicar no seu texto normativo que aquela lei seja

152
Entendendo-se que o fato jurídico “é aquele, e somente aquele, que puder expressar-se em linguagem competente,
isto é, segundo as qualificações estipuladas pelas normas do direito positivo. [...] Transmitido de maneira mais direta:
fato jurídico requer linguagem competente, isto é, linguagem das provas, sem o que serão meros eventos, a despeito
do interesse que possam suscitar no contexto da instável e turbulenta vida social.” (CARVALHO, 2016, pp. XX-XXI):
Prefácio à obra “A prova no Direito Tributário”, de Fabiana Del Padre Tomé.
112

“expressamente” interpretativa, não se esteja, assim, a ampliar a materialidade (por exemplo, dado
que os outros critérios podem ser objeto da lei nova interpretanda), da lei anteriormente publicada.

Defende-se, quando muito, o ponto de vista de que o CTN intentou possibilitar que tal lei
posterior pudesse ser “meramente”, além de “expressamente”, interpretativa, com o que se tentaria
salvar o desenho da RMIT estabelecido anteriormente. Adiante, porém, a parte final do art. 106,
inciso I, CTN, torna patente o interesse de resguardar a arrecadação do Estado, notadamente por se
excluir, apenas, a “penalidade à infração dos dispositivos interpretados”.

Nesse caso, acredita-se que o legislador quer dar azo à cobrança de tributo, resguardando o
contribuinte da penalidade. Em tal caso, resulta patente absurdo, na medida em que a lei
interpretanda estaria incluindo hipóteses não inicialmente previstas a eventos que já foram
convertidos em fatos. Ora, se fossem hipóteses já previstas, não haveria a necessidade de lei
posterior, revelando que, em se tratando de leis interpretativas que façam surgir obrigações
tributárias principais, tem-se a inconstitucionalidade do art. 106, inciso I, do CTN, por afronta ao
art. 150, inciso III, alínea “a”, CF.

5.2 O ART. 106, INCISO I, DO CTN, E A ANÁLISE DA LEI EXPRESSAMENTE


INTERPRETATIVA PARA A CONFIGURAÇÃO DE FATOS GERADORES DE “DEVERES
INSTRUMENTAIS”: AINDA ASSIM, A INCONSTITUCIONALIDADE
Até este momento, relativamente à analise do art. 106, inciso I, do CTN, depara-se esse
“passado que ainda se faz presente”, mormente, aqui, na própria legislação. Isso porque, conforme
se viu há instantes, apesar de boa parte da doutrina e da jurisprudência rechaçar a existência de leis
interpretativas, como figuras “odiosas” no ordenamento brasileiro, não se pode deixar de considerar
a existência de dispositivos jurídico-tributários que dificultam a interpretação das normas
tributárias pela maior parte daqueles profissionais que se encontram envolvidos na configuração
dos fatos geradores tributários.

Nesse ponto, o foco será desviado para a possibilidade de leis interpretativas relativamente
à instituição dos chamados “deveres instrumentais”. Alguns pontos, no entanto, carecem de
reflexão desde já. As também chamadas obrigaçoes tributárias acessórias, nos termos do CTN,
decorrem “[...] da legislação tributária e tem por objeto as prestações, positivas ou negativas, nela
113

previstas no interesse da arrecadação ou da fiscalização dos tributos.” (destacado) (CTN, Art. 113,
§ 2º).

A expressão “legislação tributária” merece destaque nesta análise. Isso porque, ao se


identificar os chamados “deveres instrumentais”, o legislador os situou em um patamar mais amplo
de possibilidades normativas: tais deveres podem estar previstos nas leis, tratados, convenções
internacionais, decretos e normas complementares que versem, no todo ou em parte, sobre tributos
e relações jurídicas a eles pertinentes (art. 96, CTN).

Essa amplitude normativa para a instituição dos deveres instrumentais produz divergências
doutrinárias: a corrente tradicional, mais afeita aos dispositivos do CTN e ao caráter ancilar dos
“deveres instrumentais”, defende a posição segundo a qual estes podem estar previstos em
instrumentos normativos infralegais, não carecendo de lei em sentido estrito para a sua exigência.
Nesse caso, tem-se dificuldade em combinar essa interpretação ao disposto no art. 106, inc. I, do
CTN, que trata especificamente de “lei”.

Outra corrente, embasada nos dispositivos da CF/88, aponta que os deveres instrumentais
devem estar previstos em leis, na medida em que ninguém pode ser obrigado a fazer ou deixar de
fazer algo, senão em virtude delas, tomadas em sua acepção estrita. Nesse ponto, poder-se-ia
defender a possibilidade de interpretação retroativa de leis “expressamente interpretativas”,
relativas à exigência de deveres instrumentais.

A temática dos deveres instrumentais, entretanto, longe de representar campo pacífico, por
serem de meras obrigações de fazer ou de não fazer, no interesse da arrecadação e da fiscalização
dos tributos, pode trazer sérias consequências de ordem prática. A uma, porque toda instituição de
deveres instrumentais é finalística: só se justifica na medida em que seja atividade tendente a
facilitar o labor da arrecadação e da fiscalização, a qual se dá a partir da atividade do próprio
contribuinte, pelo autolançamento153, seja porque as informações prestadas pelos contribuintes

153
Paulo de Barros Carvalho (2004, p. 3), no “Prefácio” à obra de Denise Lucena Cavalcante, denuncia a
“terceirização” da constituição do crédito tributário aos contribuintes, o que já era uma realidade inconteste: “[...] nas
ordens positivas das sociedades atuais, o lançamento, enquanto ato jurídico administrativo que aplica a regra-matriz
de incidência a uma situação concreta do mundo circundante, passou a existir em quantidade cada vez mais reduzida.
O tamanho tendencialmente estável dos aparatos administrativos, em proporção ao crescimento acentuado do universo
114

auxiliem a fiscalização das autoridades administrativas, quando estas constituem o crédito


tributário. Jamais, entretanto, trata-se de “palavras ao vento”, sem utilidade prática.

Outro aspecto que merece ser enaltecido é que, dada a relevância do cumprimento desses
deveres instrumentais, as leis tributárias elencam sanções específicas pelo seu descumprimento,
normalmente identificadas pela expressão “multas autônomas” ou “multas isoladas”. Assim, dado
que o contribuinte de ICMS, sediado no Estado do Ceará, não emitiu nota fiscal eletrônica (NF-e)
quando realizou operação de circulação de mercadoria no valor de R$ 1.000,00, deve ser o
pagamento de multa autônoma no montante de R$ 10,00, em valor fixo por omissão de documento
fiscal, por exemplo. Tal multa não se vincula ao pagamento do tributo devido nesta operação, que
seria de R$ 180,00 neste caso, sendo “autônoma” em relação a este. Assim, deve o contribuinte
pagar esta penalidade pecuniária e, ainda, solver a obrigação tributária principal que fora omitida
pela falta da NF-e.

Nesse sentido, não parece que o CTN, no art. 106, inciso I, teria trazido a possibilidade de
leis interpretativas relativamente aos deveres instrumentais. A partir das elaborações da corrente
que justifica a necessidade de lei em sentido estrito para instituí-las, e diante ainda, da possibilidade
de que uma legislação criadora de obrigação acessória venha a ser posteriormente interpretatada e,
nesse ínterim, passar a acobertar situações como passíveis de fazerem surgir obrigações de fazer
ou de não fazer, para cujo descumprimento sejam constituídos penalidades pecuniárias, não há
como não se defender a aplicação da parte final do artigo supracitado, a fim de não prejudicar o
contribuinte.

A última observação se faz importante, porém, relativamente às próprias obrigações


acessórias. E tal reside justamente no descompasso do art. 113, § 2º, do CTN, em relação ao art.
5º, inciso II, da CF. Nessa medida, apoiado em um panorama constitucional diferente, a Lei nº
5.172, de 1966, admitia que “[...] comportamentos outros, positivos ou negativos, consistentes num
fazer ou não fazer, que não se explicam por si mesmos, preordenados que estão a facilitar o
conhecimento, o controle e a arrecadação da importância devida como tributo” (CARVALHO,

dos sujeitos passivos, vem determinando que as legislações atribuam aos contribuintes a ‘competência’ para expedir o
ato de linguagem responsável pela introdução da norma individual e concreta no sistema do direito positivo”.
115

2015, p. 289) pudessem ser exigidos com base em instrumentos infralegais, o que não parece a
melhor interpretação diante no novo panorama constitucional.

Tal posição, entretanto, ainda não mereceu uma análise mais detida do lado da maior parte
da doutrina e da jurisprudência, que ainda se fazem convencer pelo CTN, admitindo que essas
prestações positivas ou negativas desbordem de instrumentos legais, chegando-se mesmo à
existência de instituição de obrigações de fazer por meras instruções normativas. Por fim, faz-se
reverberar a doutrina de Paulo de Barros Carvalho (2015, p. 294), para quem “[...] somente poderão
ser exigidas prestações positivas ou negativas, no interesse da arrecadação ou da fiscalização dos
tributos, de quem quer que seja, no pressuposto de haver lei que disponha nesse sentido”.

5.4 INTERPRETAÇÃO LITERAL154 E A INASFASTÁVEL CONDIÇÃO DE AMPLITUDE


SEMÂNTICA E PRAGMÁTICA DOS TEXTOS: ANÁLISE À LUZ DO ART. 111 DO CTN
Algo que se revela importante há de ser esclarecido e reiterado neste texto: aquilo que a
Hermenêutica Jurídica tradicional denomina de métodos jurídicos, mormente em se tratando do
Direito Tributário, revela-se, nas mais das vezes, como expedientes retóricos para con(formar)155
as ideias do intérprete. Assim, como se verá mais à frente, tomar a hermenêutica sob um viés
ampliado implica em afirmar que a mesma “não mais será uma ‘questão de método’, passando a
ser filosofia” (STRECK, 2014, p. 222).

Nesse sentido, o que faz o intérprete, ao deparar uma dúvida acerca da incidência ou não
do ICMS em um caso concreto, é escolher entre o emprego de uma “interpretação literal”156, pelo

154
A “interpretação literal” se coaduna como o ideal de objetividade, que passam a ser desafiados com a consciência
hermenêutica, como se verá no Livro II: “o que a consciência hermenêutica vem desafiar é um certo ideal de
objetividade, identificando-o na origem de ilusões como a da ‘abstração de si’ por parte do historiador ou a do
automatismo da aplicação la lei” (JUST, 2014, p. 29).
155
O “con(formar)” aqui tem o sentido de dar a forma ou, na grafia antes do Acordo Ortográfico que entrou em vigência
em 2009, dar a “fôrma”. A ideia que se quer passar é a de que a ciência, na eterna busca pela identificação dos seus
objetos, molda determinados standards pelos quais seria mais fácil identificar aquilo que seria científico, do que não
se encaixa nesse conjunto. Mormente nas ciências humanas, conforme se viu em Dilthey, há uma complexidade maior
em se idealizar o dado científico. A utilização dos métodos, assim, pela Hermenêutica Jurídica tradicional, vem a
representar essa “forma de bolo” na qual se colocam os preconceitos do intérprete, o texto e o contexto (sob uma
perspectiva gadameriana) com vistas a que se tenha um resultado final reconhecível, pelo consenso, como científico.
Aqui se defende, porém, a ideia de que se trata apenas de uma prateleira de artigos distintos, à espera do intérprete, e
que lhe ofertam possibilidades para dizer aquilo que já é conhecido dele, não se tratanto, em absoluto, de construção,
mas de reacondicionamento de uma ideia preexistente.
156
As aspas se justificam na medida em que o acesso simples à literalidade não importa interpretação.
116

qual demonstraria um apego maior ao texto “frio” da lei e, talvez, resultasse na incidência do ICMS
na situação em foco, em vez de optar pelo método teleológico, em que se busca a finalidade da
norma, e diante do qual não estariam os fatos açambarcados pela incidência. Essa dúvida será
trazida mais à frente, com a inserção da mercadoria “leite in natura” na “cesta básica” do ICMS.

Este raciocínio, contudo, alinha-se aos questionamentos propostos por Lenio Streck (2014,
p. 37) acerca da “literalidade da lei”, quando o autor se confronta com a diferenciação entre
exegetismo e normativismo:

[...] impõe-se uma reflexão: o que se quer mencionar quando se afirma que o juiz
não pode mais, no contexto do direito “atual”, apegar-se à “literalidade da lei”?
Afinal, o que é “literalidade da lei”? Ora, desde o início do século XX, a filosofia
da linguagem e o neopositivismo lógico do Círculo de Viena [...] já haviam
apontado para o problema da polissemia das palavras. Isso nos leva a outra
questão: a literalidade é algo que está à disposição do intérprete? Se as palavras
são polissêmicas; se não há a possibilidade de cobrir completamente o sentido das
afirmações contidas em um texto, quando é que se pode dizer que estamos diante
de uma interpretação literal? A literalidade, portanto, é muito mais uma questão
de compreensão e da inserção do intérprete no mundo do que uma característica,
por assim dizer, natural dos textos jurídicos.

Nesse ponto, é que se revela deveras complicada a utilização desenfreada e sem a


consideração do contexto e dos preconceitos do intérprete, do que se convencionou chamar de
métodos interpretativos, e isso é ainda mais ressaltado na chamada “interpretação” literal. Mesmo
ao se observar o modelo da moldura kelseniana157 158, estar-se-ia a construir diversas interpretações

157
Ao tratar da “moldura”, Torquato Castro Jr (2009, p. 41) defende que “Kelsen [...] propõe que o processo de
reprodução do Direito não poderia ser cientificamente (cognitivamente) controlado. Assume assim a idéia [sic] de que
toda norma fornece, do ponto de vista semântico, apenas uma ‘moldura’ [...] na qual se podem inscrever vários sentidos
diversos, todos igualmente resultantes de um ato de interpretação. Ele chamou de ‘autêntica’ aquela interpretação
própria do agente estatal imbuído de autoridade formal-institucional, que está pressuposta quando já se tem o ato de
pôr a norma com seu registro em linguagem”. Finaliza esse tópico ao afirmar que, para Kelsen, “o saber da ciência do
direito não pode determinar o conteúdo das soluções práticas. As decisões são inescapavelmente ideológicas,
irracionais, e por isso estão fora dos limites normativos do científico”.
158
Caio Farah Rodriguez (2016) faz profunda análise da interpretação em Hans Kelsen, a partir do contraponto da
ideia de moldura e de vontade. Sinteticamente, afirma o autor que “a estrutura do argumento de Kelsen sobre
interpretação é a seguinte: (i) A interpretação jurídica abrange dois momentos: um cognitivo, outro volitivo. (ii) No
momento cognitivo determina-se a ‘moldura jurídica’ das soluções possíveis para determinada controvérsia jurídica;
no momento volitivo escolhe-se, entre as alternativas, qual deve ser vinculante. (iii) O primeiro momento é comum ao
cientista do Direito, ao cidadão e ao juiz; o segundo momento distingue o juiz (que ele chama de ‘intérprete autêntico’,
pois cria a norma inferior a partir da norma superior aplicável ao caso) dos outros dois”.
117

possíveis para determinada norma, ainda que, para Kelsen, a interpretação do Direito seja “[...]
eivada de subjetivismos provenientes de uma razão prática solipsista159”. (STRECK, 2014, p. 36).

Percebe-se, no entanto, que o âmbito no qual varia a interpretação percorre dois extremos:
em um ponto está situada uma resposta favorável ao contribuinte, pela não incidência do ICMS, e
no outro extremo está uma resposta desfavorável ao contribuinte, concluindo pela incidência da
norma tributária. Entre ambas, apenas um complexo de fundamentações distintas mas que calham,
na aplicação do Direito ao caso concreto, em apenas uma das duas respostas160.

Nesse ponto, uma parte da doutrina tributarista, ao atribuir verdadeiro conteúdo metódico à
literalidade, defende a chamada “interpretação literal” para os dispositivos que concedam
suspensão ou exclusão do crédito tributário, isenções ou dispensa de obrigações acessórias,
afastando, nesses casos, a aplicação do art. 108, incisos I e II, do CTN, bem como justificando tal
defesa na necessidade de que todos contribuam para a manutenção dos serviços públicos, segundo
sua capacidade econômica, e pressupondo-se que a regra é que todos cumpram as obrigações
acessórias (BALEEIRO, 2005, pp. 693-694; MACHADO, 2016, p. 116).

Ainda que a seguir se reconheça que o elemento literal seja “absolutamente insuficiente”, a
defesa de sua permanência no sistema jurídico-tributário se daria com o reconhecimento de sua
serventia para excluir a utilização dos meios de integração nas hipóteses que enumera
(MACHADO, 2016, p. 117). Remanescem dúvidas, no entanto, ao se conciliar os art. 108 e 111
do CTN na seguinte medida: se o primeiro haveria de ser utilizado “na ausência de disposição

159
Michael S. Moore (2000), ao discorrer acerca do papel do juiz na interpretação jurídica, e que não se reveste do
modelo solipsista de que fala Streck, aduz que “o valor servido quando os juízes de hoje seguem decisões precedentes
é, principalmente, o valor da igualdade, mas a igualdade não exige que casos similares nos aspectos descritos em
fundamentações anteriores sejam tratados de maneira similar; antes, a igualdade exige que casos que são similares em
todos os aspectos moralmente relevantes sejam tratados de maneira similar. A igualdade, assim, não dá a um juiz razão
para tratar as fundamentações de seus predecessores como textos que ele deve interpretar”. Nesse ponto, faz ecoar uma
característica presente na hermenêutica desenvolvida nos Estados Unidos da América e que é diferente da forma como
tratam as correntes hermenêuticas brasileiras mais recentes.
160
Aqui a aplicação do princípio do terceiro excluído: ao se visualizar um dado fato, pode-se dizer que este se submete
à regra de incidência de um imposto, ou que o mesmo não se submete. Não há terceira opção, em conta da estrita
legalidade, que não permitiria uma meia incidência do tributo, como a representar um critério quantitativo reduzido
pela metade.
118

expressa”, como compatibilizá-lo com o segundo, o qual pressupõe a existência do dispositivo


normativo que se tentaria conter?

Em razão da natureza desta tese, aqui se caminha ao lado da defesa de Renato Lopes Becho
(2014a, p. 179), ao postular a ideia de não se vê razoável “[...] um dispositivo legal que determine
a interpretação literal de nenhum texto normativo”. Assim, o art. 111 do CTN

[...] desorganiza a harmonia sistêmica do direito tributário, que parte dos


princípios constitucionais tributários. A negativa de aplicação das técnicas
interpretativas dadas pela ciência do direito e pela teoria geral do direito, a partes
do direito tributário, compromete a importância da codificação tributária.

Dois exemplos a seguir detalhados podem expor a superficilialidade das disposições


contidas no art. 111 do CTN e até mesmo o desconforto que pode ser gerado na relação Fisco-
contribuinte dada a sua utilização como critério hermenêutico. É do que se tratará desde agora.

5.4.1 O Caso Dos Benefícios Fiscais Relativos Ao ICMS Nas Saídas De Insumos
Agropecuários Previstos No Convênio ICMS nº 100, de 1997: Interpretação Literal e Valores
Constitucionais

O Convênio ICMS nº 100, de 1997, celebrado no âmbito do Conselho Nacional de Política


Fazendária (CONFAZ), é um dos instrumentos mais controversos previstos hoje na legislação
relativa ao ICMS e será aqui tratado sob duas perspectivas: a primeira delas, que parece até compor
enredo de obra de comédia, combina imprecisão terminológica e interpretação literal, levando a
indagações ainda flutuantes na doutrina e sem abordagem pela jurisprudência. Nesse ponto, tal
interpretação se dá em um movimento de derivação que se inicia no CTN e ruma em direção aos
regulamentos estaduais do ICMS.

Já a segunda se refere ao movimento de fundamentação do Convênio ICMS nº 100, de


1997, em face dos valores constitucionais. Nessa medida, de que maneira promover um diálogo
hermenêutico (e não hermético) entre o Direito Tributário e o Direito Ambiental. Nesse ponto, não
se deve descurar a idea de que a CF/88 foi pródiga de valores transversais e a pergunta que se faz
é: por que (não) aplicá-los à Hermenêutica Jurídico-Tributária?
119

5.4.1.1 “Aves de um dia”: fragilidades na interpretação literal e no rigor técnico da legislação


tributária do ICMS

Dentre outras previsões, o Convênio ICMS nº 100, de 1997, de natureza impositiva quanto
à redução de base de cálculo em 60% (sessenta por cento) nas saídas interestaduais, aplica-se às
operações com “aves de um dia” (inciso IX, Cláusula Primeira). Já em sua Cláusula Terceira, de
natureza autorizativa161, permite que os Estados concedam, nas operações internas com as
mesmas “aves de um dia”, redução de base de cálculo ou isenção do ICMS.

161
Ao tratar dessas “naturezas” dos convênios celebrados no âmbito do CONFAZ, faz-se necessário fazer um “acerto
semântico” do conteúdo e do alcance dessa classificação, adotada por aquele colegiado e pelas administrações
tributárias. Isso porque entendem os Estados que os convênios podem conter clásusulas de natureza “impositiva”, isto
é, determinados dispositivos que concedem benefícios fiscais, e para os quais não haveria a liberdade do Estado de não
reconhecê-los. E um exemplo é a Cláusula Primeira do Convênio ICMS nº 100/1997, pela qual: “Fica reduzida em
60% (sessenta por cento) a base de cálculo do ICMS nas saídas interestaduais dos seguintes produtos: [...]”
(destacado). Desse modo, dada a assertividade do dispositivo, trata-se-ia de verdadeira imposição aos Estados a
concessão dessa redução de base de cálculo nas operações interestaduais: daí a natureza impositiva. Diferentemente
disso, é a disposição da Cláusula Terceira, pela qual “Ficam os Estados e o Distrito Federal autorizados a conceder
às operações internas com os produtos relacionados nas cláusulas anteriores, redução da base de cálculo ou isenção
do ICMS, observadas as respectivas condições para fruição do benefício” (destacado). Nesse ponto, ao tratar
especificamente da legislação interna, os convênios celebrados no âmbito do CONFAZ trariam cláusulas permissivas
e que, assim, classificam-se como autorizativas. Tais classificações, que ainda são sustentadas pelas administrações
tributárias, só se justificam no paradigma da Constituição de 1967, a qual dispunha, em seu art. 23, § 6º, que “[...] as
isenções do ICM seriam ‘concedidas ou revogadas nos termos fixados em convênios, celebrados e ratificados pelos
Estados’” (CARVALHO, MARTINS, 2014, pp. 58-59). Assim, continua o autor, “[...] nesse contexto [da Constituição
de 1967, repita-se], os convênios eram considerados de caráter impositivo”; contudo, com a CF/88 e, especialmente,
com a redação dada ao art. 150, § 6º, pela Emenda Constitucional nº 3, de 1993, não restam mais dúvidas na
jurisprudência acerca da necessidade de lei específica estadual, que regule exclusivamente as matérias relativas aos
benefícios fiscais que sejam concedidos no âmbito do ICMS. Expressando esse entendimento, a Medida Cautelar na
ADI nº 1.247, Rel. Min Celso de Mello, faz uma passagem pelas questões mais pungentes acerca dessa matéria,
especialmente ao trazer um compilado da doutrina e da jurisprudência que fundamenta tal medida. No que concerne à
exigência de lei aprovada pelos Estados e pelo DF, após a celebração do convênio no âmbito do CONFAZ, assim
afirma o ministro: “Essa questão envolve, ainda, aquela referente à sedes materiae das exonerações fiscais concedidas
no âmbito dos Estados-membrosem tema do ICMS. Quanto a este aspecto, cumpre registrar a posição doutrinária
daqueles que consideram o convênio interestadual como pressuposto necessário à válida concessão, por ato local do
Estado-membro, de exoneração ou de benefícios fiscais, concernentes ao ICMS” (destacado no original). Ao final, tal
medida cautelar não foi assertiva quanto à necessidade de aprovação de lei ordinária estadual, com base em convênio
previamente celebrado no âmbito do CONFAZ. Paulo de Barros Carvalho (2014, pp. 63-66), em obra conjunta com
Ives Gandra da Silva Martins, é quem alerta para o fato de que “o exame da mais recente jurisprudência do Supremo
Tribunal Federal aponta no sentido de serem os convênios instrumentos cuja produção deve sempre ser prévia ao ato
normativo do Estado que conceda o benefício fiscal ou isenção”. Assim, defende o Jurista a ideia de que, seguindo-se
a linha raciocínio ora exposta, “[...] os convênios relativos a isenções, incentivos ou benefícios de ICMS assumem
caráter autorizativo, ficando na dependência de produção legislativa pelos Estados e pelo Distrito Federal. Desse
modo, quando aprovado o benefício, cabe a cada pessoa política implantá-lo em seu território, evitando-se, com
isso, que qualquer deles seja ‘obrigado’ a conceder benefício contra sua vontade” (destacado). Assim, citem-se
excertos de alguns julgados relevantes nesta matéria: “E M E N T A: AÇÃO DIRETA DE
INCONSTITUCIONALIDADE - INEXISTÊNCIA DE PRAZO DECADENCIAL - ICMS - CONCESSÃO DE
ISENÇÃO E DE OUTROS BENEFÍCIOS FISCAIS, INDEPENDENTEMENTE DE PREVIA
120

Nessa medida, as unidades federadas promoveram o disciplinamento desses benefícios no


âmbito de suas legislações estaduais (redução de base de cálculo nas operações interestaduais e
isenção ou redução de base de cálculo nas operações internas)162 e, com base nessas legislações,
esbarra-se em dois problemas, de ordem técnico-normativa:

DELIBERAÇÃO DOS DEMAIS ESTADOS-MEMBROS E DO DISTRITO FEDERAL - LIMITAÇÕES


CONSTITUCIONAIS AO PODER DO ESTADO-MEMBRO EM TEMA DE ICMS (CF, ART. 155, 2., XII, "G") -
NORMA LEGAL QUE VEICULA INADMISSIVEL DELEGAÇÃO LEGISLATIVA EXTERNA AO
GOVERNADOR DO ESTADO - PRECEDENTES DO STF - MEDIDA CAUTELAR DEFERIDA EM PARTE.
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE E PRAZO DECADENCIAL: [...] ICMS E REPULSA
CONSTITUCIONAL A GUERRA TRIBUTARIA ENTRE OS ESTADOS-MEMBROS: O legislador constituinte
republicano, com o proposito de impedir a "guerra tributaria" entre os Estados-membros, enunciou postulados e
prescreveu diretrizes gerais de caráter subordinante, destinados a compor o estatuto constitucional do ICMS. Os
princípios fundamentais consagrados pela Constituição da Republica, em tema de ICMS, (a) realcam o perfil nacional
de que se reveste esse tributo, (b) legitimam a instituição, pelo poder central, de regramento normativo unitario
destinado a disciplinar, de modo uniforme, essa espécie tributaria, notadamente em face de seu caráter não-
cumulativo, (c) justificam a edição de lei complementar nacional vocacionada a regular o modo e a forma como
os Estados-membros e o Distrito Federal, sempre após deliberação conjunta, poderao, por ato próprio, conceder
e/ou revogar isenções, incentivos e benefícios fiscais. CONVENIOS E CONCESSÃO DE ISENÇÃO, INCENTIVO
E BENEFICIO FISCAL EM TEMA DE ICMS: A celebração dos convenios interestaduais constitui pressuposto
essencial a valida concessão, pelos Estados-membros ou Distrito Federal, de isenções, incentivos ou benefícios
fiscais em tema de ICMS. Esses convênios - como instrumentos de exteriorização formal do previo consenso
institucional entre as unidades federadas investidas de competência tributaria em matéria de ICMS - destinam-se a
compor os conflitos de interesses que necessariamente resultariam, uma vez ausente essa deliberação
intergovernamental, da concessão, pelos Estados-membros ou Distrito Federal, de isenções, incentivos e benefícios
fiscais pertinentes ao imposto em questão. O pacto federativo, sustentando-se na harmonia que deve presidir as relações
institucionais entre as comunidades politicas que compoem o Estado Federal, legitima as restrições de ordem
constitucional que afetam o exercício, pelos Estados-membros e Distrito Federal, de sua competência normativa em
tema de exoneração tributaria pertinente ao ICMS. MATÉRIA TRIBUTARIA E DELEGAÇÃO LEGISLATIVA:
A outorga de qualquer subsidio, isenção ou crédito presumido, a redução da base de calculo e a concessão de
anistia ou remissão em matéria tributaria só podem ser deferidas mediante lei especifica, sendo vedado ao Poder
Legislativo conferir ao Chefe do Executivo a prerrogativa extraordinária de dispor, normativamente, sobre tais
categorias tematicas, sob pena de ofensa ao postulado nuclear da separação de poderes e de transgressão ao
princípio da reserva constitucional de competência legislativa. Precedente: ADIn 1.296-PE, Rel. Min. CELSO
DE MELLO” (STF, MEDIDA CAUTELAR NA AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE: ADI MC
1.247/PA. Relator: Min Celso de Mello. DJ publicado em 08/09/1995. Disponível em:
http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=346923. Acesso em 08 fev. 2018) e
“EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. DECRETO N. 989/03, EDITADO PELO
GOVERNADOR DO ESTADO DO MATO GROSSO. USURPAÇÃO DA COMPETÊNCIA DO SENADO
FEDERAL PARA FIXAR A ALÍQUOTA DO ICMS, NOS TERMOS DO PRECEITO DO ARTIGO 155, §2º,
INCISOS IV E V, DA CB/88. ICMS. IMPOSTO NÃO-CUMULATIVO. A CONCESSÃO UNILATERIAL DE
BENEFÍCIOS FISCAIS, SEM A PRÉVIA CELEBRAÇÃO DE CONVÊNIO INTERGOVERNAMENTAL,
AFRONTA O DISPOSTO NO ARTIGO 155, § 2º, XII, G, DA CONSTITUIÇÃO DO BRAHSIL. [...] 3. Pacífico o
entendimento jurisprudencial no sentido de que a concessão unilateral de benefícios fiscais relativos ao ICMS, sem a
prévia celebração de convênio intergovernamental, nos termos do que dispõe a LC 24/75, afronta ao disposto no art.
155, § 2º, XII, g, da Constituição Federal” (STF, AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE: ADI
3.312/MT. Relator: Min Eros Grau. DJ publicado em 09/03/2007. Disponível em:
http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=409290. Acesso em 08 fev. 2018).
162
No Estado do Ceará, o Regulamento do ICMS traz a previsão desta isenção em seu art. 6º, com a seguinte redação:
“Art. 6º. Ficam isentas do ICMS, sem prejuízo de outras hipóteses previstas na legislação tributária estadual, as
121

(i) O primeiro deles conecta-se à possibilidade de limitação do “conteúdo benéfico”


aprovado no âmbito do CONFAZ e sem que haja a aprovação de lei ordinária estadual. Sem
pretensões de adentrar esse aspecto, ele merece apenas ser pontuado, para ulteriores reflexões por
parte da doutrina.

Assim, o que se observa, no Estado do Ceará, por exemplo, é que, diferentemente do


Convênio ICMS nº 100/97, que concede benefício fiscal de ICMS às saídas interestaduais para
"aves de um dia", e possibilita que os Estados confiram às operações internas com os mesmos bens,
redução de base de cálculo ou isenção, o Estado outorgou o benefício apenas aos “pintos163 de um
dia”.

Partindo-se dessa disposição legislativa, as operações internas com filhotes de um dia de


vida do faisão, no Estado do Ceará, não estão acobertadas pela isenção constante do RICMS/CE
(art. 6º, inciso LXXX, Decreto nº 24.569, de 1997164), dado que, literalmente, o Regulamento do

seguintes operações: (...) LXXX - saída interna de embriões, sêmen congelado ou resfriado, ovos férteis, gerinos,
alevinos e pintos de um dia, e saída para outros Estados de embrião e sêmen, congelado ou resfriado, de bovinos (...)”
(destacado). Disponível em: http://www.sefaz.ce.gov.br/Content/aplicacao/internet/Legislacao_Download/gerados
/legislacao_2011.asp. Acesso em 25 jan. 2018. Por fim, apesar das manifestações pelo STF, não é usual os Estados da
Federação internalizarem os conteúdos dos convênios por lei ordinária, salvo raras exceções. Assim, o procedimento
de enunciação para a concessão de benefícios fiscais em sede de ICMS ainda se dá no modo tradicional: deliberação
dos Estado no CONFAZ, ratificação expressa ou tácita do instrumento e inserção do seu conteúdo nos decretos
regulamentares do ICMS. A exceção a esse procedimento convencional e aprovando leis ordinárias estaduais seria
observável no Estado do Rio Grande do Sul e no Distrito Federal. Registre-se, desde já, a defesa que se faz de que,
pragmaticamente, é absolutamente inviável postular-se a necessidade de lei ordinária estadual, a despeito de toda a
autoridade argumentativa de quem defende o contrário. E isso porque cada Assembleia Legislativa tem um rito que
lhe é peculiar e questões políticas profundas podem acabar se imiscuindo nestas discussões (o que é saudável), mas
inviabilizar a dinâmica do imposto. Imagine-se que um convênio celebrado no CONFAZ dispare 27 processos
legislativos distintos, a serem finalizados em datas absolutamente diversas e, ainda mais, dado o respeito ao princípio
democrático, os parlamentares venham a promover alterações, ainda que mínimas, no conteúdo material do benefício
a ser concedido. Seria um verdadeiro disparate a pretensão de harmonização dessas legislações. Dessa forma, o desenho
da Constituição de 1967 é mais coerente com um modelo que prestigia o caráter nacional do imposto, respeitando a
legalidade a partir do reconhecimento dos requisitos insertos na Lei Complementar nº 24, de 1975. Se esta lei, frente
às disposições da CF/88, não se revela mais adequada, defende-se que a mesma seja urgentemente alterada, como já
foi proposto pela Comissão de Especial Externa do Senado Federal criada pela RQS nº 25, de 2012, com a finalidade
de analisar e propor soluções para questões relacionadas ao sistema federativo (CARVALHO, MARTINS, 2014, pp.
99-195)
163
Estes animais referem-se apenas aos filhotes de galinhas. Estas representam apenas um, dentre os vários tipos de
aves cujas operações estão acobertadas pelo Convênio ICMS nº 100/97.
164
Decreto do Estado do Ceará nº 24. 569, de 1997: “Art. 6º - Ficam isentas do ICMS, sem prejuízo de outras hipóteses
previstas na legislação tributária estadual, as seguintes operações: (...) LXXX - saída interna de embriões, sêmen
congelado ou resfriado, ovos férteis, gerinos, alevinos e pintos de um dia, e saída para outros Estados de embrião e
sêmen, congelado ou resfriado, de bovinos (...);”. Disponível em: http://www.sefaz.ce.gov.br/Content/
aplicacao/internet/Legislacao_Download/gerados/legislacao_2011.asp. Acesso em 08 fev. 2018.
122

ICMS restringiu o conteúdo do convênio celebrado no âmbito do CONFAZ. Nessa medida, a LC


nº 24, de 1975, não traz qualquer enunciado que proporcione solução a problemas desse jaez e a
doutrina e a jurisprudência são praticamente inexistentes em assuntos como esses165.

(ii) O segundo problema, que emerge do modo como foi redigido o dispositivo benéfico
do ICMS, relaciona-se à especificidade do bem a ser objeto de operação de circulação, esbarrando
na aplicação do inciso II, art. 111, do CTN: apesar de diminuta no tamanho, como o aplicador do
Direito, no caso, a autoridade fiscal, pode ter certeza de que se trata de operação de circulação de
uma ave de apenas um dia de vida? Como diferenciá-lo de uma ave que já conte com dois ou mais
dias de vida? Restaria a essa autoridade o dever de exigir um documento auxiliar comprobatório
da idade da ave para fins de concessão do benefício fiscal?166

Ademais, por conta do princípio da não diferenciação tributária entre bens e serviços em
razão de sua procedência ou destino, que prestigia a ideia de igualdade tributária (COSTA, 2014,
p. 98), como sustentar essa “interpretação literal” do Convênio ICMS nº 100/97, como pretende o
inciso II, art. 111, CTN, dado que a saída de aves do Estado do Rio Grande do Sul com destino ao
Estado do Pará jamais gozaria de tal redução de base de cálculo, tendo em conta que o transporte
rodoviário demoraria, certamente, mais de uma semana e as supostas aves já teriam mais de um
dia de vida? Casos que se revelam cômicos, se não expressassem as distorções de uma interpretação
literal.

Com isso, dado o uso semântico e pragmático da dicção “pinto de um dia”, poder-se-ia
interpretar a expressão fora do caráter estritamente literal-cronológico e atrelá-lo muito mais a

165
Logicamente, por conta do objetivo desta tese, não haveria a possbilidade de aprofundar esse ponto, que tem
conexão com o tema do ICMS e o seu caráter nacional. Ao mesmo tempo, essa temática carece da exploração de
conteúdos complexos estabelecidos na CF, tais como o desenho do pacto federativo, os limites para a outorga de
competência aos Estados e ao DF em sede de ICMS e o papel da lei complementar para dirimir conflitos de
competência.
166
Conta-se um caso jocoso, ocorrido na fiscalização de trânsito de mercadorias realizada pela Secretaria da Fazenda
do Estado do Ceará, que um auditor teria autuado um determinado contribuinte, que não recolher o ICMS na operação
de circulação de aves (pintos), sob o argumento de que eles não tinham “um dia” de vida. Como se defende aqui, a
literalidade dessa expressão traz dificuldades inafastáveis, pois a limitação a um dia de vida da ave não significa que
aquela que possua dois ou três dias de vida não venha a fazer parte de operações de circulação cuja isenção é
reconhecida. Não! Diferentemente disso, presume o legislador que o benefício fiscal seria dado à ave ainda pequena,
que passará pelo processo de engorda para posterior comercialização, dado o desvalor de uma ave de um dia tanto para
a alimentação quanto para a produção de ovos, por exemplo.
123

aspectos dimensionais exibidos pelo animal, o qual representa a primeira fase após o período de
incubação dos ovos. Em consulta a atos normativos de caráter técnico, exarados pelo Ministério da
Agricultura, Pecuária e Abastecimento, que pudessem definir esse as características desse animal,
nada foi encontrado.

Com isso, como fundamentar um Auto de Infração por desconformidade de requisito


cronológico desta mercadoria peculiar? E caso o auto fosse lavrado com base na suposta
desconformidade do tamanho do animal com o aspecto cronológico, quais as provas que a defesa
deveria apresentar?

Nesse ponto, esbarra-se em dois problemas que são característicos do “passado que ainda
se faz presente”: apesar de deverem ser redigidas em linguagem técnica, muitas vezes as legislações
trazem expressões do senso comum sem que se lhe tenha previamente delimitado o conteúdo, e
criando situações de soluções difíceis no caso concreto, ainda mais quando o próprio CTN
determina que a outorga de isenções deve ser interpretada literalmente (art. 111, inciso II), como
se isso fosse suficiente para esgotar a dúvida.

Como se viu, apesar de o “pinto de um dia” parecer apontar para um bem objetivamente
identificável (isto é, tratar-se de um galináceo que há 24 horas quebrou a casca do ovo), na verdade,
ao defrontar caracteres da teleologia da norma, poder-se-ia apontar que a cronologia não fosse tão
importante, ante a finalidade implícita da norma, que é justamente conceder tratamento
diferenciado e favorecido às operações com insumos agropecuários167. Dessa maneira, em vez de
focar estritamente no tempo de vida da ave, deve-se questionar acerca da atividade econômica
daquele que a adquire, partilhando, assim, o sentido construído (e não meramente literal, extraído),
do Convênio ICMS nº 100/97.

167
Com isso, as operações de saída desses animais para um petshop, por exemplo, não goza do mesmo benefício.
Conforme ementa do Convênio ICMS nº 100, de 1997, este só se aplica nas saídas dos insumos agropecuários que
indica.
124

5.4.1.2 Convênio ICMS nº 100, de 1997, e a inviabilidade de fundamentação constitucional dos


benefícios fiscais de ICMS para os agrotóxicos

A segunda parte da abordagem afeta ao Convênio ICMS nº 100, de 1997, possui um foco
na fundamentação constitucional de tal ato normativo, ante valores eleitos com o texto promulgado
em 1988, como o art. 225. Em um sentido formal, esse convênio teria sido aprovado nos termos
exigidos no art. 155, § 2º, inciso XII, alínea “g”, da CF/88, isto é, encontra-se em consonância com
a LC nº 24, de 1975. Ademais, admita-se que todas as unidades federativas com as competências
para instituir o ICMS tenham internalizado o conteúdo desse documento celebrado no âmbito do
CONFAZ por meio de leis ordinárias estaduais e distrital168.

Ainda com tudo isso, não há que se promover um diálogo hermenêutico (e não hermético)
entre o sistema tributário nacional e o restante do conteúdo constitucional? Nesse ponto, não se
deve descurar a ideia de que a CF/88 foi pródiga de valores transversais e a pergunta já proposta é:
como (e em que medida) outros valores constitucionais podem se imiscuir no desenvolvimento das
competências tributárias e, mais ainda, em que medida incorporá-los à Hermenêutica Jurídico-
Tributária?

Nesse ponto, insere-se no amplo universo dos princípios, que tanto influenciam na
elaboração de uma teoria hermenêutica, e que parece situar-se na contramão da dinâmica do
“passado que ainda se faz presente”, acostumada que está a tratar dos assuntos com uma pretensão
objetiva, que culmina em uma superficialidade.

Desse modo, não se pode desconsiderar o fato de que existem fundados argumentos a
favor do reconhecimento, pelo STF, da inconstitucionalidade de medida concessiva de benefício
fiscal para operações envolvendo agrotóxicos, dada a afronta dessa medida à saúde pública e ao
meio ambiente (BELCHIOR; PACOBAHYBA, 2011). Não se pode deixar de citar a importância
do julgamento da ADI nº 5.553, proposta pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), contra as

168
Desde o ICM, a Emenda Constitucional nº 1, de 1969, já determinava que “as isenções do imposto sobre operações
relativas a circulação de mercadorias serão concedidas ou revogadas nos termos fixados em convênios, celebrados e
ratificados pelos Estados, segundo o disposto em lei complementar”. Tal previsão fez-se absolutamente necessária em
virtude da peculiaridade do imposto neste País: trata-se de tributo “adaptado”, o qual é federal por natureza, embora
tenha sido atribuído à competência legislativa dos Estados-membros e do Distrito Federal, por motivos históricos ou
critérios de historicidade (BORGES, 1975, p. 167).
125

Cláusulas Primeira e Terceira há pouco citadas, contudo, especificamente no que respeita à


concessão de benefícios fiscais a agrotóxicos169.

Com isso, um dos núcleos propostos nesta ADI concentra-se na ideia de que o art. 225 da
CF/88, bem como o direito fundamental à saúde, restariam afrontados com um tratamento mais
benéfico para produtos que, conforme comprovação científica, causam malefícios à saúde e ao
meio ambiente. Isso demonstra que, antes mesmo de se buscar a estrita legislação tributária, hão
de ser observados os valores170, constantes na implicitude do texto constitucional.

Assim, resta inviabilizada a sustentação de uma interpretação jurídico-tributária que se


aferra estritamente no Capítulo IV (“Interpretação e integração da legislação tributária”) do CTN,
como que a representar um insulamento dessa disciplina frente a todo o sistema normativo. Nessa
medida, mais orienta o processo hermenêutico o sentido fixado pelo art. 1º do CPC, para o processo
civil, mas que há de se espraiar por qualquer parcela do ordenamento: o sistema tributário nacional
há de ser interpretado conforme os valores e as normas fundamentais estabelecidos na Constituição
da República Federativa do Brasil, observando-se as disposições do CTN, e não no sentido inverso.

5.4.2 A Dimensão do Signo “Leite” para o Reconhecimento do Benefício Fiscal aos Produtos
Previstos nas Cestas Básicas dos Estados e do DF, nos Termos das Legislações Estaduais e do
Convênio ICMS nº 128, de 1994

Outro exemplo, que grava ainda mais fortemente as legislações estaduais do ICMS está
atrelado aos produtos inseridos na chamada “cesta básica”, e que perfariam gêneros de primeira
necessidade da alimentação humana. Dentre um dos itens que foi alvo de muitas alterações
semânticas e pragmáticas nos últimos anos, e que se encontra em diversas legislações estaduais do

169
Este signo compreende os seguintes produtos, constantes do inciso I, da Cláusula Primeira, do Convênio ICMS nº
100/97: “inseticidas, fungicidas, formicidas, herbicidas, parasiticidas, germicidas, acaricidas, nematicidas, raticidas,
desfolhantes, dessecantes, espalhantes, adesivos, estimuladores e inibidores de crescimento (reguladores)”.
170
Mais uma vez, ao tratar dos valores, não se poderia deixar de citar a lição de Paulo de Barros Carvalho (2013, p.
176), mais uma vez fazendo alusão à intuição e, para quem, “não é excessivo, porém, falar na inexistência,
propriamente dita, dos valores. Seu existir consistiria apenas no ato psicológico de valorar, segundo o qual, atribuímos
a objetos, aqui considerados em toda a sua plenitude semântica, qualidades positivas ou negativas. E o que nos dá
acesso ao reino dos valores é a intuição emocional, não a sensível nem a intelectual. Tomados, porém,
isoladamente, tais atributos assumiriam a feição de objetos metafísicos: a justiça em si, a beleza em si, etc. Enfim, os
valores não são, mas valem. Dito de outra maneira, os valores seriam aquelas entidades cujo modo específico de
ser é o valer. Eles são na medida em que valem.” (destacado).
126

ICMS171 172 173


, inserido como produto da “cesta básica”, cite-se o exemplo do leite. A previsão
para o tratamento diferenciado em termos tributários proporciona a aplicação de uma carga
tributária reduzida mínima de 7% (sete por cento), conforme disposto na Cláusula Primeira do
Convênio ICMS nº 128, de 1994. Já no § 2º desta mesma cláusula, resta estabelecido que a
disciplina para fruição desse benefício será disposta por parte de cada um dos entes federados.

Nesse ponto, à época do Convênio ICMS nº 128, de 1994 (há mais de duas décadas,
portanto), e com as legislações estaduais que aperfeiçoaram a matéria, talvez não se tivesse a
dimensão que o vocábulo “leite” teria na atualidade. Isso porque a multiplicidade de produtos
enquadráveis pelo senso comum como “leite” desborda de qualquer conteúdo imaginado. Assim,
são produzidos em escala industrial diversos tipos de itens que o mercado enquadra como leite.

Desde o tradicional leite de vaca, que passa a se apresentar com ou sem lactose, com ou
sem gordura, com ou sem vitaminas, com ou sem ferro, em pó ou líquido, seguem-se leite de outras
espécies de animais (como cabra e búfala) e, mais ainda, produtos que supostamente se enquadram

171
No Estado do Ceará, o benefício fiscal relativo ao Convênio ICMS nº 128, de 1994, está disciplinado no art. 43 da
Lei nº 12.670, de 1996: “Art. 43. Nas operações internas e de importação com os produtos da cesta básica, a base de
cálculo do Imposto sobre Operações relativas à Circulação de Mercadorias e sobre Prestações de Serviços de
Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação - ICMS, será reduzida em: I – 61,11% (sessenta e um
vírgula onze por cento) para os seguintes produtos: (...) j) leite in natura e pasteurizado do tipo longa vida;(...)”.
Disponível em: http://www.sefaz.ce.gov.br/Content/aplicacao/internet/Legislacao_Download/gerados/legislacao
_2011.asp. Acesso em 08 fev. 2018.
172
Longe de qualquer dúvida, o princípio da legalidade encontra-se, como sempre, na ribalta de qualquer discussão
mais séria sobre incidência tributária e benefícios fiscais. Tal polêmica foi sentida por Lucas Galvão de Britto (2018),
ao tratar especificamente do papel das normas exaradas pelas agências reguladoras brasileiras e que causam severos
impactos no que se compreende como o “núcleo duro” da legalidade tributária. Dadas as pretensões deste trabalho,
não há possibilidade de maiores aprofundamentos sobre a temática. Contudo, com Ricardo Lobo Torres (2005, pp.
411-412), é possível identificar novas nuances nos contornos da legalidade tributária, no Estado Democrático de
Direito, e que representam mudança substancial relativamente à concepção vigente no Estado Social. Nesse sentido,
relata o Jurista que “no direito tributário é visível a nova abordagem constitucional da relação jurídica tributária,
que continua a se definir como obrigação ex lege, mas que aparece totalmente vinculada pelos direitos
fundamentais. [...] O princípio da legalidade tributária, no Estado da Sociedade de Riscos e na economia globalizada,
passa a exibir novo contorno: a) sujeita-se à pluralidade de fontes, inclusive internacionais (FMI, Banco Mundial, etc.);
b) admite a deslegalização; c) convive com a judicialização da política; d) almeja a simplificação legislativa”. No que
pertine à admissão da deslegalização, merece destaque a construção da chamada “legalidade suficiente”, nos julgados
do STF relativos a taxas e contribuições sociais (Res nºs 704.292/PR e 838.284/SC; ADI nº 4697).
173
No Estado de São Paulo, o assunto consta disciplinado no art. 3º, inciso II, do Anexo II do RICMS/SP (Decreto nº
45.490, de 2000), com a seguinte redação: “Anexo II, Art. 3º (CESTA BÁSICA) - Fica reduzida a base de cálculo do
imposto incidente nas operações internas com os produtos a seguir indicados, de forma que a carga tributária resulte
no percentual de 7% (sete por cento) (Convênio ICMS-128/94, cláusula primeira): (...) II – leite em pó; (...)”. Assim,
diferentemente do Estado do Ceará, que optou pelas formas in natura e pasteurizado do tipo longa vida, que se
apresentam no estado líquido, São Paulo elegeu para o benefício fiscal a forma sólida do produto, sob a apresentação
em pó.
127

como leite e que são advindos de itens de origem vegetal, tais como o arroz, o coco, a soja e o
amendoim. Ademais, longe de consumirem propriamente o “leite”174, as crianças alimentam-se de
“fórmulas infantis” ou de “leite modificado próprio para a alimentação infantil” que, visualmente
se assemelham ao que se teria por senso comum como sendo leite, mas que, em suas composições,
há a fuga do sentido tradicional neste termo.

Nesse ponto, em que culminaria a utilização de uma interpretação literal, nos termos do
inciso II, art. 111, do CTN, em uma consulta tributária relativa ao ICMS, que indagasse sobre a
aplicação de carga tributária menos gravosa, aos diversos itens acima citados? Ao ser questionada,
a Consultoria Tributária do Estado de São Paulo175 acentuou que o “[...] leite modificado próprio
para a alimentação infantil” não estaria enquadrado na redução de base de cálculo prevista em seu
RICMS, isto é, tal “leite” não seria “leite”.

E o argumento que embasa essa tese de que, em consulta à lista da Nomenclatura Brasileira
de Mercadorias – Sistema Harmonizado176, o que deveria estar enquadrado para fins de gozo do
benefício seria o constante do Capítulo 4 da TEC (leite e lacticínios; ovos de aves; mel natural;
produtos comestíveis de origem animal, não especificados nem compreendidos noutros capítulos),
enquanto o produto objeto da consulta estaria enquadrado no Capítulo 19 (Preparações à base de
cereais, farinhas, amidos, féculas ou leite; produtos de pastelaria).

Ratifica a Consultoria Tributária, ainda que diante de uma realidade mercadológica que
tornou os limites177 semânticos do termo “leite” bem mais complexos, que o benefício fiscal

174
Que seria a realidade nos idos de 1994, quando da edição do Convênio ICMS nº 128.
175
Decisão Normativa CAT-02, de 19 de março de 2009. Disponível em: http://info.fazenda
.sp.gov.br/NXT/gateway.dll?f=templates&fn=default.htm&vid=sefaz_tributaria:vtribut. Acesso em 26 jan. 2018.
176
Na atualidade, a NBM/SH foi substituída pela adoção da Nomenclatura Comum do Mercosul, constante da Tarifa
Externa Comum (TEC), a qual se encontra disponível no site do Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços.
Assim, longe de representar um estudo técnico específico acerca da matéria, a TEC é um grande catálogo de produtos,
realizado com base na discriminação em seções. No caso do leite, este se encontra previsto na Seção I “Animais vivos
e produtos de origem animal”, Capítulo 4 “Leite e lacticínios; ovos de aves; mel natural; produtos comestíveis de
origem animal, não especificados nem compreendidos noutros Capítulos”.
177
Ao tratar especificamente da noção de limites, especialmente quando se tem a utilização da norma tributária com
funação extrafiscal, como é o caso em exame, deve-se citar Diego Bomfim (2015, p. 3) para quem “a descrição destes
limites, particulares para as normas com finalidade fiscal ou extrafiscal, só pode ser corretamente realizada quando o
intérprete passa a empreender uma análise funcional do direito positivo, quando novas ferramentas de interpretação
são ofertadas”. E tal ideia se vincula, umbilicalmente, a Norberto Bobbio (2007, pp. 14), em sua “função promocional
do direito” cuja ideia se desvincula do “ordenamento com função protetivo-repressiva” e se alia à “função
promocional”, diferentemente de Kelsen, que desenvolve uma teoria estrutural do direito (LOSANO, 2007, p. XXXIX)
128

deveria ser concedido apenas aos leites de origem animal178. Há de se fazer a ressalva, apenas, que
a mesma literalidade que é eleita neste enquadramento daria azo ao reconhecimento dos produtos
enquadrados na TEC sob a NCM nº 1901.10.10, na qual se enquadra literalmente o “leite
modificado”.

Nesse ponto, para uma interpretação que se coadune ao “passado que ainda se faz presente”,
o foco especificamente na determinação de uma interpretação literal, nos termos do art. 111, inciso
II, do CTN, leva a que as administrações tributárias se manifestem como acima indicado. Uma
pergunta anterior a toda essa discussão, contudo, merece ser realizada e que talvez venha a guardar
conexão com valores outros a serem tomados em conta ao se promover a Hermenêutica Jurídico-
Tributária: o que representa uma cesta básica? Qual a característica dos itens que a devem compor?

Questões como essa se alinham ao “futuro que já se faz presente” e oferecem respostas
anteriores ao próprio engajamento na de construção do sentido da norma, pela literalidade, dada a
pobreza desse “método” no percurso gerador de sentido. Nessa medida, para não ser simplória, há
de se admitir a complexidade de problemas dessa dimensão, o que não pode ser abafado
simplesmente pela retórica.

Partindo-se do senso comum, a “cesta básica” conteria todos os itens essenciais às


necessidades alimentares de uma família típica, coadunando-se com o princípio da seletividade179,
que também é um dos valores norteadores do ICMS. Em assim sendo, apesar de se defender com
certa facilidade o entendimento esposado pelos fiscos citados há pouco, não há como não se curvar
diante das peculiaridades relativas à alimentação que vem sendo apresentadas por uma parcela
significativa da população, e para a qual o leite é um item indispensável em sua alimentação.

178
Na parte final da Decisão Normativa CAT-02, de 19 de março de 2009, tem-se a seguinte definição: “[...] deve ser
entendido como leite em pó o produto, de origem animal, conhecido pelo público em geral simplesmente como leite
em pó, adquirido nos supermercados e congêneres”. Tal ideia, nesse ponto, distancia-se do sentido técnico pretendido
e resultante da delimitação da TEC, e volta-se ao senso comum, ao dispor acerca da forma como o produto é
reconhecido “pelo público em geral”. Nesse ponto, perguntar-se: para o senso comum, o “leite” de soja em pó, não
seria “leite em pó”? Para este trabalho, acredita-se que sim.
179
Interessante é observar que, na Tabela de Incidência do IPI (TIPI), todo o Capítulo 4 tem tributação por alíquota
“zero” ou é enquadrado como não tributado. Quanto à NCM º 1901.10.10, foi-lhe conferida alíquota “zero”.
129

Assim, o “leite” de soja180 (ainda que em pó), tem sido a alternativa para alimentação de
pessoas, especialmente, crianças, independentemente da classe social a que pertençam, que
padecem de graves intolerâncias ou alergias à lactose. Diante dessa realidade, não há como se
sustentar, com os argumentos há instantes indicados, que o benefício fiscal não poderia abarcar
esse produto específico, bem como as novas “fórmulas infantis” que praticamente substituíram os
leites que tradicionalmente eram ingeridos pelos bebês. Nada é simples, porém... e a literalidade,
ainda mais, não fornece respostas satisfatórias e definitivas.

E não porque se trate de alargar o conteúdo mais benéfico em virtude da utilização de um


método finalístico: diferentemente disso, a definição jurídica para esse caso oscilaria “[...] entre o
aspecto onomasiológico da palavra, isto é, o uso corrente da palavra para a designação do fato, e o
aspecto semasiológico, isto é, a sua significação normativa.” (FERRAZ JR, 2014b, p. 92). A se
sustentar essa interpretação, melhor seria ao legislador estadual ter inserido dispositivo mais
específico, no qual ficasse patente, por exemplo, que a redução de base de cálculo haveria de ser
aplicada apenas aos “leites em pó, de origem animal”181, dado que não se sabe se, ao compor o
dispositivo normativo, partiu-se do elenco de bens disponíveis na Tabela da Tarifa Externa Comum
(TEC), das normas técnicas constantes do Ministério da Agricultura (que se diga de passagem, não
são assertivas quanto à matéria) ou mesmo, do sentido adotado pelo senso comum.

Assim, questões desse jaez encontram sérias dificuldades de serem respondidas caso se
adote um panorama interpretativo que desconsidere o sistema normativo ou que pretenda se
encastelar na literalidade. E isso porque

A missão do exegeta dos textos jurídico-positivos, ainda que possa parecer


facilitada pela eventual coincidência da mensagem prescritiva com a sequência
das fórmulas gráficasutilizadas pelo legislador (no direito escrito), oferece
ingentes dificuldades se a proposta for de um exame mais sério e atilado. E, sendo
o direio um objeto da cultura, invariavelmente penetrado de valores, teremos, de
um lado, as estimativas, sempre cambiantes em função da ideologia de que
interpreta; de outro, os intrincados problemas que cercam a metalinguagem,
também inçada de dúvidas sintáticas e de problemas de ordem semântica e
pragmática. (CARVALHO, 2013a, p. 187).

180
Comercialmente, adota o nome de “Alimento com proteína isolada da soja para dietas com restrição de lactose”.
Vide rótulo do produto SupraSoy, industrializado e distribuído por Joaquim Oliveira S/A Participações (JOSAPAR).
181
Tal redação seria especialmente adequada ao Estado de São Paulo, o qual prescreveu simplesmente “leite em pó”.
130

E tal qual descrito acima, o exemplo que se trouxe à tona encaixa à perfeição na proposta
do autor retrotranscrita, sem soluções suficientes por uma óptica tradicional. Por fim, se intenta
apontar a complexidade que envolve qualquer processo de interpretação, independentemente dos
envolvidos neste processo defenderem a simplicidade dele. Como se sabe, lidar com o dado da
palavra requer bastante cuidado, não se podendo relegá-lo a tarefa simples, de mera consulta às
obras lexicográficas – glossário e dicionário.

5.4.3. Pausa Breve Para Outro Tributo Estadual: A Incidência Do Ipva Sobre Aeronaves E
Embarcações E As Conveniências De Uma Interpretação Literal Pelo STF

Seguindo a dinâmica que pretende avaliar os riscos de adotar de uma interpretação literal,
apontar-se-á agora um caso que destoa nos outros dois mostrados anteriormente, e que guardam
conexão com a utilização do chamado método histórico para restringir o alcance dos dispositivos
constantes na CF/88. Neste caso, tem-se por patente que, apesar das leis de vários Estados da
Federação estabelecerem hipóteses de incidência do Imposto sobre a Propriedade de Veículos
Automotores (IPVA) para embarcações e aeronaves, o STF julgou tais dispositivos
inconstitucionais, ainda que reconhecesse que a própria literalidade poderia dar azo ao cabimento
dessa incidência.

De pronto, algumas dificuldades são notadas com os primeiros passos para a identificação
desse importante tributo182 de competência estadual. Uma das características mais evidentes do
IPVA, na Constituição Federal de 1988 (CF/88), é que se dispõe de pouco “texto”183 constitucional
para se iniciar a construção, seja no fluxo de interpretação decisional, ou mesmo relativa à
interpretação doutrinária, o que, ao revés, poderia ser considerado uma facilidade. É interessante
observar que na redação original da CF/88184, o conteúdo prescritivo já se revelava “enxuto”, como

182
Trata-se, na maior parte dos Estados, da segunda maior fonte de arrecadação tributária de que dispõem os entes
federativos. Os dados relativos às fontes de arrecadação tributária de todas as unidades da Federação estão disponíveis
no site do Conselho Nacional de Política Fazendária (CONFAZ). Disponível em: www.confaz.fazenda.gov.br.
183
Toda a disciplina constitucional relativa ao IPVA encontra-se no seguinte excerto normativo: “Art. 155. Compete
aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre: (...) III - propriedade de veículos automotores. (...) § 6º O
imposto previsto no inciso III: I - terá alíquotas mínimas fixadas pelo Senado Federal; II - poderá ter alíquotas
diferenciadas em função do tipo e utilização”.
184
CF/88 (redação original): “Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir: I - impostos sobre: (...) c)
propriedade de veículos automotores”. Disponível em: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/consti /1988/constituicao-
1988-5-outubro-1988-322142-publicacaooriginal-1-pl.html. Acesso em 29 mar. 17.
131

que a apontar uma provável “singeleza” do imposto a ser instituído pelos Estados e pelo Distrito
Federal.

Essa característica, relativamente à “singeleza”, que em si não representa uma dificuldade,


também não se reveste de caráter absoluto: isso porque, lidar com o dado da linguagem culmina na
percepção da multiplicidade de conteúdos distintos que podem ser hauridos de apenas um signo, o
que revela a necessidade dos diplomas infraconstitucionais que desvencilhem mais características
conotativas da competência plasmada na Constituição. Para uma interpretação que se baseia,
contudo, exclusivamente no modo como discorre o CTN, não haveria maiores motivos para
elucubrações.

Assim, a dificuldade começa a se mostrar mais relevante na medida em que se verifica um


vácuo normativo, pela ausência de lei complementar relativa à matéria, a qual pudesse atender às
expectativas de reduzir os conflitos de competência em sede deste tributo, nomeadamente ao se
verificar a atividade legiferante dos 26 Estados e do DF, ao editarem as leis ordinárias, no exercício
da competência.

Com isso, a partir de todas as regras-matrizes de incidência185 do IPVA que são edificadas
pelos comandos normativos estaduais, verificou-se a existência de conflitos na pragmática
jurídica186. Isso porque – seja reiterado – o argumento da pseudosingeleza, apesar de se poder
construir regras-matrizes que venham a ser textualmente idênticas, o conteúdo de cada um dos
signos pode ser semanticamente diferente, ensejando aplicações no “mundo real” particularmente
dissonantes.

185
Nada mais representa do que um esquema lógico-formal e que materializa a chamada “norma tributária em sentido
estrito”, a qual prescreve a incidência. Nesse ponto, vale consultar a Regra-Matriz de Incidência Tributária (RMIT) do
IPVA estruturada por Luísa Cristina Miranda Carneiro (2016), no subcapítulo 3.4 da obra “IPVA: teoria, prática e
questões polêmicas”. Nessa medida, defende a autora (2016, p. 121): “Já foi objeto de discussão se a expressão veículo
automotor abrangeria as embarcações e aeronaves. Em sendo, conceitualmente, embarcações e aeronaves veículos
(destinados ao transporte de pessoas ou bens) automotores (dotados de propulsão própria), verifica-se que eles se
amoldam ao critério material do imposto em questão. Isso porque não se encontra, na Constituição, qualquer resttição
com relação ao meio utilizado pelo veículo para sua locomoção (se terrestre, aéreo ou marítimo, por exemplo)”.
186
Dentre todos os temas que poderiam ser aqui trazidos, e que poderiam ser apontados como tendentes a identificar
uma verdadeira “guerra fiscal” entre os Estados, relativamente ao IPVA, são dignos de destaque os temas com
repercussão geral reconhecida pelo STF (sob os nºs 685 e 708), os quais afirmam a tese da existência de conflitos de
competências entre os Estados e reforçam, ainda mais, a necessidade de edição de lei complementar para o imposto.
132

E um dos primeiros problemas enfrentados na elaboração do subsistema relativo ao IPVA


revela-se no próprio desenho de sua materialidade. Tal ocorre porque se esbarra em duas
expressões que não foram objeto de qualquer limitação por parte do Texto Constitucional, tendo
em conta que a competência foi simplesmente para instituir “imposto sobre a propriedade de
veículo automotor”. O que se deve entender, pois, por “propriedade”187 e, ainda mais, por “veículo
automotor”?

Para tal pergunta, o sistema jurídico tributário oferece uma resposta que vai além do caráter
disciplinar pelo qual normalmente se enxerga o Direito. Isso porque, nesse ponto, o Direito
Tributário, ao se utilizar de institutos, conceitos e formas de direito privado, deve respeitar-lhes a
definição, o conteúdo e o alcance, em um movimento hermenêutico que preserve, maiormente, as
definições e limitações das competências tributárias estabelecidas, antes de tudo, pela própria
Constituição Federal (art. 110, CTN). E daí o motivo por se repetir em um trabalho doutrinário
algo que parece não reverberar mais nas altas cortes do Brasil.

Isso porque, em diversas oportunidades (RE nº 134.509/AM, RE nº 255.111/SP, RE nº


397.550/PR, RE nº 128.734/AM, RE nº 128.735/AM, AI nº 488.988/SP, AI nº 526.452/SP, AI nº
527.054/SP, AI nº 500.049/SP, RE nº 379.572/RJ, AI nº 699.802188 e, mais recentemente, pendente
de julgamento, a ADI nº 5654, contra a lei do IPVA do Estado do Ceará) (MORAES; OLIVEIRA,
2014, pp. 76-79), o STF, ao ser instado a se manifestar acerca da incidência do IPVA, tem revelado
a “pacificação” do tema em torno da acepção de que na expressão “veículos automotores” estão
compreendidos apenas os veículos terrestres.

187
No que tange ao conceito de propriedade, não é sobre ele repousam as maiores dissonâncias acerca do IPVA. Pode-
se afirmar, com segurança, que no tocante à “internalização” ao Direito Tributário do conceito de propriedade, a
doutrina tributarista revelou-se com grande profusão, especialmente por se tratar de signo existente no Imposto sobre
a Propriedade Territorial Rural (ITR) e no Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana (IPTU). Não se
pode olvidar, contudo, que houve uma movimentação intensa doutrinária e jurisprudencial por conta de sujeição
passiva dos bancos, relativamente ao IPVA, no caso dos contratos de alienação fiduciária de automóveis, o que é
bastante comum no País. Para os fins deste trabalho, o foco será direcionado à discussão do conteúdo e alcance da
expressão “veículos automotores”, mais do que, propriamente, à “propriedade”.
188
O trabalho de catalogação dessas decisões está contido no capítulo 3 - “Jurisprudência”, do artigo intitulado “A
controvérsia acerca da incidência do Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores (IPVA) sobre embarcações
e aeronaves”. (MORAES; OLIVEIRA, 2014).
133

O fundamento para tal restrição, no entanto, não reside na integridade textual da CF/88,
baseando-se em argumentos de cunho histórico, sem suporte documental mais abrangente 189 e,
ainda mais, deconsiderando que uma suposta “interpretação histórica”, não é interpretação
propriamente dita190 e que, mais acertadamente faria o STF ao invocar o método interpretativo
histórico-evolutivo, que permitiria realizar a interpretação decisional com suporte na inteireza dos
signos constantes dos documentos legislados. Daí a insistência em se discutir, ainda mais uma vez,
esse aspecto da materialidade do IPVA.

Vale a transcrição de excerto do voto no ministro Celso de Mello, no julgamento do Recurso


Extraordinário nº 574.706, relativo à inclusão do ICMS na base de cálculo das contribuições para
o PIS/PASEP e COFINS, e que merece ressonância sempre que vêm à tona matérias tributárias,
em virtude do vigor ainda manifestado pelo CTN e que deve ser suavizado ante o Texto
Constitucional. Nesse ponto, como a questão aqui se inicia pelo âmbito competencial tributário
conferido aos Estados e ao DF, o Supremo Tribunal Federal tem se manifestado no sentido de que
deve ser preservado o que denominou de “império do Direito Privado”, conforme se depreende do
excerto do voto do ministro Celso de Mello:

Veja-se, pois, que, para efeito de definição e identificação do conteúdo e alcance


de institutos, conceitos e formas de direito privado, o Código Tributário
Nacional, em seu art. 110, “faz prevalecer o império do Direito Privado – Civil
ou Comercial (...)” (ALIOMAR BALEEIRO, “Direito Tributário Brasileiro”,
p. 687, item n. 2, atualizada pela Professora MISABEL ABREU MACHADO
DERZI, 11ª ed., 1999, Forense – grifei), razão pela qual esta Suprema Corte,
para fins jurídico-tributários, não pode recusar a definição que aos institutos é
dada pelo direito privado, sem que isso envolva interpretação da Constituição
conforme as leis, sob pena de prestigiar-se, no tema, a interpretação econômica
do direito tributário, em detrimento do postulado da tipicidade, que representa,
no contexto de nosso sistema normativo, projeção natural e necessária do
princípio constitucional da reserva de lei em sentido formal, consoante adverte
autorizado magistério doutrinário. (GILBERTO DE ULHÔA CANTO, “in”
Caderno de Pesquisas Tributárias nº 13/493, 1989, Resenha Tributária;
GABRIEL LACERDA TROIANELLI, “O ISS sobre a Locação de Bens

189
No voto do ministro Cezar Peluso, no RE nº 379.572/RJ, aponta-se apenas que o IPVA teria sido “criado em
substituição à Taxa Rodoviária Única (T.R.U.), como demonstram os trabalhos preparatórios e justificações do
Congresso Nacional”; contudo, nenhum desses documentos é referenciado nos votos.
190
Defende-se aqui é que os julgados do STF parecem ter uma conotação muito maior de História do Direito do que
de Direito Positivo.
134

Móveis”, “in” Revista Dialética de Direito Tributário, vol. 28/7-11, 8-9.


(destacado no original)

Ora, voltando-se às perguntas propostas há pouco, particularmente à segunda delas


(contudo, o que se deve entender por “propriedade” e, ainda mais, por “veículo automotor”?), tal
não parece ter sido o entendimento adotado pela egrégia Corte nos diversos julgamentos acima
referenciados, relativos ao IPVA. Isso porque, antes mesmo de respeitar os signos contidos no
Texto Constitucional, o STF se prendeu a argumentos que envolviam aspectos históricos informais,
desconectando-se do universo mínimo que há de ser respeitado pelo intérprete decisional, e que se
relaciona ao próprio texto.

Nesse sentido, é interessante observar que o ministro Sepúlveda Pertence, em seu voto no
RE nº 379.572/RJ191, chega a afirmar que continua “[...] convencido de que a interpretação literal,
no caso, desconhece o sistema da Constituição. O IPVA é claramente um substitutivo da velha
taxa rodoviária única. As embarcações marítimas estão sujeitas a outra disciplina, que é a federal”.
Desse modo, filia-se o julgamento a uma suposta “vontade do legislador” que teria instituído a
“velha taxa rodoviária única” e que esta mesma vontade justificaria uma hermenêutica mais estrita
do tributo que fora moldado pela CF/88.

Assim, ao afirmar que a “[...] interpretação literal desconhece o sistema da Constituição”,


está-se decidindo ao arrepio do texto, isto é, foi desmerecido o suporte material que estruturava a
ordem estabelecida, o que poderia desbordar não para uma decisão, mas uma mera escolha do
julgador192. No mesmo processo, o ministro Cezar Peluzo atenta para o “risco de interpretação
meramente literal do dispositivo”, o que parece dar azo à desconsideração textual.

Assim, a estruturação do sistema, como se defende, começa sempre desde o texto, não se
podendo alcançar os níveis superiores sem que se respeite o nível mais elementar, que é a
literalidade. Longe de se identificar a literalidade com o conteúdo de verdadeiro “método”,
entende-se que se trata da porta de acesso, da via pela qual se inicia o processo hermenêutico.

191
Vale destacar que tal processo questionava a incidência do IPVA sobre embarcações. Contudo, ao longo do
julgamento, referiu-se também às aeronaves.
192
Não se poderia deixar de apontar a importância definitiva dos limites na interpretação decisional que foram
aclarados por Lenio Streck.
135

Curiosamente, a própria doutrina, apesar de defender a interpretação sedimentada no STF,


no sentido de retirar da incidência do IPVA a propriedade das aeronaves e dos veículos marítimos,
aduz que, “[...] do ponto de vista gramatical, não resta dúvida de que as categorias dos aviões e das
embarcações aquáticas são abrangidas pelo conceito manifestado pela expressão ‘veículos
automores’”. A seguir, embasa sua rejeição à incidência por conta do que denomina de uma
interpretação “histórica” e “sistemática”, contudo, sem justificar como se sustenta o atropelamento
ao texto que o autor reconhece (FERRAZ, 2005, p. 109).

Outro destaque que merece ser realizado é que, diferentemente do que se possa entender
como “intenção do legislador”, para a qual os aspectos históricos e documentais são
determinantes193, apesar de normalmente evasivos e de difícel identificação após certo lapso194, a
interpretação constitucional se revela mais complexa, plasmada com base em mecanismos que
integrem e formulem o que se tem por sistema jurídico.

Nesse ponto, e voltando-se ao art. 110 do CTN, não há como se defender a manutenção da
integridade do texto constitucional recorrendo-se apenas ao Código de Trânsito Brasileiro (CTB,
Lei nº 9.503, de 23 de setembro de 1997), para fins de intelecção da expressão “veículos

193
Deve-se destacar, ainda, que a naturalidade na defesa de tais argumentos, como se fossem verdades que se impõem
necessariamente, ou como se se tratasse de efeitos óbvios do texto, resplandece nos julgados relativos ao IPVA. Em
outro trecho, utilizando-se de recursos retóricos que visam a aplacar as dúvidas acerca do campo de incidência do
imposto, o ministro Sepúlveda Pertence se vale de parecer do Dr. Moacir Antônio Machado da Silva, Procurador da
República, que assim se manifesta: “[...] não há dúvida de que a idéia [ideia] de circunscrever o novo imposto as
veículos de circulação terrestre, isto é, ao mesmo âmbito material de incidência da Taxa Rodoviária Única,
manifestada de forma clara e ostensiva pelo legislador constituinte derivado, transparece nitidamente do texto do
art. 23, nº III, da Constituição Federal, acrescentado pela Emenda nº 27, de 1985”. Ao se apontar, contudo, o texto do
art. 23, nº III, da Constituição Federal, acrescentado pela Emenda nº 27, de 1985, tem-se meramente mais uma
circularização que se dá na mesma questão, pois o contorno normativo volta a se cingir sobre o signo “veículo”. Merece
mais cuidado ainda ao se observar que, a fim de permitir a interpretação de texto da Constituição Federal de 1988,
utilizam-se de argumentos que poderiam ser defendidos no panorama constitucional anterior, isto é, da Emenda
Constitucional nº 1, de 1969. Relega-se, entretanto, a segundo plano a absoluta distinção estrutural entre os dois
ordenamentos constitucionais, que erigem Estados que não se confundem.
194
É interessante observar que se tem utilizado a chamada “interpretação histórica” desconectada de documentos desse
teor que comprovem a veracidade do que está sendo admitido, para fins de interpretação de textos jurídicos. À
semelhança de Schleiermacher (1999), cujo trabalho pioneiro para uma teoria geral da hermenêutica deve ser
aplaudido, os intérpretes do Direito parecem estar em busca de uma interpretação psicológica, querendo compreender
o legislador melhor do que ele se compreendia; contudo, a se considerar o Direito como linguagem, mormente sob a
forma escrita, não há como se pretender promover uma interpretação verdadeiramente histórica sem que sejam
carreados ao percurso os textos que comprovem tal intenção. Ademais, ainda que se contem com tais expedientes (tais
como atas das votações nas casas legislativas), ainda assim todo esse complexo de informações é apenas um conteúdo
dentre diversos outros. Para tanto, deve o intérprete perscrutar por todo o sistema, buscando-lhe a harmonia.
136

automotores”. Isso porque, ao se tratar da definição do conceito de “veículo automotor”, contida


no critério material do imposto, parece não restar outro caminho se não o de partir para o CTB,
olvidando-se que a amplitude conferida pela Constituição pode residir em diplomas outros.

Entretanto, ao se partir do Texto Constitucional relativo à previsão da competência


tributária, importa perquirir o âmbito da materialidade do imposto a ser criado, não com base em
diplomas infraconstitucionais, mas considerando o campo objetal íntegro. É interessante observar
que no julgamento do mesmo RE nº 379.572/RJ, o ministro Joaquim Barbosa percebeu a redução
que ora se estava a trilhar no julgamento, deixando esclarecido que “[...] a expressão ‘veículos
automotores’ é ampla o suficiente para abranger embarcações, ou seja, veículos de transporte
aquático”.

Na mesma linha, o ministro Marco Aurélio, no RE nº 134.509/AM, assentado na doutrina


de Yoshiaki Ichiara, Cretella Júnior e Pinto Ferreira, afirma que “[...] não se pode introduzir no
dispositivo contitucional limitação que nele não se contém. A incidência abrange a propriedade de
todo e qualquer veículo, ou seja, que tenha propulsão própria e que sirva ao transporte de pessoas
e coisas”. Tal entendimento foi repetido pela autoridade quando do julgamento do RE nº
379.572/RJ.

Nessa esteira, defende-se a ideia de que o sentido há de ser vetorado não do CTB ou do
CTN para a CF, como se realiza em um “passado que ainda se faz presente”, limitando o conteúdo
das competências tributárias, mas da CF para o restante do sistema. Com isso, ao se observar o
restante do sistema jurídico, percebe-se que outros veículos automotores possuem disciplinas
específicas no ordenamento. Com isso, quer-se efetivar, na interpretação do Texto Constitucional,
um acordo entre os interlocutores que leve a um real entendimento sobre a normatização em foco,
medida pela linguagem (GADAMER, 2014, p. 497).

Defende-se a noção de que se o legislador de 1988 “quis” instituir a competência do IPVA


nos mesmos moldes da taxa rodoviária única, deveria tê-lo feito atribuindo competência para os
Estados e o Distrito Federal instituírem impostos sobre a propriedade de veículos automotores
terrestres, e não sem inserir este último signo adjetivante que, ao fazê-lo, reduz ainda mais o
âmbito da competência tributária estadual. Tal pode ser inferido com base no movimento
hermenêutico denominado por Gadamer (2014) de fusão de horizontes, pelo qual compreensão
137

dista se ser entendimento histórico, que recorresse exatamente ao que retratasse o texto, mas parte
para uma ideia de compreensão do próprio texto.

Além deste argumento, Leopoldi e Miguel (2003, p. 29) acrescentam, ainda, que caso não
intentasse abarcar os navios e as aeronaves, o legislador deveria tê-lo feito expressamente, o que,
no processo de positivação constitucional, não ocorreu.

Nesse caso, poder-se-ia afirmar que ao tratar de veículos automotores, a CF estabeleceu um


gênero, do qual seriam espécies os veículos automotores terrestres, aéreos e marítimos. Tal
idealização colmata-se à perfeição às linhas classificatórias amplamente utilizadas pela Ciência, e,
ainda mais, pela Ciência do Direito.

É válido ressaltar que, ao final de todos os julgamentos, a despeito das manifestações


estruturadas em sentido contrário, a Corte Constitucional fundamentou-se em argumento
absolutamente diverso a este, criando limitação que não está prevista no Texto de 1988. Assim, ao
defender uma definição “técnica” da expressão “veículos automotores” postulou que a mesma
abrangeria “exclusivamente os veículos de transporte viário ou terrestre”, sob um cariz
eminentemente histórico e informal, tal qual se admitiria caso o Texto Constitucional não se
mantivesse aceso pelos constantes influxos normativos, desde a doutrina.

Nos termos deste percurso gerador de sentido, que se faz com base na matriz constitucional,
a competência relativa ao IPVA deve gravar a propriedade de veículos automotores terrestres,
aéreos e marítimos, os quais refletem as possibilidades conhecidas na atualidade para o transporte
humano, qual seja: trânsito terrestre, trânsito aéreo e trânsito marítimo.

Aqui, reluz uma consideração que se revela importante e que não apequena os textos
jurídicos, com base em uma confrontação emimentemente histórica, desprezando-se o cunho
evolutivo. Isso porque é papel da doutrina revelar-se como saber tecnológico, valendo-se de
técnicas-jurídico interpretativas que se situem na arte do Direito (BORGES, 2007, p. 154), em um
movimento incessante de construção e desconstrução doutrinária e, por consequência, revelando
novos contéudos jursprudenciais.

Ainda com José Souto Maior Borges (2007, p. 152):


138

O ato que põe norma no sistema (p. ex., lei, ...) é ato humano e pois temporalmente
datado. É então influenciado, na ordem temporal, pelo momento histórico em que
foi editado. E incorpora assim ao seu texto e contexto concepções doutrinárias
vigorantes nessa época. Mas, do ato instituinte de normas, decorre a criação
contínua do ordenamento jurídico por ele próprio (autopoiese).

Isto posto, apesar de ser defensável nos primeiros julgados do STF a não incidência do
IPVA sobre as aeronaves e as embarcações, dado o panorama “tecnológico” que assentava a
doutrina da época, não se pode negar o aprimoramento intelectual da Ciência do Direito nos últimos
anos, especialmente sob os influxos da Teoria da Linguagem, e, notadamente, da Escola do
Constructivismo Lógico-Semântico, como se verá no Livro II.

Outro ponto há que se destacar pelo fato de ter sido utilizado como fundamento pelo
Supremo Tribunal Federal para uma elaboração restritiva da competência tributária afeta ao IPVA:
tendo em conta que compete à União legislar sobre navegação marítima ou aérea ou para dispor
sobre tráfego aéreo ou marítimo, espaço aéreo ou mar territorial, justifica-se que a cobrança do
imposto restaria impossibilitada, dada a incompetência estadual para dispor sobre tais matérias 195
196
.

Ora, tal argumento não resiste, sequer, à observância do mesmo modelo tributário já
observado no IPVA: legislar sobre trânsito e transporte é de competência privativa da União (art.
22, inc. XI) e, ainda assim, não inviabiliza a incidência do imposto sobre a propriedade de veículos
automotores terrestres. Nesse sentido, por que tal obstáculo se imporia aos veículos automotores
aéreos e marítimos?

195
O voto-vista do ministro Cezar Peluso, no RE nº 379.572/RJ, ao transcrever o voto do ministro Sepúlveda Pertence,
no RE nº 134.509/AM, faz-se questão de ressaltar que “[...] não há atribuição de comppetência, seja dos Estados, seja
aos Municípios, para legislar sobre navegação marítima ou aérea, ou para disciplinar ‘tráfego aéreo ou marítimo,
espaço aéreo ou mar territorial, que são bens da União’.” (destacado no original). Em resposta a esse argumento, o
ministro Marco Aurélio defende que “[...] não calha também evocar a atuação da Capitania dos Portos, porque ela
ocorre num âmbito diverso, o do poder de polícia. E, então, há a cobrança de taxa”.
196
Aqui, vale fazer menção ao voto do ministro Francisco Rezek, no RE nº 134.509/AM, no qual parece ressaltar uma
“preocupação” muito maior com os aspectos de eficácia da norma, do que com o conteúdo normativo propriamente
dito: “Penso no que seriam as consequências de se abonar a constitucionalidade dessa exação. Penso em como se
deveriam alterar normas relacionadas com registros e cadastros. Penso no IPVA, que o constituinte manda ser
arrecadado por Estados e repartido depois com o Município onde está licenciado cada veículo. Penso em como se
afetarão navios e aviões aos municípios...”.
139

Outro exemplo de tributo de competência estadual e que lida com uma materialidade cuja
competência legislativa é conferida à União encontra-se no comércio exterior (art. 22, inc. VIII,
CF), tendo em vista a possibilidade de cobrança do chamado ICMS Importação na última fase do
que se denomina “despacho aduaneiro”: conforme previsão inserida no art. 155, § 2º, inciso IX,
alínea “a”, o ICMS incide nas operações de entrada de bens ou mercadorias importados. Contudo,
tal operação de entrada de bens ou mercadorias se dá em um contexto mais amplo, denominado
“Comércio Exterior”, cuja competência legislativa para dispor sobre a matéria é conferida com
privatividade à União.

Ademais, procede o mesmo com relação ao ICMS incidente sobre as prestações de serviço
de comunicação, quando a competência para legislar em matéria de telecomunicações também é
privativa da União (art. 22, inc. IV, CF). Efetivamente, como estes casos, tantos outros poderiam
ser averiguados no sistema normativo e fariam ruir argumentos desse jaez exclusivamente para o
IPVA.

Por fim, o argumento que parece ser o mais expressivo contra a interpretação que ora se
desenvolve relaciona-se à disposição do art. 158 da Constituição Federal, inserido na seção que
dispõe acerca da repartição das receitas tributárias. Isso porque, o STF condicionou a materialidade
do IPVA não nos caracteres dispostos no art. 155 da CF, mas com base na repartição do produto
da arrecadação do imposto, o que se revela um retrocesso em sede de Ciência do Direito.

Tem-se por assente o fato de que, apesar de a visão disciplinar não revelar a complexidade
do dado normativo, a divisão das matérias nos chamados “ramos”197 do Direito, visa a ordenar os
conteúdos linguísticos apropriados à constituição de cada um dos subsistemas, sem lhes judicar

197
Aqui se faz evidenciar a impropriedade do reducionismo que se alcança ao defender ramos “autônomos” no Direito.
Nessa medida, é percuciente a observação feita por José Souto Maior Borges (2008, p. 13), ao prefaciar o “Hipótese
de Incidência Tributária”, de Geraldo Ataliba, quando o Jurista pernambucano defende que o conceito de “fato
gerador” não é exclusivo do Direito Tributário. Assim, afirma que “seria possível demonstrar, se o intento coubesse
dentro dos estreitos limites dessas notas superficiais, que o estudo do ‘fato gerador’ como fenômeno exclusivo do
Direito Tributário nada mais significa que uma aplicação destorcida [sic] da tese autonomista, inadmissível nos moldes
doutrinários até hoje propostos sem que seja expungida de notórios exageros e impropriedades. Urge, pois, recolocá-
la nos seus devidos termos”.
140

caracteres de autonomia198 199


. Ainda mais quando se fala em Direito Tributário, este se revela
como uma especificação do direito no qual a tecnicidade inerente à linguagem jurídica se revela
ainda mais pungente.

Dessa maneira, recorrendo a uma definição do conteúdo relativo ao Direito Tributário


positivo, ter-se-ia que este seria “[...] o ramo didaticamente autônomo do direito, integrado pelo
conjunto das proposições jurídico-normativas que correspondam, direta ou indiretamente, à
instituição, arrecadação e fiscalização de tributos” (CARVALHO, 2015, p. 44). Em assim sendo,
as questões relativas à repartição do produto da arrecadação dos impostos situar-se-iam, de maneira
mais adequada, em outro ramo do Direito: o Direito Financeiro.

Daí já se chega ao primeiro deslumbre: a construção da norma jurídica em sentido estrito,


relativa à incidência tributária, isto é, da regra-matriz de incidência tributária, mantém-se regada
pelos conteúdos normativos derivados do Texto Constitucional (CARRAZZA, 2015) e que
perfaçam o conteúdo mínimo necessário a que um tributo possa se dizer instituído. Nesse ponto,
como unidade mínima e irredutível de manifestação do deôntico, a regra-matriz do IPVA não pode
se encontrar limitada por conteúdos apanhados em um momento posterior à incidência, após a
atividade de arrecadação e fiscalização dos tributos.

Nesse ponto, parece que é por demais desprestigiar a competência de os Estados e o Distrito
Federal de restringirem o seu poder de tributar, atendidas todas as limitações constitucionais a ele
inerentes e que plasmam um verdadeiro “estatuto constitucional de defesa dos contribuintes”, ao
se condicionar a materialidade dos tributos a requisitos que diminuam a sua abrangência, por conta

198
Conforme doutrina de Alfredo Augusto Becker (2010, p. 32), que ora se faz mais atual do que nunca, em vista da
manutenção (e talvez até da ampliação) do “manicômio jurídico tributário”, a “autonomia do Direito Tributário é um
problema falso e falsa é a autonomia de qualquer outro ramo do Direito Positivo”. Reforçando os argumentos
anteriores, Paulo de Barros Carvalho (2015, p. 43) defende que “a ordenação jurídica é uma e indecomponível. Seus
elementos – as unidades normativas – se acham irremediavelmente entrelaçados pelos vínculos de hierarquia e pelas
relações de coordenação, de tal modo que tentar conhecer regras jurídicas isoladas, como se prescindissem da
totalidade do conjunto, seria ignorá-lo, enquanto sistema de proposições prescritivas”.
199
Não se pode olvidar, ainda, que o próprio STF reconhece tratar-se o Direito Tributário como verdadeiro “‘direito
de superposição’, na medida em que encampa conceitos que lhe são fornecidos pelo Direito Privado (Direito Civil,
Comercial, do Trabalho, etc)”, na doutrina de Gian Antonio Micheli. STF, Voto do Ministro Celso de Mello, Recurso
Extraordinário nº 574.706.
141

do emprego de expressões que não se revelem adequadas a descrever o controle dos veículos aéreos
ou marítimos.

Assim, a redação do art. 158, inciso III, da CF, que seria a instauradora da celeuma e
motivadora da constrição material do IPVA, assim enuncia: “Pertencem aos Municípios: (...) III -
cinqüenta por cento do produto da arrecadação do imposto do Estado sobre a propriedade de
veículos automotores licenciados em seus territórios”. Com o fito de não se amesquinhar o
conteúdo da materialidade disposta no art. 155, inciso III, poder-se-ia apontar que uma
interpretação coerente com o sistema seria no sentido de que apenas o IPVA incidente sobre
veículos automotores terrestres, que são somente os que se sujeitam a licenciamento, seria objeto
de repartição.

Tal é defensável na medida em que se observa que não foram muitos os impostos sujeitos
à repartição, conforme previsto nos arts. 157 e 158 do Texto Constitucional: tal se dá, atualmente,
apenas no tocante ao IR, ao IPI, ao ITR, ao ICMS e ao IPVA. O próprio ITCMD, também de
competência estadual, não é objeto de repartição com os municípios. Daí, não se entende que isso
seja uma regra absoluta e cujo reconhecimento permita diminuir a amplitude do critério material
do IPVA.

Em sentido oposto, poder-se-ia defender o ponto de vista de que o legislador constitucional,


dada a heterogeneidade de seus membros, ao tratar de veículos licenciados, utilizou-se deste signo
em seu sentido vulgar, revelando uma impropriedade, atecnia ou deficiência a ser solucionada pelo
jurista. Isso porque, por ser linguagem técnica, que se assenta no discurso natural, mas aproveitando
“quantidade considerável de palavras e expressões de cunho determinado, pertinentes ao domínio
das comunicações científicas” (CARVALHO, 2015, p. 35), às vezes se percebe o seu emprego
equivocado.

Nessa medida, ainda que estritamente as legislações relativas aos transportes aéreos e
marítimos não disponham necessariamente de licenciamentos, mas sim, de registros 200, ter-se-ia a

200
De que é exemplo o Registro Aeronáutico Brasileiro, regulamentado pela Resolução nº 293 da ANAC. Conforme
se observa nas exigências contidas nos artigos 67 e 68 de tal Resolução, dentre os requisitos para registro de aeronaves
consta a comprovação do endereço do proprietário, se pessoa física, e prova de inscrição no CNPJ, para pessoas
142

possibilidade de empregar-se o termo correlato em tais legislações. Além do Registro Aeronáutico


Brasileiro, existem diversos outros documentos, a exemplo do “Certificado de Matrícula” e do
“Certificado de Aeronavegabilidade”, os quais poderiam se adaptar ao conteúdo que quis o
legislador empregar ao dispor acerca do “licenciamento”.

Em tais certificados, inclusive, é possível se identificar o proprietário do veículo e o Estado


da Federação em que ele tem domicílio, o que revela a possibilidade de identificação perfeita e
imediata desse ente que teria a possibilidade de exercer a competência tributária201. Diferentemente
do que se tem apontado, o fato de tal cadastro se dar em uma repartição federal não obstaculiza a
identificação do Estado da Federação em que está domiciliado o proprietário.

Por fim, uma questão que desborda do aspecto normativo propriamente dito, mas que pode
interessar ao Direito sob outro prisma: aqui, volta-se à questão de que o direito visa a regular
condutas intersubjetivas, canalizando os valores que a sociedade entende relevantes. Ora, em uma
Constituição que se vivifica pela interpretação e pelos influxos de novas evoluções e novas visões
que a sociedade vai desenvolvendo, não se admite que o IPVA venha a incidir apenas sobre a
propriedade de veículos automotores terrestres202, os quais se revelam como motor absolutamente
indispensável da economia nacional.

Em outro sentido, até pelo caráter da suntuosidade e pela expressão da capacidade


contributiva dos proprietários de veículos automotores aéreos e marítimos, não há como
desconsiderá-los na incidência do IPVA, e certamente tal asserção se afirma como os valores
pretendidos pela sociedade brasileira203, que ainda sofre com uma carga tributária que influencia
agressivamente os mais pobres, comparativamente àqueles que mais revelam riqueza.

jurídicas, o que também aponta para o domicilio. A consulta ao registro das aeronaves brasileiras é feita de forma
simples, pela consulta ao site https://sistemas.anac.gov.br/ aeronaves/cons_rab.asp. Acesso em 30 mar. 17.
201
Interessante é observar que a indicação dessa alternativa guarda conexão com o tema a ser discutido em sede da
Repercussão Geral nº 708, cuja ementa assim enuncia: “Possibilidade de recolhimento do Imposto sobre a Propriedade
de Veículos Automores (IPVA) em estado diverso daquele em que o contribuinte mantém sua sede ou domicílio
tributário”.
202
Conforme dados do IBGE, apenas a frota de automóveis ultrapassou os 49 milhões de veículos em 2015. Além
destes, têm-se também os caminhões, os ônibus, as motocicletas, dentre outros. Disponível em: http://cidades.ib
ge.gov.br/painel/frota.php. Acesso em 29 mar. 17.
203
Vale ainda citar matéria jornalística intitulada “Mesmo sem mar, DF é a quarta unidade da Federação com o maior
número de barcos”, divulgada na internet e que bem reflete esse aspecto cultural que aqui se propugna. Em determinado
143

Vale ressaltar que, a despeito do abrangência que se defende ínsita ao texto constitucional,
e em virtude das sucessivas decisões em sentido contrário tomadas pelo STF, encontra-se em fase
de apreciação pelo Congresso Nacional a Proposta de Emenda a Constituição nº 283, de 2013 204
(apensada à PEC nº 140, de 2012), que identificaria de modo expresso as espécies de veículos e
incluiria a posse no âmbito competencial dos Estados e do DF, ao fixar nova redação ao inciso III,
do art. 155, da CF: “propriedade ou posse de veículos automotores terrestres, aquáticos e aéreos”.

Destaque-se, por fim, o fato de que, no que tange à proposição em análise na casa
legislativa, existe a previsão de regra imunitória aos “[...] veículos aquáticos e aéreos de uso
comercial, destinados à pesca e ao transporte de passageiros e de cargas”. Tal PEC, que já foi
jocosamente denominada de “PEC dos jatinhos”, parece lançar luzes a uma questão que, de há
muito, já poderia estar sedimentada no panorama normativo nacional.

trecho, a fim de tentar justificar o porquê do Distrito Federal, apesar de não possuir litoral, ter uma das maiores frotas
marítimas do País, a matéria assim enuncia: “Apesar de não ser uma região litorânea, o Distrito Federal possui
aproximadamente cinco mil embarcações. O número é considerado alto, mas pode ser explicado porque o DF tem
uma das maiores rendas per capita do País” (destacado). Disponível em: http://noticias.r7.com/distrito-
federal/mesmo-sem-mar-df-e-a-quarta-unidade-da-federacao-com-o-maior-numero-de-barcos-04082013. Acesso em
29 mar. 17.
204
Inteiro teor disponível em http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/propmostrarintegra?codteor= 1105191
&filename=PEC+283/2013. Acesso em 29 mar. 17.
144

CAPÍTULO 6. A CONSTRUÇÃO DA MOLDURA DE KELSEN COMO UM


PRIMEIRO PASSO DO PROCESSO INTERPRETATIVO, SOB A ÓPTICA
POSITIVISTA, E SUA INFLUÊNCIA MARCANTE PARA A
HERMERNÊUTICA JURÍDICA TRADICIONAL
Longe de findar todos os contornos que caracterizam esse “passado que ainda se faz
presente” na legislação, na doutrina e na jurisprudência brasileiras, em particular em sede de ICMS
(e com uma breve pausa para o IPVA), não se poderia encerrar os aspectos dogmáticos sem a
abordagem da “famosa” moldura kelseniana. Ao falar desta moldura, que se tornou uma das
imagens mais emblemáticas para o Direito, algumas observações têm se ser feitas a priori.

Inicialmente, pode-se afirmar que Hans Kelsen, em sua Teoria pura do Direito, estabeleceu
“[...] as condições para a construção de um conhecimento consistentemente científico do direito”
(COELHO, 2000, p. 21). Assim, o Filósofo não olvidou a temática da interpretação jurídica,
conquanto lhe tenha conferido uma atenção bastante reduzida, comparativamente à grandeza de
sua obra, mas cujo tamanho demonstra coerência com o modelo proposto.

E tal se dá, pois, “[...] para Kelsen, a Ciência do Direito pode ocupar-se da interpretação
jurídica apenas na medida em que esta se presta a traçar a ‘moldura’ das interpretações possíveis
de uma norma jurídica.” (MAGALHÃES, 2005, p. 135). O que é impressionante observar, desde
já, é que Kelsen parece entender possível enclausurar ou dispor acerca de todos os possíveis
sentidos a serem atribuídos a uma norma.

Ainda que se pudesse abstrair as questões relativas ao contexto, que irremediavelmente


estão conectadas à interpretação, o conjunto formado de todas as combinações sintáticas e
semânticas dos documentos normativos beira à infinitude, caso não sejam impostos alguns freios,
tais como o contexto, a doutrina e a jurisprudência acerca da matéria, dentre outros.

Isto posto, pode-se identificar, em Kelsen (2011, p. 390), o fato de que a interpretação
ressoaria tal qual uma “moldura” dentro da qual seriam ofertadas várias possibilidades pelo Jurista,
julgando-se a conformidade da aplicação pela permanência nos estritos limites desta moldura,
desde que esta seja preenchida em qualquer sentido possível:

Se por “interpretação” se entende a fixação por via cognoscitiva do sentido do


objeto a interpretar, o resultado de uma interpretação jurídica somente pode ser a
145

fixação da moldura que representa o Direito a interpretar e, consequentemente, o


conhecimento das várias possibilidades que dentro desta moldura existem. Sendo
assim, a interpretação de uma lei não deve necessariamente conduzir a uma
única solução como sendo a única correta, mas possivelmente a várias
soluções que – na medida em que apenas sejam aferidas pela lei a aplicar –
têm igual valor, se bem que apenas uma delas se torne Direito positivo no ato
do órgão aplicador do Direito – (...). (destacado) (KELSEN, 2011, pp. 390-391).

Não se pode esquecer, contudo, de que tal “moldura” há de ser elaborada, inteiramente,
considerando-se o modelo de pureza kelseniano. Tal pureza, que visa a evitar o sincretismo
metodológico, intenta observar exclusivamente o objeto científico, que é o direito positivo por
excelência, excluindo deste os aspectos valorativos. Com isso, conforme pontua Mario G. Losano,
na introdução à edição italiana de “O problema da justiça” (KELSEN, 1996, p. XIV), para Kelsen
o jurista não deve valorar o Direito, limitando-se a descrevê-lo, em uma atitude de indiferença, de
neutralidade, frente aos valores, não significando, contudo, que os desconheça ou negue sua
existência.

Ora, o arquétipo da “moldura” pode ser visto, assim, sob dois vieses: no sentido interno,
orienta o intérprete para cingir-se dentro dos “limites” do texto normativo, dos contornos ali
dispostos; do sentido externo, indicando a zona que necessariamente está fora dos “limites” desse
texto, pela delimitação residual e muito mais abrangente do conteúdo que há de ser “eliminado” na
elaboração mental.

Com isso, ao idealizar a noção de limite espacial, tão assemelhada à obsessão latina do
mesmo gênero205, Kelsen visa a conferir segurança ao seu modelo e, ao mesmo tempo, não
“desperdiçar” tempo em teorizar sobre algo que, no fim, culminará com uma decisão política, caso
venha a se tornar direito positivo, pela atuação do órgão aplicador do Direito. Assim, cria um objeto
que representa uma construção, em linguagem do intérprete, que reduz as características do que se

205
Umberto Eco (1993, p. 32-33), ao tratar da interpretação e da possibilidade de uma superinterpretação, apresenta
um dado histórico-cultural bastante interessante sobre a cultura latina, na qual se insere o Brasil: “A obsessão latina
por limites espaciais remonta diretamente à lenda da fundação de Roma: Rômulo traça uma linha de fronteira e mata
seu irmão por ele não a respeitar. Se as fronteiras não são reconhecidas, então não pode haver civitas. Horácio torna-
se um herói porque consegue manter o inimigo na fronteira – uma ponte abandonada entre os romanos e os outros. As
pontes são sacrílegas por que transpõem o sulcus, o fosso de água que delineia as fronteiras da cidade; por esta razão
só podem ser construídas sob o controle estrito e ritual do Pontífice. (...). Na realidade, há limites também no tempo.
O que foi feito nunca pode ser apagado. O tempo é irreversível. Este princípio governaria a sintaxe latina. A direção e
a seqüência de tempos verbais, que é linearidade cosmológica, torna-se um sistema de subordinações lógicas na
consecutivo temporum”.
146

toma do universo físico-social (CARVALHO, 2007, p. 451), aqui identificado com o próprio texto
normativo.

Gabriel Ivo (2014, p. 77), no entanto, exprime a dúvida que vem sendo posta sob a
“moldura” kelseniana: não se admite norma sem disposição, embora se saiba que o sentido não é
construído, apenas, a partir dele. Não se pode olvidar, porém, que se trata de traço diferenciador
do Direito e que este sempre retorna ao plano da expressão. Ora, a se pensar com base na
“moldura”, o pensamento kelseniano cria apenas um ponto de partida para o percurso gerador de
sentido das normas jurídicas: algo que teria um conteúdo ôntico.

Tal idealização desconsidera o movimento, o continuum que caracteriza a interpretação,


vista como processo, o que, como se verá a seguir, não foi olvidado por Paulo de Barros Carvalho
ao optar por um panorama ontológico (sob o sentido heiddegeriano) da interpretação, ampliando
as possibilidades de quem põe a norma diante de si para construir os sentidos.

Fixadas essas premissas, e partindo-se para a idealização promovida por Hans Kelsen,
compreende-se que ele não se propôs descrever a interpretação como processo, o que representaria
a sua continuidade, mas se limitou a fixar um modelo plano, bidimensional, que representaria
supostamente os “limites”206 na aplicação do Direito. Nesse modelo, não adentrou ao conteúdo da
moldura: a noção premente era de “limite”.

Tal idealização muito se assemelha à descrição geométrica da mecânica de teor clássico,


em que se criam sistemas simples para descrever a velocidade, com base nos planos espaço e
tempo. A depender do paradigma em que se realiza a Hermenêutica Jurídico-Tributária, como o
que se propõe agora, tal modelo ainda explica satisfatoriamente os fenômenos que lhe são
ofertados; contudo, sabe-se, também, que não se pode olvidar os novos conteúdos que vêm a
apresentar um olhar mais apurado sobre a realidade-objeto (jurídica e física), especialmente se se
tomar o Direito como linguagem, como toda a dificuldade que esta tomada de atitude carrega.

206
Ainda que não fatais, mas circunstanciais, e devidamente identificados pelo estudioso da Ciência do Direito.
147

Por não reunir valores, contudo, e por encontrar um limite natural que é o texto, e
desconsiderando o contexto207, Kelsen não provoca a intenção de atribuir uma infinitude ao
resultado do processo interpretativo: longe disso, aponta sempre que poderiam ser construídas
“várias possibilidades” dentro da moldura, configurando-se em ato de conhecimento do próprio
direito (KELSEN, 2011, p. 392). Além do mais, ao buscar a neutralidade, por meio da
desconsideração dos valores como integrantes do seu objeto de estudo, qual seja, o direito positivo,
o autor parecer inserir um complicador natural, haja vista que as palavras, em si, estão carregadas
de carga valorativa.

A seguir, ao tomar a interpretação como ato de vontade, Kelsen defende o argumento de


que a questão de escolher qual das interpretações possíveis será eleita não se reveste de
conhecimento dirigido ao direito positivo, mas é, antes de tudo, um problema da política do direito
(KELSEN, 2011, p. 393). Antes de tudo, eleger na moldura “a” interpretação, foge ao conteúdo do
direito positivo.

Conforme se viu em sua Teoria pura, Kelsen pretende assegurar-se do purismo pela não
inserção dos valores no processo de criação do direito, o que culmina com um desenho plano, à
semelhança de um retângulo, dentro do qual caberiam as interpretações possíveis. Isto posto,
defende-se a intenção de que o modelo proposto por Kelsen, o qual aparece como uma
representação gráfica que não leva em conta o conceito de dimensões, limita-se a estabelecer um
conteúdo dentro dos melindrosos limites do texto.

Deve-se considerar, ainda, que Kelsen traz uma distinção que se tornaria clássica também,
e que se conecta com aqueles que estariam abalizados, pelo sistema, a realizar a interpretação.
Assim, mesmo sem desconsiderar que a interpretação jurídica possa ser realizada pelos não juízes,

207
É digna de transcrição a defesa de Juliana Neuenschwander Magalhães (2005, p. 135) para quem é “[...] evidente
que o mais formalista dos juristas do século XX não considera o contexto como algo que deva ser levado em
consideração quando da atribuição de sentido à norma e, muito menos, como doador de sentido a esta. Esta perspectiva
hermenêutica está claramente afastada. Kelsen fala da e na perspectiva da Filosofia Analítica, de uma dada concepção
de ciência e de linguagem que desconhece os usos, ou os diferentes contextos em que desta se faz uso. Conhecer, na
perspectiva da Filosofia Analítica, é ‘traduzir numa linguagem rigorosa os dados do mundo’. A tarefa da Ciência do
Direito é a descrição das normas jurídicas válidas (e cada descrição – proposição – será verdadeira apenas sob a
condição de ser a descrição de uma norma jurídica válida). Considerar o momento da interpretação seria constranger
a Ciência do Direito a lançar seu olhar sobre esses fatores extrajurídicos que interferem na produção do Direito no
momento da interpretação. Resulta mito mais de um conhecimento deste como um problema fundamental do Direito,
consistindo numa propositada recusa em se tratar da questão” (MAGALHÃES, 2005, p. 135).
148

Kelsen prestigia a “operação mental” que seria realizada por um intérprete autêntico ou por um
intérprete não autêntico.

Como intérprete autêntico, pode-se situar em Kelsen o órgão aplicador do Direito, que
promoveria a operação mental que acompanharia o processo de aplicação do Direito, como ato de
vontade, pertencendo à ordem do “ser”, e que apontaria as possibilidades normativas: a escolha por
uma dentre todas as possibilidades estabeleceria a validade daquela opção dentro do sistema
normativo. Por fim, a decisão pelo sentido mais adequado entre as normas contidas na moldura é,
muito mais, um problema de política do direito do que, propriamente, um problema jurídico.

Nessa medida, afina-se tal idealização com o paradigma do “passado que ainda se faz
presente”, na medida em que tenta, por um corte na própria axiologia, simplificar aquilo que é
complexo por natureza: o duro processo de construção de sentido das normas.
149

CAPÍTULO 7. PANORAMAS HERMENÊUTICOS JURÍDICO-


TRIBUTÁRIOS DO “PASSADO QUE AINDA SE FAZ PRESENTE”
ESTRUTURADOS COM SUPORTE NA ANÁLISE DE JULGADOS DO STF
E DO STJ EM QUESTÕES RELATIVAS À INCIDÊNCIA DO ICMS NAS
OPERAÇÕES DE CIRCULAÇÃO DE MERCADORIAS
Esta abordagem, que tem por finalidade encontrar a ressonância do modelo do “passado
que ainda se faz presente”, até aqui desenhado, na jurisprudência brasileira, maiormente relativa
ao ICMS, justifica-se na medida em que representa o momento de configuração, de materialização,
de tudo o quanto foi até aqui exposto. Nessa medida, limitar-se-á a análise a casos julgados pelo
Supremo Tribunal Federal (STF) ou ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), e que tenha conexão
especificamente com o modo tradicional de se efetivar a Hermenêutica Jurídico-Tributária no
ICMS, mais especificamente no que respeita à materialidade de realização de operações de
circulação de mercadorias.

7.1 STJ: RESP Nº 1.092.206/SP E SEUS POTENCIAIS EFEITOS SOBRE O RE Nº 605.552


NO STF. FORNECIMENTO DE SOLUÇÕES DE EMULSÕES ENTERAIS E PARENTERAIS E O
“ETERNO”208 CONFLITO ENTRE ENTES TRIBUTANTES DO ISS E DO ICMS: UMA
POSSIBILIDADE INTERPRETATIVA

O caso acima indicado, relativamente ao RESP nº 1.092.206/SP209, evidencia um modo


característico de decisão pertencente ao “passado que ainda se faz presente”, na medida em que se

208
Apesar da estrutura original do IVA prestigiar a neutralidade fiscal, o que se vê no Brasil é o descalabro de um
sistema altamente desorientado e conflituoso, que coloca os entes em posição belicosa diuturnamente e, no meio do
“fogo cruzado”, ficam os contribuintes e os consumidores finais, suportando uma carga tributária excessiva. Nessa
medida, como ideal de neutralidade fiscal, do ICMS, por exemplo, se esperaria que “apesar de incidir fracionadamente
em diversas etapas da cadeia produtiva [...], o imposto pago será sempre o mesmo independentemente da quantidade
de etapas de circulação da mercadoria (ou prestação do serviço tributável), [...]. A neutralidade possui a vantagem de
evitar discriminações tributárias e pode ser vislumbrada tanto sob a perspectiva interna como externa” (MOREIRA,
2012, p. 84). No Brasil, foi aprovada a Lei nº 12.741, de 2012, que dispõe sobre as medidas de esclarecimento ao
consumidor, de que trata o § 5º do artigo 150 da Constituição Federal; altera o inciso III do art. 6º e o inciso IV do art.
106 da Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990 - Código de Defesa do Consumidor, e que é medida altamente retórica
e confusa, pois, especificamente no que pertine ao ICMS, dada a quantidade de benefícios fiscais “de gaveta”, sem que
haja a aprovação no âmbito do CONFAZ, é absolutamente impossível saber a carga tributária efetiva das mercadorias
e bens comercializados neste País.
209
A empresa litigante denomina-se “Aporte Nutricional Farmácia de Manipulação Ltda”, conforme indicado na
decisão do RE acima. Em consulta ao Google, foi identificado o site do Grupo Aporte, sediado em Minas Gerais, e
que atuaria “[...] no segmento de nutrição humana para prevenção, tratamento e manutenção da saúde; manipulando
Nutrição Enteral e, distribuindo diversas linhas como nutrição infantil, adulto, melhor idade, esportiva e principalmente
clínica a: Pacientes hospitalizados, ambulatoriais, em home care e domiciliar; Hospitais públicos e privados; Clínicas
médicas e afins; Casas de repouso; Drogarias e Farmácias; [...]”. Vale indicar, por fim, que neste mesmo site consta
um link para uma “Loja Virtual”, na qual se encontram produtos disponíveis para venda para consumidores finais,
150

vale de aproximações simplistas do caso em questão, e para o qual não restaram evidenciadas as
características singulares da lide, como se verá a seguir.

Contudo, antes de se adentrar especificamente no tema, deve-se ressaltar que o mesmo faz
parte de mais uma das consequências de um sistema tributário que, no que pertine ao consumo,
adotou a singular característica de repartição de um tributo que deveria ser de caráter nacional.
Trata-se do caso do “IVA brasileiro”, que se encontra repartido em, pelo menos, três impostos, de
cujas competências tributárias estão distribuídas para três entes políticos distintos: por conta disso,
é bastante comum falar-se nos conflitos de competência relativos ao ISS, ao IPI e ao ICMS 210.

Longe de acreditar que a descrição que se fará aqui resolve o intrincado problema dos
conflitos de competência entre o ICMS e o ISS, parte-se da certeza de que existem caracteres mais
seguros quando se fala da competência tributária relativa a esses impostos e, por outro lado,
caracteres altamente instáveis. Dessa maneira, não é de hoje a constatação de que

[...] os negócios jurídicos contratados pelos particulares implicam, de


maneira indissociável ou quase indissociável, a transferência de mercadorias
e a realização de um esforço humano em favor de terceiro, como pares de
prestações associadas. Podemos citar, por exemplo, o caso do fornecimento de
alimentação em bares e restaurantes ou da atividade praticada em farmácias de
manipulação. Se bem observados, poucos negócios jurídicos caracterizam-se
como serviços puros, pois na realidade a maioria dos serviços ‘só se concretizam

independentemente de receita médica e não manipulados pela empresa. Disponível em:


http://www.grupoaporte.com.br/quem-somos/. Acesso em 26 jan. 2018.
210
Como forma de contornar as dificuldades na consecução das atividades de instituição, fiscalização e arrecadação
desses três impostos, bem como das contribuições para o PIS/PASEP e da COFINS, o Centro de Cidadania Fiscal
(CCiF) é um think tank de atuação independente e que é financiado por sete grandes empresas (AMBEV S/A,
BRASKEM S/A; Itaú Unibanco S/A; Souza Cruz S/A; Vale S/A; Votorantim S/A e Huawei do Brasil), bem como
pelos seguintes pesquisadores: Bernardo Appy, Eurico Marcos Diniz de Santi, Nelson Machado, Isaias Coelho e
Vanessa Cahado. Tem apresentado propostas de reformas tributárias para o País e, no que pertine à tributação sobre o
consumo, defende a adoção do padrão predominante internacional, na figura do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS),
de estrutura semelhante ao IVA, e cuja competência seria da União, dos Estados e dos Municípios, com previsão para
repartição do produto da arrecadação. Com essa medida, sob a perspectiva dos conflitos de competência, não haveria
mais sentido em defendê-los, pois as “zonas contíguas” entre os impostos desapareceriam. Tal representaria um ganho
para os contribuintes, em termos de segurança na tributação e, para os consumidores finais, enaltecer-se-ia a
transparência. Conforme contido na Nota Técnica nº 1, do CCiF, “o modelo brasileiro de tributação da produção e
consumo de bens e serviços, que compreende cinco tributos de caráter geral (PIS, Cofins, IPI, ICMS e ISS), prejudica
o país de várias formas: a. reduz fortemente a produtividade, na medida em que as empresas se organizam de forma
ineficiente para minimizar o custo tributário – que pode variar muito dependendo da forma como a produção está
organizada; b. onera os investimentos e as exportações; c. por ser excessivamente complexo, eleva sobremaneira o
custo burocrático de apuração e pagamento dos tributos, além de provocar um elevado grau de litígio; d. impede
os consumidores de conhecerem o montante de tributos incidentes sobre os bens e serviços que adquirem no
mercado”. (CENTRO DE CIDADANIA FISCAL, 2017, p. i).
151

com o uso de quipamentos, máquinas, ferramentas, etc. e/ou com a aplicação de


materiais’, os quais “agregam-se de tal forma aos serviços que, dissociá-los
implica fazer desaparecer estes últimos”. (destacado) (ANDERLE, 2016, p. 138).

Doutrinariamente, as dificuldades relativas à aceitação dos conflitos de competência


surgem na medida em que se idealizou, neste “passado que ainda se faz presente”, um sistema
constitucional tributário talhado à perfeição, e que poderia ser muito bem descoberto por um
intérprete preciso e atento, que (des)cobrisse o intuito do constituinte originário e explicitasse a
intenção desse legislador ou, ao menos, a intenção contida na norma constitucional relativa à
repartição de competência tributária211. E aqui se estabelece uma grande falácia...

Inicialmente, vale ressaltar que, especificamente quanto a este caso, o recurso especial não
foi conhecido, com fundamento no art. 557 do CPC vigente à época, dada a quantidade expressiva
de precedentes em sentido contrário. A seguir, foi interposto agravo regimental pelo Estado de
Minas Gerais, contra a decisão monocrática que não conheceu o recurso especial, ao que
novamente o relator se manifestou desfavorável. Neste agravo regimental, a parte alega que o feito
deve ser sobrestado em virtude do reconhecimento da repercussão geral para o tema, pelo STF, no
RE nº 605.552.

Para o que interessa à análise, contudo, devem ser fixados alguns pontos importantes
constantes desta decisão, com base em farta jurisprudência predecessora, especialmente do STJ, e
que não consegue abarcar o caso em suas nuances:

(i) ao dispor acerca das razões do Tribunal de origem (TJMG), foram trazidos os seguintes
dados: a empresa possui como Classificação Nacional de Atividades Econômicas (CNAE)

211
Vale citar a excelente tese de Ricardo Anderle (2016) que aprofunda as questões relativas a conflitos de competência
no ISS, no ICMS e no IPI, à luz do Constructivismo Lógico-Semântico. Ao final do subcapítulo “1.2.3 Rigidez e
exaustividade da competência tributária” o autor assim afirma: “Para finalizar, fixamos as seguintes conclusões: (i)
não existem limites rígidos na demarcação da competência tributária; (ii) porém, em cada contexto é possível
estabelecer núcleos mínimos de significação que estabelecem balizas ao legislador infraconstitucional, conforme
veremos a seguir; (iii) em determinados casos, especialmente em tributos contíguos ou confrontantes, o legislador
constituinte anteviu as dificuldades relativas ao exercício das competências e expressamente designou à lei
complementar a tarefa de dispor sobre os potenciais conflitos; (iv) o respeito à legislação complementar é também
garantia da federação e da autonomia municipal, que não é ilimitada; (v) para saber qual o limite do legislador
complementar é preciso analisar cada tributo em cada contexto histórico”.
152

principal a de comércio varejista de produtos farmacêuticos, com manipulação de fórmulas, e


secundária, de terapia de nutrição enteral e parenteral;

(ii) restou consignado que a empresa fornece produtos para instituições hospitalares;

(iii) para alguns pacientes que apresentem dificuldade ou obstrução no aparelho digestivo,
a empresa providencia desoluções ou emulsões que são objeto de produção e comercialização pela
autora;

(iv) que o trabalho da empresa envolve análises técnicas cuidadosas;

(v) que prepondera o propósito medicamentoso nestes produtos, dado que ditas soluções
e emulsões são medicamentos.

Por fim, com base em jurisprudência sedimentada acerca da matéria, tem-se que

O fornecimento de medicamentos manipulados, entendido como uma operação


mista, ou seja, que agrega mercadoria e serviço, está sujeito a ISSQN e, não, a
ICMS, tendo em vista que é atividade equiparada aos "serviços farmacêuticos",
expressamente previstos no item 4.07 da lista anexa à Lei Complementar nº
116/2003."(AgRg no Ag 1212016/PE, Rel. Ministro Hamilton Carvalhido,
Primeira Turma, DJe 15/06/2010). Precedentes: AgRg no REsp 1158069/PE, Rel.
Ministro Benedito Gonçalves, Primeira Turma, DJe 03/05/2010, REsp
975.105/RS, Rel. Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, DJe 09/03/2009.

Assim, dada a complexidade das legislações afetas ao Imposto sobre Serviços (ISS) e ao
ICMS, não há como serem oferecidas soluções restritas a esse conflito de competência, dentre
outros motivos:

(i) Historicamente, as farmácias surgem, em todo o mundo, como farmácias de


manipulação212. Os farmacêuticos, nesse momento, desenvolvem uma atividade que se aproxima

212
Sem maiores aprofundamentos históricos, relata-se que a farmácia mais antiga do mundo seria a Officina Profumo
Farmaceutica di Santa Maria Novella, localizada em Florença, na Itália, cuja fundação teria ocorrido em 1612. É
interessante observar que tais estabelecimentos têm uma concexão muito forte com os conventos, pelo fato de as
fórmulas ali preparadas, normalmente, estarem sob o segredo da Igreja. Mais importante ainda é registrar que a
perfumaria, que se transformou em um dos mercados mais importantes do mundo hoje, revela-se como uma das
grandes contribuições das farmácias de manipulação antigas. Disponível em:
shttp://www.farmaceuticas.com.br/officina-profumo-farmaceutica-di-santa-maria-novella-a-farmacia-mais-antiga-
da-europa/. Acesso em 28 jan. 2018.
153

do que hoje se tem como atividade privativa dos médicos, dado que o trabalho deles envolvia, no
mais das vezes, a própria indicação dos produtos a serem ministrados, bem como de suas
respectivas quantidades. A seguir, com o desenvolvimento propiciado pela industrialização e
massificação do consumo, surge a possibilidade de se produzir em massa os medicamentos, a serem
previamente prescritos por um profissional médico e cuja dosagem será por este estabelecida.

Sem se fazer um regresso “ao infinito” na legislação brasileira regente da matéria, pode-se
afirmar que a Emenda Constitucional nº 1, de 1965, prevê, no parágrafo único do art. 15, que lei
complementar estabeleceria critérios para distinguir as atividades de prestação de serviços de
qualquer natureza, daquelas enquadráveis como operações relativas à circulação de mercadorias.
Vale dizer que o CTN, que apenas após a sua promulgação como lei ordinária passa a ter status de
lei complementar, valeu-se, nos arts. 71 a 73, de critérios para identificar o que seria uma prestação
de serviço passível de tributação pelos municípios.

Dentre os dispositivos aqui contidos, merece ressalva aquele disposto no §2º do art. 71213,
para o qual haveria a possibilidade de tributação tanto pelo ICMS quanto pelo ISS, quando
houvesse prestação de serviços combinada com fornecimento de mercadorias e que apenas nos
casos em que a prestação de serviços superasse em 75% a receita média mensal da atividade de
prestação de serviços, a tributação dar-se-ia exclusivamente pelo ISS.

A seguir, com o Decreto-lei nº 406, de 31 de dezembro de 1968214, convém destacar dois


dispositivos normativos. O primeiro deles, inciso III, § 3º, art. 1º, afeto ao ICM, aduz que este
imposto não incidirá “[...] sôbre a saída, de estabelecimento prestador dos serviços a que se refere
o artigo 8º, de mercadorias a serem ou que tenham sido utilizadas na prestação de tais serviços
ressalvados os casos de incidência previstos na lista de serviços tributados”. O segundo deles, art.

213
Redação originária do § 2º do art. 71 do CTN: “Art. 71. (...) § 2º As atividades a que se refere o parágrafo anterior,
quando acompanhadas do fornecimento de mercadorias, serão consideradas de caráter misto para efeito de aplicação
do disposto no § 4º do artigo 53, salvo se a prestação do serviço constituir o seu objeto essencial e contribuir com mais
de 75% (setenta e cinco por cento) da receita média mensal da atividade.”. Esse caráter misto implicava a tributação
tanto pelo ICMS quanto pelo ISS. No caso, só prevalecia a tributação exclusivamente pelo ISS se a prestação do serviço
constituísse objeto essencial e contribuísse com mais de 75% da receita média mensal da atividade.
214
Estabelece normas gerais de Direito Financeiro, aplicáveis aos impostos sôbre operações relativas à circulação de
mercadorias e sôbre serviços de qualquer natureza, e dá outras providências.
154

8º do DL nº 406/68215, que aponta para a Lista Anexa, não elenca, em qualquer parte, atividade que
possa se assemelhar à de farmácia, mesmo que de manipulação. E dado que essa atividade já era
bem conhecida pela sociedade brasileira216 quando do início de vigência desta lei, não cabem
argumentos de que se trataria de atividade nova ou desconhecida do legislador quando da feitura
da legislação que disporia acerca do ISS e do antigo ICM.

(ii) Já nos termos do Decreto nº 85.878, de 7 de abril de 1981217, são atribuições privativas
dos profissionais farmacêuticos:

I - desempenho de funções de dispensação ou manipulação de fórmulas


magistrais e farmacopéicas, quando a serviço do público em geral ou mesmo de
natureza privada;
II - assessoramento e responsabilidade técnica em:
a) estabelecimentos industriais farmacêuticos em que se fabriquem produtos
que tenham indicações e/ou ações terapêuticas, anestésicos ou auxiliares de
diagnóstico, ou capazes de criar dependência física ou psíquica;
(...)

Assim, existe uma atividade, que é privativa dos profissionais farmacêuticos, tanto na
manipulação de fórmulas, quanto na responsabilidade técnica nas indústrias farmacêuticas. Em
ambos os casos, há o surgimento de um produto individualizado que se insere em um círculo de
mercancia, e para os quais a atividade do farmacêutico é fundamental; contudo, ser fundamental
sua intercessão, em ambos os casos, não faz surgir uma proeminência dessa atividade em
detrimento do produto final. Não se pode olvidar que toda oferta de bem tem um fazer prévio, que
é “subsumido” na coisa.

Ademais, longe de ser resolvido no âmbito das normas de maiores patamares, que tratam
de maneira genérica a questão, pululam as soluções nas chamadas “normas de ordem técnica”,

215
“O impôsto, de competência dos Municípios, sôbre serviços de qualquer natureza, tem como fato gerador a
prestação, por emprêsa ou profissional autônomo, com ou sem estabelecimento fixo, de serviço constante da lista
anexa”. Tal lista, contudo, nos seus itens I e II, traz somente: “I - Médicos, dentistas, veterinários, enfermeiros,
protéticos, ortopedistas, fisioterapeutas e congêneres; laboratórios de análises, de radiografia ou radioscopia, de
eletricidade médica e congêneres; II - Hospitais, sanatórios, ambulatórios, pronto-socorros, bancos de sangue, casas
de saúde, recuperação ou repouso, asilos e congêneres; [...]”.
216
Existem indícios de que a farmácia mais antiga do Brasil date de 1830. Denomina-se “Pharmacia Imperial” e estaria
localizada em Bananal, no Estado de São Paulo. Disponível em: http://www.saopauloantiga.com.br/pharmacia-
popular/. Acesso em 28 jan. 2018.
217
Estabelece normas para execução da Lei nº 3.820, de 11 de novembro de 1960, sobre o exercício da profissão de
farmacêutico, e dá outras providências.
155

como é o caso da Resolução da Diretoria Colegiada da Agência Nacional de Vigilância Sanitária


(ANVISA) nº 44, de 17 de agosto de 2009 (RDC ANVISA nº 44, de 2009), que dispõe sobre “Boas
Práticas Farmacêuticas” para o controle sanitário do funcionamento, da dispensação e da
comercialização de produtos e da prestação de serviços farmacêuticos em farmácias e drogarias
e dá outras providências:

CAPÍTULO VI
DOS SERVIÇOS FARMACÊUTICOS
Art. 61. Além da dispensação, poderá ser permitida às farmácias e drogarias a
prestação de serviços farmacêuticos conforme requisitos e condições
estabelecidos nesta Resolução.
§1º São considerados serviços farmacêuticos passíveis de serem prestados em
farmácias ou drogarias a atenção farmacêutica e a perfuração de lóbulo auricular
para colocação de brincos.
§2º A prestação de serviço de atenção farmacêutica compreende a atenção
farmacêutica domiciliar, a aferição de parâmetros fisiológicos e bioquímico
e a administração de medicamentos.
§3º Somente serão considerados regulares os serviços farmacêuticos
devidamente indicados no licenciamento de cada estabelecimento, sendo vedado
utilizar qualquer dependência da farmácia ou drogaria como consultório ou outro
fim diverso do licenciamento, nos termos da lei.
§4º A prestação de serviços farmacêuticos em farmácias e drogarias deve ser
permitida por autoridade sanitária mediante prévia inspeção para verificação do
atendimento aos requisitos mínimos dispostos nesta Resolução, sem prejuízo das
disposições contidas em normas sanitárias complementares estaduais e
municipais.
§5º É vedado à farmácia e drogaria prestar serviços não abrangidos por esta
Resolução.

Assim, conforme disposto nos §§ 1º e 2º do art. 61 ora transcritos, são serviços


farmacêuticos aqueles “[...] prestados em farmácias ou drogarias a atenção farmacêutica e a
perfuração de lóbulo auricular para colocação de brincos”, compreendendo “[...] a atenção
farmacêutica domiciliar, a aferição de parâmetros fisiológicos e bioquímico e a administração de
medicamentos”. Vale ressaltar que, nos termos do art. 94 desta mesma decisão, “[...] as farmácias
que possuírem atividade de manipulação de medicamentos de uso humano, além dos requisitos
estabelecidos nesta Resolução, devem atender às Boas Práticas de Manipulação de Medicamentos
para Uso Humano, conforme legislação específica”, o que significa que a elas são atribuíveis essas
mesmas definições.
156

Nesse ponto, menciona-se à Resolução da Diretoria Colegiada da ANVISA nº 67, de 8 de


outubro de 2007, que dispõe sobre Boas Práticas de Manipulação de Preparações Magistrais e
Oficinais para Uso Humano em farmácias, e não, na prestação de serviços farmacêuticos218.

Nessa medida, desenvolver atividade privativa de farmacêutico não quer dizer que,
necessariamente, o resultado final desse trabalho seja delimitado por uma prestação de serviço pois,
como já visto acima, as indústrias de medicamentos também não podem prescindir desses
profissionais em sua atuação industrial.

(iii) Ainda outro detalhe importante, advindo das chamadas “normas técnicas”, merece ser
enaltecido. E tal se dá com base na consulta à Classificação Nacional de Atividades Econômicas
(CNAE), realizada pela Comissão Nacional de Classificação (CONCLA), subordinada ao Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)219 220
. Tal classificação, dada a destinação legal
atribuída ao IBGE, mormente no que respeita ao conhecimento da realidade econômica, visando
ao planejamento econômico, é utilizada pela Administração Pública para identificação das
atividades desenvolvidas pelo setor produtivo no País, com base em fartos textos técnicos
internacionais221 222.

218
Duas definições trazidas por esta RDC nº 67, de 2007, convém ser destacadas: “Farmácia: estabelecimento de
manipulação de fórmulas magistrais e oficinais, de comércio de drogas, medicamentos, insumos farmacêuticos e
correlatos, compreendendo o de dispensação e o de atendimento privativo de unidade hospitalar ou de qualquer outra
equivalente de assistência médica” e “Medicamento: produto farmacêutico, tecnicamente obtido ou elaborado, com
finalidade profilática, curativa, paliativa ou para fins de diagnóstico”. Pela primeira definição, igualmente são tratados
aqueles estabelecimentos em que há a manipulação de fórmulas e o comércio de drogas e, pela segunda definição,
igualmente são considerados como medicamentos aqueles obtidos pela manipulação ou aqueles industrializados.
219
É de grande valia estudar a cronologia da documentação técnica exarada pelo IBGE, resultado do trabalho da
CONCLA, e cuja primeira Tabela de Natureza Jurídica unificada no Brasil foi aprovada pela Resolução nº 001, de 22
de dezembro de 1995. Disponível em: https://cnae.ibge.gov.br/documentacao/ cronologia/natureza-juridica.html.
Acesso em 28 jan. 2018.
220
Na Lei nº 5.878, de 11 de maio de 1973, que dispõe sobre a Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
– IBGE, e dá outras providências, determina-se que “[...] constitui objetivo básico do IBGE assegurar informações e
estudos de natureza estatística, geográfica, cartográfica e demográfica necessários ao conhecimento da realidade
física, econômica e social do País, visando especificamente ao planejamento econômico e social e à segurança
nacional”. Ademais, o seu § 1º indica que “[...] a atuação do IBGE se exercerá mediante a produção direta de
informações e a coordenação e orientação e o desenvolvimento das atividades técnicas dos sistemas estatístico e
cartográfico nacionais”. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L5878.htm. Acesso em 28 jan.
2018.
221
Disponíveis em: https://cnae.ibge.gov.br/documentacao/textos-tecnicos.html. Acesso em 28 jan. 2018.
222
Com a identicação das atividades econômicas pela CNAE ocorre um movimento semelhante ao de padronização
da nomenclatura dos bens do Sistema Harmonizado que são comercializados no mundo, cuja matriz jurídica é a
Convenção Internacional sobre o Sistema Harmonizado de Designação e de Codificação de Mercadorias, aprovada no
157

Tais instrumentos de padronização guiam-se por normas internacionais advindas do


Inventário das Classificações da Nações Unidas223 224
. No caso das chamadas farmácias de
manipulação, estas são classificadas no mesmo código CNAE das farmácias em que não há a
manipulação de produtos, isto é, na “Seção G”, na mesma “Divisão 47”, de “comércio varejista”
dado que, nestas atividades, predomina o caractere de mercadoria e não de prestação de serviço.
Nesse momento, toda essa divisão está sujeita à incidência do ICMS, e não do ICMS.

Assim, longe de querer criar especificidades onde não existem, pretender que o fazer
implícito no comércio de produtos farmacêuticos manipulados seja superior à obrigação de dar que
aí ocorre é subverter a dinâmica dessa atividade no Brasil, a qual encontra empresas congêneres
em outras partes do mundo. E toda essa subversão se dá pela diminuição do ônus tributário, o que
não deixa de ser louvável por parte das empresas, mas que não pode comprometer as estruturas
dogmáticas do Direito Tributário nem as classificações internacionais de atividades econômicas.

(iv) Por fim, ainda que diante de fartos precedentes no STJ, chegue-se à conclusão de que
as farmácias de manipulação estão, em todas as hipóteses, sujeitas ao ISS, os fiscos estaduais
compreendem que tais julgados não podem obstaculizar sua atividade fiscalizatória, na medida em

Brasil pelo Decreto legislativo nº 71, de 11 de outubro de 1988 (CAPARROZ, 2012, p. 470). Tal instrumento facilita
o comércio internacional e, na atualidade, dada a diversidade de itens disponíveis para a mercancia, torna possível o
comércio com níveis ótimos de desempenho. Da mesma maneira, seguindo padrões internacionais, principalmente
pelo Inventário das Classificações das Nações Unidas, são fixadas classificação das atividades econômicas também é
guiada por padrões internacionais, o que dialoga com um país em atividade no mercado global.
223
Disponível em: https://unstats.un.org/unsd/class/family/default.asp. Acesso em 28 jan. 2018.
224
A fim de aprofundar um pouco mais a questão, foi encaminhado um em-mail à Central de Atendimento CNAE-
IBGE, contendo a seguinte exposição, por conta do aprofundamento desta questão: “Estou fazendo uma tese em Direito
Tributário na PUC SP e gostaria de tirar dúvidas acerca do enquadramento na CNAE das farmácias de manipulação.
Vi que normalmente elas são classificadas na CNAE 4771-7/02 mas tenho dificuldades em assim enquadrar pois os
nosso tribunais têm reiteradamente decidido que o que as caracterizam é a prestação de serviços, e não o dar algo.
Olhei na divisão de serviços e não vi nada aproximado a serviços farmacêuticos. Vcs poderiam indicar qual o
posicionamento do IBGE acerca disso e se há alguma norma internacional acerca da matéria?”. A resposta do órgão
veio com o seguinte posicionamento: “Prezado(a) Sr(a), A CNAE segue princípios da classificação internacional da
ONU a qual se
deriva, me refiro à ISIC (International Standard Industrial Classification of All Economic Activities).
Para nós as farmácias de manipulação que também possuem comércio de outros
produtos (não manipulados) classificamos no código que cita (4771-7/02). As centrais de manipulação, ou seja, uma
unidade que recebe pedidos de clientes consumidores ou clientes pessoas jurídica são classificados na
indústria (2121-1/01). A administração pública (prefeituras, juntas comerciais, órgãos de
fiscalização etc...) tem a necessidade de visualização desta atividade comoserviço, no entanto, para a CNAE está
compreendida nas atividades citadas. Podemos dizer que é um uso dado à CNAE, ao qual não temos domínio.
Atenciosamente, CENTRAL CNAE/IBGE”.
158

que essas mesmas empresas apresentam produtos em suas prateleiras, ou modernamente em seus
sites, sem qualquer peculiaridade de personalização ou de encomenda com aquele que o adquire.
São medicamentos, cosméticos, artigos de perfumaria, que se apresentam igualmente a qualquer
outro, vendido nas farmácias convencionais.

Nessa medida, as decisões judiciais que enquadram tal atividade como prestação de
serviços farmacêuticos, compulsando ao pagamento do ISS, jamais têm o condão de estabilizar o
sistema tributário, na medida em que essas farmácias são verdadeiros comércios varejistas e
podem, faticamente, comercializar mercadorias. Na verdade, pugna-se pela alteração na própria
Lei Complementar nº 87, de 1996, fazendo constar no inciso I do art. 2º mais uma previsão de
ficção legal225, a seguinte redação:

Art. 2º. O imposto incide sobre:


I - operações relativas à circulação de mercadorias, inclusive os fornecimentos de
alimentação e bebidas em bares, restaurantes e estabelecimentos similares, bem
como de medicamentos, cosméticos, produtos de higiene pessoal e perfumes,
alimentos para fins especiais e produtos para saúde, ou congêneres, em farmácias
de manipulação;
[...]”

Nesse ponto, os serviços farmacêuticos a que se refere a Lei Complementar nº 116, de 2003,
seriam apenas aqueles constantes da RDC ANVISA nº 44, de 2009, compreendendo a atenção
farmacêutica domiciliar, a aferição de parâmetros fisiológicos e bioquímicos e a administração de

225
Ao tratar da temática das “Ficções jurídicas no Direito Tributário”, Cristiano Carvalho (2008) alude à previsão de
tributação pelo ICMS no fornecimento de alimentação e bebidas em bares, restaurantes e estabelecimentos similares.
Ainda que discordando do autor, não se pode deixar de mencionar a argumentação desenvolvida, a qual representa
mais uma face possível de solução do conflito de competência entre Estados e Municípios, quando se fala de ICMS e
de ISS. Diz o autor que se trata de “[...] ficção legal, pois desconsidera a natureza de obrigação de fazer e a tributa
como se fosse venda de mercadoria. Ninguém vai a um restaurante para comprar um filé com fritas ou comprar um
drinque, mas, sim, para contratar o serviço que aquele estabelecimento específico presta, seja porque se diferencia dos
demais pela qualidade dos pratos ali preparados ou pela decoração do ambiente, pelo serviço atencioso, etc. Quando
alguém quer comprar comida, vai ao mercado e não a um restaurante ou bar”. Tal visão acerca do fornecimento de
refeições pode até parecer regra para uma parcela (ainda que diminuta) da população que se alimenta fora de casa. Nas
mais das vezes, e talvez represente a maior parte dos casos, contudo, se vai a um restaurante, ou a uma marmitaria, ou
similar, para comprar alimentos e, de preferência, escolhe-se em razão do preço. Não se pode olvidar, porém, que
existe sim uma parcela que escolhe o local em que vai se alimentar em virtude da atividade personalíssima desenvolvida
por um chef, por exemplo. Nesses casos, inclusive, o cliente pode nem sequer saber o que vai comer, pois confia no
talento do profissional e no serviço prestado; mas, em sede de tributação, lidar com essas complexidades pode
inviabilizar a própria segurança da distribuição de competências. Fez bem o legislador nacional em deixar elucidado
que cabe ICMS neste caso. Se não o tivesse feito, talvez tal temática fosse tão ou mais frequente do que os debates
sobre as farmácias de manipulação. Faria melhor ainda se inovasse e solvesse este problema no plano da legislação
complementar nacional.
159

medicamentos. Todos esses são serviços que podem ser disponibilizados em farmácias, a serem
exercidos privativamente por profissionais farmacêuticos, remuneráveis pelos seus consumidores
finais e sujeitos ao ISS.

7.2 STF: RE Nº 176.626-3/SP E UM CONCEITO CONSTITUCIONAL DE MERCADORIA


Ainda incorporado a um “passado que ainda se faz presente”, em razão do julgamento que
ainda se encontra pendente no STF, relativamente à ADI nº 1.945/MT, merece observação o
julgamento do Recurso Extraordinário nº 176.626-3/SP. Com base nos votos deste processo, alguns
procedimentos adotados parecem harmonizar-se a uma interpretação como “extração de conteúdo”
da norma do que, propriamente, uma interpretação como “construção de sentido”, o que é uma das
características daquele “momento” hermenêutico.

E isso encontra fortalecimento dogmático ao se estruturar na convicção de que a


discriminação de competências tributárias no Brasil é informada pelo princípio da rigidez, tendo a
Constituição se utilizado de demarcações profundas, precisas e exaustivas no que concerne à
repartição das competências tributárias (ATALIBA, 1968, p. 16). Dessa forma, tem-se um
legislador constitucional sobre-humano226, “Deus Constitucional” (ANDERLE, 2016, p. 27), o
qual edita normas para simples mortais, que a deturpariam no processo de produção de sentido,
isto é, no transcurso hermenêutico.

Aqui, alguns excertos do voto do ministro Sepúlveda Pertence, relator do processo, são
dignos de destaque, para posterior análise:

a controvérsia, [...], é insolúvel sem a precisão do conceito de ‘mercadoria’,


contido no art. 155, II, CF, e essencial à demarcação do âmbito constitucional de
incidência possível do ICMS, incluído por aquele dispositivo na competência do
Estado. [...] Estou, de logo, em que o conceito de mercadoria efetivamente não
inclui os bens incorpóreos, como os direitos em geral: mercadoria é bem
corpóreo objeto de atos de comércio ou destinado a sê-lo. [...]São programas
fabricados em massa e, como são vocacionados a um vasto público, são até
comercializados nos hipermercados - daí que também se fale aqui de software
"off the shelf". [...]".[...] Seja qual for o tipo de programa, contudo, é certo, não
se confundirão a aquisição do exemplar e o licenciamento ou cessão do direito de
uso, também presente até quando se cuide do software "enlatado" ou "de
prateleira". [...] De fato. O comerciante que adquire exemplares para revenda,

226
Porquanto a perfeição ainda não é caractere ínsito ao ser humano.
160

mantendo-os em estoque ou expondo-os em sua loja, não assume a condição


de licenciado ou cessionário dos direitos de uso que, em consequência, não
pode transferir ao comprador: sua posição, ai, é a mesma do vendedor de
livros ou de discos, que não negocia com os direitos do autor, mas com o
corpus mechanicum de obra intelectual que nele se materializa. Tampouco,
a fortiori, a assume o consumidor final, se adquire um exemplar do programa
para dar de presente a outra pessoa. E é sobre essa operação que cabe
plausivelmente cogitar da incidência do imposto questionado. (STF, RECURSO
EXTRAORDINÁRIO: RE 176.626-3/SP. Relator: Min Sepúlveda Pertence. DJ
publicado em 11/12/1998. Disponível em:
http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=222535.
Acesso em 06 fev. 2018)

As razões deste julgamento foram utilizadas no RE nº 199.464-9/SP, em um voto ainda


mais “enxuto” e que olvida as complexidades inerentes à matéria227. Além dos julgamentos acima,
Simone Rodrigues Costa Barreto (2015, pp. 146-151) ainda destaca o RE nº 185.789/SP e, no STJ,
o REsp nº 68.455/SP. Culmina a tese da autora com o julgamento da Medida Cautelar na ADI nº
1.945/MT, que certamente aprofundará, com o julgamento do mérito, a questão afeta a um conceito
constitucional de mercadoria.

Com esteio, porém, no RE nº 176.626-3/SP (pois o RE nº 199.464/SP apenas repete o que


neste fora disposto) pode-se afirmar acerca “do”228 conceito constitucional de mercadoria:

227
RE nº 199.464-9/SP: “VOTO: O SENHOR MINISTRO ILMAR GALVÃO – (Relator): De acordo com a
sentença, que acabu reformada pelo acórdão recorrido (fls. 572): ‘Efetivamente, a atividade da autora é de produção
ou reprodução de programa de computador e sua comercialização. No tocante à obra intelectual esta não lhe pertence,
mas, sim, à MICROPO, mas mesmo que fosse ela a criadora, assim mesmo, incidiria o ICM/ICMS’. O acórdão,
todavia, para reformar a sentença, entendeu que ‘a autora não comercializa suporte físico (disquete), mas dele se utiliza
para transferir o conhecimento que, por direito, detém’. (fls. 703). Não é esse, entretanto, o entendimento que
predomina no STF acerca da matéria. Com efeito, no RE nº 176.626, que cuidou da hipótese de cessão de direito de
uso de programas de computador, assentou o voto do eminente Relator, Min. Sepúlveda Pertence, acolhido por
unanimidade a distinção existente entre programas standards, destinados a uma pluralidade de utilizadores, fabricados
em massa e comercializados até nos supermercados e os programas destinados ao atendimento das necessidades
específicas de um determinado usuário, preparados a pedido e de acordo com as solicitações deste. [...] Tratando-se,
no caso dos autos, da hipótese descrita, é fora de dúvida que se cuida de operações de circulação de mercadorias
sujeitas ao ICMS. [...]”. ) (STF, RECURSO EXTRAORDINÁRIO: RE 199.464/SP. Relator: Min Sepúlveda Pertence.
DJ publicado em 30/04/1999. Disponível em:
http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=236681. Acesso em 06 fev. 2018)
228
Aqui se destaca para fins de indicar que haveria uma suposta determinação neste conceito: seria “o” conceito de
mercadoria decorrente da CF/88. E esta suposição se afirma na inexistência de uma delimitação rígida e definitiva dos
conceitos contidos nas materialidades que compõem as competências tributárias.
161

(i) não houve esforço argumentativo que embasasse a afirmação do ministro Sepúlveda
Pertence229 de que “estou, de logo, em que o conceito de mercadoria230 efetivamente não inclui
os bens incorpóreos, como os direitos em geral: mercadoria é bem corpóreo objeto de atos de
comércio ou destinado a sê-lo”. Dessa forma, diferentemente de outros julgamentos, em que se
buscava indicar o conceito constitucional dos institutos utilizados pela Constituição Federal para
fixar as materialidades a serem exploradas pelos entes políticos nas exações231, parece o STF ter-
se firmado no senso comum, ainda que, há época, já houvesse farto desenvolvimento doutrinário
acerca da matéria que pudesse ao menos propiciar uma delimitação, ainda que imprecisa, acerca
da matéria.

(ii) Nesse ponto, longe de propor uma construção do sentido constitucional de mercadoria,
o julgado parece invocar232 o conteúdo que “sempre esteve na Constituição”, como algo a ser
extraído pelo julgador. E foi com base neste conceito, que se passaram às questões relativas ao
software e que não serão objeto de análise propriamente dita aqui, mas no Livro II que se segue.

(iii) O derradeiro ponto, entretanto, precisa ser enaltecido: ainda que sem esforço
argumentativo que se possa dizer suficiente, este julgado do ano de 1998, tenta delimitar, ainda que

229
De modo bastante semelhante em relação à parca argumentação, e, ainda mais, em um caso que representava uma
subversão da jurisprudência dominante no STJ, André Karam Trindade (2016, p. 31) descreve a decisão tomada pelo
ministro Joaquim Barbosa, do STF, na AP 470, pela qual foi negado o pedido de autorização para trabalho externo
formulado por José Dirceu e outros condenados: “[...] para defender sua posição, o Ministro não apresentou qualquer
argumentação. Simplesmente deixou de enfrentar a jurisprudência existente sobre a questão, invocando um
precendente isolado [...]. E isso é tudo”. A “denúncia” desse fato foi feita em matéria publicada no ConJur, ao que se
seguiram notáveis clamores de rechaço e de apoio, conforme expõe Trindade.
230
O emprego da expressão “conceito de mercadoria” quer plasmar a defesa de um “conceito constitucional de
mercadoria” como “[...] argumento retórico de que se vale o intérprete, já que ninguém ousaria falar de competência
tributária legislativa com base em conteúdos de significação construídos exclusivamente no âmbito infraconstitucional.
Todos falam em nome da Constituição” (destacado) (ANDERLE, 2016, p. 35).
231
Fabiana Del Padre Tomé e Fernanda Mara Macedo Pacobahyba (2017, pp. 81-99) discorrem acerca do IPVA,
fazendo-o em relação a vários julgamentos no STF (RE nº 134.509/AM, RE nº 255.111/SP, RE nº 397.550/PR, RE nº
128.734/AM, RE nº 128.735/AM, AI nº 488.988/SP, AI nº 526.452/SP, AI nº 527.054/SP, AI nº 500.049/SP, RE nº
379.572/RJ, AI nº 699.802) e que expressam a dimensão semântica da expressão “veículos automotores”, utilizada
como complemento do critério material do imposto. Nesse ponto, diferentemente da maneira como foi empreendida
pelo STF nº RE nº 176.626-3/SP, em análise, o artigo deixa patente a ideia de que, ao menos, os ministros do STF
utilizaram-se de argumentos históricos, a fim de reduzir o conteúdo do complemento aos veículos terrestres: “Nesse
sentido, é interessante observar que o Ministro Sepúlveda Pertence, em seu voto no RE nº 379.572/RJ, chega a afirmar
que continua ‘convencido de que a interpretação literal, no caso, desconhece o sistema da Constituição. O IPVA é
claramente um substitutivo da velha taxa rodoviária única. As embarcações marítimas estão sujeitas a outra disciplina,
que é a federal’.” (destacado no original).
232
Ou, talvez, mais apropriadamente, evocar.
162

sob bases frágeis, o uma parte do complemento do critério material do ICMS e, nesse intento
fracassa, pois não consegue oferecer uma resposta que contemple as imensas possibilidades do
signo “mercadoria”;

(iv) O modo de argumentação utilizado, que tenta se embasar em argumentos de autoridade


irreprimíveis e que elabora objeto certo, preciso, delimitado, dentro de um sistema rígido, denota-
lhe o caráter de decisão de um “passado que ainda se faz presente”, na medida em que tentar
construir com suporte em arquétipos de certeza e completudo.

(v) Deve-se enfatizar que parcela da doutrina (dentre todos, cite-se José Souto Maior Borges
e Geraldo Ataliba), desde o ICM, defendia o conceito de mercadoria conectado ao “direito
comercial” e identificável como “bem móvel sujeito a mercancia”, aduzindo ainda que “o
constituinte, referindo a essência da materialidade da hipótese de incidência, fixou as balizas a
serem observadas pelos legisladores ordinários, ao delimitar a competência tributária de cada qual”
(ATALIBA, 1980, pp. 56-57).

Diferentemente disso, no entanto, o movimento do “futuro que já se faz presente”, com as


possibilidades hermenêuticas do Constructivismo Lógico-Semântico, permitiria a compreensão de
que a Constituição não foi tão precisa e exaustiva na delimitação da competência tributária
(ANDERLE, 2016, p. 25), pelos motivos a seguir expostos:

Primeiro: sabemos que a Constituição não traz em si conceitos, mas apenas


signos. O sentido atribuído ao signo é obra do intérprete que constrói o
sentido de significação conforme o contexto interpretativo. Como então
defender um conceito preciso e imutável para expressões como [...] circulação de
mercadorias? Todas essas palavras têm seu contéudo preenchido de acordo com
a própria evolução cultural do direito, guiada por ideologias dominantes. [...]
Segundo: a Constituição não dispendeu muitas palavras no desenho de cada
uma dessas materialidades. [...] demandando maior elucidação por parte do
legislador complementar. Onde, portanto, identificar essa exaustividade?
Terceiro: a própria Constituição foi demasiadamente clara ao estabelecer as
funções da lei complementar, que, em termos expressos, deve dispor sobre
conflitos de competência, limitações constitucionais ao poder de tributar e
normas gerais de direito tributário, inclusive fato gerador, base de cálculo e
contribuinte dos impostos. Ceifar qualquer uma dessas funções é fazer uma
interpretação reducionista do próprio texto, desconectada dos objetivos do
legislador constituinte e da almejada harmonia do próprio sistema tributário
nacional. (destacado) (ANDERLE, 2016, pp. 25-26).
163

Nessa mesma linha, considerando o Texto Constitucional como portador de signos, pode-
se afirmar que há a possibilidade de um empreendimento hermenêutico, com vistas a investigar o
uso dos juristas em contexto anterior à nova ordem constitucional (BARRETO, 2011, p. 34), ao
que se pode acrescer, o emprego também constante de outros documentos normativos, apenas como
medida para se estabelecer uma pré-compreensão para o trajeto interpretativo que se seguirá, cuja
dificuldade já foi alertada por Canotilho (2003, p. 1218), ao tratar da interpretação do Texto
Constitucional:

[...] na interpretação constitucional podem ser tomadas em consideração duas


convenções linguísticas diferentes. Isto num duplo sentido: (1) escolha entre a
convenção baseada no uso científico e a convenção baseada no uso normal; (2)
escolha entre a convenção (científica ou normal) linguística do tempo em que
surgiu a lei constitucional e a convenção do tempo da sua aplicação (historicismo
e atualismo). (destacado no original).

Dessa maneira, no que diz respeito às materialidades sobre as quais incidirão as normas
tributárias, conclui-se que: o intérprete jamais estará “deitado em berço esplêndido” em sua
atividade de construção de sentido; contudo, não se encontra totalmente nu: para iniciar, dispõe do
Texto Constitucional e, logo a seguir, das leis complementares nacionais que disponham sobre
conflitos de competência, limitações constitucionais ao poder de tributar e normas gerais de direito
tributário. Além disso, pode (deve) lançar mão da jurisprudência e da doutrina sedimentadas acerca
da matéria e, por fim, há de levar em conta o contexto233 sociocultural em que está fatalmente
imerso234. O intérprete, assim, “há de interpretar também a realidade, os movimentos dos fatores
reais do poder, compreender o momento histórico no qual as normas [...] são produzidas – vale

233
A importância do contexto é absolutamente incontestável. Ela se identifica, assim, com a função pragmática do
texto da norma e com a própria pré-compreensão. Neste momento, é singular a observação de Canotilho (2008, p.
1219) para quem “palavras e expressões do texto da norma constitucional (e de qualquer texto normativo) não têm
significado autónomo, ou seja, um significado «em si», se não tomar em conta o momento de decisão dos juristas e o
carácter procedimental da concretização de normas. Daí que: (1) a decisão dos «casos» não seja uma «paráfrase» do
texto da norma, pois o texto possui sempre uma dimensão comunicativa (pragmática) que é inseparável dos sujeitos
utilizadores das expressões linguísticas, da sua compreensão da realidade, dos seus conhecimentos privados (neste
sentido falam também as correntes hermenêuticas do efeito criador da «pré-compreensão»); (2) o texto da norma
aponta para um referente, o que quer dizer cconstituir o texto um sinal linguístico cujo significado aponta para um
universo de realidade exterior ao texto”. (destacado no original).
234
Como bem lembra Nelson Saldanha (1992), há de se promover a fusão entre os horizontes do legislador (produtor
do direito) e do legislador (aplicador do direito), posto que o tempo de nenhum deles é distinto nem melhor do que o
do outro: ambos vivem em um só tempo, que é o da tradição.
164

deizer: momento da passagem da dimensão textual para a dimensão normativa” (GRAU, 2014, p.
88).

Nada disso, entretanto, é possível se se acredita em uma linguagem inteiramente precisa:


“[...] termos têm suas definições dependentes de outros termos, num regresso que só termina, por
assim dizer, na ostensão. [...] a precisão se mostra ideal utópico [...]” (HEGENBERG, 1974, p.
121). Assim, a Hermenêutica Jurídica se engaja, “[...] a cada instante, neste esforço no sentido de
efetuar um ajuste intelectual com o contorno, resolvendo problemas.” (destacado) (HEGENBERG,
1974, p. 121).

Como se vê, longe de representar tarefa simples, a Hermenêutica Jurídico-Tributára é


trabalho dos mais complexos, que envolve a solução de problemas, dada a complexidade do
material com a qual se trabalha: a palavra. Ignorar essa realidade é descurar das imensas
possibilidades que os signos podem ofertar, enclausurando-se em uma “realidade artificial
simplista e ordinária”, e que não contribui para atingir os valores que o Direito quer ver
consagrados.

7.3 STF: O RETROCESSO NO JULGAMENTO DO RE Nº 593.849 E DAS ADIS NºS 2.665/PE


E 2.777/SP ANTE A CONSOLIDAÇÃO HAVIDA ULTERIORMENTE COM A ADI Nº 1.851:
COMO O STF FUNDAMENTOU A TRANSFORMAÇÃO DO PRINCÍPIO DA EFICIÊNCIA235
EM MERA VANTAGEM PRAGMÁTICA

Dentre os meios previstos constitucionalmente, a substituição tributária repousa


sobranceira dentre as que mais tem trazido ganhos significativos para a eficientização da máquina
estatal e da facilitação do cumprimento das obrigações tributárias principais e dos correspectivos
deveres instrumentais.

Tal instituto, introduzido na Constituição Federal de 1988 pela Emenda Constitucional nº


3, de 1993, na redação do § 7º do art. 150 (“A lei poderá atribuir a sujeito passivo de obrigação

235
Em pesquisa à jurisprudência do STF, especificamente quanto a acórdãos e repercussão geral, ao se buscar pelas
palavras “eficiência” e “ICMS” conjuntamente, aparecerem nove documentos. Destes nove, porém, apenas quatro se
referem especificamente ao ICMS. São os seguintes processos: Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão
(ADO) nº 25/DF, Recurso Extraordinário (RE) nº 593.849/MG, Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº
2.777/SP e Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 1.851/AL. Destes quatro processos, três cuidam acerca da
substituição tributária, e serão apreciados nesta parte do trabalho.
165

tributária a condição de responsável pelo pagamento de imposto ou contribuição, cujo fato gerador
deva ocorrer posteriormente, assegurada a imediata e preferencial restituição da quantia paga, caso
não se realize o fato gerador presumido”), representou uma medida que culminava com a
estruturação de um sistema de arrecadação mais moderno, “enxuto”, concentrado em poucas
cadeias, o que reduz significativamente a sonegação, que promove a justiça fiscal e favorece o
dinamismo tanto para os contribuintes quanto para as administrações tributárias.

Para tanto, pode-se estabelecer a substituição tributária interestadual, cuja incidência do


ICMS-ST é disciplinada por meio de convênio ou protocolo celebrado no âmbito do Conselho
Nacional de Política Fazendária (CONFAZ) (BERGAMINI, 2015, p. 611), ou a chamada
substituição tributária interna, estabelecida pelo próprio ente federado competente, nos termos de
sua legislação especifica.

Ainda mais, “[...] há três possíveis formas de se implementar a substituição tributária: (i)
substituição tributária regressiva; (ii) substituição tributária concomitante; ou (iii) substituição
tributária progressiva” (BERGAMINI, 2015, p. 611)236. Os limites desta abordagem situam tanto
as substituições interestaduais quanto as internas e, em ambos os casos, apenas as hipóteses de
substituição tributária progressiva ou “para frente”.

Conforme defendeu o Ministro Eros Grau, em seu voto na ADI nº 2.777,

7. A substituição tributária é uma técnica de administração tributária que


instrumenta o eficiente controle do pagamento do tributo em segmentos
econômicos de difícil fiscalização, nos quais se manifesta grande margem de
sonegação fiscal [ADI 1.851, relator o Ministro Ilmar Galvão]. Técnica de
administração tributária expressamente prevista pela Constituição. (destacado)
(STF, AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE: ADI 2.777/SP.
Relator: Min Ricardo Lewandowski. DJe 143, publicado em 30/06/2017.
Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP
=TP&doc ID=13120781. Acesso em 29 jan. 2018).

236
Para Carrazza (2015, p. 388), contudo, só há que se falar em duas divisões relativas à substituição tributária: “O
instituto da substituição tributária subdivide-se em: a) substituição tributária para trás; e b) substituição tributária para
frente. Só a substituição tributária “para trás” pode prosperar no Brasil. A outra (a substituição tributária ‘para
frente’) – posto muito difundida, na prática – é inconstitucional, porque agride valores que nossa Lei Maior encampou
e que os interesses fazendários não podem atropelar.” (destacado no original).
166

Deve-se ressaltar apenas, que, historicamente, a substituição tributária não representa


modalidade de antecipação nova, trazida pela CF/88, pois ela já constava na redação originária do
CTN, em seus artigos 58, § 2º, 128, inciso II, bem como sofrera modificações com o Decreto-lei
nº 406, de 1968, e da Lei Complementar nº 44, de 1983. Não se pode olvidar, ainda, do fato de que
já constava também no Convênio ICM nº 66, de 1988, o qual foi introduzido em atenção ao § 8º
do art. 34, da ADCT, na CF/88237.

Sem representar, no entanto, um instrumento imune a qualquer crítica, a técnica da


substituição tributária238 sempre foi rechaçada por parcela respeitável da doutrina239 por ferir
aspectos dogmáticos importantes da Teoria Geral do Direito Tributário, especialmente ao
determinar o pagamento de tributo sem que haja “fato” ocorrido (pleonasmo), o que afronta
princípios básicos norteadores da moderna Ciência do Direito, o que seria, de qualquer modo,
indefensável nesta tese.

Conforme defende Sérgio Gonini Benício (2010, p. 136),

[...] a responsabilidade do substituto, nessa situação, abarca tributos que nem


sequer foram ainda gerados, em razão da não concretização dos fatos
imponíveis. Em outras palavras, a substituição tributária progressiva se estrema
das demais figuras subjetivas passivas em razão de o substituto ter que recolher
valores atinentes a toda a incidência tributária do ICMS, ao longo da cadeia
circulatória, não obstante ainda não tenham sequer ocorrido os respectivos
fatos geradores.
[...]
A presunção da ocorrência dos fatos geradores vindouros, assim, enseja a adoção
de mecanismos que buscam compelir o substituto a pagar, em nome de terceiros
colocados em etapa posterior na cadeia circulatória, impostos devidos por estes
em virtude da (apenas) provável realização da respectiva situação imponível.

Tal entendimento, porém, não encontrou reverberação no STF, dado que, conforme acentua
o Min. Edson Fachin, em seu voto no RE nº 593.849/MG,

237
O Relator do RE nº 593.849/MG, Ministro Edson Fachin, no início do ser voto, inclui um “Histórico jurisprudencial
e normativo da substituição tributária progressiva”, no qual ficam evidenciados todos os diplomas normativos que já
dispuseram sobre a substituição tributária no Brasil (STF, RECURSO EXTRAORDINÁRIO: RE 593.849/MG.
Relator: Min Edson Fachin. DJe 068, publicado em 05/04/2017. Disponível em:
http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=12692057. Acesso em 29 jan. 2018).
238
E aqui se fala da substituição tributária progressiva ou “para frente”.
239
Na obra clássica de ICMS, Roque Antonio Carrazza (2015) dedica todo o Capítulo IV, intitulado “A manifesta
inconstitucionalidade da substituição tributária ‘para frente’, no ICMS”.
167

A despeito do processo constituinte derivado de incorporação do mecanismo ao


Texto Constitucional, esta Corte assentou a tese de que a substituição tributária
progressiva já era possível, inclusive, a fatos anteriores à promulgação da referida
emenda, por força da recepção do Decreto-Lei 406/68 pela ordem constitucional
vigente, não tendo ocorrido omissão legislativa para fins de edição do Convênio
ICM supracitado, à luz do art. 34, §8º, do ADCT. (STF, RECURSO
EXTRAORDINÁRIO: RE 593.849/MG. Relator: Min Edson Fachin. DJe 068,
publicado em 05/04/2017. Disponível em:
http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=12692057.
Acesso em 29 jan. 2018).

Com o fito de atenuar as críticas ao modelo, a parte final do art. 150, § 7º, CF, previu que
ficasse “[...] assegurada a imediata e preferencial restituição da quantia paga, caso não se realize o
fato gerador presumido”, isto é, assegurando-se que se “fato” não houver, caberia ao fisco restituir
a quantia paga antecipadamente. E isto jamais foi obstaculizado pelos fiscos, pois a Lei
Complementar nº 87, de 1996240, em seu art. 10, já assegurava a restituição do imposto caso o fato
gerador não se realizasse e, se o Fisco não se pronunciasse sobre tal pedido em noventa dias, “[...]
o contribuinte substituído poderá se creditar, em sua escrita fiscal, do valor objeto do pedido,
devidamente atualizado segundo os mesmos critérios aplicáveis ao tributo.” (Parte final, § 1º, art.
10, LC nº 87/96).

Por motivos já expostos, a constitucionalidade dessa técnica já foi questionada no Poder


Judiciário, por motivos distintos e em algumas ocasiões241. Dentre todas, cite-se a ADI nº 1.851,
que tem por base o Convênio ICMS nº 13, de 1997242, celebrado no âmbito do CONFAZ, e cuja
ementa coaduna-se com o sentido do instituto e define os contornos do “fato gerador presumido”:

TRIBUTÁRIO. ICMS. SUBSTITUIÇÃO TRIBUTÁRIA. CLÁUSULA


SEGUNDA DO CONVÊNIO 13/97 E §§ 6.º E 7.º DO ART. 498 DO DEC. N.º
35.245/91 (REDAÇÃO DO ART. 1.º DO DEC. N.º 37.406/98), DO ESTADO
DE ALAGOAS. ALEGADA OFENSA AO § 7.º DO ART. 150 DA CF

240
Dispõe sobre o imposto dos Estados e do Distrito Federal sobre operações relativas à circulação de mercadorias e
sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, e dá outras providências.
(LEI KANDIR)
241
Além dos processos que diretamente são tratados neste trabalho, cite-se o RE nº 77.462, de relatoria do Min. Bilac
Pinto, RE nº 213.396, de relatoria do Min. Ilmar Galvão,
242
Harmoniza procedimento referente à aplicação do § 7º, artigo 150, da Constituição Federal e do artigo 10 da Lei
Complementar 87/96, de 13.09.96. Vale a transcrição da Cláusula Segunda do citado convênio, pela qual “Não caberá
a restituição ou cobrança complementar do ICMS quando a operação ou prestação subsequente à cobrança do
imposto, sob a modalidade da substituição tributária, se realizar com valor inferior ou superior àquele estabelecido
com base no artigo 8º da Lei Complementar 87, de 13 de setembro de 1996”. Disponível em:
https://www.confaz.fazenda.gov.br/legislacao/ convenios/convenio-icms/1997/cv013_97. Acesso em 06 fev. 2018.
168

(REDAÇÃO DA EC 3/93) E AO DIREITO DE PETIÇÃO E DE ACESSO AO


JUDICIÁRIO. Convênio que objetivou prevenir guerra fiscal resultante de
eventual concessão do benefício tributário representado pela restituição do ICMS
cobrado a maior quando a operação final for de valor inferior ao do fato gerador
presumido. Irrelevante que não tenha sido subscrito por todos os Estados, se não
se cuida de concessão de benefício (LC 24/75, art. 2.º, INC. 2.º). Impossibilidade
de exame, nesta ação, do decreto, que tem natureza regulamentar. A EC n.º 03/93,
ao introduzir no art. 150 da CF/88 o § 7.º, aperfeiçoou o instituto, já previsto
em nosso sistema jurídico-tributário, ao delinear a figura do fato gerador
presumido e ao estabelecer a garantia de reembolso preferencial e imediato
do tributo pago quando não verificado o mesmo fato a final. A circunstância
de ser presumido o fato gerador não constitui óbice à exigência antecipada
do tributo, dado tratar-se de sistema instituído pela própria Constituição,
encontrando-se regulamentado por lei complementar que, para definir-lhe a
base de cálculo, se valeu de critério de estimativa que a aproxima o mais
possível da realidade. A lei complementar, por igual, definiu o aspecto temporal
do fato gerador presumido como sendo a saída da mercadoria do estabelecimento
do contribuinte substituto, não deixando margem para cogitar-se de momento
diverso, no futuro, na conformidade, aliás, do previsto no art. 114 do CTN, que
tem o fato gerador da obrigação principal como a situação definida em lei como
necessária e suficiente à sua ocorrência. O fato gerador presumido, por isso
mesmo, não é provisório, mas definitivo, não dando ensejo a restituição ou
complementação do imposto pago, senão, no primeiro caso, na hipótese de
sua não-realização final. Admitir o contrário valeria por despojar-se o
instituto das vantagens que determinaram a sua concepção e adoção, como a
redução, a um só tempo, da máquina-fiscal e da evasão fiscal a dimensões
mínimas, propiciando, portanto, maior comodidade, economia, eficiência e
celeridade às atividades de tributação e arrecadação. Ação conhecida apenas
em parte e, nessa parte, julgada improcedente. (destacado) (STF, AÇÃO DIRETA
DE INCONSTITUCIONALIDADE: ADI 1.851/AL. Relator: Min Ilmar Galvão.
DJ de 22/11/2002. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.
jsp?docTP=AC&docID=266781. Acesso em 30 jan. 2018).
169

Além dessa ADI, outras duas (nºs 2.675243 e 2.777244), propostas pelos chefes dos poderes
executivos dos Estados de Pernambuco e de São Paulo, respectivamente, seguiram-se, em virtude
do julgamento da ADI nº 1.851 e pelo fato de esses entes terem aprovado leis que previam a
possibilidade de restituição do ICMS pago a maior, nas operações sujeitas à substituição tributária.

Desse modo, a estabilidade do sistema tributário brasileiro é garantida pela racionalidade


no reconhecimento de seus institutos mais importantes, o que, no pertinente à substituição
tributária, foi tão bem observado no voto do Ministro Eros Grau, na ADI nº 2.777. Tal construção
resume os efeitos nefastos do julgamento objeto desta análise (RE nº 593.849/MG, STF), fincado
na premissa de que, a pretexto de interpretar preceitos constitucionais, não se pode (jamais)
esvaziá-los:

Como a substituição tributária implica a atribuição, a sujeito passivo de obrigação


tributária, da condição de responsável pelo pagamento de imposto ou contribuição
cujo fato gerador deva ocorrer posteriormente, parece-me evidente ser de todo
descabida tanto a complementação do imposto pago antecipadamente caso se
comprove que, na operação final com mercadoria ou serviço, ficou configurada
obrigação tributária de valor superior à presumida, quanto a restituição do
imposto pago antecipadamente caso se comprove que, na operação final com

243
ADI nº 2.675/PE: Ementa: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. TRIBUTÁRIO.
COMPATIBILIDADE DO INC. II DO ART. 19 DA LEI 11.408/1996 DO ESTADO DE PERNAMBUCO COM O §
7° DO ART. 150 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL, QUE AUTORIZA A RESTITUIÇÃO DE QUANTIA
COBRADA A MAIOR NAS HIPÓTESES DE SUBSTITUIÇÃO TRIBUTÁRIA PARA FRENTE EM QUE A
OPERAÇÃO FINAL RESULTOU EM VALORES INFERIORES ÀQUELES UTILIZADOS PARA EFEITO DE
INCIDÊNCIA DO ICMS. ADI JULGADA IMPROCEDENTE. I – Com base no § 7° do art. 150 da Constituição
Federal, é constitucional exigir-se a restituição de quantia cobrada a maior, nas hipóteses de substituição tributária para
frente em que a operação final resultou em valores inferiores àqueles utilizados para efeito de incidência do ICMS. II
– Constitucionalidade do inc. II do art. 19 da Lei 11.408/1996 do Estado de Pernambuco. III - Ação Direta de
Inconstitucionalidade julgada improcedente. (STF, AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE: ADI
2.675/PE. Relator: Min Ricardo Lewandowski. DJe 143, publicado em 30/06/2017. Disponível em:
http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP& docID=13120658. Acesso em 29 jan. 2018).
244
ADI nº 2.777/SP. Ementa: Ementa: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. TRIBUTÁRIO.
COMPATIBILIDADE DO INCISO II DO ART. 66-B DA LEI 6.374/1989 DO ESTADO DE SÃO PAULO
(ACRESCENTADO PELA LEI ESTADUAL 9.176/1995) COM O § 7° DO ART. 150 DA CONSTITUIÇÃO
FEDERAL, QUE AUTORIZA A RESTITUIÇÃO DE QUANTIA COBRADA A MAIOR NAS HIPÓTESES DE
SUBSTITUIÇÃO TRIBUTÁRIA PARA FRENTE EM QUE A OPERAÇÃO FINAL RESULTOU EM VALORES
INFERIORES ÀQUELES UTILIZADOS PARA EFEITO DE INCIDÊNCIA DO ICMS. ADI JULGADA
IMPROCEDENTE. I – Com base no § 7° do art. 150 da Constituição Federal, é constitucional exigir-se a restituição
de quantia cobrada a maior, nas hipóteses de substituição tributária para frente em que a operação final resultou em
valores inferiores àqueles utilizados para efeito de incidência do ICMS. II – Constitucionalidade do inc. II do art. 66-
B da Lei 6.374/1989 do Estado de São Paulo (acrescentado pela Lei estadual 9.176/1995). III - Ação Direta de
Inconstitucionalidade julgada improcedente. (STF, AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE: ADI
2.777/SP. Relator: Min Ricardo Lewandowski. DJe 143, publicado em 30/06/2017. Disponível em:
http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=13120 781. Acesso em 29 jan. 2018).
170

mercadoria ou serviço, ficou configurada obrigação tributária de valor inferior à


presumida. 4. Isso é evidente. A substituição seria inútil, imprestável, para
nada serviria se na operação subseqüente àquela por ela alcançada [isto é,
alcançada pela substituição], se nesta operação viesse a ser praticada seja a
restituição, seja a complementação do tributo. Um autêntico non sense. 5.
Não obstante a minha convicção de que não se devem interpretar preceitos
constitucionais de modo a torná-los vazios, ocos, vãos -- o que me levaria
prontamente a votar pela procedência da ação -- ainda assim pedi vista dos
autos. (...) No caso, contudo, confirmou-se a convicção, que sempre nutri, de que
a antecipação do pagamento de imposto ou contribuição no caso de
substituição exclui qualquer restituição ou complementação em operação
subseqüente. Isso me parece tão óbvio que opiniões em sentido adverso
causam-me espanto. (...) 8. A admissão de que eventual diferença entre base
de cálculo presumida e base de cálculo real ensejasse a restituição do imposto
tornaria inútil, vazia de significado a técnica fiscal. (...) A adotar-se a base de
cálculo real para a quantificação do tributo devido, a técnica não incidiria. O
absurdo lógico parece evidente. (destacado) (STF, AÇÃO DIRETA DE
INCONSTITUCIONALIDADE: ADI 2.777/SP. Relator: Min Ricardo
Lewandowski. DJe 143, publicado em 30/06/2017. Disponível em:
http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=13120781.
Acesso em 29 jan. 2018).

A despeito desses e de outros argumentos, contudo, que foram reiterados no RE nº


593.849/MG, o julgamento do STF dá azo à insegurança no sistema tributário nacional, além de
ter apequenado o princípio da eficiência, reduzindo-o a mera vantagem pragmática245, em particular
no que diz respeito às regras do ICMS, porquanto fere quatro premissas fundamentais:

(i) Sob o aspecto normativo-constitucional, na medida em que esvazia o sentido do “fato


gerador presumido”, criado pela EC nº 3, de 1993, e com um conteúdo que só ofertava a
possibilidade para a restituição caso o fato gerador não ocorresse. É até curiosa a construção
realizada pelo Min. Luiz Roberto Barroso, ao questionar: “O que pode acontecer? O fato gerador
presumido pode não ocorrer, ou o fato gerador presumido pode ocorrer por um valor, por uma
dimensão econômica inferior a que foi presumida”.

245
No voto do Min. Edson Fachin, onde consta a expressão “vantagens pragmáticas”, ao se referir a todo o grau de
eficiência que pode ser alcançado pela aplicação da técnica da substituição tribitária: “Convergem-se, ainda, acerca
das vantagens pragmáticas hauridas da sistemática da substituição tributária progressiva, as quais foramprecisamente
sumarizadas pelo eminente Ministro Nelson Jobim em seu arguto voto proferido na ADI 2.777: (i) a maior segurança
na arrecadação; (ii) o melhor desempenho da Administração Tributária; (iii) a eficiência da máquina estatal, evitando
respectiva expansão; e (iv) a promoção da justiça fiscal na medida em que se combate efetivamente a sonegação”.
171

Aqui, fica patente que a Corte optou por atribuir o mesmo sentido para expressões
diametralmente opostas: a título de interpretar a parte final do § 7º do art. 150, da CF, (caberá a
restituição “caso não se realize o fato gerador presumido”), o STF optou por entender que esse
“não se realize” possa ser entendido, também, como “se realize” o fato gerador246, o que representa
insustentável absurdo (ou non sense, conforme aduz o Min. Eros Grau).

E isso se baseia no descompasso que haveria do que foi chamado de “base de cálculo real”
em relação à “base de cálculo presumida”, olvidando-se que, dentre outras coisas, apenas esta há
de prevalecer, pelo fato de ligar-se, indissoluvelmente, a um fato gerador de medida excepcional e
posterior, mas mediatamente mensurado, em conformidade com o art. 114, do CTN.

Ainda se poderia fazer outra objeção, agora conectada com o critério quantitativo dos
tributos. Isso porque, longe da objetividade que se propala sob o ponto de vista teórico, a
pragmática da incidência revela-se eivada de situações que fazem os mais atentos questionarem os
institutos postos e aos quais se aferra parte da doutrina. E aqui se fala da base de cálculo como
aspecto dimensível do fato gerador, com sua função comparativa, objetiva e mensuradora
(CARVALHO, 2013a; 2015).

Ora, diante do dado jurídico, não se pode desconsiderar o fato de que são criadas as suas
próprias realidades, as quais nem sempre comungam com as realidades legislativas. Tomem-se os
exemplos dos tributos que decorram da propriedade de bens imóveis e móveis, como o Imposto
sobre Propriedade Territorial Rural (ITR, art. 153, inciso VI, CF), o Imposto sobre Propriedade de
Veículos Automotores (IPVA, art. 155, inciso III, CF), o Imposto sobre Transmissão Causa Mortis
e Doação, de quaisquer bens ou direitos (ITCMD, art. 155, inciso I, CF) e o Imposto sobre
Propriedade Predial e Territorial Urbana (IPTU, art. 156, inciso I, CF). Não raras vezes, as
legislações instituidoras desses tributos, ou mesmo suas normas gerais247, estabelecem que suas
bases de cálculo serão mensuradas com suporte no “valor venal” desses bens.

246
Aqui considerando a hipótese de fato gerador presumido em valor inferior àquele previsto no início da cadeia que
deu azo à substituição tributária.
247
Apenas para ofertar dois exemplos, cite-se o art. 30 do CTN, relativo ao ITR, pelo qual a base de cálculo desse
imposto é “valor fundiário”. Mais à frente, no que concerne ao IPTU, no art. 33, “[...] a base do cálculo do imposto é
o valor venal do imóvel”.
172

E aí se questiona: ao se projetar um valor venal, especialmente quando não se tem a venda


propriamente dita, mas apenas uma série de dados objetivos que conformam situações semelhantes,
não se estaria, propriamente, a admitir uma presunção dessa base de cálculo? Não se pode imaginar
que todos os automóveis do Brasil da marca Volkswagen, Modelo “Gol Trendline 1.6T Flex 8V
5p”, movidos a gasolina, cujo ano de fabricação seja 2017, custem exatamente R$ 38.454,00 (trinta
e oito mil, quatrocentos e cinquenta e quatro reais)248. Diferenças mínimas, até mesmo quanto ao
gênero do condutor, podem influenciar, em uma negociação, no valor venal “real” do produto. Não
se pode, entretanto, objetivamente aceitar que essas peculiaridades individuais pudessem afetar de
forma efetiva a composição da base de cálculo do IPVA, dado que inviabilizaria a própria
incidência do imposto.

Em dois acórdãos relativos às taxas, que também possuem composição da base de cálculo
que pode ser problemática, o STF se vale do que denominou de “legalidade suficiente”, a qual se
desconecta de aspectos simplistas na mensuração da base de cálculo, próprios desse “passado que
ainda se faz presente”, e caminha para modalidades mais complexas de conversão desse real em
jurídico, utilizando-se não estritamente de parâmetros fixados em lei, mas também em atos
infralegais:

EMENTA. Recurso extraordinário. Repercussão geral. Tributário. Princípio


da legalidade. Contribuições. Jurisprudência da Corte. Legalidade
suficiente. Lei nº 11.000/04. Delegação aos conselhos de fiscalização de
profissões regulamentadas do poder de fixar e majorar, sem parâmetro legal, o
valor das anuidades. Inconstitucionalidade. 1. Na jurisprudência da Corte, a
ideia de legalidade, no tocante às contribuições instituídas no interesse de
categorias profissionais ou econômicas, é de fim ou de resultado, notadamente
em razão de a Constituição não ter traçado as linhas de seus pressupostos de
fato ou o fato gerador. Como nessas contribuições existe um quê de atividade
estatal prestada em benefício direto ao contribuinte ou a grupo, seria
imprescindível uma faixa de indeterminação e de complementação
administrativa de seus elementos configuradores, dificilmente apreendidos
pela legalidade fechada. Precedentes. 2. Respeita o princípio da legalidade a lei
que disciplina os elementos essenciais determinantes para o reconhecimento da
contribuição de interesse de categoria econômica como tal e deixa um espaço de
complementação para o regulamento. A lei autorizadora, em todo caso, deve ser
legitimamente justificada e o diálogo com o regulamento deve-se dar em termos
de subordinação, desenvolvimento e complementariedade (...) 4. O grau de

248
Consulta realizada à Tabela FIPE Brasil, a qual é utilizada anualmente por diversas administrações tributárias
estaduais para composição da base de cálculo do IPVA. Disponível em: https://www.tabelafipebrasil.com/carros/VW-
--VOLKSWAGEN/GOL-TRENDLINE-16-TFLEX-8V-5P. Acesso em 06 fev. 2018.
173

indeterminação com que os dispositivos da Lei nº 11.000/2000 operaram


provocou a degradação da reserva legal (art. 150, I, da CF/88). Isso porque a
remessa ao ato infralegal não pode resultar em desapoderamento do legislador
para tratar de elementos tributários essenciais. Para o respeito do princípio
da legalidade, seria essencial que a lei (em sentido estrito) prescrevesse o limite
máximo do valor da exação, ou os critérios para encontrá-lo, o que não
ocorreu. (...).
Tese
É inconstitucional, por ofensa ao princípio da legalidade tributária, lei que
delega aos conselhos de fiscalização de profissões regulamentadas a
competência de fixar ou majorar, sem parâmetro legal, o valor das
contribuições de interesse das categorias profissionais e econômicas, usualmente
cobradas sob o título de anuidades, vedada, ademais, a atualização desse valor
pelos conselhos em percentual superior aos índices legalmente previstos.
(destacado). (STF, RECURSO EXTRAORDINÁRIO: RE 704.292/PR. Relator:
Min Dias Toffoli. DJe 170, publicado em 03/08/2017. Disponível em:
http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%28TAX
A+LEGALIDADE+SUFICIENTE%29&base=baseAcordaos&url=http://tinyurl.
com/ybdbybjl. Acesso em 06 fev. 2018).
EMENTA Recurso extraordinário. Repercussão geral. Tributário. Princípio
da legalidade. Taxa cobrada em razão do exercício do poder de polícia.
Anotação de Responsabilidade Técnica (ART). Lei nº 6.994/82. Aspecto
quantitativo. Delegação a ato normativo infralegal da atribuição de fixar o
valor do tributo em proporção razoável com os custos da atuação estatal.
Teto prescrito em lei. Diálogo com o regulamento em termos de
subordinação, de desenvolvimento e de complementariedade.
Constitucionalidade. 1. Na jurisprudência atual da Corte, o princípio da
reserva de lei não é absoluto. Caminha-se para uma legalidade
suficiente, sendo que sua maior ou menor abertura depende da natureza e da
estrutura do tributo a que se aplica. No tocante às taxas cobradas em razão
do exercício do poder de polícia, por força da ausência de exauriente e
minuciosa definição legal dos serviços compreendidos, admite-se o especial
diálogo da lei com os regulamentos na fixação do aspecto quantitativo da
regra matriz de incidência. A lei autorizadora, em todo caso, deve ser
legitimamente justificada e o diálogo com o regulamento deve-se dar em
termos de subordinação, desenvolvimento e complementariedade. 2. No RE
nº 343.446/SC, alguns critérios foram firmados para aferir a
constitucionalidade da norma regulamentar.“a) a delegação pode ser retirada
daquele que a recebeu, a qualquer momento, por decisão do Congresso; b) o
Congresso fixa standards ou padrões que limitam a ação do delegado; c)
razoabilidade da delegação”. 3. A razão autorizadora da delegação dessa
atribuição anexa à competência tributária está justamente na maior
capacidade de a Administração Pública, por estar estreitamente ligada à
atividade estatal direcionada a contribuinte, conhecer da realidade e dela
extrair elementos para complementar o aspecto quantitativo da taxa, visando
encontrar, com maior grau de proximidade (quando comparado com o
legislador), a razoável equivalência do valor da exação com os custos que ela
pretende ressarcir. (...) 7. Em suma, o art. 2º, parágrafo único, da Lei nº 6.994/82
estabeleceu diálogo com o regulamento em termos de subordinação (ao
prescrever o teto legal da taxa referente à ART), de desenvolvimento (da
174

justiça comutativa) e de complementariedade (ao deixar um valoroso espaço


para o regulamento complementar o aspecto quantitativo da regra matriz
da taxa cobrada em razão do exercício do poder de polícia). O Poder
Legislativo não está abdicando de sua competência de legislar sobre a
matéria tributária. A qualquer momento, pode o Parlamento deliberar de
maneira diversa, firmando novos critérios políticos ou outros paradigmas a serem
observados pelo regulamento. 8. Negado provimento ao recurso extraordinário.
Tese
Não viola a legalidade tributária a lei que, prescrevendo o teto, possibilita o ato
normativo infralegal fixar o valor de taxa em proporção razoável com os custos
da atuação estatal, valor esse que não pode ser atualizado por ato do próprio
conselho de fiscalização em percentual superior aos índices de correção monetária
legalmente previstos. (destacado). (STF, RECURSO EXTRAORDINÁRIO: RE
838.284/SC. Relator: Min Dias Toffoli. DJe 215, publicado em 22/09/2017.
Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia
.asp?s1=%28TAXA+LEGALIDADE+SUFICIENTE%29&base=baseAcordaos
&url=http://tinyurl.com/ybdbybjl. Acesso em 06 fev. 2018).

Diante de todo o exposto, postula-se que o argumento constituído por meio da ADI nº 1.851
conferia caracteres de segurança bem mais estruturados do que os que supostamente permeiam o
acórdão no RE nº 503.849/MG. Deve-se ressaltar que os casos em que podem acontecer distorções
que se repise, são mínimos, na mensauração da base de cálculo do ICMS na substituição tributária,
são semelhantes ao exemplo trazido há pouco relativo ao IPVA. Em virtude, entretanto, da largueza
da decisão, as administrações tributárias terão de promover mecanismos de controle integral de
todas as operações, em todos os segmentos econômicos nos quais haja a substituição tributária, o
que inviabiliza o instituto e lhe fulmina a praticidade.

(ii) Sob outro viés da segurança, a decisão no RE nº 593.849/MG pode trazer traumas
maiores para os contribuintes: caso se admita a restituição se o fato gerador presumido tenha valor
inferior ao inicialmente previsto, por esta mesma fundamentação sobram argumentos para que o
Fisco tenha o dever de exigir a complementação de fato gerador presumido, cujo valor foi superior
àquele inicialmente calculado.

Com amparo na aceitação dos argumentos aduzidos no item (i), de que o STF optou por
entender que esse “não se realize” possa ser compreendido, também, como “se realize” o fato
gerador, este aspecto abre ensanchas para duas possibilidades: que esse fato gerador presumido se
realize maior do que o previsto, ensejando a restituição (o que é garantido pelo julgamento do RE
nº 593.849/MG), ou menor do que o previsto, dando azo à complementação (em uma interpretação
contrario senso da mesma decisão).
175

Assim, se antes deste julgamento, por força do disposto na ADI nº 1.851, e da finalidade
para a qual foi instituída a técnica da substituição tributária, não haveria a possibilidade de os fiscos
cobrarem a complementação dos impostos, caso os fatos geradores presumidos tenham bases de
cálculo inferiores àquelas pagas por substituição tributária, agora, existem razões relevantes para
pensar em sentido contrário. E isso se torna ainda de mais relevo ante a assunção de que “[...] a
atividade administrativa de lançamento é vinculada e obrigatória, sob pena de responsabilidade
funcional” (Parágrafo único, art. 142, CTN).

(iii) Aqui se volta ao non sense a a que se reporta o Min. Eros Grau: para que desenvolvam
mecanismos que permitam esse acompanhamento, gerando um retrabalho na apreciação de
infindáveis processos de restituição ou de constituição de complementação do crédito tributário,
melhor é se retornar à dinâmica do ICMS dos anos de 1950 (pois o CTN é dos anos de 1960 e já
trazia a possibilidade de substituição tributária), com o complicador do agigantamento das
operações de circulação de mercadorias249. Um desatado absurdo...

Ciente de que nem sempre aquele que se debruça sobre um texto normativo, com o fito de
estabelecer interpretações jurídicas adequadas, consegue prever as consequências da sua
interpretação, parte-se para a apresentação de um exemplo, que, como aduz Paulo de Barros
Carvalho (2013a), sempre foi uma ótima ferramenta para facilitar a compreensão. Tal caso está

249
Em um trecho de seu voto, o Min. Luís Roberto Barroso, a fim de rebater a dificuldade apontada pelos fiscos no
acompanhamento de toda a cadeia de substituição tributária, assim afirma: “Agora, os recursos de fiscalização, técnica
de fiscalização evolui muito nos últimos doze, quinze anos de lá para cá. Portanto, já não é mais tão árduo assim
verificar a operação real”. (STF, RECURSO EXTRAORDINÁRIO: RE 593.849/MG. Relator: Min Edson Fachin. DJe
068, publicado em 05/04/2017. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?
docTP=TP&docID=12692057. Acesso em 29 jan. 2018). Não se pode defender que não houve avanços nas técnicas
de fiscalização, especialmente a partir da utilização maciça de recursos tecnológicos. A substituição tributária, no
entanto, envolve cadeias que se sucedem e pelas quais o produto vai perdendo o caractere de rastreabilidade que
permitiria dizer, com exatidão, que aquele produto teve um preço “X” ao início da cadeia e, após duas etapas
posteriores, foi revendido ao consumidor final por um preço de “X + 70%X”. Não se pode olvidar, inclusive, de que a
maior parte dos Estados não realiza controles mais aprofundados dos valores de venda para consumidores finais, pois
a utilização das funcionalidades previstas nos Equipamentos Emissores de Cupons Fiscais (ECFs), dispostos no
Convênio ICMS nº 156, de 1994 (registre-se que tal instrumento normativo tem 24 anos), ainda é bastante deficitária.
Como exemplo de Estado que vem na contramão deste momento, mas ainda em fase de implantação, registre-se o
Ceará, que desenvolveu um Catálogo Eletrônico de Valores de Referência (CEVR) pelo qual categorizou uma lista de
milhares de itens, com seus valores praticados no mercado nas vendas para consumidores finais. Para o caso da
substituição tributária, porém, seria necessária a integração desses valores previstos neste CEVR com todo o banco de
dados de Notas Fiscais Eletrônicas emitidas para contribuintes do Ceará, permitindo o cruzamento de dados, o que
ainda não ocorre.
176

baseado na substituição tributária interna para as operações com medicamentos, no Estado do


Ceará.

Imagine-se que um determinado contribuinte que desenvolva a atividade de atacado de


medicamentos adquira 100 (cem) cartelas de paracetamol da empresa A, sediada na Zona Franca
de Manaus, no valor de R$ 100,00, em 01/02/2018. Em 05/02/2018, adquire as mesmas cem
cartelas, agora da empresa B (que dispunha de menor preço), sediada no Estado de São Paulo, no
valor de R$ 90,00. Já em 15/02/2018, adquire 200 cartelas da empresa C, sediada no Estado de
Pernambuco, no valor de R$ 160,00.

Em todos os casos, ele recolheu o ICMS ST quando da entrada desses produtos no Estado
do Ceará, com um agregado de 33,05% e deduzido o crédito destacado na NF-e, a depender do
Estado de origem. Assim, as dificuldades para a arredacação do ICMS ST para o Estado, nestes
casos, se dão apenas na identificação do produto com a respectiva alíquota aplicável, realizando-
se facilmente a fórmula de cálculo do imposto devido. A seguir, esse mesmo contribuinte vende
essas mercadorias para cinco varejos (farmácias), que os vende para consumidores finais. No
confronto do “percurso” que cada um desses itens seguiu em cada um dos estabelecimentos, e
voltando-se às etapas anteriores, é que se justifica a restituição ora autorizada pelo STF.

Desde o RE nº 593.849/MG, contudo, como o Fisco pode ser instado a restituir valores
relativos ao ICMS ST (ou mesmo exigir a complementação do tributo inicialmente pago), ele terá
de desenvolver expedientes que façam o controle individualizado das operações de entrada e de
saída dos contribuintes, por item, inclusive atentando para que se consiga visualizar, dentro de um
mesmo item do estoque, se a restituição pode ser cabível para os itens adquiridos da empresa A ou
B, e não da C, no exemplo acima.

Voltando-se ao caso exposto, se em cada uma das farmácias fossem vendidas cartelas de
paracetamol por preços distintos, além da possibilidade de valores diversificados dentro do mesmo
estabelecimento, como calcular, item a item, os valores devidos a título de restituição? Como a
autoridade fazendária, ante a infinidade de operações diversas e da imensa quantidade de itens
variados transacionados, pode ter certeza de que aquela restituição é devida? Tal só pode se dar,
obviamente, com suporte num investimento ainda maior na arrecadação dos tributos, o que
influencia no custo do sistema tributário, diminuindo-lhe a eficiência.
177

Esse exemplo cingiu-se a um só medicamento. Imagine-se todo esse controle nos milhares
de itens que são mercanciados todos os dias, em todos os atacados e varejos do setor de
medicamentos250! É curioso observar que a falta de conhecimento da pragmática da incidência dos
tributos leva a posicionamentos que expõem essa fragilidade do julgador, comprometendo a lógica
da sua fundamentação, e criando situações difíceis ou, até mesmo, impossíveis, de operacionalizar.

Com efeito, para um tributo cuja complexidade já é indiscutível, não se pode simplesmente
tentar solucionar o problema negando a complexidade251 ou invocando elaborações que em nada
resolvem o problema das administrações tributárias ou dos contribuintes. Melhor seria não ter
subvertido a ordem estabelecida pela ADI nº 1.851. Já que ela foi, porém, renegada, só resta aos
fiscos o aprimoramento dos instrumentos de controle e fiscalização, o que tem um custo para a
sociedade, a fim de alcançar o mesmo objetivo que se tem desde os anos de 1960. Sendo assim,
sobeja configurada afronta ao princípio da eficiência, um valor dos mais caros em sociedades
democráticas.

250
Não se pode olvidar que toda essa complexidade influenciará fatalmente os próprios contribuintes. Se antes eles
apresentavam maior uniformidade na composição de seus preços, dado que o crédito tributário os igualava e possuíam
valor certo e traduzível logo no início da cadeia de circulação, dravante, diante da competição que buscará restituir
mínimos valores, que podem configurar vantagem competitiva para a empresa, os meios de acompanhamento de seus
preços, bem como dos preços dos seus concorrentes, serão ainda mais agressivos. E isso não se fará sem expressivos
custos para as empresas.
251
Interessante é observar, ainda no voto do Min. Luís Roberto Barroso, que ele pretende rotular esse aspecto da
substituição tributária como um caso simples, e desconsiderando as complexidades do Direito Tributário: “O Direito
Tributário, às vezes, é tratado, Ministro Fux, como um culto esotérico apenas para os iniciados. Eu, no entanto, entendo
que todo problema pode ser enunciado de uma forma simples; às vezes, a solução é complexa. O Ministro Gilmar
gosta de citar uma passagem do exMinistro Pedro Malan de que ‘para todo problema complexo, existe uma solução
simples e errada’. A solução pode ser complexa, mas o problema tem que ser enunciado de uma forma simples. Assim,
eu gostaria de enunciá-lo de uma forma bem simples”. Assim, se o STF entendeu ter dado uma solução simples para
esta matéria, tem-se que chegar a um novo acordo sobre o conteúdo semântico do termo “simplicidade”.
178

LIVRO II – A HERMENÊUTICA JURÍDICO-TRIBUTÁRIA NO “FUTURO


QUE JÁ SE FAZ PRESENTE”

CAPÍTULO 8. “SENDO ASSIM, O DIREITO POSTO, ENQUANTO


CONJUNTO DE PRESCRIÇÕES JURÍDICAS, NUM DETERMINADO
ESPAÇO TERRITORIAL E NUM PRECISO INTERVALO DE TEMPO,
SERÁ TOMADO COMO OBJETO DA CULTURA, CRIADO PELO HOMEM
PARA ORGANIZAR OS COMPORTAMENTOS INTERSUBJETIVOS,
CANALIZANDO-OS EM DIREÇÃO AOS VALORES QUE A SOCIEDADE
QUER VER REALIZADOS”252: CARACTERÍSTICAS FUNDAMENTAIS
DO CONSTRUCTIVISMO LÓGICO-SEMÂNTICO
A proposta deste capítulo é a apresentação inaugural de apenas alguns dos elementos
componentes do Constructivismo Lógico-Semântico. Não se tem esse momento, entretanto, como
oportunidade para explanar os fundamentos da doutrina, dado que fugiria ao caráter de inovação e
de abertura de perspectivas que se espera em uma tese: para oferecer um caráter sistemático desta
Escola, inúmeras obras perfazem esse mister com maestria253.

Nessa medida, contudo, em razão da necessidade de encadeamento lógico do texto, não se


pode fugir daquilo que é essencial ao CLS, sempre partindo de perspectivas menos formais
ofertadas por Paulo de Barros Carvalho e alcançando elaborações mais arrojadas, à medida que o
texto é trabalhado. Não se pode olvidar, por fim, que toda essa apresentação também é restrita aos
meios que possam interessar à interpretação jurídico-tributária, como temática central desta tese.

Inicia-se, enfatizando um momento diferenciado para o Direito Tributário e que representa


o rompimento com a concepção tradicional deste “ramo” do direito. Nessa medida, como já visto
nas palavras introdutórias dessa tese, ressoa a importância, nos idos de 1997, da defesa da tese de
concurso para obter a titularidade do Departamento de Direito Econômico, Financeiro e Tributário
na Faculdade do Largo do São Francisco, da Universidade de São Paulo, realizada por Paulo de
Barros Carvalho, a qual é aqui identificado como o primeiro passo para a superação dos métodos
tradicionais.

252
“Palavras Introdutórias” à obra “Direito Tributário: fundamentos jurídicos da incidência” (CARVALHO, 2015, p.
28).
253
Para tanto, ofereçam-se as diversas referências constantes do final deste trabalho.
179

Como materialização deste trabalho, o livro “Direito tributário: fundamentos jurídicos da


incidência", sedimenta o fenômeno jurídico da incidência tributária sob novas perspectivas,
incorporando elementos da Semiótica, o que culmina com novas dimensões à atividade
hermenêutica do tributarista, acostumado a “tentar extrair” conteúdo das normas jurídicas e sendo
dignificado como verdadeiro construtor dessas normas. Nesse caminho, um maior cuidado na
utilização do insumo do jurista, que é sempre um feitor das palavras, da própria linguagem, com
base em uma característica personalíssima de Carvalho, o “rigor metodológico”, já apontada por
um de seus mestres desde a década de 1970 (ATALIBA, 2009, p. 22).

Nesse ponto, apressa-se o aprofundamento pelas premissas que este método, como dizem
uns, ou que esta Escola, como assinalam outros254, tem por pressupostas. Nunca é demais afirmar,
porém, o objetivo primordial do Direito, como enfatizado no excerto de Paulo de Barros Carvalho
que inaugura este Capítulo, é a organização dos “[...] comportamentos intersubjetivos, canalizando-
os em direção aos valores que a sociedade quer ver realizados” (CARVALHO, 2015, p, 28), isto é,
a orientação “[...] das condutas inter-humanas, no sentido de propiciar a realização de valores caros
aos sentimentos sociais, num determinado setor do tempo histórico.” (CARVALHO, 2013a, p.
162).

Uma pausa se faz para explicar melhor, porém, a dimensionalidade que se erigiu para
compor esta obra. Como visto no livro anterior, o “passado que ainda se faz presente” representa
um “estado téorico-jurídico-pragmático” que se perpetua no ideário hermenêutico-tributário
brasileiro, baseando-se em textos normativos (maiormente o CTN) elaborados com esteio em
cânones tradicionais e que notadamente se constroem desconectados da Filosofia da linguagem.

Assim, erige-se uma construção racional do pensamento que se afirma, nas mais das vezes,
em argumentos de autoridade255 ou que desenvolve conteúdos descritivos da realidade, sem expor

254
Essas formas diferenciadas de enxergar o mesmo fenômeno já foram reportadas por Aurora Tomazini de Carvalho
(2014, p. 14-15), ao assim se manifestar: “A expressão ‘Constructivismo Lógico-Semântico’ é empregada em dois
sentidos: (i) para se reportar à Escola Epistemológica do Direito da qual sou adepta, fundada nas lições dos professores
Paulo de Barros Carvalho e Lourival Vilanova e que vem, a cada dia, ganhando mais e mais seguidores no âmbito
jurídico; (ii) e ao método utilizado por esta Escola, que pode ser empregado no conhecimento de qualquer objeto”.
255
Nessa medida, como o escopo de fugir de elaborações tradicionais dos conhecimentos que podem ser caracterizados
como desorganizados ou dispersos, Paulo de Barros Carvalho (2015), no Prefácio à 9ª edição do seu “Direito
Tributário: fundamentos jurídicos da incidência” deixa patente a importância de uma plataforma metodológica, sem a
qual o conhecimento e afasta “[...] do objeto cujo relato crítico a ciência se ocupa. O aprofundamento cognoscitivo
180

o leitmotiv do raciocínio, sem a apresentação do sistema de referências256, despreocupado das


estruturas basilares desenvolvidas pela Teoria Geral do Direito e sem se acercar das modernas
contribuições da Filosofia do Direito, principalmente sob os influxos da Filosofia da linguagem.

Neste módulo, longe de uma ideia de ajustamento ao status quo ante, aqui nominado de
“passado que ainda se faz presente”, inicia-se a demonstração da ânsia de superação deste estado
de coisas, “[...] fundada em critérios que transcendem aquelas instituições.” (FERRAZ JR, 2015,
p. 151). Nessa medida, é que o CLS, ao lado de outras escolas que se identificam com o dado da
linguagem257 como primordial para construção de suas bases dogmáticas, será tomado como ponto
de partida, dada a importância que o desenvolvimento científico desta corrente do pensamento
alcançou no Direito Tributário brasileiro e na Teoria Geral do Direito.

Não se pode afirmar jamais, entretanto, que seja a única escola ou a singular teoria que
trilha o caminho de reconhecimento do Direito com procedência no dado da linguagem. Ela apenas
representa, para a presente construção, a mais adequada à aproximação com a Ciência do Direito
Tributário, dadas as contribuições desta Escola ao desenvolvimento teórico desse campo do

requer, com teimosa insistência, a presença da Teoria Geral e da Filosofia como condições de sua possibilidade”. Nessa
medida, o jurista deixa vazar em um mero prefácio importantes características do movimento que ora se investiga,
nominado por “Constructivismo Lógico-Semântico”.
256
Vale a menção, também, nas “Palavras Introdutórias” à obra “Direito Tributário: fundamentos jurídicos da
incidência" uma característica que é estruturante do CLS: a construção de um sistema de referências, que se direciona
para um modo particular de concepção do fenômeno jurídico. Assim, é da lavra de Paulo de Barros Carvalho (2015,
p. pp. 25-26): “Com essas palavras iniciais, quero justificar a presença, neste trabalho, de uma série de menções a uma
dada concepção do fenômeno jurídico, imprescindível à compreensão de proposições que serão produzidas acerca do
direito tributário brasileiro, como pano de fundo, tela de confronto ou, o que me parece mais correto, sistema de
referência. Sim, porque a ideia de sistema de referência, toma posição dominadora em todo o conhecimento humano.
Sem sistema de referência, o conhecimento é desconhecimento, como ensina Goffredo Telles Junior” (destacado no
original). E continua o autor naquilo que representa um dos caracteres mais valiosos do seu pensamento: “Quando se
afirma algo como verdadeiro, portanto, faz-se mister que indiquemos o modelo dentro do qual a proposição se aloja,
visto que será diferente a resposta dada, em função das premissas que desencadeiam o raciocínio.” (CARVALHO,
2015, p. 27). Assim, expõe à comunidade científica um modo de enxergar o fenômeno jurídico que não é exclusivista,
mas particularista, em seu “Prólogo” à obra “Direito Tributário: linguagem e método”: “Fica para outro plano a
procedência ou não dos argumentos utilizados no empenho do convencimento, da persuasão, mesmo porque opero,
do início ao fim, com a relativização do valor verdade. Afinal de contas, creio que as ideias contidas neste escrito
se movem, inteiramente, nos domínios do ‘giro-linguístico’” (destacado) (CARVALHO, 2013, p. XXVI).
257
É ao se reportar ao “Direito e interpretação”, que Paulo de Barros Carvalho (2013a, p. 181) deixa os rastros dos
traços peculiares ao Constructivismo Lógico-Semântico. Nesse ponto, assinala o autor que “[...] o direito oferece o
dado da linguagem como seu integrante constitutivo. A linguagem não só fala do objeto (Ciência do Direito), como
participa de sua constituição (direito positivo)”.
181

Direito, denotando “controle na construção da linguagem científica no âmbito do direito”


(CARVALHO, 2013a, p. 158).

Assim, ao ser pensado como método, proporia o CLS o caminho a ser trilhado, a fim de se
alcançar determinado fim: feito método científico, tal método se perfaria no fim da ciência. Assim,
pensar-se na natureza do método científico está conectado ao fim da ciência (ABRANTES, 2014,
p. 15). Não se deve, contudo, confundir método com técnica: uma ciência258 dispõe de método
único, podendo contar com diversas técnicas (FERRAZ JR, 2014b, p. 4).

A primeira delas é a de que, no Constructivismo Lógico-Semântico, o Direito é expresso


como um sistema259 normativo que tem por objetivo regular a conduta humana. Até aqui, nada que
se diferencie de outras escolas positivistas, tomando-se como referencialidade a obra de Hans
Kelsen, especificamente com amparo na dogmática construída por Lourival Vilanova e Paulo de
Barros Carvalho, dentre outros autores.

Outra premissa é a de que há de se adotar uma atitude analítica, tendo em vista que a
natureza humana impõe limites para a própria percepção, recortando-se a realidade a ser estudada
e, depois, recompondo-a, em uma elaboração que visa a possibilitar, o quanto possível, uma noção
do todo, superando as dificuldades que o veículo físico ao homem oferece (TOMÉ, 2014, p. 325).

258
Ao cuidar da problemática da ciência, sempre volta ao lume a questão de se definir os seus limites: afinal, o que se
encontra dentro da “moldura” da ciência (parafraseando Kelsen, como se verá a seguir), e o que fora dela se encontra.
Esta temática faz apontar para outra, bastante interessante, e que respeita ao papel das crenças na formação das teorias
jurídicas. Apesar de tal tema ser transversal ao objeto deste trabalho, que compreende, mais especificamente, o
fenômeno da interpretação, não se pode deixar de registrar que se comunga do entendimento de Rogério Lima Silva
(2014), para quem “[...] a crença surge como algo imprescindível, indissociável da natureza humana, na construção de
qualquer conhecimento científico. Por isso, pode-se afirmar, na linha do que pensou Montaigne em sua reflexão céptica
sobre os poderes divinos da razão: a ciência inventa coisas (cria ficções) a partir de suas crenças”.
259
Reconhecendo-se as ingentes dificuldades em se conceituar sistema, notadamente o sistema jurídico, a palavra é
aqui utilizada no sentido de “construído”, conforme observação atenta, sob um viés histórico de Tercio Sampaio Ferraz
Jr (2015, p. 166). Deve-se ressaltar que a explicitação transcrita na sequência faz compreender a distinção feita por
alguns doutrinadores entre ordenamento jurídico e sistema jurídico diferenciação que não é levada a cabo por Paulo
de Barros Carvalho (2013), o qual não se identificou com a utilização da palavra “sistema” tal qual utilizada por Platão
e Aristóteles, em relação à polis: “A palavra, como já anotamos em outro trabalho, origina-se do grego. Provém de
syn-istemi e significa o ‘composto’, o ‘construído’. A tradição grega conheceu um grande número de usos para a
palavra ‘sistema’, usada para objetos diferentes, podendo-se dizer que foi dentro de um desenvolvimento descontínuo
que ela se transformou num conceito geral, usado tanto para ‘objetos naturais’ quanto para ‘objetos artificiais’. De uma
maneira geral, no sentido de ‘construído’, era uma totalidade, cujas partes apontavam, na sua articulação, para uma
ordem qualquer. A palavra conheceu, além disso, usos restritos, por exemplo, em relação à polis, entendida por Platão,
e também por Aristóteles e pelos estoicos, como sistema. Aí aparecia o significado básico de conglomerado, ligado,
na verdade, ao postulado da perfeição, no sentido de algo organizado, ordenado”.
182

Nesse ponto, conforme atenta Pontes de Miranda, o “cindir é desde o início”, resultando no que se
denominou de método analítico260 e hermenêutico:

A respeito da orientação que está subjacente ao escrito, na sua integridade


constitutiva, não hesito em inscrevê-la no quadro do chamado constructivismo
lógico-semântico, em que a postura analítica faz concessões à corrente
hermenêutica, abrindo espaço a uma visão cultural do fenômeno jurídico. Coube-
me perceber, aliás, que o ponto de vista analítico não sai prejudicado, mas
robustecido com as luzes das construções hermenêuticas: o tom de historicidade,
a consideração dos valores, a interdiscursividade entre textos afins, o imergir em
segmentos culturais bem concebidos, tudo isso ressalta o teor de analiticidade com
que o observador lida com o segmento normativo sob seus cuidados.
(CARVALHO, 2013a, p. XXVI).

A necessidade da adoção da analiticidade pode ser mais bem visualizada com suporte no
exemplo ofertado por Edmund Husserl, mas sob a descrição de Dardo Scavino261 (2014, p. 6), em
que fica patente a impossibilidade do humano de apreender a totalidade em sua integralidade, por
absoluta deficiência sensorial:

Suponhamos que vemos um edifício. Nunca podemos perceber todas suas paredes
exteriores; chegamos a observar dois ou três no máximo (se contarmos o teto),
porque sempre o fazemos desde um ponto de vista no espaço e desde um momento
no tempo. Não podemos evitar ter percepções parciais ou incompletas, já que
estamos impedidos de ver as coisas por todos os lados ao mesmo tempo. Para ver
[vermos] todos os lados do edifício devemos deslocar-nos, mudar de ponto de
vista, e isso, como se sabe, toma tempo. No entanto, cada uma daquelas paredes é
a parede de algo, de modo que as perspectivas parciais apresentam-se para nós
como partes de uma unidade, de uma coisa, de um x que nunca vemos, mas
pressupomos.

Ainda que “quebre” a realidade, no entanto, o que faz lembrar a redução inapartável de
Descartes, o CLS a aprimora, na medida em que, a seguir, promove, por meio da Hermenêutica,
uma reintegração do objeto, fundindo a tudo isso uma visão cultural do fenômeno jurídico, com

260
Fabiana Del Padre Tomé (2016, pp. 6-7) detalha o caractere “analítico” do CLS: “Pendor analítico pode ser tomado
como dinâmica mental do espírito de quem pacientemente decompõe, desarticula, analisa, para avançar em direção ao
objeto e explorá-lo com a máxima potencialidade. Sempre, é, [sic] claro, no interior do universo do discurso, pois a
palavra tomada como referência postula outras palavras que sobre ela discorram, de tal modo que se torna impossível
romper esse domínio inesgotável de unidades linguísticas. [...] Método analítico, mas com acentuado aspecto
culturalista, em que, a cada instante, se recupera a circunstância do homem, contextualizando-o”. (destacado no
original).
261
Não se pode olvidar, contudo, que Edmund Husserl, Filósofo da fenomenologia, continuou uma tradição que
remontava a Descartes e a Kant: a de uma filosofia da consciência (SCAVINO, 2014, p. 4).
183

adequado tom de historicidade, consideração dos valores e interdiscursividade (interna e externa)


entre textos afins (CARVALHO, 2013a, p. XXVI).

Erigida essa primeira construção, outra que é exercitada pelo Constructivismo Lógico-
Semântico coaduna-se às faces inerentes do mesmo fenômeno, que é o Direito, identificando-o ora
sob a perpectiva do “Direito Positivo”, ora sob o viés da “Ciência do Direito”: (i) Direito como
conjunto de normas; e (ii) Direito como asserções sobre o Direito tomado como conjunto de normas
(IVO, 2014, p. 17). Em assim sendo, com o fito de regular condutas humanas, o Direito empreende
essa tarefa por meio da linguagem262 263, entendida esta como “[...] uma faculdade humana abstrata,
ou seja, uma capacidade: isto é, aquela capacidade que o humano tem de comunicar-se com os
semelhantes por meio de signos mediante mecanismos de natureza psicofisiológica.” (BASTOS,
CONDIOTTO, 2007, p. 15).

Assim, tal linguagem do Direito dirige-se ao mundo social, buscando cristalizar fatos com
apoio em meras ocorrências de eventos, e registrando as provas necessárias a que surjam os fatos
jurídicos. Tal abordagem, apesar de não ser tão explícita quanto a isto264, parece afinar-se com uma
teoria pós-positivista do Direito, em que reentram “[...] no discurso jurídico todos aqueles fatores
que, do ponto de vista do positivismo normativista, haviam sido indicados como metajurídicos e,
portanto, excluídos da observação científica do direito.” (MAGALHÃES, 2005, p. 131).

262
Vale citar importante abordagem de Raimundo Bezerra Falcão, ao discorrer acerca do sentido, linguagem e direito:
“Em outros enfoques, as relações entre linguagem, sentido e Direito continuam evidentes. (...) Sem linguagem, a vida
social e, por extensão, a vida político-jurídica tornar-se-iam impossíveis. Aristóteles já o assinalara, dizendo que o
homem é um animal cuja vida se desenrola na comunidade política. E, se é em comunidade, tem de haver comunicação.
Mas, para haver comunicação, a linguagem é imprescindível”. FALCÃO, Raimundo Bezerra. Hermenêutica. São
Paulo: Malheiros, 2010, p. 79.
263
Conforme pontua Manfredo A. de Oliveira (2006, pp. 17-18), “[...] o escrito mais tardio que a tradição nos legou
em nossa cultura ocidental como reflexão sobre a linguagem ou, para usar uma expressão de hoje, como crítica da
linguagem é precisamente o Crátilo de Platão, escrito presumivelmente no ano 388 a. C. De antemão, é necessário
considerar dois aspectos muito importantes: em primeiro lugar, Platão toma aqui posição em relação a uma pergunta
que realmente surge no início de qualquer consideração sobre a significação linguística, que é: por meio de que uma
expressão adquire sua significação? Em segundo lugar, respondendo a esta pergunta, Platão toma posição a respeito
da essência da linguagem humana, que se tornou a concepção fundamental da linguagem no Ocidente, da qual hoje,
com muito esforço, estamo-nos libertando. Ela se tornou mesmo a concepção de linguagem do “senso comum” do
homem ocidental, legitimado pelos diferentes sistemas filosóficos”.
264
A explicitude à qual aqui se reporta, ou a implicitude que seria caracterísitica ao CLS, seria aquela relativa à adoção
de uma postura pós-positivista do Direito, com base em um caráter culturalista, e pela adoção explícita, ainda que
breve, de uma Teoria dos Valores, conforme se depreende da leitura da obra mais completa de Paulo de Barros
Carvalho, a partir do item 3.2, do Capítulo 3, Primeira Parte, do seu Direito Tributário: Linguagem e Método (2013a,
pp. 173-180).
184

Em assim sendo, o CLS adota uma posição normativista do direito, o que faz configurar
que este deva ser entendido como o conjunto de normas válidas em um determinado país. Assim,
admitindo-se que o direito é linguagem, então as normas jurídicas são, antes de qualquer outra
inferência, uma manifestação da linguagem: onde houver normas, há linguagem, o que, no Brasil,
aponta necessariamente para uma linguagem verbal-escrita, na qual se “[...] estabilizam as condutas
intersubjetivas, ganhando objetividade no universo do discurso.” (CARVALHO, 2013a, p. 162).

A seguir, outra premissa subjaz importante de se referenciar: o Direito é finalístico, sendo


criado para disciplinar condutas intersubjetivas (MC NAUGHTON, 2011, p. 34), canalizando-as
em direção aos valores eleitos pela sociedade. É, reconhecidamente, um produto cultural
(CARVALHO, A. T., 2013, p. 19). Ademais disso, pode se configurar como objeto cultural
(CARVALHO, 2013a; FALCÃO, 2010; VILANOVA, 2003a; VILANOVA, 2003b; BELCHIOR,
2011), que se caracteriza por existir no tempo e no espaço, estando na experiência do sensível e
que deve ser captado pela compreensão: aqui se situa também a norma jurídica como objeto
cultural, porquanto, com ela, o homem altera a própria conduta, limitando a liberdade inerente à
natureza humana (FALCÃO, 2010, pp. 16-17).

E é motivada pela compreensão, e todo o processo hermenêutico por ela promovidos, que
se pode afirmar que haveria uma aproximação com a própria Física Quântica, na medida em que
se tem por patente a noção de que “[...] o ato de medir afeta o que está sendo medido” (GLEISER,
2014, p. 231). Nesse ponto, tem-se uma visão mais extremada ainda com os físicos Heisenberg e
Born para quem as observações não apenas interfeririam no que estivesse sendo medido, mas
também produziriam o que está sendo medido (GLEISER, 2014, p. 231). E isso demonstra uma
semelhança muito grande entre a Física moderna (pós-Teoria da Relatividade) com o
Constructivismo Lógico-Semântico, para o qual a linguagem cria o direito, cria a realidade jurídica
e, a seguir, em um fenômeno de interferência direta, utiliza-se desta mesma linguagem para
pretender elucidar os textos que lhe são anteriores: aqui, a compreensão do direito positivo, por
alguém que esteja no exercício de competência legiferante, por exemplo, não apenas interfere no
direito mas, em alguma medida o cria continuamente, em uma positivação incessante.
(CARVALHO, 2015; ROBLES, 2005).
185

Em assim sendo, “[...] o objeto do conhecimento é sempre criado por meio de um


procedimento de corte ao qual se podería acrescer o adjetivo de gnosiológico” (BRITTO, 2014a,
p. 2). É uma das consequências trazidas pelo movimento intitulado “giro linguístico”, o qual altera
profundamente o panorama estabelecido pela Hermenêutica tradicional, e que tem como um dos
seus maiores expoentes, Ludwig Wittgenstein265 266.

Nesse ponto, tal movimento representou

[...] um novo paradigma para a filosofia enquanto tal, o que significa dizer que a
linguagem passa de objeto da reflexão filosófica para a “esfera dos fundamentos”
de todo pensar, e a filosofia da linguagem passa a poder levantar a pretensão de
ser “a filosofia primeira” à altura do nível de consciência crítica de nossos dias.
Isso significa dizer que a pergunta pelas condições de possibilidade do
conhecimento confiável, que caracterizou toda a filosofia moderna, se
transformou na pergunta pelas condições de possibilidade de sentenças
intersubjetivamente válidas a respeito do mundo. (OLIVEIRA, 2006, p. 12-13).

No âmbito do CLS, não menos esclarecedoras são as afirmações de Paulo de Barros


Carvalho (2013a, p. 161), para quem

a superação dos métodos científicos tradicionais pelo movimento do “giro-


linguístico”, deixou de encontrar-se tão só no degrau do valor da “verdade”; crava,
da mesma forma, uma nova postura cognoscitiva perante o que se entende por
“sujeito”, por “objeto” e pelo próprio “conhecimento”. Levando-se em conta
essas injunções para delinear os traços do movimento, após o “giro-linguístico”,
passou-se a exigir o próprio conhecer da linguagem, condição primeira para a
apreensão do objeto. Eis o resultado desta transposição de sistemas referenciais.
(destacado)

265
Dentre todas as contribuições de Wittgenstein, deve-se enaltecer a característica de tratar a linguagem como um
jogo, daí se empregando a expressão jogos de linguagem. Desse modo, este Filósofo propõe as seguintes indagações,
desde logo respondidas: “Quantas espécies de frases existem? Afirmação, pergunta e comando, talvez? – Há inúmeras
de tais espécies: inúmeras espécies diferentes de emprego daquilo que chamamos de ‘signo’, ‘palavras’, ‘frases’. E
essa pluralidade não é nada fixo, um dado para sempre; mas novos tipos de linguagem, novos jogos de linguagem,
como poderíamos dizer, nascem e outros envelhecem e são esquecidos. (Uma imagem aproximada disto pode nos dar
as modificações da matemática). O termo ‘jogo de linguagem’ deve aqui salientar que o falar da linguagem é uma
parte de uma atividade ou de uma forma de vida.” (WITTGENSTEIN, 1999, p. 35).
266
Não se deve olvidar, contudo, a extrema contribuição para o novo olhar da filosofia promovido pela fenomenologia
de Edmund Husserl, “[...] cujo cerne era a subjetividade anônima constituidora do mundo objetivo, enquanto mundo
do sentido” (PISCITELLI, 2007, p. 32). Sob tal óptica, ainda, enaltecem-se as obras de Heidegger e de Gadamer, as
quais gravam raízes profundas no CLS, especialmente no tocante a este Filósofo.
186

Tomar a linguagem como o meio necessário ao conhecimento não significa que não existam
objetos físicos: do contrário, a Filosofia da linguagem267 proposta por de Ludwig Wittgenstein quer
apenas mostrar que é apenas pela linguagem que a realidade social é construída, propiciando a sua
compreensão, desde a realidade objetiva do ser cognoscente (TOMÉ, 2011, p. 104).

Haja vista, porém, o fato de que o assunto que se pretende abordar traz facetas que
desbordam do jurídico, passar-se-á a inserir a temática sob vieses que evidenciam a complexidade
do tema, sem que, com isso, deixe de fundamentar-se normativamente, dando especial atenção às
questões jurídico-tributárias que envolvem a matéria. Parte-se do princípio de que o universo social
é uma multiplicidade contínua, e não homogênea, sendo que as interações sociais não são reflexivas
(VILANOVA, 2015).

Por ser este um trabalho cujo foco é a interpretação jurídica, faz-se necessário evidenciar
os caracteres que qualificam o Constructivismo Lógico-Semântico como veículo diferenciado de
se enxergar o Direito, especialmente ao tomá-lo como texto, o que não representa, em absoluto, a
aceitação de que é trabalho simplório. Do contrário, assumir o Direito como texto, como
linguagem, recai nas dificuldades ingentes ao processo hermenêutico, na medida em que “[...] é só
na relação com o interpretante que o signo completa sua ação como signo” (SANTAELLA, 2012a,
p. 37). Assim, se o Direito é linguagem e se a linguagem só se completa com a ação, haveria
construção a cada vez que se lidasse com o jurídico, em virtude da permeabilidade de seu substrato.

Ainda mais, no CLS, ressalta-se a intensa conexão que há de ser empreendida entre a
Ciência e a Filosofia, seja pela incorporação de trabalhos de ambos os matizes na construção da
Escola, mediante estudos que não se limitam à Dogmática Jurídica, mas que se veem ladeados por
importantes filósofos do conhecimento e da linguagem no decurso demorado de suas criações.

267
Fabiana Del Padre Tomé (2016, p. 8), em outra obra, delimita a publicação da obra “Tractatus logico-
philosophicus”, de Wittgenstein, como marco inicial da Filosofia da linguagem, a qual rompe com a “[...] tradicional
forma de conceber a relação entre linguagem e conhecimento, entendendo que a própria compreensão das coisas dá-
se pela preexistência da linguagem, deixando esta de ser concebida como mero instrumento que liga o sujeito ao objeto
do conhecimento”.
187

Por fim, nesta explanação inicial, há outro caractere do CLS que impende ser aqui
abordado: “[...] no Constructivismo há uma concepção hilética268 em que se parte do texto –
matéria-prima – para a construção de normas. Eis o limite inicial à interpretação” (destacado)
(TOMÉ; FAVACHO, 2017, p. 286). Aqui reside o que se denomina de “ponto zero” hermenêutico
do CLS, mas que em nada representa que a interpretação comece no texto: antes mesmo do texto
posto, exige-se “[...] o próprio conhecer da linguagem, condição primeira para a apreensão do
objeto” (CARVALHO, 2013a, p. 161): trata-se apenas do reconhecimento de que a interpretação
se opera sobre um “[...] direito positivo que possui a singularidade de ter começo” (FERRAZ JR,
2014a, p. 22).

A isso se acresceria outra perspectiva, ingressando em um patamar que será considerado


futurista no Direito Tributário:

[...] não há grau zero na compreensão; e não há como estabelecer condições ideiais
de fala para alcançar um resultado, a partir de uma “imparcialidade’
proporcionada por um princípio [...]. O procedimento implica um puro espaço
lógico, uma troca de argumentos. Só que cada um já vem de um lugar de
compreensão, que é a pré-compreensão. Na formulação do juízo de validade
(fundamentação-justificação) já está presente a dimensão estruturante,
transcendental, que se assenta no mundo prático (a “situação concreta” de que
falam os juristas). E isso é intransponível. (STRECK, 2014, p. 144)

Nessa medida, para Paulo de Barros Carvalho (2013a, pp. 181-182), “[...] interpretar é
atribuir valores aos símbolos, isto é, adjudicar-lhes significações e, por meio dessas, referências a
objetos”, sendo o texto aquilo que surge quando se promove “[...] a união do plano do conteúdo ao
plano da expressão, vale dizer, quando se manifestar um empírico objetivado, que é o plano
expressional”. A seguir, o autor assevera que a proposta contida em seu modo de interpretação
jurídica “[...] procura instrumentos adequados para a exploração, em níveis mais profundos, dos

268
Entende-se por concepção hilética aquela realizada mediante a classificação proposta por Alchourrón e Bulygin
(1991) e que focam o componente normativo ou prescritivo na composição das normas (em contrapartida ao
componente descritivo). Desse modo, o “[...] reconhecimento dos autores é demonstrar que o direito difere de outros
tipos de linguagem devido ao ‘sentido prescriptivo’, ou seja, a possibilidade de indicar a maneira de se praticar ou
deixar de praticar determinada conduta, inclusive com a possibilidade de aplicação de coerção, se necessário. (...) Por
fim, encerramos o exame da concepção hilética, mencionando o resumo elaborado por Lagier (1995), que a caracteriza
com as seguintes teses: i) as normas são o significado prescritivo das formulações normativas; ii) os operadores
deônticos possuem ‘capacidade semântica’, na medida em que atuam no nível semântico; iii) as normas existem
independentemente da linguagem; e iv) as normas entendem-se como ‘normas-sentido’” (VALLE; PAES; SANTOS,
2017, pp. 242-245).
188

textos do direito positivado, decompondo-os em quatro subsistemas, todos eles qualificados como
jurídicos”.

Diante de tudo quanto foi exposto, podem ser assim resumidas as características
fundamentais do Constructivismo Lógico-Semântico que possam interessar ao lidar com a
interpretação jurídico-tributária:

(i) opta-se por adotar uma concepção de Direito enquanto linguagem, o que representa uma
das possibilidades ofertadas pelo movimento do “giro linguístico”;

(ii) vincular-se a esta opção representa a superação dos métodos científicos tradicionais, na
medida em que se lida com um manancial de possibilidades interpretativas diversas, mas que
devem ser ordenadas segundo um sistema de referências apropriado, no qual restam como
fundamentais os horizontes culturais e a tradição269 jurídico-normativa;

(iii) como objeto complexo, o direito pode ser tomado sob a acepção de “Direito Positivo”,
quando se reconhece no conjunto de normas válidas em um determinado país, consubstanciando-
se, assim, em linguagem técnica270, ou mesmo na metalinguagem que é construída pelo exegeta do
direito positivado, constituindo-se em “Ciência do Direito”, corporificada em linguagem de
natureza descritiva estruturada segundo determinado sistema de referências;

269
Como tradição, aqui, tem-se o conceito desenvolvido por Gadamer (2014, p. 504): “A tradição de linguagem é
tradição no sentido autêntico da palavra, ou seja, aqui não nos defrontamos simplesmente com um resíduo que se deve
investigar e interpretar enquanto vestígio do passado. O que chegou a nós pelo caminho da tradição de linguagem não
é o que restou, mas é transmitido, isto é, nos é dito – seja na forma de tradição oral imediata, onde vivem o mito, a
lenda, os usos e costumes, seja na forma da tradição escrita, cujos signos de certo modo destinam-se diretamente a
todo e qualquer leitor que esteja em condições de os ler”.
270
Paulo de Barros Carvalho (2013a, pp. 57-58) assim explica a chamada “linguagem técnica”: “[...] é toda aquela que
se assenta no discurso natural, mas aproveita em quantidade considerável palavras e expressões de cunho
determinado, pertinentes ao domínio das comunicações científicas. Não chegando a atingir uma estrutura que se possa
dizer sistematizada, busca transmitir informações imediatas acerca da funcionalidade do objeto, utilizando, para tanto,
número maior ou menor de termos científicos. [...] Quanto ao direito positivo, aqui considerado na sua mais elevada
extensão, seja a linguagem do legislador das normas gerais e abstratas, seja aquela das normas individuais e
concretas, ambas se enquadram no tipo de linguagem técnica. As regras emanadas do Poder Legislativo, em razão
de sua compostura heterogênea, decorrência inevitável da representatividade política, revela presença menor de
termos com acepção precisa e predominância incontestável do linguajar comum. Já as normas individuais e
concretas, principalmente as exaradas pelo Poder Judiciário, costumam revestir-se de mais rigor, penetradas em
maior intensidade por vocábulos próprios da Ciência do Direito. Isso, contudo, não lhes tira o caráter de linguagem
técnica”.
189

(iv) nessa medida, a busca do sentido, para o CLS, não se margeia pelo encontro da
“verdade” ou por uma “absolutização” da resposta, o que não significa abolir os valores
“verdadeiro” e “falso”, próprios à caracterização da linguagem da Ciência do Direito; e

(v) adota-se um método analítico e hermenêutico, com a utilização de recursos semióticos


que permitiriam a “quebra” da linguagem do direito positivo com suporte em três dimensões
distintas, conforme será visto adiante. Quanto à interpretação propriamente dita, Paulo de Barros
Carvalho (2013a), edificou uma “Teoria Hermenêutica” como um sincretismo “invulgar”271 do
“[...] tom de historicidade, a consideração dos valores, a interdiscursividade entre textos afins, o
imergir em segmentos culturais bem concebidos”.

8.1 “O APROFUNDAMENTO COGNOSCITIVO REQUER, COM TEIMOSA INSISTÊNCIA, A


PRESENÇA DA TEORIA GERAL E DA FILOSOFIA COMO CONDIÇÕES DE SUA
POSSIBILIDADE”272: POR UMA POROSIDADE273 NECESSÁRIA ENTRE OS
CONHECIMENTOS CIENTÍFICO E FILOSÓFICO274
Como já ressaltado, a atitude do cientista, ao observar a realidade, diante de um modelo em
que sujeito e objeto se relacionam pela linguagem, deve ter premente a separação dos conceitos de

271
A aplicação da palavra invulgar entre aspas se dá exatamente por ser construção afinada ao que fora afirmado por
Paulo de Barros Carvalho (2013a, p. XXVI), no “Prólogo” à obra “Direito tributário: linguagem e método”, ao referir-
se ao que o constructivismo lógico-semântico não é: “Não é, portanto, um sincretismo vulgar, comodista, que banalize
o assunto outorgando-lhe foros de superficialidade, para alegria dos adeptos das teorias em confronto.” (destacado).
272
Prefácio à 9ª edição da obra “Direito Tributário: Fundamentos Jurídicos da Incidência” (CARVALHO, 2015, p.
15).
273
Permita-se aqui uma explicação acerca do emprego da palavra “porosidade”. Como já explicado em abordagens
anteriores, a suposta divisão do conhecimento sob variados modos (científico, filosófico, religioso, dentre outras) não
reflete de maneira profunda aquilo mesmo que representa o conhecimento: daí sua absoluta inseparabilidade. Para fins
de abordagens dentro da Epistemologia, contudo, alguns caracteres são ressaltados ao se lidar com o dado do
conhecimento e que parecem criar nichos individualizados, como se fossem fenômenos estanques. Nessa medida,
justifica-se a classificação que se tem por costumeira no âmbito da Teoria do Conhecimento. Assim, a ideia de
porosidade parece apontar para a unidade do conhecimento, tal qual uma grande célula, que se veria compartimentada
em estruturas limitantes, porém abertas aos movimentos que ocorrem constantemente: aqui a ideia de poros nas
membranas que revestiriam os conhecimentos particulares. Se se utilizasse da expressão “influxo”, poder-se-ia dar a
entender um certo arrebatamento descontrolado que culminaria com o descontrole de um “tipo” de conhecimento sobre
outro: assim, pensando-se em uma capa porosa envolvendo cada conhecimento, manter-se-ia uma certa singularidade,
uma individualidade inquebrantável mas, ao mesmo tempo, aberta a novos movimentos. E isso bem reflete a Escola
do Constructivismo Lógico-Semântico.
274
Vale a menção ao texto de Paulo de Barros Carvalho (2013, p. XXXVI), em seu “Algo para dizer sobre a 5ª edição
deste livro”, da obra “Direito Tributário: Linguagem e Método”, pelo qual o autor, após tratar da “[...] multiplicidade
de princípios, invocados em todas as direções e para justificar propostas descritivas muitas vezes dissonantes”, refere-
se a essa característica fundamental do Constructivismo Lógico-Semântico, que é o que aqui se denomina de
“porosidade” entre os “conhecimentos” filosófico e científico, aliados à pragmática: “Tais expedientes, de ordem
190

objeto real e objeto do conhecimento, ainda que ambos sejam pela linguagem275. Assim, como
característica dos tempos pós-giro linguístico, tem-se que a “[...] linguagem deixa de ser um meio,
algo que estaria entre o eu e a realidade, e se converteria em um léxico capaz de criar tanto o eu
como a realidade” (SCAVINO, 2014, p. XII).

Antes de tudo isso, todavia, paira em sua consciência a dúvida fundamental, à espera de
uma solução que lhe conforte. Nessa medida, “[...] é o progresso da intelectualidade, portanto, o
progresso da dúvida, com seu consequente esvaziamento do conceito ‘realidade’, um processo
histórico.” (FLUSSER, 2011, p. 29). E continua o autor ao ponto que interessa a esta discussão
sobre a necessária porosidade que há entre os “conhecimentos” científico e filosófico: “por sua
própria natureza manifesta-se com precedência no campo da Filosofia, embora esteja
acompanhado, surdamente, por desenvolvimento paralelo em todos os demais campos da situação
humana.” (FLUSSER, 2011, p. 29).

Assim expresso, a maneira de ver o mundo é sempre mediada por uma teoria específica ou
por um sistema de referências artificialmente construído, mediado pela linguagem: “[...] se ele usa
apenas os óculos vermelhos do materialismo, só percebe o mundo matéria, porque todas as coisas
se lhe apresentam através das lentes como vermelhas; se, ao contrário, só vê através dos óculos
verdes do idealismo, para ele tudo são ideias e nada mais.” (VASCONCELOS, 2008, p. 84). Nesse
ponto, a abordagem empreendida pelo Constructivismo Lógico-Semântico foge de ontologias e se
percebe a linguagem como condição de possibilidade de todo o conhecimento.

Antes mesmo, porém, de se colocar os óculos com lentes verdes ou vermelhas, deve o
cientista se questionar acerca da utilização desses objetos ou mesmo o que são realmente esses
óculos que todos colocam para enxergar os problemas: dessa forma, pululam perguntas que podem
não ser respondidas adequadamente dentro das ciências, refugiando-se nos campos da Filosofia. E

filosófica, são imprescindíveis para o progresso da ciência, que não pode verter-se sobre si mesma, repercutindo,
também, nos horizontes da prática, onde acontece a experiência jurídica concreta da realidade social”.
275
Aqui se identifica esse “ser-no-mundo” que carrega a experiência do estar-aí, o Dasein heiddegeriano: como
defende Bittar (2005, p. 184), “não posso modificar minha compreensão-de-mundo, pois ela já é determinada pela
minha história-de-mundo, da qual não posso me alhear”.
191

esses aspectos jamais são olvidados, em momentos específicos, por quem lida com os fundamentos
do CLS276.

Esta abordagem, em grande medida, revela aqui o que há de essencial nesta tese277: a crença
firme de que o conhecimento científico aufere em qualidade ao se permitir os influxos da Filosofia,
enquanto um tipo de “conhecimento que converte em problema os pressupostos das ciências”
(REALE, 2014, p. 11), o que também é uma característica do Constructivismo Lógico-Semântico.
Em tal medida, desde uma abordagem hermenêutica, isso é o que se exibe de modo indefectível:
isso porque, em grande medida, o problema da Hermenêutica não é mais um problema fundamental
do pensamento filosófico da atualidade, mas o problema fundamental (CORETH, 1973, p. 1).

Tal influxo já é causa imediata da própria estruturação desde o Constructivismo Lógico-


Semântico278, mas o que se pretende aqui se revela em um sentido menos metódico e, por que não
dizer, mais abstrato (ou, por que não dizer, mais romântico), tal qual encontrado em Ortega y Gasset
(2016a, p. 71-72), que bem detalha o aprimoramento pelo qual o dado científico pode transitar com
origem no conhecimento filosófico:

Entrevimos que a verdade científica, a verdade física, possui a admirável


qualidade de ser exata – mas é incompleta e penúltima. Não se basta a si mesma.
Seu objeto é parcial, é só um pedaço do mundo (...); portanto, não se apóia em si
mesma, não tem em si mesma seu fundamento e raiz, não é uma verdade radical.
Por isso postula, exige ser integrada em outras verdades não físicas nem científicas
que sejam completas e verdadeiramente últimas. (...). Vemos aqui em clara
contraposição dois tipos de verdade: a científica e a filosófica. Aquela é exata mas

276
Essa convicção também é partilhada por Inocêncio Mártires Coelho (2015, p. 12), ao relatar sua experiência pessoal
no aprofundamento da hermenêutica, e que revela o conteúdo essencial da Filosofia neste saber: “Obtido o doutorado,
pude, enfim, dedicar-me preferencialmente aos temas e problemas da interpretação do dirito e consolidar a convicção
de que, sem um sólido lastro filosófico, a hermenêutica jurídica não iria muito longe, como longe não podem ir –
porque não passam de navegação de cabotagem, como dizia Lyra Filho –, os diferentes saberes jurídicos, aí incluída
até mesmo a sisuda dogmática jurídica, em que pese à sua indispensabilidade para a fundação das diversas ciências do
direito. É que, no fundo, todas essas disciplinas, embora importantes, não passam de conhecimentos de segundo grau,
de saberes que não se fundam em si mesmos, porque dotados de jurisdição subalterna, como proclamava o mesmo
Ortega y Gasset, ao contrapor a particularidade do conhecimento científico à universalidade do saber filosófico”.
277
Quando se fala em “tese”, em sentido noético, deve-se entender o texto que “encerra o objetivo de compor uma
unidade estabelecida linguisticamente e idônea para transmitir u’a mensagem determinada que se apresenta, nos
domínios do jurídico, [...], assentada sobre premissas suficientemente esclarecidas e, portanto, aptas para sustentar o
eixo das proposições finais, onde se demoram as conclusões” (CARVALHO, 2009, p. XXIII): Prefácio à obra
“Competência tributária: fundamentos para uma teoria da nulidade”, de Tácio Lacerda Gama.
278278
192

insuficiente, esta é suficiente mas inexata. E acontece que esta, a inexata, é uma
verdade mais radical que aquela – portanto e sem dúvida, uma verdade de nível
mais alto –, não só porque seu tema seja mais amplo, mas mesmo como modo de
conhecimento: em suma, que a inexata verdade filosófica é uma verdade mais
verdadeira.

Nesse ponto, as modalidades de conhecimento vistas anteriormente, em particular sob os


influxos do empirismo, do racionalismo e do intuicionismo, tomados os horizontes sempre
presentes da(s) filosofia(s) do ser, da consciência e da linguagem, atingem o seu ápice com a
aceitação de uma certa imbricação entre eles, desde que permeados pelo rigor metodológico que
há de definir o caráter científico. Assim, é que Paulo de Barros Carvalho (2015), como se viu no
título desse subcapítulo (“O aprofundamento cognoscitivo requer, com teimosa insistência, a
presença da Teoria Geral e da Filosofia como condições de sua possibilidade”), defende uma
“porosidade” controlada e renovadora entre os mais diversos tipos de conhecimento e, em especial,
dos conhecimentos científico e filosófico.

E isso se dá, pois, a Filosofia, com suporte em uma definição funcional, lida com dois tipos
de problemas: “primeiro, questões que a ciência – física, biológica, social e comportamental – não
pode responder agora e talvez nunca seja capaz de responder. Segundo, questões sobre o
motivo pelo qual as ciências não conseguem responder à primeira série de questões.”
(destacado) (ROSENBERG, 2013, p. 16). Quando se fala na Ciência do Direito, talvez os primeiros
tipos de perguntas sejam os que mais impressionantemente povoam o imaginário do jurista.
Ademais, não há clareza quando se tenta distinguir uma questão científica mais geral e uma questão
filosófica, especialmente ao se considerar as fronteiras móveis da ciência (ROSENBERG, 2013, p.
18).

Como exemplo, tem-se a maneira como este trabalho aborda o insuperável problema do
tempo no (e do) Direito: antes mesmo de abordá-lo, deve-se perguntar o que é tempo. Do mesmo
modo, uma série de outras premissas deverão ser esclarecidas, nos assuntos mais pungentes da
Ciência do Direito: antes de se saber o que é uma relação jurídica, há de se perquirir o que é uma
relação; precedentemente a se saber o que é um fato jurídico, há de se conceituar o que é um fato;
por fim, prioritariamente à definição do critério pessoal (sujeitos ativo e passivo), da regra-matriz
de incidência tributária, há de se tentar abarcar a conceituação de sujeito. E tais perguntas, se são
científicas gerais ou filosóficas, muitas vezes, não possuem respostas que sejam ofertadas hoje
193

pelo Direito, e que talvez nunca o sejam. E ainda mais se poderia questionar o porquê da Ciência
do Direito não conseguir respondê-las.

E para melhor ilustrar a necessidade desse fenômeno de conexão de conhecimentos, volta-


se a Ortega y Gasset (2016a, pp. 51-52), o qual discorre acerca do momento paradigmático ocorrido
na Física, e que caracteriza o instante de abertura das ciências para a Filosofia, como importante
zona de confluência para remodelar conceitos:

Os princípios físicos são o solo dessa ciência, sobre eles caminha o investigador.
Mas quando se faz preciso reformá-los, não podem ser reformados desde
dentro da física, e é preciso sair desta. Para reformar o solo é preciso,
evidentemente, apoiar-se no subsolo. E por isso os físicos se viram obrigados a
filosofar sobre sua ciência e, nesse aspecto, a preocupação filosófica dos físicos é
o fato mais característico do momento atual. Desde Poincaré, Mach e Duhem até
Einstein e Weyl, com seus discípulos e seguidores, foi-se constituindo uma teoria
do conhecimento físico feita pelos próprios físicos. É claro que todos eles
receberam grandes influências do passado filosófico, mas o curioso do caso é que,
enquanto a própria filosofia exagerava seu culto à física como tipo de
conhecimento, a teoria dos físicos acabava descobrindo que a física é uma forma
inferior de conhecimento – a saber, um conhecimento simbólico. (destacado)

A contribuição de Miguel Reale (1977, pp. 39-40), identicamente, no sentido de identificar


nas ciências os seus limites objetivos e como momentos essenciais de uma cultura, cuja dimensão
histórica, irremediavelmente se integra à compreensão universal, identificada com a Filosofia, a
qual “[...] está para as ciências como o conhecimento a priori está para a experiência: é o universal
que se revela na e pela experiência, transcendendo-a”. Assim, o conhecimento científico (re)velaria
o conhecimento filosófico, cabendo a este ir além da Teoria da Ciência e fundando uma abrangente
e crítica Teoria do Conhecimento.

Nesse ponto, como se pugna por uma hermenêutica que se gesta após o movimento do giro
linguístico, e acetito que a Hermenêutica tradicional do Direito normalmente se funda na Filosofia
do ser ou na Filosofia da consciência, não se vislumbra como essa renovação na ciência possa se
efetivar sem se considerar o novo horizonte filosófico: parafraseando Ortega y Gasset, para
reformar a Hermenêutica Jurídica, não se pode partir de um movimento desde dentro do Direito,
mas é preciso firmar-se em seu subsolo, isto é, na Filosofia do Direito, inspirada na reviravolta
linguística.
194

A sensibilidade para essa abertura já resta demonstrada por Paulo de Barros Carvalho
(2013a, p. 3) em sua obra mais extensa, na qual, apesar de não se identificar como um filósofo do
Direito279, o autor reconhece “[...] que a consistência do saber científico depende do quantum de
retroversão que o agente realize na estratégia de seu percurso, vale dizer, na disponibilidade do
estudioso para ponderar sobre o conhecimento mesmo que se propõe construir”. Assim, à
semelhança de Ortega y Gasset, deixa, ao final, a marca explícita que identifica o embasamento
teórico e filosófico do Constructivismo Lógico-Semântico ao reconhecer que “[...] o discurso da
Ciência será tanto mais profundo quanto mais se ativer, o autor, ao modelo filosófico por ele eleito
para estimular sua investigação”.

Não se pode olvidar, ainda, a gênese sempre imbricada das questões jurídicas aos ditames
da Filosofia engendrada por Lourival Vilanova, no qual se encontra o ponto de partida das questões
ora tangenciadas. Nessa medida, partindo do forte rigor positivista, sob o viés filosófico, Vilanova
(2003a; p. 3) deixa desde logo estabelecido que, se há uma profusão de ciências especiais do
Direito, haveria a exigência de uma complementar reflexão filosófica, que denominou de “visão
filosófica de conjunto”.

Tal movimento também é defendido por Streck (2015, p. 153) ao apontar o que denomina
de “[...] uma questão propedêutica e prosaica: o direito não está imune às rupturas paradigmáticas
ocorridas na filosofia”, no qual justifica a necessidade de se ampliar a conexão do Direito com a
Filosofia com vistas a (re)formar ou (re)visitar princípios que não oferecem mais respostas
coerentes dentro do sistema.

E por se falar em coerência, entende-se que a estruturação do sistema constitucional


tributário brasileiro está padecendo de uma grave enfermidade, que aqui se procurará trazer ao
lume e corrigir: baseado em um movimento hermenêutico que não se atém aos horizontes culturais
da sociedade, e, ainda mais, que se utiliza de métodos tradicionais de interpretação em uma
tentativa de fundamentação a posteriori das decisões, remonta-se aos patamares da Filosofia do ser

279
Vale a citação integral e direta de Paulo de Barros Carvalho (2013, p. 3) da oração que inaugura a obra: “Quero
ressaltar que não sou filósofo do direito, mas compreendi, de há muito, que a consistência do saber científico depende
do quantum de retroversão que o agente realize na estratégia de seu percurso, vale dizer, na disponibilidade do
estudioso para ponderar sobre o conhecimento mesmo que se propõe construir”.
195

e da Filosofia da consciência, os quais deveriam ser ao menos analisados criticamente pela


comunidade científica.

Nessa esteira, é que não se aceita “[...] uma ciência perfeitamente depurada e vazia de
interrogação filosófica e de aderência ideológica; como as motivações dos cientistas não pertencem
à ordem propriamente científica; e como seus conceitos centrais só são plenamente inteligíveis
quando relacionados com o conjunto cultural no interior do qual se originam” (JAPIASSU, 2012,
p. 14-15), pode-se afirmar com toda a tranquilidade que não existem diferenciações nas atividades
científicas e de que elas devem ser (re)estruturadas com suporte em preceitos primários, mantendo-
se a integridade fundamental de suas bases epistemológicas.

8.2 “[...], PARTIREI, EM ESFORÇO ANALÍTICO, DA DECOMPOSIÇÃO LÓGICO-


SEMÂNTICA DO FENÔMENO DA INCIDÊNCIA DA REGRA TRIBUTÁRIA, QUERENDO
SABER COMO SE DÁ A PERCUSSÃO DA NORMA, JURIDICIZANDO O ACONTECIMENTO
DO MUNDO DA EXPERIÊNCIA SOCIAL E FAZENDO PROPAGAR EFEITOS PECULIARES NA
DISCIPLINA DAS CONDUTAS INTERPESSOAIS”: INTERPRETANDO EVENTOS E
CONSTRUINDO FATOS JURÍDICOS À LUZ DO CONSTRUCTIVISMO LÓGICO-SEMÂNTICO

Ao se falar em incidência e aplicação no Direito, aponta-se especificamente para os


fenômenos que tornam possível a constituição do “mundo” jurídico, ou, por assim dizer, da
realidade jurídica. E tal não pode se dar sem uma interpretação da realidade social, a qual é
reconstruída em uma realidade jurídica. Isso porque, diferentemente do que entende o senso
comum, o plano do Direito não coincide com o plano social: representam realidades que se
expressam por meio de círculos sociais distintos, componentes de um sistema global, em relações
causais infra e intersistêmicas (VILANOVA, 2015). Apesar de tal entendimento, não se pode
olvidar que os sistemas jurídicos são, antes de tudo, sistemas lógicos, que capturam situações da
vida por meio de proposições, nas lições de Pontes de Miranda (1983, p. IX).

O ser social impõe uma lógica de funcionamento caracterizada pela heterogeneidade e por
uma complexa trama de interações sociais. Para o que interessa ao sistema jurídico, no entanto,
nenhuma norma ou valor pode se objetivar ou, indo além de Vilanova, pode sequer ser idealizada,
fora da estrutura causal do universo social, o qual contém o mundo físico com sua estrutura também
ordenada. Apesar do caos aparente da realidade social, a harmonia se estrutura a partir das regras
que compõem cada um dos subsistemas, tais como o Direito, a Moral, a Religião, a Ciência, a
196

Política, a Arte, em um ritmo incessante que promove fluxos e refluxos (VILANOVA, 2015, p.
14).

Para o que interessa a este trabalho acadêmico, importa tentar estabelecer o sentido de
incidência e de aplicação, porquanto estes são fenômenos observáveis de uma maneira peculiar
pelo Constructivismo Lógico-Semântico, notadamente se se tomar a doutrina jurídico-tributária
tradicional. Isso porque, a depender do sistema de referências que se adote, pode-se contar com
teores diversos daqueles pretendidos aqui280, sem que se visualizem diferenças essencialmente
qualitativas: representam, apenas, maneiras diferenciadas de enxergar um mesmo fenômeno281.

Com tudo isso, é Paulo de Barros Carvalho (2012, p. 33) quem propicia uma aproximação
bastante elucidativa acerca do tema, visualizando a incidência tributária282 a partir de duas
operações formais: na primeira delas, denominada de subsunção, também chamada de inclusão de
classes, o olhar se volta para as ocorrências no mundo fenomênicos, individualizáveis no espaço

280
Ao se cuidar de incidência, não se pode olvidar jamais de Pontes de Miranda (1983, p. 4), amplamente acompanhado
pela doutrina e pela jurisprudência nacionais. Conforme esee autor, a incidência se daria de forma automática e
infalível, tendo em vista que tal pressuposto representa a condição para que se ordene a vida em sociedade, sob a óptica
do Direito. Fixadas tais premissas, ainda que não seja este o referencial que se adota neste trabalho, vale a transcrição
de importante excerto, no qual o autor esclarece a lógica de sua defesa: “3. Incidência e aplicação. Das considerações
acima temos de tirar: (a) que é falsa qualquer teoria que considere apenas provável ou suscetível de não ocorrer a
incidência das regras jurídicas (o homem não organizou a vida social deixando margem à não-incidência, porque teria
sido o ordenamento alógico, em sistema de regras jurídicas em que essas poderiam não ser), e.g., as teorias que afirmam
que algumas regras jurídicas não se aplicam e, pois, não são (confusão entre incidência e aplicação); (b) que é essencial
a todo estudo sério do direito considerar-se, em ordem, a) a elaboração da regra jurídica (fato político), b)a regra
jurídica (fato criador do mundo jurídico), c) o suporte fático (abstrato), a que ela se refere, d) a incidência quando o
suporte fático (concreto) ocorre, e) o fato jurídico, que daí resulta, f) a eficácia do fato jurídico, isto é, as relações
jurídicas e mais efeitos dos fatos jurídicos”.
281
Começando desta pressuposição é que se entende que a observação referida na nota de rodapé anterior pode se
revelar inadequada. Tendo em vista que o Direito constrói suas próprias realidades, mediado pela linguagem, isso
significa que premissas distintas podem ser estruturadas, dentro da lógica contida em cada expressão dessa “realidade”
que é o direito. Ora, que é o Direito, além de uma estrutura lógica de pensamento? Em assim sendo, sabe-se que tal
sistema não teria criado regras para não incidirem. O que é incidência? A depender desta resposta, pode-se ter o
malferimento de premissas lógicas ou não. O adotar-se a posição e os conceitos do Constructivismo Lógico-Semântico,
como se verá, não implica propalar ou falsa teoria, mas desenvolver um conjunto de realidades sob um foco distinto
do tradicionalmente aceito. Tudo se encerra no conteúdo que se dê ao signo, diante da vagueza e da ambiguidade
inerentes a qualquer palavra (ROSS, 2007).
282
Gabriel Ivo (2006, p. 42-43), já na perspectiva do Constructivismo Lógico-Semântico, identifica a incidência com
o aspecto dinâmico do direito: “da atuação da norma jurídica válida, norma que mantém relação de pertinencialidade
com o sistema jurídico, surgem relações jurídicas ou outras normas jurídicas. Trata-se da fenomenologia da
incidência”. Aqui se ousa discordar do autor apenas no resultado da fenomenologia da incidência: da incidência, que
pressupõe ou se confunde com um processo interpretativo, visto que ambos se dão na mente do intérprete ou aplicador
do Direito, não surgem relações jurídicas ou outras normas jurídicas: aflora única e exclusivamente, o resultado desta
interpretação, carecendo da aplicação, isto é, de versão na linguagem competente, para fazerem surgir novas relações
e normas jurídicas.
197

e no tempo, e que se ajustam perfeitamente às “teses fracas”283 indicadas em normas gerais e


abstratas284.

A seguir, processa-se a operação de implicação, que nada mais representa do que o


conteúdo lógico do dever-ser285, o que se chamaria de causalidade: dado o antecedente, deve-ser a
tese, isto é, dada a ocorrência de determinado fato, deve-ser a instauração de um vínculo relacional
entre dois ou mais sujeitos de direito (CARVALHO, 2015, p. 33).

No parágrafo imediatamente anterior, fez-se questão de destacar uma palavra que permite
identificar-se um dos sentidos humanos, fazendo-se a conexão necessária com a atividade humana
da interpretação (SANTAELLA, 2012b, p. 1), que há de existir, para que se tenha incidência
jurídica. Ora, como se definiu há poucos segundos, subentende-se que o subsistema do Direito não
representa a realidade em si, mas uma parte dela, que tangencia a heterogeneidade fática.

De efeito, para que se dê o “ingresso” no subsistema jurídico, necessária se faz a


intercessão do homem, utilizando-se de conteúdo racional previamente estabelecido a fim de
promover a criação de fontes desse subsistema. Nada aqui ingressa sem que a atividade humana

283
“Teses fracas” fazendo coincidir com o significado da palavra “hipótese”, ao se referir às hipóteses de incidência
descritas nas normas jurídicas, em especial, as tributárias.
284
Aqui se destaca uma identidade, e ao mesmo tempo, contradição, com um dos maiores especialistas na obra de
Pontes do Miranda, o jurista alagoano Marcos Bernardes de Mello. A identidade com o conceito de incidência aqui
defendido se identifica quando esse autor assume que “[...] a incidência, no entanto, não se nos dá no mundo sensível,
porque suas conseqüências se passam no mundo da psiquê. [...]. Por isso mesmo, por ser fato do mundo de nossos
pensamentos, é que ela ocorre fatalmente à simples concreção do suporte fáctico.” (MELLO, 1994, p. 56). Em sendo
assim, admite Mello que a incidência há de ser mediada pelo ser humano, “por ser fato do mundo de nossos
pensamentos”; contudo, a contrariedade parece residir na dicotomia da automação da incidência versus a necessária
mediação do humano, pelo seu pensar. Deve-se deixar esclarecido, apenas, que não se está aqui fazendo uma apologia
a qual das aproximações do fenômeno jurídico seria a mais correta: ambas são adequadas, a depender das premissas
adotadas.
285
Aqui se fala no dever-ser lógico e não do dever-ser axiológico. Partindo-se da separação que faz Alaôr Caffé Alves
(2011, pp. 31-32), torna-se mais tangível conceber os contornos de cada um deles: “[...] o ‘dever-ser’ implica o
possível, o futuro, [...] ele é pensável racionalmente, mediante a razão lógica. É preciso, antes de tudo, entender o
conteúdo lógico do dever-ser para compreendê-lo no nível da razão, no mundo teórico, para, em última instância,
leva-lo a cabo adequadamente na realidade, para realizá-lo no mundo prático. De fato, uma coisa é pensar um ato
humano como aquilo que ‘deve ser’, do ponto de vista lógico de sua possibilidade de realização, como se fosse visto
‘por fora’ [...], outra, muito diferente, é ‘sentir’ esse ato como uma convicção de sua exigência para nós, como uma
obrigação (um valor) a ser realizada por nós, vista ‘por dentro’ [...]. No primeiro caso, temos o ‘dever-ser lógico’, no
segundo o ‘dever-ser axiológico’. [...] O dever-ser axiológico pode ser em grande medida apreendido pela razão de
caráter dialógico, pela razão argumentativa, pela razão que pondera e estima os argumentos em favor ou contra certos
valores”. Nessa medida, apesar do percurso gerador de sentido, como se verá a seguir, transitar a partir de um dever-
ser lógico, chega-se, nos planos superiores, às possibilidades do dever-ser axiológico.
198

presencie e ateste tal ocorrência. Ainda que seja um evento subsumível a uma determinada norma,
sem que se verta na linguagem competente exigida pelo Direito, não passará de mero fato da vida,
não adquirindo o qualificativo de “jurídico”. Não se acredita que o Direito esteja no mundo
“natural”: por entendê-lo como linguagem, ou como texto, o que não comporta em si um
reducionismo (ROBLES, 2005, p. 20-21), importa perceber que a incidência jurídica não se dá
como um fenômeno físico automático e infalível, à semelhança de um raio.

Em razão disso, pode-se perguntar o que seria do Direito sem a mediação humana? Pode-
se compreender o homem fora do conteúdo da sociedade? Existe homem completo fora da
intersubjetividade? O direito, assim, seria um não-ser, um absoluto sem-sentido, tendo em vista
que é uma elaboração intelectual que visa a conformar a vida em sociedade, as necessárias inter-
relações, ou mesmo é a condição necessária à existência daquela: ubi societas, ibi jus (ULPIANO).
Tais perguntas, com marcante conteúdo sociológico, apenas visam a explicitar a necessidade de
constituir um sistema lógico, mediado pela inteligência humana, para compreender que a incidência
faz parte desse processo, também devendo passar por atos intelectivos para que ocorra, atos estes
que correspondem ao que genericamente se tem por interpretação.

Tal é importante, pois, conforme se reportou há pouco, entender o Direito como linguagem
tem, como uma dentre as várias consequências possíveis, aquela de que só será reconhecido no
universo jurídico aquele evento ou fato que tenha previamente experimentado a sua inclusão nas
classes normativas previamente dispostas, não se devendo aceitar, diante dessa premissa, que a
incidência ocorra automática e infalivelmente, sem ter sido mediada pela linguagem exarada pelo
sujeito competente, por via do procedimento gemelar denominado de aplicação.

Conforme afirmou Gabriel Ivo (2006, p. 61), a aplicação representa a “[...] concreção da
incidência”, ambas estando imbricadas como o resultado da atividade intelectiva humana e,
portanto, frutos da interpretação. Isto posto, não há razões para se enxergar a incidência com
suporte numa autonomia que esta não ostenta a priori, conforme pretendeu o CTN e repetiu a
doutrina tradicional: por ser atividade humana, resultado do labor daquele que se dedica a explorar
a norma a fim de expedir outra norma, ou mesmo intenta construir a Ciência do Direito, os eventos
não são coletados ao léu por uma “mente sobre-humana”. Como se defende, a incidência ocorre
199

sempre que alguém se posta perante normas, fazendo juízos de valor que confluam para a captação
dos fenômenos pertencentes ao universo social.

Em assim sendo, a norma é tanto incidida quanto aplicada, em uma operação de inclusão
no subsistema jurídico que definirá a densidade da relação instaurada entre dois ou mais sujeitos,
em decorrência de um dever-ser não modalizado: aqui, há de se verificar a implicação que decorrerá
com esteio numa proposição-antecedente, que descreve fato de possível ocorrência, e uma
proposição-consequente, de caráter prescritivo e modalizado deonticamente (VILANOVA, 2010,
p. 59).

Já se aproximando para o conteúdo que aqui se intenta fixar, deve-se ter em mente a noção
de que a interpretação é conceituada como “[...] uma operação mental que acompanha o processo
de aplicação do Direito no seu progredir de um escalão superior para um escalão inferior.”
(KELSEN, 2011, p. 387). Tal citação se faz absolutamente necessária para que se viabilize a
identificação da interpretação com o próprio conteúdo da incidência: a incidência representa
processo mental, e não sobre-humano, porquanto representa o primeiro passo na construção de
direito novo (direito positivo), podendo ainda a interpretação ser levada a cabo mediante a
descrição do próprio direito posto (Ciência do Direito).

Em decorrência do afirmado, segue-se, para Kelsen (2011, pp. 387-388), a estruturação das
seguintes classes:

Na hipótese em que geralmente se pensa quando se fala de interpretação, na


hipótese de interpretação da lei, deve responder-se à questão de saber qual o
conteúdo que se há de dar à norma individual de uma sentença judicial ou de uma
resolução administrativa, norma essa a deduzir da norma geral da lei na sua
aplicação a um caso concreto. Mas também uma interpretação da Constituição,
na medida em que de igual modo se trate de aplicar esta – no processo
legislativo, ao editar decretos ou outros atos constitucionalmente imediatos – a
um escalão inferior; e uma interpretação dos tratados internacionais ou das
normas do Direito internacional geral consuetudinário, quando estas e aqueles
têm de ser aplicados, num caso concreto, por um governo ou por um tribunal
ou órgão administrativo, internacional ou nacional. E há igualmente uma
interpretação de normas individuais, de sentenças judiciais, de ordens
administrativas, de negócios jurídicos, etc., em suma, de todas as normas
jurídicas, na medida em que hajam de ser aplicadas. Mas também os
indivíduos, que têm – não de aplicar, mas – de observar o Direito, observando
ou praticando a conduta que evita a sanção, precisam de compreender e,
portanto, determinar o sentido das normas jurídicas que por eles hão de ser
200

observadas. E, finalmente, também a ciência jurídica, quando descreve um Direito


positivo, tem de interpretar as suas normas. (destacado)

Com isso, percebe-se que Hans Kelsen cria a seguinte estrutura para sua teoria, em se
tratando de interpretação e aplicação das normas jurídicas: inicialmente, compreendida a
interpretação como processo mental que acompanha a aplicação, como transcrito há pouco, aponta,
já neste fragmenteo, casos em que pode se dar a interpretação, sem que ocorra a correlata aplicação.

E isso se deduz facilmente ao se referir à Ciência do Direito, que visa apenas a interpretar
com o fito de descrever, sendo em si a atividade que a identifica funcionalmente. Com isso,
ajustando-se o conceito inicial firmado pelo autor, nem sempre a interpretação acompanhará o
processo de aplicação do Direito, o que é reconhecido pelo jurista em trecho seguinte, ao afirmar
que “[...] a interpretação científica é pura determinação cognoscitiva do sentido das normas
jurídicas.” (KELSEN, 2011, p. 395). Aqui se situariam os casos da chamada interpretação “não-
autêntica” para Kelsen, enquanto se idealiza um universo por exclusão deste, composto pelos
intérpretes autênticos, identificado com os órgãos jurídicos.

Ao se precisar, porém, a chamada “interpretação autêntica” kelseniana286, percebe-se que


ela tem um conteúdo que envolve a aplicação da lei pelos tribunais ou pelas autoridades
administrativas, bem assim pelos demais órgãos aplicadores do Direito, que criam Direito: seja a
criação de norma de caráter geral, quando se “[...] cria Direito não apenas para um caso concreto
mas para todos os casos iguais”, seja no casos de normas de caráter concreto, “quer dizer, quando
esse órgão apenas crie uma norma individual ou execute uma sanção.” (KELSEN, 2011, p. 394).

Aqui, situa-se um ponto em que o CLS se parta de Kelsen: conforme defende Paulo de
Barros Carvalho (2012, p. 60), a regra-matriz de incidência tributária, considerada uma norma
jurídica em sentido estrito, atinge condutas intersubjetivas por intermédio do lançamento

286
Ao se buscar o significado da expressão “interpretação autêntica”, no “Dicionário Jurídico”, de Maria Helena Diniz
(2005, p. 971), a autora oferece o seguinte conteúdo: “Teoria geral do direito. É a do órgão aplicador do direito que,
mediante norma geral, que lhe está dirigida, escolhe uma entre as várias possibilidades interpretativas que lhe oferece
aquela norma. Na aplicação do direito por um órgão jurídico competente, a interpretação cognoscitiva da norma geral
a aplicar combina-se com um ato de vontade pelo qual aquele órgão efetua uma escolha entre as múltiplas
possibilidades reveladas, produzindo uma norma individual ou inferior. Só esta interpretação da autoridade competente
é autêntica, porque cria direito (Kelsen). É também chamada ‘interpretação pública’”.
201

administrativo287 (ato privativo de autoridade), mas também por meio de ato do particular,
identificado com o sujeito passivo da obrigação tributária, quando ambos introduzem normas
individuais e concretas no ordenamento jurídico.

Com isso, “criar Direito” não é prerrogativa apenas de órgãos oficiais, nem a perpetuação
das relações jurídicas contidas em normas individuais e concretas postas pelo próprio contribuinte
resvala para o absurdo: imagine-se o “processo de positivação do direito”288 levado a cabo pelo
contribuinte, ao realizar um ato que constitui o crédito de um tributo sujeito a lançamento “por
homologação”. Findo o prazo de cinco anos para que a autoridade homologue esse ato, e o
correspectivo pagamento, sobrevém a decadência, que fulmina o próprio direito material da
administração tributária, fazendo subsistir, ad æternum, a norma posta pelo contribuinte, que se
cristaliza.

Como se negar que houve interpretação e aplicação do Direito, ainda que realizada pelo
contribuinte? Como renunciar a existência de direito novo? Assim, a se manter a classificação
bipartida proposta por Kelsen, quanto às categorias de intérpretes, uma medida há de ser adotada,
considerando-se as premissas do Constructivismo Lógico-Semântico: o conceito de intérprete
autêntico há de ser alargado, a fim de se considerar todo aquele que promova a enunciação289, como
fonte do Direito, mantendo-se o nicho de intérprete não autênticos àquelas pessoas que produzem
Ciência do Direito, com teor meramente descritivo, em nível de sobrelinguagem, considerando-se
o objeto “direito positivo”.

287
Já sinalizando para a ideia de movimentos distintos ocorrentes na dogmática jurídico-tributária brasileira, Paulo de
Barros Carvalho (2004, p. 3), no “Prefácio” à obra de Denise Lucena Cavalcante, afirma que “a consciência de que a
constituição do crédito tributário é uma construção de linguagem, produzida pelo agente competente consoante os
padrões e o estilo que a lei rigorosamente estipula, por estranho que possa parecer, é conquista relativamente recente
na história da dogmática do direito tributário”.
288
Vale mencionar a observação feita por Paulo de Barros Carvalho (2011, p. XIX), na “Introdução que muito importa
ler”, acerca dos processos de positivaão e de derivação, os quais serão dispostos algumas vezes nesta tese: “Positivação
e derivação não são processos simétricos. Positivação é sequência de atos ponentes de normas no quadro da dinâmica
do sistema. Seu trajeto é uniforme e a direção, sempre descendente. Já derivação é operação lógico-semântica em que
se articula uma unidade normativa a outras que lhe são sobrepostas ou sotopostas na hierarquia do conjunto”.
289
Para se compreender todo o processo de enunciação, é absolutamente profunda e didática a obra de Gabriel Ivo
intitulada “Norma jurídica, produção e controle”, que alcança com maestria o objetivo talhado em seu título, à luz
do Constructivismo Lógico-Semântico.
202

A estruturação dessa premissa se faz importante a fim de que se saiba cada um dos papeis
que podem ser executados no percurso gerador de sentido, o qual pode ser levado a cabo tanto pelo
chamado intérprete “autêntico”, quanto pelo “não autêntico”. O resultado de ambas as atividades
intelectuais, contudo, é que produz a diferença: um resulta em renovação do direito positivo; ou
outro, configura a própria Ciência do Direito.

8.3 “A PESQUISA DO FENÔMENO JURÍDICO, COM OS RECURSOS DA TEORIA


COMUNICACIONAL, POSSIBILITOU ATINGIR NÍVEIS MAIS PROFUNDOS DE
OBSERVAÇÃO, BEM COMO DESENVOLVER UMA INVESTIGAÇÃO MAIS FINA E
PENETRANTE NO TRABALHO CONSTRUTIVO DA CIÊNCIA”290: BREVES
CONSIDERAÇÕES SOBRE A TEORIA COMUNICACIONAL DO DIREITO
Como se afirmou no início deste Capítulo, tomar por pressuposta a ideia de que direito é
linguagem, é “prática social interpretativa” (ROBLES, 2015, p. 408), traz a possibilidade de
algumas maneiras distintas de abordagem do fenômeno jurídico. Dentre todas, escolheu-se o
Constructivismo Lógico-Semântico, em especial, pelas suas contribuições incontrastáveis para a
Hermenêutica Jurídico-Tributária brasileira. Vale, porém, a enunciação de outra Escola,
igualmente importante na Europa, e que expressa pontos de congruência bem relevantes para o
CLS e para o percurso gerador de sentido que se pretende estabelecer ao final.

Assim, ressoa a dignidade científico-filosófica da Teoria Comunicacional do Direito291,


cujo maior expoente é Gregorio Robles. Efetivamente, essa escola, que também adota o
pressuposto de que direito é linguagem, é texto, será também trazida aqui, para breves
considerações acerca do processo hermenêutico.

A Teoria Comunicacional do Direito desenvolvida por Gregorio Robles (2005; 2011;


2015), que ora pode ser identificada pela sigla CTL, ao tomar o direito como linguagem, o autor

290
Prefácio realizado por Paulo de Barros Carvalho, intitulado “Teoria Comunicacional do Direito”, à obra “Teoria
Comunicacional do Direito: diálogo entre Brasil e Espanha” (CARVALHO; ROBLES, 2011, p. XV).
291
Como autêntica Filosofia do Direito, a CTL tem por missão, portanto, “a crítica da experiência jurídica, no sentido
de determinar as suas condições transcendentais, ou seja, aquelas condições que servem de fundamento à experiência,
tornando-a possível. Que é que governa a crítica jurídica? Que é que, logicamente, condiciona o trabalho do jurista?
Quais as bases da Ciência do Direito e quais os títulos éticos da atividade do legislador? Eis aí exemplos da já apontada
preocupação de buscar os pressupostos, as condições últimas, procurando partir de verdades evidentes, ou melhor,
evidenciadas no processar-se da experiência histórico-social”. E, de fato, as respostas a todas essas perguntas, e muitas
outras, encontram-se espraiadas na densa produção de Gregorio Robles.
203

sustenta que o modo de expressão, por excelência, do direito é a linguagem verbalizada, suscetível
de ser escrita, o que representa uma característica do Direito moderno. Assim identificado, surge
como decorrência reflexa a noção de que o direito é texto, podendo ser analisado com a utilização
dos métodos aplicados em quaisquer outros textos: neste ponto, importa consagrar a sintaxe, a
semântica e a pragmática como “[...] as três operações possíveis do texto jurídico”, denominando
estes três níveis, respectivamente, de Teoria Formal do Direito, Teoria da Dogmática Jurídica e
Teoria das Decisões Jurídicas (ROBLES, 2015, p. 397).

Para o que interessa, no entanto, mais detidamente à CTL, convém se proceder a uma
análise do direito que envolve aspectos eminentemente pragmáticos, culminando na definição da
decisão como elemento central de todo o Direito, força-motriz para o surgimento das normas e das
instituições. A decisão, assim, configura-se como atos de fala que efetivamente produzem texto
novo, e, dessa maneira, direito e decisão se imbricam, produzindo-se aquele por força deste
(ROBLES, 2005, p. 3): para Robles (2015), interpretação é sempre construção do sentido definitivo
através da mensagem:

No hay interpretación del Derecho, sino procesos de interpretación que


acompañan siempre y en todo momento a los textos que se generan em el ámbito
jurídico y asimismo a los actos comunicativos (decisiones, etc.) que dan lugar a
la generación de dichos textos con significado o relevancia jurídica. Entendida en
estos términos, es perfectamente admisible la tesis de que el Derecho constituye
una práctica social interpretativa292. (destacado no original). (ROBLES, 2015, p.
412).

Nesse ponto, para Gregorio Robles, a decisão constituinte, que ele identifica como extra-
sistêmica, é aquela que cria ou constitui o ordenamento, tomado este como conjunto de textos
brutos, ou como o “[...] texto jurídico exatamente como produzido pelas autoridades, que são as
pessoas que tomam as decisões jurídicas.” (ROBLES, 2005, p. 4-6).

Aqui, há a necessidade de um olhar mais aprofundado, para o que interessa ao objeto de


estudo deste ensaio. Ao se enxergar a decisão constituinte, isto é, a decisão que cria ou constitui o
ordenamento, Robles (2005) defende o ponto de vista de que de tal decisão resultaria a

292
Tradução livre: “Não há interpretação do Direito, mas processos de interpretação que sempre acompanham e em
todos os momentos aos textos gerados no campo jurídico e também aos atos comunicativos (decisões, etc.) que levam
à geração de tais textos com significado ou relevância jurídica. Entendida nestes termos, a tese de que a lei constitui
uma prática social interpretativa é perfeitamente admissível”.
204

Constituição, como conjunto de normas e, por decorrência, suas instituições. Para o autor, à
Constituição seria atribuído um conceito meramente formal ou mínimo, o qual se limita a criar
nova ordem, isto é, a quem competirá exarar normas.

Assevera a seguir, entretanto, que, não obstante esse conteúdo mínimo, a Constituição
“realmente existente” não se limita a isso: de outra parte, além da configuração de governo, a qual
se identifica com a designação dos poderes máximos, bem como seu espaço competencial e todos
os procedimentos necessários para a execução de seu mister, são estabelecidos critérios materiais,
que devem guiar as decisões intrassistêmicas. Aqui estão situados os chamados “critérios de
justiça”, ou os valores que foram eleitos em um determinado ordenamento (ROBLES, 2005).
Conclui o autor, nesse ponto, ao asseverar que a união entre a teoria da decisão e a teoria da justiça
extra-sistêmica.

Avançando sobre as bases da CTL, impõe-se nesse ponto conceituar normas jurídicas e
instituições. As primeiras correspondem ao resultado do processo hermenêutico que se opera sobre
os textos brutos, constantes do ordenamento. Norma, assim entendida, é resultado de interpretação,
a realizar-se pela Ciência do Direito, sendo a estrutura nuclear do que o autor entende como
sistema. Este se caracteriza como o resultado do processo de refinamento dos textos postos pelas
decisões, sendo mais completo e exato do que o ordenamento293 (ROBLES, 2005).

Por fim, quanto às instituições, “[...] estas constituem redes normativas unitárias em torno
de um princípio básico (o princípio institucional) e cuja função é regular aspectos concretos da
realidade social” (ROBLES, 2005, p. 9). Há, nestas, maior senso de organização, de estruturação.

293
Aqui, uma importante dessemelhança do Constructivismo Lógico-Semântico em relação à Teoria Comunicacional
do Direito: para esta, ordenamento é diferente de sistema, na medida em que aquele seria ainda conjunto ainda não
refinado, de que se compõe o sistema. Para Paulo de Barros Carvalho (2013a, pp. 217-218), ciente de que “[...] não
são pouco os autores que insistem na distinção entre ordenamento e sistema, tendo em vista o direito positivo”, conclui
que não se “[...] pode negar a condição de sistema a um estrato de linguagem tal como se apresenta o direito positivo”.
Assim, com o autor brasileiro, “[...] a verdade é que o material bruto dos comandos legislados, mesmo antes de receber
o tratamento hermenêutico do cientista dogmático, já se afirma como expressão linguística de um ato de fala, inserido
no contexto comunicacional que se instaura entre enunciador e enunciatário. E o asserto se confirma quando pensamos
que o trabalho sistematizado que a doutrina elabora, em nível de sobrelinguagem, pode, perfeitamente, ser objeto
de sucessivas construções hermenêuticas porque a compreensão é inesgotável. Ali onde houver um texto, haverá
sempre a possibilidade de interpretá-lo, de reorganizá-lo, de repensá-lo, dando origem a novos textos de nível
linguístico superior. Sistema é o discurso da Ciência do Direito, mas sistema também é o domínio finito, mas
indeterminável, do direito positivo” (destacado).
205

Configuram-se em núcleos aglutinadores de normas, que possibilitam o estudo científico de um


ordenamento jurídico concreto.

Já em sua obra mais recente, publicada em 2015, o Mestre espanhol desenvolve com
profundidade a Dogmática Jurídica com suporte na Teoria de Textos, aprofundando o já eleito
método294 hermenêutico-analítico como o que melhor delineia os contornos do fenômeno jurídico,
como objeto do conhecimento, e estruturando de maneira extraordinária a temática específica da
interpretação e da compreensão jurídicas.

Diante de tudo isso, e promovendo um congraçamento do Constructivismo Lógico-


Semântico e da Teoria Comunicacional do Direito, percebe-se que, em ambas se imbricam
conceitos como os de como hermenêutica, interpretação, compreensão e geração de sentido, em
um evoluir que visa, primacialmente, a desvendar o objeto que aqui se toma em conta – o próprio
Direito. Outro caractere que lhes é comum é o da intertextualidade, que pode se dar por meio de
remissões internas, dentro do mesmo ordenamento, ou externas, quando são buscados outros
ordenamentos (ROBLES, 2015).

Reiterando tudo o quanto já foi dito, “[...] interpretar é atribuir valores aos símbolos, isto
é, adjudicar-lhes significações e, por meio dessas, referências a objetos” (CARVALHO, 2015, p.
107). Em assim sendo, o Direito se justifica como sistema que se utiliza da linguagem para falar
de seu objeto, que também se verte em linguagem, em um movimento de autorreferencialidade.
Nesse motor, inserem-se os valores como dados inexoráveis, em virtude de que fazem parte do
conteúdo da linguagem, resultando o Direito em um objeto cultural por excelência (CARVALHO,
2015, p. 107).

294
Retornando à questão do método, e segundo o próprio filósofo Gregorio Robes (2015. p. 371), “el método (del
griego, méthodos, camino), es el procedimiento que hay que seguir en el razonamiento – del tipo que esta sea – para
llegar a resultados ciertos o aceptables. Esta noción general de método es aplicable a los más diversos campos, tanto
de la ciencia como del conocimiento humano que no reclama carácter cientpifico (el «sentido común»). Todo método
suele venir concretado con un calificativo (inductivo, deductivo, etc.) que señala, precisamente, lo esencial del
procedimiento del método de que se trate”.
206

Importa ressaltar que o Direito permite sempre que seu objeto, que é a própria linguagem,
seja desvendado com suporte em outros signos, em um movimento incessante de utilização dos
signos. Conforme apregoa Bakhtin (2014, p. 34),

[...] compreender um signo consiste em aproximar o signo apreendido de outros


signos já conhecidos; em outros termos, a compreensão é uma resposta a um
signo por meio de signos. E essa cadeia de criatividade e de compreensão
ideológicas, deslocando-se de signo em signo para um novo signo, é única e
contínua: de um elo de natureza semiótica (e, portanto, também de natureza
material) passamos sem interrupção para um outro elo de natureza estritamente
idêntica. Em nenhum ponto a cadeia se quebra, em nenhum ponto ela penetra a
existência interior, de natureza não causal e não corporificada em signos.
(destacado)

Ora, se a compreensão, como destacado por Bakhtin (2014, p. 34), é “[...] uma resposta a
um signo por meio de signos”, fica estabelecida uma circularidade infinita no processo
interpretativo (movimento de autorreferencialidade há pouco apontado), o qual trabalha com um
substrato que carece de compreensão, sendo esta evocada com amparo na utilização de outros
signos, que precisam ser também compreendidos.

Assim, interessa com base nesta abordagem evocar o sentido do termo “interpretação”, a
fim de se compreender, com a maior aproximação possível, a idealização de Carvalho quanto a um
caminho, a um percurso a ser trilhado nesse processo interpretativo. Preliminarmente, serão
enfatizadas algumas abordagens acerca dos signos “interpretação” e, a seguir, “sentido” e
“alcance”, com vistas a se culminar com a abordagem do percurso gerador de sentido.
207

CAPÍTULO 9. “A INTERPRETAÇÃO É INESGOTÁVEL, O QUE IMPORTA


RECONHECER QUE OS PROCESSOS DE GERAÇÃO DE SENTIDO
CONTINUAM, INCESSANTEMENTE, ACOMPANHANDO A OBRA AO
LONGO DE SUA EXISTÊNCIA”295: TEORIA HERMENÊUTICA NO
CONSTRUCTIVISMO LÓGICO-SEMÂNTICO296
Como se viu até aqui, as elaborações empreendidas pelo Constructivismo Lógico-
Semântico ofertam possibilidades cognoscitivas amplas em torno do fenômeno jurídico,
estabelecendo premissas que se encontram fora do campo estritamente jurídico e assentando as
bases na própria Filosofia, com o fito de melhor compreender o direito, sob qualquer de suas
vertentes. Dado, porém, o aprofundamento teórico empreendido pelo CLS, isto não significa um
afastamento do que denomina de práxis jurídica, como se verá a seguir: do contrário, dota o
intérprete de ferramental lógico estruturado que torna mais difícil rebater seus argumentos, pelas
possibilidades fundamentandas de constituição do raciocínio jurídico.

E isso ocorre no sistema jurídico nacional na presunção de que a interpretação jurídica é


uma realidade acessí[á]vel por todos os que a ele se submetem, na medida em que homogeneizados
os pares “emissores/receptores” que dinamizam a realidade jurídica, conforme art. 3º da Lei de
Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB)297, que assim prescreve: “Ninguém se escusa
de cumprir a lei, alegando que não a conhece” (ARAUJO, 2005).

E é nessa medida que este ensaio se aproximará, neste momento, da “Teoria Hermenêutica”
estabelecida por Paulo de Barros Carvalho (2013a, 2015), especificamente desde o item 17,
Capítulo I, do seu “Direito Tributário: fundamentos jurídicos da incidência”, obra que marca essa
divisão de águas na Hermenêutica Jurídico-Tributária brasileira. Não se pode olvidar, no entanto,
que materialmente o que ele chamou de “Teoria Hermenêutica” está assentado no Capítulo 3,

295
Prefácio à 13ª edição da obra “Curso de Direito Tributário” (CARVALHO, 2015, p. 15).
296
Não se pode deixar de referenciar Eros Roberto Grau (2014, p. 27), para quem o movimento hermenêutico, na
esteira de Carlos Cossio, teria se cindido por volta da década de 1970, “observando que Kelsen e Merkl explicaram
pela primeira vez a relação lógica que há entre o momento legislativo e o momento judicial do direito: o juiz não pode
criar normas gerais, mas cria direito ao criar normas individualizadas. O juiz não legisla nem suplementa a lei, mas,
dentro do espaço sinalizado pela lei, autodetermina-se. Eis aí a interpretação. Todo o espaço da dinâmica jurídica é
aplicação em relação às normas gerais que o fundamentam, mas é criação em relação às normas inferiores que
fundamenta. Daí que, assim como o legislador aplica a Constituição quando legisla, o juiz quando decide aplica a lei,
criando, porém, dentro dela, uma norma individualizada. Eis o fundamento lógico da interpretação judicial”.
(destacado).
297
Decreto-lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942.
208

Primeira Parte, da obra “Direito Tributário: linguagem e método”, que também será fartamente
aprofundado aqui.

Sob uma perspectiva utilitarista, pretende-se, com esteio nesta abordagem, isolar as
elaborações hermenêuticas erigidas no CLS do restante do movimento teórico que a Escola
representa, a fim de possibilitar a identificação do diferencial desta teoria para as demais escolas
tradicionais do Direito Tributário. E isso se dará com amparo em três perspectivas: pela primeira,
será empreendida uma aproximação semântica dos signos “interpretação”, “sentido” e “alcance”,
como o fito de se propiciar a segunda perspectiva, a qual se perfaz no aprofundamento em torno
dos axiomas da “intertextualidade”, “interdisciplinaridade” e “inesgotabilidade”.

Por fim, o momento de visualização de todo o percurso gerador de sentido de Paulo de


Barros Carvalho, com origem nos Planos S1, S2, S3 e S4, que representam a coroação da
aproximação dos textos jurídicos com os seus intérpretes, mediados por perspectivas colhidas no
âmbito da Semiótica, por meio da idealização dos planos sintático, semântico e pragmático.

9.1 “MANTENHO PRESENTE, DESSE MODO, A CONCEPÇÃO PELA QUAL


INTERPRETAR É ATRIBUIR VALORES AOS SÍMBOLOS”298: A AMPLITUDE DOS SIGNOS
INTERPRETAÇÃO, SENTIDO E ALCANCE E OS PLANOS SINTÁTICO, SEMÂNTICO E
PRAGMÁTICO
Ao se cuidar de reduzir os âmbitos de vagueza e de ambiguidade (ROSS, 2007, p. 143),
comum a todos os signos, uma das primeiras providências intelectivas passa pela explicitação do
conteúdo de significação permitido pelo termo, fazendo-se necessária uma incursão aos
dicionários. Tal pode se mostrar eficiente, em especial, quando se adota o primeiro viés analítico
de confrontação-construção com o objeto, pelo qual “o resultado da interpretação nunca
corresponde a algo que estaria inteiramente contido no objeto interpretado, derivando, ao contrário,
de uma dinâmica de apropriação desse objeto por parte do intérprete”. (JUST, 2014, p. 29).

Antes disso, porém, pode-se estabelecer que o signo “interpretação” não há de ser referido
propriamente aos fenômenos físicos ou naturais, bem como às explicações ou definições de

298
Prefácio à obra “Hermenêutica e a linguagem: um estudo sobre sua relação com a Filosofia, o Direito, o
neoconstitucionalismo e a defesa da dignidade da pessoa humana”, de Antonio Baptista Gonçalves (CARVALHO,
2016, p. XIII).
209

concepções subjetivas da vida e do mundo, normalmente identificáveis com as reflexões feitas


pelos filósofos, ou a maneira particular de identificar a realidade, composta por meio da poesia
(MIRANDA, 1989, p. 87).

Conforme manifestam Paulo de Barros Carvalho (2015, p. 109) e Gregorio Robles (2015,
p. 397) a proposta de interpretação do direito passa por uma investigação de seus três planos
fundamentais: a sintaxe, a qual se ocupa do relacionamento que os signos têm entre si; a semântica,
que liga os signos aos objetos significados; e a pragmática, que compreende o modo de uso dessa
linguagem na comunidade do discurso e na comunidade social. Robles (2015, p. 397) enuncia que
“[...] la Teoría comunicacional denomina a estos tres niveles, respectivamente, Teoría formal del
Derecho, Teoría de la Dogmática jurídica (o Ciencia de los juristas) y Teoría de las Decisiones
jurídicas”. São abordagens do mesmo objeto, sob ângulos distintos.

Como aponta o Constructivismo Lógico-Semântico, o conteúdo da “interpretação” aqui


aduzida aponta a um objeto próprio, no caso o direito positivo, com o fito de aplicar esse direito,
ou mesmo de estabelecer conteúdos dogmáticos: em um, manter-se-ia o caráter da prescritividade;
no outro, uma atitude essencialmente descritiva299, não se olvidando, contudo, que, a pretexto de
descrever, o cientista do Direito também executa construções, utilizando-se do texto normativo,
que é sempre ato de decisão, e cujo substrato material é controlado pela linguagem.

Em sendo assim, Eduardo Marcial Ferreira Jardim (1995, p. 88), ao mesmo tempo em que
predica os caracteres fundamentais da interpretação essencialmente jurídica, faz a crítica contida
nesta obra, relativamente à opção contida no CTN, que gera uma dificuldade a ser superada com
suporte nos axiomas hermenêuticos do Constructivismo Lógico-Semântico:

Mister supremo do bacharel em direito, seja advogado, professor, delegado,


agente fiscal, procurador, magistrado etc. Consubstancia-se no desvendamento
do direito, buscando compreendê-lo em seus contornos e estruturas, com o
desígnio de aquilatar o verdadeiro significado de uma norma ou princípio e
o seu traço de harmonia ou desarmonia com os vetores magnos do sistema
jurídico. O Código Tributário incorreu no lamentável equívoco de estatuir
regras de interpretação, o que representa um paradoxo, porquanto tais

299
Diferentemente disso, Robles (2015, p. 400) defende o ponto de vista de que diante de um texto normativo nunca
se observa uma atitude descritiva, senão, uma atitude compreensiva, o que implica, necessariamente, uma atitude de
construção.
210

regras devem ser interpretadas, gerando, assim, uma falácia circular.


(destacado).

Já em Maria Helena Diniz (2005, p. 970-971), o significado do vocábulo interpretação,


tomado também sob o aspecto jurídico, encerra duas fases distintas: sob a toada do Direito Autoral,
identifica-se com a “[...] maneira como atores ou músicos desempenham sua arte; b) tradução”. Já
no que tange à Teoria Geral do Direito, mais aproximativa do que aqui se espera, tem-se a
“descoberta do sentido e alcance da norma jurídica, procurando a significação dos conceitos
jurídicos” (destacado).

Ora, ao se falar que a interpretação visa a descobrir o “sentido e alcance da norma


jurídica”, deve-se desde já indicar que não se concorda que exista algo a ser descoberto
(CARVALHO, 2015, p. 111), especificamente pelo fato de não se acreditar que exista algo
escondido na norma jurídica, como se o intérprete, ao final de sua atividade, gritasse: “- Eureka!”,
como já se viu no Capítulo 4, do Livro I, desta tese.

Acredita-se, sim, que haja algo a ser construído, com base naquela decisão jurídica: nesse
ponto, utilizando-se de um exemplo que facilite a visualização do fenômeno interpretativo,
considere-se uma analogia entre a construção do sentido de uma norma e a construção de uma casa.
Imagine-se que, em ambos os casos, receba-se em quantidades específicas tudo o que se precisa
para construir o sentido do texto e para se erguer o imóvel.

Observando-se a edificação da casa, suponha-se que o engenheiro receba quantidades


estritas de cada item a ser empregado: dois milheiros de tijolos, vinte sacas de cimento, três portas,
dentre outros materiais. No momento da construção, o engenheiro pode construir uma casa de um
pavimento, de dois ou até de três: contudo, tem de usar estritamente aquele material ofertado. A
priori, nem mais nem menos. O modelo, a configuração e a funcionalidade da casa serão definidos
de acordo com sua criatividade. Essa criatividade é, entretanto, de certo modo, limitada, pelo
material oferecido. Aqui reside, por analogia, a descrição de Paulo de Barros Carvalho ao cuidar
do formato e do conteúdo em sua Teoria Hermenêutica.

Identicamente a Humberto Ávila (2010, pp. 34-35), acredita-se que

[...] é justamente porque as normas são construídas pelo intérprete a partir dos
dispositivos que não se pode chegar à conclusão de que este ou aquele dispositivo
211

contém uma regra ou um princípio. Essa qualificação normativa depende de


conexões axiológicas que não estão incorporadas ao texto nem a ele pertencem,
mas são, antes, construídas pelo próprio intérprete. Isso não quer dizer, como já
afirmado, que o intérprete é livre para fazer as conexões entre as normas e os fins
a cuja realização elas servem. O ordenamento jurídico estabelece a realização dos
fins, a preservação dos valores e a manutenção ou a busca de determinados bens
jurídicos essenciais à realização daqueles fins e à preservação desses valores. [...]
o intérprete deve interpretar os dispositivos constitucionais de modo a explicitar
suas versões se significado de acordo com os fins e os valores entremostrados na
linguagem constitucional.

Com efeito, esquematicamente, tem-se o sentido da interpretação da norma jurídica:


tomando-se o Direito como linguagem, e admitindo-se o ato de decisão, o texto normativo, como
objeto, utilizar-se-ão signos para construir outros signos, em um sem-cessar de expressões: é
movimento da autorreferencialidade já exposto. Nesse ponto, interpretação e construção se
confundem, na qualidade de processo.

Ao defender a ideia de que a Ciência do Direito apenas “descreve” o texto normativo, Paulo
de Barros Carvalho (2013a) parece deixar evidenciada uma preocupação maior com o respeito ao
limite, em consonância com um substrato positivista de controle, tendo em vista que o intérprete
trabalha com um substrato material aparentemente limitado, um número estrito de palavras, as
quais, em contrapartida, podem dar azo a uma infinitude de interpretações possíveis.

A alusão que se poderia fazer, sob a égide de Carvalho (2015, p. 105), pressupondo, para o
Mestre paulista, “interpretar é atribuir valores aos símbolos”, seria a interpretação como uma
verdadeira operação de análise combinatória matemática, na qual se promoveria uma
correspondência praticamente infinita dos valores atribuídos aos signos, pela combinação dos
significados de cada um dos signos constantes no texto normativo. Matematicamente, ao se
enxergar dois conjuntos, os quais poderiam representar os valores atribuíveis aos símbolos, sendo
o conjunto A = {0, 1} e B = {3}, poder-se-ia combinar esses conjuntos de variegadas maneiras,
tais como: {0, 3}, {1, 3} e {0, 1, 3}. São três realidades distintas e que promovem a conjugação de
elementos determinados, sem fugir dos elementos preordenados. Tal construção textual, no
entanto, que facilmente poderia apontar para algo simples, incorpora um outro ingrediente que
torna a atividade tão complexa e inusitada quanto se possa pensar: não há texto sem contexto.

Voltando-se aos conjuntos A = {0, 1} e B = {3}, não poderia o hermeneuta, a título de


interpretar o conjunto B, afirmar que ele possui, como elemento, o número 4: como se vê, é um
212

conjunto unitário, contendo apenas o número 3. Identicamente se tem com a chamada “descrição”
no processo hermenêutico do CLS: não se está autorizado, a pretexto de “construir”, inventar uma
realidade inexistente, totalmente diversa daquela pretendida pelo sujeito competente para criar o
texto normativo (seja qual for o matiz deste). Ao tentar conter esse processo, utilizando-se do signo
“descrever”, Paulo de Barros Carvalho parece promover a contenção no texto, para que o processo
interpretativo não dê enseja o descontrole, a criação de outras normas que não guardem conexão
com o substrato anterior, sempre respeitando a integridade e consonância que a operação lógica da
derivação há de empreender na mente daquele que interpreta.

E tal preocupação é justificável, na medida em que o substrato linguístico é dotado de


potencialidades que podem passar despercebidas aos iniciantes, mas que podem ser bastante
aprofundadas por aquele que consiga alcançar os patamares mais elevados do sistema jurídico.
Talvez em uma atitude mais ortodoxa, Carvalho (2013a) tentou chamar à responsabilidade o
intérprete para que este não “ultrapasse a ponte”.

Assim, sob a percepção que aqui se defende, aduz-se a ideia de que não se pode afastar, na
interpretação jurídica, de um conceito de limite, ainda que tal possa parecer ingênuo ou
inexequível. E tal conceito liga-se umbilicalmente à escolha do método, que seria o “fiscal”, o
“guardião”, previsto no sistema para que os limites não sejam excedidos, para que o caminho certo
seja trilhado.

Longe de pugnar, no direito tributário, contudo, pela adoção de vários métodos de


interpretação tradicionais (literal ou gramatical, histórico ou histórico-evolutivo, lógico,
teleológico e sistemático), defende-se a ideia de que os textos normativos devem ser interpretados
“[...] com base nos métodos empregados em sistemas de linguagem”, em seus planos fundamentais
“[...] sintático, semântico e pragmático” (CARVALHO, 2013a, p. 202), como aqui se desenvolve.

Voltando-se à imagem da construção da casa, há pouco aventada, ao se optar por adquirir


tintas na cor amarela para se pintar as paredes, são excluídas quaisquer possibilidades de se ter
ambientes vermelhos ou azuis. Se além da amarela, no entanto, adquire-se também a tinta azul,
além de paredes destas cores, estas podem ser misturadas em proporções diferentes, formando um
número incontável de tons de verde, em uma escala que se situa, porém, dentro de limites
específicos: entre o amarelo e o azul mais puros do que um determinado sistema de medição possa
213

permitir. Nessa medida, não se pode olvidar, ainda, que a Hermenêutica Jurídica se utiliza de
“tecnologias” aperfeiçoadas à medida que se aperfeiçoa o próprio modo de aproximação com a
palavra, e que nada é definitivo em termos de conhecimento.

Paulo de Barros Carvalho poderia assim “descrever” esse processo relativo às cores: com a
combinação de duas cores primárias puderam originar-se, pragmaticamente, dez tons de verde
distintos nas paredes, sem desconsiderar, contudo, que, “semanticamente”, tantos outros poderiam
ser originados nesta mistura. Sob essa mesma perspectiva, a Teoria Comunicacional do Direito,
por exemplo, poderia afirmar que, da conjugação dessas duas cores primárias, infinitos tons de
verde seriam possíveis, sem se preocupar, contudo, especificamente, com aquelas contidas nas
paredes, mas se apegando às possibilidades de tons de verdes possíveis de encontrar.

Com isso, propõe-se que, em vez de se compreender a interpretação como a “descoberta do


sentido e alcance da norma jurídica”, tenha-se a substituição do primeiro termo: interpretação como
construção “do sentido e alcance da norma jurídica”. Conforme leciona Paulo de Barros Carvalho
(2013a, p. 173),

[...] a realidade jurídica é constituída, em toda a sua extensão, em todos os seus


momentos e manifestações, em todas as suas instâncias organizacionais, pela
linguagem do direito posto, entrando nessa função configuradora tanto as normas
gerais e abstratas e gerais e concretas como as individuais e abstratas e as
individuais e concretas, as quais decompostas, exibem a multiplicidade imensa
dos enunciados jurídico-prescritivos.

No que respeita à qualificação dos signos “sentido” e “alcance”, seguem algumas


observações julgadas relevantes para, a seguir, confrontar-se com o percurso gerador de sentido.
Tem-se assim que uma análise do termo “sentido” pode ser empreendida à luz de várias
abordagens: uma primeira, mais abrangente, busca seu conteúdo nas situações corriqueiras da vida,
dispostas assim no Dicionário Houaiss (2009, p. 1730):

[...] sentido. (...) 5 FISL faculdade de perceber uma modalidade específica de


sensações, que correspondem a órgãos determinados [São cinco os sentidos: tato,
visão, audição paladar e olfato] 6 faculdade de sentir ou perceber, de
compreender; senso 7 faculdade de julgar; bom senso, tino (...) 10 encadeamento
coerente de coisas ou fatos; cabimento (...) 12 concentração da atividade mental;
atenção, pensamento (...) 15 FIL faculdade de captar determinada classe ou grupo
de sensações, estabelecendo um contato intuitivo e imediato com a realidade, e
assentando desta maneira os fundamentos empíricos do processo cognitivo (...) 17
214

LING LÓG aquilo que uma palavra ou frase podem significar num contexto
determinado; significado (...). (destacado)

Contudo, “sentido”, para a análise que aqui se empreende, pode trazer significados
intensamente conectados à Psicologia, que amplia sobremaneira o olhar sobre a complexidade do
termo. Isso faz lembrar o exemplo dado por Vilém Flusser (2007), costumeiramente relatado por
Paulo de Barros Carvalho em suas conferências, ao elucidar o significado da palavra neve para o
esquimó, cuja língua é classificada como aglutinante300: diferentemente do senso comum, o
esquimó identifica várias “realidades” distintas para um elemento que, em uma língua flexional,
teria apenas um significado.

Em assim sendo, ao se buscar um dicionário de Psicologia, a palavra “sentido” é apenas o


termo inicial de outras expressões que se distinguem da primeira, guardando cada uma delas um
conteúdo distinto. Com isso, o professor de Psicologia da Universidade de Princeton, Howard C.
Warren (1960, pp. 329-330), elenca os seguintes “sentidos”, todos distintos entre si, e que
sobrevêm da complexidade do signo “sentido”: sentido, sentido comum, sentido comum crítico,
sentido contíguo, sentido cutâneo, sentido da reação, sentido de apoio, sentido de dor, sentido de
frio, sentido de intervalo, sentido de peso, sentido de tempo, sentido dérmico, sentido distante,
sentido elétrico, sentido estático, sentido ético, sentido externo, sentido interno, sentido labiríntico,

300
Conforme Vilém Fluser (2007, p. 68-75), existem basicamente três tipos de línguas: as flexionais, as aglutinantes e
as isolantes. As primeiras, identificáveis na civilização ocidental, inclusive a islâmica e a indiana, consistem de
elementos (palavras) que se agrupam em situações (frases = pensamentos). Haveria, aqui, a preservação da identidade
do elemento ao entrar em relação com outros elementos, formando-se as frases e os pensamentos. Disso decorre que,
para Paulo de Barros Carvalho, pelo plano da literalidade (S1), o intérprete inicia a construção das significações,
levando-se em conta o conteúdo de cada um dos signos que o compõem. Valendo-se de um exemplo que simplifica a
compreensão das línguas flexionais, tem-se uma receita culinária: ao se juntar diversas frutas distintas e leite
(elementos), batendo-se em um liquidificador, tem-se uma realidade distinta, que é a vitamina, enquanto conjunto
(frase e pensamento), a qual, contudo, pode ser identificável pelas suas singularidades: vitamina de banana, maçã e
banana. Neste momento, apesar de serem fisicamente inseparáveis, o elemento conserva sua identidade no todo
formado: “[...] o mundo das línguas flexionais é um mundo dinâmico, consistente de elementos plásticos mas
constantes, e obedecendo a regras redutíveis à lógica. É uma cadeia de situações organizadas”. Dessa forma, o esquema
lógico-semântico, enaltecido por Lourival Vilanova, só consegue se revelar em virtude da possibilidade da língua
portuguesa, que é flexional. Já nas línguas aglutinantes, como é o caso da do esquimó, aqui citado como exemplo, tem-
se as “superpalavras”, identificáveis por pensamentos. Aquelas corresponderiam, pela compreensão do mundo sob o
olhar de uma intelectualidade moldada por uma língua flexional, parecidas com o significado de uma frase. É a
complexidade latente, pois não existem unidades fundamentais individualizáveis, à semelhança dos elementos das
línguas flexionais. Por fim, as línguas isolantes, “[...] consistem de uns poucos elementos (sílabas) sem significado
determinado, que são usadas como pedras de um mosaico para formar conjuntos de significado (pensamentos)”. Nelas,
uma só sílaba pode ter significados absolutamente distintos. Correspondem, na atualidade, ao tibetano, ao burmês, ao
assâmico, ao thai, ao anâmico e ao chinês.
215

sentido motor, sentido muscular, sentido orgânico, sentido químico, sentido somestésico, sentido
telestético, sentido visceral, sentidos especiais e sentidum.

Sem querer elencar cada um deles, entende-se importante transcrever apenas o significado
de sentido tomado em sua expressão mais simples: “la esfera de la sensación, a diferencia de las
experiencias mentales (ideacionales) o afectivas. 2. significado" (destacado) (WARREN, 1960, p.
329). Com efeito, psicologicamente, é construção de sentido de uma experiência mental ou afetiva,
em que se visa a construir o significado das coisas.

Já no que tange ao vocábulo “alcance”, o Dicionário Houaiss (2009, p. 85) assim o


descreve:

[...] alcance. (...) ato ou efeito de alcançar 1 distância máxima a que chega a vista,
um som, voz, um tiro de arma de fogo etc. 2 possibilidade de tocar, atingir, ou
chegar a algo (...) 6 significado, intenção, objetivo (...) 8 FÍS distância máxima
para a qual um sistema físico é capaz de sentir os efeitos de uma forca 9 FÍS NUC
espessura mínima de um meio capaz de absorver totalmente um feixe de partículas
de uma dada energia (...). (destacado)

Observando-se os três fragmentos extraídos de dicionários, dois que correspondem a


“sentido” e um que corresponde a “alcance”, percebe-se que, em comum, ambos os signos trazem
por conteúdo outro signo: significado. Voltando-se, pois, à expressão de Maria Helena Diniz (2005,
pp. 970-971), para quem o significado do vocábulo interpretação corresponde à “[...] descoberta
do sentido e alcance da norma jurídica, procurando a significação dos conceitos jurídicos”, tem-
se que ele pode ser assim vertido, em consonância com o Constructivismo Lógico-Semântico: a
interpretação corresponde à construção de sentido da norma jurídica.

Tal conteúdo evidencia aquele descrito por Carvalho, em suas diversas obras, ao se referir
ao tema da interpretação. Daí a escolha, pelo CLS, de um modelo constructivista, que visa a edificar
a norma jurídica, encontrando-a na unidade mínima e irredutível de significação do deôntico, com
sentido completo. A não referência a alcance não se dá por desleixo: pelo contrário, ao enaltecer o
sentido, tem-se por inserido o conteúdo do “alcance”, pois ambos visam ao transitório limite que a
norma jurídica há de apresentar, a cada vez em que se tem um determinado contexto e cujo caráter
da mutabilidade lhe é ínsito, a depender de novos instrumentos para se enxergar a realidade ou
mesmo de uma alteração do contexto.
216

9.2 “A INTERTEXTUALIDADE SE ENCARREGA DE APRESSAR A DESVINCULAÇÃO DOS


LAÇOS QUE PRENDEM O TEXTO ÀS SUAS ORIGENS”301: O MÉTODO HERMENÊUTICO-
ANALÍTICO E OS AXIOMAS DA INTERPRETAÇÃO. INTERDISCIPLINARIDADE,
INTERTEXTUALIDADE (INTERNA E EXTERNA) E INESGOTABILIDADE DE SENTIDO
Voltando à linguagem e à maneira como a Hermenêutica é mostrada em diversas épocas,
sabe-se que um marco definitório foi dado por Platão (2001), que inaugura a ancestralidade da
Filosofia da linguagem em seu Crátilo, por volta do século IV a.C. Nessa obra, contrapõem-se duas
teses: a do naturalismo, pela qual cada coisa tem um nome por natureza; e o convencionalismo,
pela qual a ligação entre o nome e as coisas se dá de modo arbitrário. Para Platão, cabe à linguagem
um papel secundário, visto que é possível conhecer as coisas sem os nomes: assim, ele concebe a
possibilidade de “algo em si”, fora da linguagem. Tal faz remontar o conceito de essências, de
verdades a serem descobertas, e que tanto se harmoniza com o ideal empirista, pelo qual se
(des)cobre, (des)vela (ἀλήθεια, Alétheia, Verdade) aquilo que o objeto contém.

Partindo-se para o Direito, e observando-se os movimentos ocorridos desde o século XIX,


notadamente em França, Alemanha e Inglaterra, berços do positivismo jurídico302, percebe-se a
tentativa de contenção do Direito, que até então tinha um caráter fortemente jusnaturalista, pelos
textos jurídicos, desde o movimento de codificação: o Direito se identifica com o direito positivado.
São próprias dessa época expressões do tipo “juiz boca da lei”, “in claris cessat interpretatio”303,

301
Prefácio à 25ª edição da obra “Curso de Direito Tributário”. (CARVALHO, 2015, p. 11).
302
Norberto Bobbio (2006) indica que o fundador do Positivismo Jurídico foi o inglês John Austin, apesar de
demonstrar que as raízes desse movimento estão fincadas, de modos diferentes, mas com algumas semelhanças, quer
em França, Inglaterra e Alemanha. Daí por que aqui se aponta que estes três países podem ser considerados como
berços do Positivismo Jurídico.
303
Raimundo Bezerra Falcão (2010, p. 263) aponta com brevidade a crítica a esse brocardo jurídico, que ainda
reverbera na doutrina tradicional, apesar de já bastante desgastado pelo uso. Na verdade, usou-se do recurso do
aportuguesamento do termo, tratando-o como “se a lei for clara, não se faz necessário interpretá-la”, bem como de uma
série de outros brocardos ainda encontrados na Hermenêutica Jurídica e que bem se coadunam com esse “passado que
ainda se faz presente”. Assim pontua o autor: “O presente brocardo padece de três deficiências. Uma delas é de ordem
lógica. Como saber-se se a lei é ‘clara’ sem que ela seja previamente entendida? Ora, mas no exato momento em que
alguém entende uma lei e, ao lado disso, chega inclusive a ajuizá-la de estar encerrando clareza, é porque já lhe captou
o sentido. Interpretou-a, pois. A outra deficiência consiste em que o dito mencionado desconhece a relatividade da
idéia de clareza. O que é claro para um ser humano poderá não o ser para outro. A terceira deficiência que apontamos
no brocardo acima se refere ao conservadorismo de que se impregna. Posiciona-se como se o mundo e os homens
fossem imutáveis. Aquilo que, agora, pode ser ‘claro’ perante as circunstâncias atuais do intérprete ou os reclamos
sociais do momento talvez não mais o seja após algumas voltas no moinhoda evolução infinita. Tal brocardo, em
decorrência, não passa de uma erronia, devendo ser expurgado dos paramos hermenêuticos”.
217

bem como a crença na possibilidade de uma interpretação “literal”, as quais ainda impregnam o
ambiente acadêmico e decisional brasileiros, como se viu fartamente no Livro I desta tese.

Desde o século XX, contudo, com amparo nos estudos empreendidos por Wittgenstein,
percebe-se um movimento diferenciado na filosofia e que reverbera nos mais diversos terrenos do
conhecimento, visto que influencia a própria noção de conhecimento e a relação na qual este se dá:
é o movimento do giro linguístico, que enfatiza o papel fundamental da linguagem para a própria
constituição do ser e do ato de conhecer. Assim, ocorre uma mudança paradigmática na Filosofia:
da consciência para a linguagem.

Tal mudança, como já se apontou, produz influxos novos à Teoria do Conhecimento e,


como não poderia deixar de ser, há de contaminar a própria maneira de se deparar o mundo e de
compreendê-lo. E disso não poderia se apartar o direito. Ao se analisar o modo como parcela
considerável da doutrina e grande parte das decisões judiciais têm sido erigidas no Direito
Tributário brasileiro, no entanto, percebe-se a permanência ainda destacável dos influxos da
filosofia da consciência: produziu uma doutrina e uma jurisprudência que se encontram autorizada
a dizer tudo aquilo que lhes convenha, nomeadamente prestigiando textos jurídicos que afrontam
a Constituição e que padeceriam do vício da não recepção ou mesmo de inconstitucionalidade.

Ainda mais, tal sujeito parece colocar-se além das coordenadas de tempo e espaço, pois não
se situa historicamente, no momento inicial de sua interpretação, olvidando os próprios saberes que
se erigem científica e socialmente e que devem ser considerados, ainda que decida de modo
absolutamente diverso, sob uma estrita fundamentação, em uma atitude solipsista que vem sendo
amplamente criticada por outra Escola que vai na contramão do movimento hermenêutico
tradicional: a Crítica Hermenêutica do Direito, cujo maior expoente é Lenio Luiz Streck.

Dada, porém, a importância do Constructivismo Lógico-Semântico para o Direito


Tributário brasileiro, esta modalidade de enxergar o dado jurídico foi aqui escolhida por conter
algumas características especiais: primeiro, pela sua marcada abertura à Filosofia da linguagem,
como já se viu no Capítulo 8; segundo, pelas suas bases no Neopositivismo Lógico e no Positivismo
Normativista e que podem fundamentar uma abordagem pós-positivista, necessária em um país
que sequer conseguiu vencer a etapa de respeito ao princípio da legalidade e que se vê defrontando
uma Constituição Federal carregada de princípios, como também se exprimiu naquele Capítulo.
218

Para o âmbito que aqui se pretende dispor neste momento, entretanto, uma característica
que representa uma síntese das demais mas que enseja influxos próprios: como terceira nota
essencial, o CLS favorece uma abordagem diferenciada, por ser de uma corrente culturalista304 305,
pela qual o Direito é integrado pelo historicismo e pela Axiologia (TOMÉ, 2016, p. 6), a qual
demonstra uma abertura a influxos de outras correntes, seja da Sociologia Jurídica, como é o caso
da Teoria Geral dos Sistemas Sociais, de Niklas Luhmann; seja da Semiótica, com suporte em
Charles Sanders Peirce, John Austin, Lúcia Santaella e Clarisse von Oertzen de Araújo; seja da
Escola Retórica de Direito, com João Maurício Adeodato e Torquato Castro Junior, em um
movimento que afirma seus dois axiomas: a intertextualidade e a inesgotabilidade de sentidos.

No que respeita à intertextualidade, tem-se um caminho “[...] onde se instala a


conversação das mensagens com outras mensagens, passadas, presentes e futuras, numa
trajetória sem fim” e que converge para a “inesgotabilidade”. (CARVALHO, 2013a, p. 196).

Quanto à primeira, ainda com Paulo de Barros Carvalho (2013a, p. 197),

[...] a intertextualidade é formada pelo intenso diálogo que os textos mantêm entre
si, [...] pouco importando as relações de dependência estabelecidas entre eles.
Assim que inseridos no sistema, iniciam a conversação com outros conteúdos,
intrasssistêmicos e extrassistêmicos, num denso intercâmbio de comunicações.
[...] Com o advento da lei nova, institui-se complexa e extensa rede de
comunicações jurídicas e extrajurídicas, repito, perfazendo o universo do
conteúdo, delimitado, unicamente, pelos horizontes de nossa cultura.

E esta intertextualidade, dados os caracteres próprios do conhecimento, pode se expressar


em dois níveis bem delimitados: (i) o estritamente jurídico, intrajurídico; e o (ii) jurídico em
acepção lata, como já se defendeu passos atrás, ao tratar do Constructivismo Lógico-Semântico

304
Culturalismo aqui entendido como corrente filosófica pela qual a cultura passa a ser elemento fundamental na
construção da interpretação do Direito, à semelhança do movimento cujo precursor foi o jurista sergipano, da Escola
de Recife, Tobias Barreto.
305
Acerca do culturalismo, caractere do Constructivismo Lógico-Semântico, Fabiana Del Padre Tomé (2016, p. 6)
assim enuncia: “No que diz respeito ao culturalismo, este tem em Miguel Reale seu maior representante. Essa corrente
filosófica consiste em uma concepção do Direito integrada pelo Historicismo e pelos princípios fundamentais da
Axiologia, considerando a teoria dos valores em função dos graus de evolução social. É exatamente o toque da cultura
que, na lição de Paulo de Barros Carvalho, evita que se pretenda entrever o mundo pelo prisma reducionista do mero
racionalismo descritivo”. (destacado no original).
219

como corrente culturalista. Nessa medida, convergem estudos da Sociologia do Direito, da História
do Direito, dentre outros (CARVALHO, 2013a, p. 198).

Já quanto à inesgotabilidade, tem-se a ideia “[...] de que toda interpretação é infinita, nunca
restrita a determinado campo semântico. Daí a inferência de que todo texto poderá ser sempre
reinterpretado”. Nesse ponto, reitere-se o caráter instável da própria existência e que produz
diversas mutações semânticas e, dado que o direito é necessariamente expresso por linguagem, não
há como de desgarrar das alterações que se processam no interior do espírito humano, bem como
em seu exterior, permeado pelas ideologias dominantes. (CARVALHO, 2013a, pp. 197-201). E
conclui o autor a ideia expressa nestes dois axiomas ao afirmar que ambos “aprisionam” o processo
hermenêutico, lidando fortemente com a ideia de limites para a tarefa interpretativa.

9.3 “O PONTO DE PARTIDA É O CONCEITO ATÔMICO DE “NORMA JURÍDICA, TANTAS


VEZES VERSADO, MAS TÃO POUCO APROFUNDADO, COMO, ALIÁS, SÓI ACONTECER
COM AS NOÇÕES CEDIÇAS”306: INTERPRETAÇÃO E A ELEIÇÃO DO PLANO SINTÁTICO.
O MÍNIMO IRREDUTÍVEL DE MANIFESTAÇÃO DO DEÔNTICO COM SENTIDO COMPLETO

Apesar de Paulo de Barros Carvalho afirmar que o “ponto de partida” é o conceito de


“norma jurídica”, tem-se que este conceito é fator conglobante e que já resulta de amplo processo
na trajetória da interpretação. E isso faz lembrar uma frase de Leonardo Boff, para quem “[...] todo
ponto de vista é a vista de um ponto”: toda análise, fatalmente, representará uma parte de um todo,
sem que se queira tomar o todo pela parte, sob pena de reducionismo.

E assim também ocorre no direito: como se viu no capítulo anterior, o Constructivismo


Lógico-Semântico, como método aplicável na análise jurídica, não se afirma como a única
possibilidade, mas permite, com origem na linguagem, olhares múltiplos de um mesmo
fenômeno307. Em assim sendo, enxergar o direito como linguagem possibilita a identificação dos

306
Preâmbulo à obra “Teoria da norma tributária” (CARVALHO, 2009).
307
A questão da realidade objetiva já foi alertada por Lucas Galvão de Britto (2014b, p. 217), ao acentuar que, pelo
fato de sermos “herdeiros de uma cultura fortemente influenciada pelo iluminismo, sentimo-nos fortemente inclinados
a dizer que a realidade objetiva, absoluta, seria alho diverso dessas representações parciais, desses ‘relatos’ jurídicos
ou médicos. Os pais, os médicos, os enfermeiros e tantos outros viram a criança nascer, essa é a realidade. Ocorre que
mesmo o relato de qualquer dessas pessoas é, também, fruto da atividade de seu intelecto, que reúne todos os dados
brutos chegados do entorno, nos limites de uma frase. Tudo o que temos, tudo que não se esvai no fluxo ininterrupto
dos acontecimentos, são as interpretações, nunca o evento, a realidade objetiva. Mas será que poderíamos chamar uma
tal realidade de objetiva?”.
220

planos sintático, semântico e pragmático. Paulo de Barros Carvalho (2013a, p. 202-203) aponta a
essencialidade de cada qual, o que fornece conteúdo substancial para esta análise:

O plano sintático é formado pelo relacionamento que os símbolos linguísticos mantêm


entre si, sem qualquer alusão ao mundo exterior ao sistema. O semântico diz respeito às
ligações dos símbolos com os objetos significados, as quais, tratando-se da linguagem
jurídica, são os modos de referência à realidade: qualificar fatos para alterar
normativamente a conduta. E o pragmático é tecido pelas formas segundo as quais os
utentes da linguagem a empregam na comunidade do discurso e na comunidade social
para motivar comportamentos.
Quanto ao primeiro, que interessa mais aproximadamente a este estudo, este pode se
estruturar com base em esquemas lógico-formais, guardando uma conexão direta com os institutos
da Lógica. Voltando a Boff, no entanto, o fato de se ressaltar uma análise do direito sob o plano
sintático não significa descurar da complexidade inerente ao fenômeno jurídico. Contudo, para o
que aqui se defende, e em se adotando uma concepção normativista do direito, não se pode chegar
a uma consequência distinta da que aqui se pugna: diante de todo o processo interpretativo, que
pode ser mais simples ou mais complexo, a depender do sistema normativo, sempre chegará o
hermeneuta a construir a norma a ser aplicada ao caso, e esta se expressa, em sua forma básica, sob
a estrutura condicional H→C (dada uma hipótese, dever-ser a consequência).

Quando se fala em Lógica, naturalmente, se aproxima de uma “[...] ciência que estuda
princípios e métodos de inferência, tendo o objetivo principal de determinar em que condições
certas coisas se seguem, ou não, de outras”. Ora, a inferência nada mais é do que o raciocínio,
quando se manipulam os dados disponíveis para se chegar a algo que se tenha como verdadeiro
(MORTARI, 2001, p. 2). Assim, a lógica “[...] é o estudo dos métodos e princípios usados para
distinguir o raciocínio correto do incorreto” (COPI, 1978, p. 19).

Sem querer aprofundar a questão relativa à verdade, que parece ser a medida de ordem a
ser levada em consideração pela Filosofia das Lógicas308, saber constituir raciocínios acertados

308
Nesse propósito, referencia-se a obra de Susan Haack (2002), que descreve as diversas Teorias da Verdade que são
aprofundadas pelos lógicos. Deve-se enaltecer, contudo, nesse tocante, a diferença entre as definições de verdade e os
critérios de verdade: “a idéia, de modo geral, é que enquanto uma definição dá o significado da palavra ‘verdadeiro’,
um critério fornece um teste por meio do qual se diz se uma sentença (ou o que quer que seja) é verdadeira ou falsa –
como, por exemplo, pode-se distinguir, de um lado, fixar o significado de ‘febril’ como ter uma temperatura mais alta
que algum ponto dado e, de outro, especificar procedimentos para decidir se alguém está febril”. Para o que aqui
interessa, sem detalhar, parece que a temática afeta à sujeição passiva da obrigação tributária guarda conexão com as
definições dos critérios de “verdade” para que determinados sujeitos sejam colocados em cada um desses dois
conjuntos e as justificativas para essa classificação.
221

deve ser a medida a ser utilizada por qualquer um que estude seriamente determinada ciência, ao
buscar ordenar seu raciocínio de maneira harmônica e sem contradições.

Com isso, o jurista pode se aproveitar grandemente de raciocínios lógicos para elaborar a
Ciência do Direito, bem como o aplicador da lei, diante da norma, e devidamente credenciado pelo
sistema, pode chegar a criar norma nova, com base em inferências sobre o conjunto normativo
disponível, combinando-o com a realidade fática trazida ao processo por meio da linguagem
apropriada. Daí a distinção fundamental, no CLS, entre evento, fato e fato jurídico.

Dessa maneira, transcorre o percurso gerador de sentido, idealizado por Paulo de Barros
Carvalho, sob um viés pluridimensional, como a estruturação de infinitos conjuntos, cujas relações
criam outros conjuntos, em um transcorrer infinito ou incontrolável de criação de classes, tantas
quantas queira o intérprete. A lógica, assim, permite a formalização do fenômeno jurídico por meio
de argumentos que tenham determinadas consequências. O direito está cheio de exemplos,
notadamente o direito tributário.

Assim, dada a hipótese de alguém ter a propriedade de um veículo automotor, “deve-ser”,


por consequência, o pagamento do Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores; dada a
hipótese de auferir renda, deve-se ter, por consequência, o pagamento do Imposto sobre a Renda,
dado ter realizado operações de circulação de mercadorias, “deve-ser” o pagamento do ICMS.
Nesse ponto, tais estruturas reinvindicam o centro do direito tributário, trazendo sempre a descrição
de um fato a que se imputa um comando de entregar uma importância em dinheiro ao ente político
(ATALIBA, 2008, p. 52).

Nesse tocante, pelas estruturas lógico-condicionais identificadas com as normas em


sentido estrito, pretende o hermeneuta construir o sistema jurídico, aqui identificado com o
ordenamento, de modo absolutamente abstrato, mas que pode ser formalizada em sua estrutura,
diante da utilização dos modelos lógicos.

O Direito, como linguagem necessariamente escrita, movimenta a sua gênese com base
nas estruturas que visam a buscar, dentre os fatos sociais, aqueles que se subsumam aos tipos
previstos no ordenamento, processando-se, assim, o fenômeno da incidência. Conforme alerta
Paulo de Barros Carvalho (2013a, p. 484), ao tratar do direito,

[...] trata-se se sistema autopoiético que regula, ele próprio, sua produção e transformação.
Não obstante sua operatividade, consistente na incidência normativa, dependa de atos-de-
222

fala, ou seja, da enunciação pela autoridade competente, tais atos devem ser praticados
segundo critérios estabelecidos pelo próprio sistema jurídico.
Nesse ponto, verifica-se aqui de que modo certas definições contidas nas normas jurídicas,
e em especial no CTN e nas demais leis gerais em matéria tributária, possuem argumentos
suficientes para que se agreguem determinados elementos e se excluam outros, com base em
raciocínios lógicos estruturados.

Chegar-se à norma, como expressão mínima e irredutível de manifestação do deôntico


representa um esforço intelectivo inicial, nas estruturas internas do texto normativo, passando pela
leitura do texto que é o próprio mundo em que está imerso o intérprete: seu contexto 309 e seus
horizontes culturais limitam a construção. Ainda que impregnado de todos esse valores, colhido no
percurso, tem-se de maneira singular, sempre, um conteúdo normativo expresso em simbolismo
lógico como sendo D[F→(S’ R S’’), que assim se interpreta: “[...] deve ser que, dado o fato F,
então se instale a relação jurídica R, entre os sujeitos S’ e S’’. Seja qual for a ordem advinda dos
enunciados prescritivos, sem esse esquema formal inexistirá possibilidade de sentido deôntico
completo”.

E isso, longe de pretender reduzir o Direito a símbolos lógicos, intenta-se apenas mostrar
uma das possibilidades, diante de tantas outras que são ofertadas a partir de uma tomada de posição
da acepção do direito como linguagem. E o dado valorativo, tão caro ao direito e fundamental em
sua gênese, também não se olvida neste processo: antes disso, reveste-se formalmente pelas
escolhas feitas pelo legislados dos fatos que serão considerados aptos a gerar efeitos jurídicos e, no
que concerne à consequência pela ocorrência de tais fatos, ao culminar-lhes efeitos que lhe são
próprios, com maior ou menor gravidade, o que também realiza os valores eleitos pela sociedade.

309
Ingedore Villaça Koch e Vanda Maria Elias (2012, p. 63) assim discorrem sobre a “composição” do contexto: “O
contexto, portanto, é indispensável para a compreensão e, desse modo, para a construção da coerência textual [...]. Da
forma como é aqui entendido, o contexto engloba não só o contexto, como também a situação de interação imediata,
a situação mediata (entorno sociopolítico-cultural) e o contexto cognitivo dos interlocutores. Este último, na
verdade, subsume os demais”.
223

9.4 “NÃO OBSTANTE AS LINGUAGENS DA TEORIA E DA PRÁTICA SEJAM


INDISSOCIÁVEIS E IMPRESCINDÍVEIS AO CONHECIMENTO, ESTE SÓ SE REALIZA
PLENAMENTE MEDIANTE A EXISTÊNCIA DE UMA TERCEIRA LINGUAGEM: A DA
EXPERIÊNCIA”310: TEORIA, PRÁTICA E EXPERIÊNCIA NO PERCURSO GERADOR DE
SENTIDO311
Crendo-se firmemente que a imagem gráfica pode auxiliar a compreensão do conteúdo
textual em determinadas situações, sem empobrecê-lo, iniciar-se a abordagem acerca do modelo
de percurso gerador de sentido, ou trajetória de interpretação, descrito por Paulo de Barros
Carvalho (2013a; 2015), representado pela configuração gráfica do iter que o autor idealizou para
o processo hermenêutico. Assim, tem-se a seguinte imagem:

Figura 1 – Percurso gerador de sentido

Onde: TA = texto em sentido amplo; TE = texto em sentido estrito; H1 e H2 = horizontes da nossa cultura.
Disponível em: CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário – fundamentos jurídicos da incidência.
São Paulo: Saraiva, 2015, p. 130.

310
“Palavras Introdutórias” à obra “Direito tributário: fundamentos jurídicos da incidência”. (CARVALHO, 2015, p.
31).
311
Vale ressaltar que na obra “Direito Tributário: fundamentos jurídicos da incidência”, Paulo de Barros Carvalho
(2015, p. 128) se utiliza da expressão “trajeto de elaboração de sentido”, em vez de “percurso gerador (ou gerativo) de
sentido”; contudo, parece que esta expressão tem sido mais bem aceita e empregada do que aquela. Inclusive, em seu
“Direito Tributário: Linguagem e Método”, o Jurista erige um subcapítulo específico (3.3.2) na Primeira Parte do livro,
denominado “O percurso gerador de sentido e as estruturas sígnicas do sistema jurídico”.
224

Observando-se a figura, pode-se explicitar o conteúdo desenvolvido pelo autor. Todo o


percurso começa na base do desenho, pelo chamado “Plano S1”, o qual representa o primeiro
contato que qualquer pessoa, aqui chamado especificamente de intérprete, terá com o texto
legislado: é a “[...] união do plano do conteúdo ao plano de expressão, vale dizer, quando se
manifestar um empírico objetivado, que é o plano expressional”; é a “forma”. (CARVALHO,
2013a, p. 182).

Tal plano é representado pelas marcas de tinta no papel, pela própria materialidade de
qualquer expressão. Conforme enuncia Paulo de Barros Carvalho (2013a, p. 186; 2015, p. 109), é
“[...] a partir do contacto com a literalidade textual, com o plano dos significantes ou com o
chamado plano da expressão, como algo objetivado, isto é, posto intersubjetivamente, ali onde
estão as estruturas morfológicas e gramaticais, que o intérprete inicia o processo de
interpretação” (destacado).

Assim, é a manifestação material necessária ao acionamento dos sentidos humanos,


principalmente a partir da visão312, sendo o passo inicial para que a compreensão possa ocorrer de
modo satisfatório (SANTAELLA, 2012b, p. 1-4). A única ressalva que aqui se faz, no tocante a
esse plano, diante de tantas observações que poderiam ser feitas, refere-se à chamada interpretação
literal, cujo caráter satisfativo não se coaduna com o movimento do “giro linguístico”, pois parte
de um conteúdo de base que seja ínsito a qualquer termo e que praticamente uniformizaria o
resultado do processo interpretativo. Tal conteúdo já foi objeto de análise no Livro I deste trabalho.

Diferentemente disso, não se apregoa aqui, em hipótese alguma, a ideia de que a literalidade
do texto tenha a pretensão de esgotar o processo que culminará com a compreensão do texto
legislado e, ainda mais, funcione como recurso que simplifique o trabalho de interpretação e de
compreensão. Seria como desconectar forma de conteúdo, como se um pudesse ser sem o outro,
quando se sabe que um só é pelo outro. Isso porque, a significação (ou o conteúdo) é construída(o)

312
Não se pode esquecer, aqui, de que a prevalência da utilização da visão na cultura ocidental, como meio pelo qual
se inicia qualquer processo hermenêutico, não pode ensejar que se pense ser esta a punica possibilidade para o ser
humano. Como exemplo, o antropólogo David Le Breton (2016, pp. 22-23) dá notícias de que existem povos que se
desenvolvem com base na audição e no olfato, como é o caso dos Aiviliks. Diz o autor que “lá onde um ocidental diria:
‘Vejamos o que nós entendemos’, eles [os Aiviliks] diriam: ‘Ouçamos o que nós vemos’”. E aí, uma outra possibilidade
se abre à geração de sentido.
225

pelo intérprete, de modo absolutamente individualizado e conectado às suas crenças e aos seus
valores, com base em forma dada. Sabe-se que as palavras, as quais se configuram nos suportes
físicos, são signos arbitrários que se convertem em signos convencionais desde que sejam adotados
pelos usuários da linguagem (HOSPERS, 1980, p. 17).

No que toca especificamente ao sentido da visão, que é marcante na maneira ocidental de


construção hermenêutica jurídica, David Le Breton (2016, pp. 101-102) o identifica com os
chamados limites dos sentidos ou visão do mundo, a qual tem importância no fenômeno
interpretativo, pois aqui se envolvem imediatismo, cultura e autoconhecimento:

A visão não é o decalque do real no espírito, seria uma sobrecarga do ver. Ela é
seleção e interpretação. Ela só apreende uma versão do acontecimento. A
apropriação visual do mundo é filtrada por aquilo que poderíamos denominar, [...],
uma barreira de contato, [...], um monitor físico que filtra os dados a ver e os
interpreta de imediato. As qualidades morais associadas aos dados e à sua
percepção, à sua seleção na profusão do real, são sempre tributárias do estado de
espírito do ator. Ao ver o mundo não cessamos de vermo-nos. Todo olhar é um
auto-retrato, mas primeiramente aquele de uma cultura. [...] o olhar do homem
medieval quase não tem relações com aquele que hoje pousamos sobre o mundo.
Ele não vê o mundo com os mesmos olhos.

Trata-se o Plano S1 do conteúdo objetivado fornecido ao intérprete: quer seja aquele que
busque elaborar esse percurso para, ao cabo, inserir nova norma no sistema, de caráter prescritivo
(processo de positivação), quer se trate do cientista, o qual busca esse processo de constituição com
o fito de compreender o sistema, tendo o cuidado de simplesmente descrevê-lo (em um processo
de derivação, por exemplo, de natureza lógico-semântica). Para ambos, vale a analogia apresentada
no subcapítulo anterior: ambos receberão o mesmo material para construir suas casas. E tal material
representa os signos dos textos normativos: aqui, um dos traços marcantes no Constructivismo
Lógico-Semântico e que se conecta à noção de alteridade.

A seguir, partindo-se para o Plano S2, este representa a construção dos conteúdos
significativos dos enunciados prescritivos apresentados no Plano S1, sendo detalhado por Aurora
Tomazini de Carvalho (2013, p. 249) ao indicar que ele representa a entrada no campo semântico,
“[...] onde reside toda a problemática que envolve o contexto jurídico. Seu trabalho volta-se à
construção de sentidos prescritivos, que implementam diretivos à regulação de condutas
intersubjetivas”.
226

Tem-se, no Plano S2, o “ingresso do plano do conteúdo” (CARVALHO, 2015, p. 116). Por
aqui, pode-se apontar, didaticamente, que os valores vão ingressando dinamicamente na
construção, compondo o sentido que o intérprete há de atribuir. A ressalva quanto ao didaticamente
se faz, pois se sabe que, na prática, o próprio lançar de olhos sob o Plano S1 já faz reluzir,
automaticamente, a instância de valores de cada um daqueles que se arvoram em sua leitura.

Já o destaque no signo dinamicamente é feito pois, ao se adotar o pressuposto de que o


direito é linguagem, e que esta é carregada de conteúdo valorativo, deve-se admitir que os valores
se fazem presentes no Plano S1, sendo revelados pelas opções de signos ali constantes.
Apresentam-se, porém, num formato estático, o qual nada diz em si: um livro só exprime conteúdo
a quem lhe lança o olhar, estando o seu sentido visceralmente ligado a esta atividade. Caso isso
não seja feito, é apenas um objeto que não revela de per se os valores pelos quais foi estruturado,
tal como descrito por David Le Breton (2016, p. 94) ao se referir à visão como interpretação:

Todo olhar projetado sobre o mundo, mesmo o mais anódino, elabora um


raciocínio visual a fim de produzir sentido. A visão, na multiplicidade do visual,
filtra as linhas de orientação que tornam o mundo pensável. Ela não é
absolutamente um mecanismo de filtragem, mas uma atividade. [...]
Permanentemente os olhos exercem um trabalho de elaboração de sentido. Toda
visão é interpretação.

Quanto a esse plano, parece não haver consenso quanto ao modo de construção desses
significados: para Paulo de Barros Carvalho (2015, p. 116), “[...] os enunciados haverão de ser
compreendidos isoladamente, no primeiro ímpeto, para depois serem confrontados com outros
enunciados, de superior e do mesmo status”. Para Alf Ross (2007, p. 145), no entanto, para quem
o contexto parece ter força mais expressiva, pois, “[...] é importante entender que o significado de
uma expressão não é construído como um mosaico com o significado das palavras individuais que
a compõem”. Em qualquer dos casos, sabe-se que ambas as correntes prestigiam o contexto313;
entretanto, para a segunda, parece que o contexto aufere relevância ao ser comparado com a
individualidade das significações dos enunciados.

313
Paulo de Barros Carvalho (2012, p. 117) ressalta muitas vezes que “[...] é a interpretação que faz surgir o sentido,
inserido na profundidade do contexto, mas sempre impulsionada pelas fórmulas literais do direito documentalmente
objetivado. Sim, porque já foi dito e redito que não há texto sem contexto ou, de outro modo, não há plano de expressão
sem plano de conteúdo e vice-versa”.
227

Em um momento posterior, chega-se ao Plano S3, saltando-se para o sistema em que é


elaborada a mensagem jurídica, por meio da associação das proposições elaboradas no Plano S2
sob a forma hipotético-condicional (H→C): dada uma hipótese, deve-ser o consequente. Aqui se
introduz o conceito de norma jurídica como “[...] unidade mínima e irredutível de significação do
deôntico” (CARVALHO, 2015, p. 45), com a finalidade de outorgar “[...] unidade ideológica à
conjunção de regras que, por imposição dos próprios fins regulatórios que o direito se propõe
implantar, organizam os setores mais variados da convivência social.” (CARVALHO, 2015, p.
122).

Ora, aqui se deve fazer uma pausa para um esclarecimento: quando se trata de construir a
norma jurídica em sentido estrito, atrelando-se a esse conteúdo o caráter da completude do sentido,
não se quer deixar ao arbítrio do intérprete o dar-se por satisfeito na leitura dos enunciados e na
constituição de significações. Não se defende um subjetivismo quanto ao que seria um enunciado
completo: o que se poderia alegar completo para um intérprete, poderia ser visto por outro como
incompletude. Não...

Diferentemente disso, apregoa-se que o senso de completude é obtido com o encaixe na


estrutura lógica (VILANOVA, 2010), a qual prevê que estejam identificadas e consideradas as
significações de enunciados que realizam o antecedente da norma jurídica, isto é, o conjunto de
fatos jurídicos, seguindo-se das significações dos enunciados que prescrevem condutas
intersubjetivas, pelo estrito laço relacional, contido no consequente (CARVALHO, 2015, p. 134).
Desse modo, o Plano S3 dá-se por alcançado ao serem apontados todos esses aspectos.

Por fim, ao ingressar no Plano S4, tem-se o modelo de estruturação, por coordenação e
subordinação das normas sistematicamente organizadas. É um campo especulativo muito rico, “[...]
pois é nele que o interessado estabelece as relações horizontais e as graduações hierárquicas das
significações normativas construídas no Plano S3, cotejando a legitimidade das derivações e
fundamentações produzidas.” (CARVALHO, A. T., 2013, p. 256).

Neste plano, ainda, por investigar as relações de subordinação e de coordenação, apontando


para a Constituição Federal como o texto sobranceiro do ordenamento, é que são verificados
eventuais vícios nas normas produzidas em que estejam em contrariedade com o Diploma Maior
ou mesmo com leis que sejam hierarquicamente superiores. Deve-se ressaltar que seus elementos
228

são “[...] proposições preenchedoras do critério de pertinência”, desenhando-se as relações


recíprocas de subordinação e coordenação (MOUSSALLEM, 2011, p. 135).

Além disso, no Plano S4, há de se destacar a importância das chamadas “regras de


estrutura”, as quais visam a presidir o trabalho de composição hierárquica das normas. Tais regras
são em número finito, contudo, geram infinitas normas. Ainda mais, estas regras são da mesma
espécie daquelas constantes do Plano S3, com a “[...] particularidade de participarem na
composição do sistema jurídico-normativo como conjunto autorreferencial, ou seja, como um
domínio que se autoconstitui em um processo dialético interno.” (CARVALHO, 2015, p. 123).

Quanto a essa estruturação em planos, há de se destacar que não é algo estanque e que
obedeça, invariavelmente, a ordem seguida há pouco: definitivamente não. Isto porque, como a
interpretação é inesgotável, tantas vezes quantas entender necessárias, deve o intérprete perpassar
os planos, até que se dê por satisfeito na construção do sentido (CARVALHO, 2015, p. 135).

Ademais, tempos após ter encontrado a resposta que melhor satisfazia ao seu entendimento,
ante modificações em seu contexto cultural, pode o mesmo intérprete retomar o procedimento314,
cogitando em reanalisar cada um dos planos e apontar para uma compreensão completamente
distinta. Isso porque o “contexto situacional” no qual se insere a ação pode ter se modificado,
alterando-se o discurso comunicacional ao qual pertença (ROBLES, 2005, p. 36).

Tal se dá pois, para a corrente filosófica que pela qual aqui se optou, na linha de
Wittgenstein, a linguagem é considerada uma espécie de ação, de modo que aquela não pode ser
separada do agir humano, nem este pode ignorar a linguagem, pois, conforme Manfredo Araújo de

314
Em mais de uma ocasião, Paulo de Barros Carvalho deixa patente essa (re)construção de suas obras, notadamente
pelos influxos da pragmática, que propiciam farto material para que (re)nove a sua teoria. Dentre todas, citem-se essas
passagens: “O ambiente dialógico da academia e a atividade profissional desenvolvida em ritmo acelerado, se bem
conjugados, determinam uma instabilidade saudável, que incita o pensamento e provoca o espírito de empreender
novas iniciativas, sejam elas de mera revisão ou mesmo de acréscimo ao material já composto.” (CARVALHO, 2015,
p. 20); “A vida de um livro jurídico é um eterno transformar-se. Aqui, adaptando-se às mutações da experiência; ali,
sofrendo acréscimos ditados pelas novas contribuições que a Dogmática não cessa de oferecer; mais adiante, passando
pelas correções que o tempo implacavelmente aponta. Na dinâmica dessas providências consiste o caminho do
aperfeiçoamento da obra, com seus momentos de revisão, de reflexão, de reestudo.” (CARVALHO, 2013, p. XXXIII).
229

Oliveira (2006, p. 138): “[...] essa atividade se realiza sempre em contextos de ação bem diversos
e só pode ser compreendida justamente a partir do horizonte contextual em que está inserida”.

Visto o aspecto estrutural e de conteúdo disposto na construção normativa, idealizada por


Paulo de Barros Carvalho, passa-se à seguinte indagação: podem os “planos”, do percurso gerador
de sentido, ser compreendidos como dimensões distintas, atribuindo-se não uma
bidimensionalidade ao modelo mas, diferentemente, uma pluridimensionalidade?

Por esta indagação, passar-se-á a defender, no capítilo final desta tese, que o modelo gráfico
do Constructivismo Lógico-Semântico pode ter seu sentido potencializado ao ser identificado com
uma estrutura pluridimensional. Isso porque, diferentemente de uma estrutura mais simples,
adequada à Física newtoniana, resplandeceria, no fenômeno interpretativo, que se realiza
mentalmente, uma pluralidade de dimensões que se erigem com base no texto, mas que envolve
um fluxo infinito de realização de sentido.

Desse modo, partindo-se especificamente do percurso gerador de sentido, desenvolvido por


Paulo de Barros Carvalho, percebe-se que ele corresponde às aspirações de uma hermenêutica
filosófica, na esteira de Hans-Georg Gadamer, bem como parece simpatizar com concepções
hermenêutico-historicistas (Wilhelm Dilthey), na medida em que seu idealizador demarca limites
nos “horizontes culturais de uma sociedade”. No Brasil, a imposição de limites à interpretação
encontra expoentes em Lenio Luiz Streck, com a Crítica Hermenêutica do Direito, e, no que tange
à reviravolta linguístico-pragmática, encontram-se bases sedimentadas em Manfredo Araújo de
Oliveira e Tercio Sampaio Ferraz Junior. Assim, o intérprete no Constructivismo Lógico-
Semântico é um sujeito situado no espaço-tempo e condicionado a determinados limites, o que
implica que, apesar da vagueza e da ambiguidade das palavras, não pode dizer “o que quiser” ante
os textos jurídicos.
230

9.5 “O PROCEDIMENTO RETÓRICO DESENVOLVE-SE COM OS MESMOS TRAÇOS


DIALÓGICOS, OFERECENDO VARIAÇÕES OCORRENTES EM VIRTUDE DE CONTEÚDOS
QUE OSCILAM”: A ABERTURA AO DIÁLOGO COMO O TRAÇO DIFERENCIADOR DO
CONSTRUCTIVISMO LÓGICO-SEMÂNTICO EM TEMPOS DE MUNDO COMPLEXO E
PLURAL
Por fim, porém talvez mais importante, aqui se fala do caráter sempre aberto a novas
possibilidades interpretativas e que é essencial na compreensão da trajetória de interpretação do
Constructivismo Lógico-Semântico. Em um sentido mais estrito, pode-se dizer que se inaugura, no
Direito Tributário brasileiro e na Hermenêutica Jurídico-Tributária o fundamental caractere da
alteridade.

Este caractere foi apontado por Tácio Lacerda Gama (XVI CONGRESSO NACIONAL DE
ESTUDOS TRIBUTÁRIOS 2017), como uma das contribuições de Paulo de Barros Carvalho ao
Direito Tributário brasileiro, pela obra “Direito Tributário: fundamentos jurídicos da incidência”,
que ora é situada como inauguradora de um movimento da Hermenêutica Jurídico-Tributária
brasileira, há 21 anos. Como afirma Gama (XVI CONGRESSO NACIONAL DE ESTUDOS
TRIBUTÁRIOS 2017), o tributarista é um sujeito cuja formação se dá por uma racionalidade
monológica, focada no cumprimento da obrigação tributária e no argumento vencedor. A difusão,
por Paulo de Barros Carvalho, de uma linguagem competente, fez evidenciar a existência de
linguagens incompetentes, o que representa a existência de um “outro”, que pensa junto. Nesse
novo modelo, constrói-se uma forma peculiar de raciocinar no direito tributário.

A alteridade vem a representar, filosoficamente, como o “[...] ser outro, colocar-se ou


constituir-se como outro”, sendo “[...] um conceito mais restrito do que diversidade e mais extenso
do que diferença” (ABAGNANNO, 2000, p. 34). Ora, ao se pensar em percurso gerador de sentido,
ainda mais se se considerar as inúmeras finalidades para a realização da interpretação de textos
normativos, percebe-se o quanto é fundamental reconhecer a existência de outros atos de fala, de
outros posicionamentos, de múltiplas intelecções que um mesmo suporte físico há de alcançar. E
isso se dá por conta do reconhecimento do ser que interpreta como sendo, ele mesmo, linguagem,
pluridimensionalizado em razão dos múltiplos movimentos desde a pré-compreensão até o
atingimento dos panoramas hermenêuticos mais elevados.
231

E essa abertura ao diálogo e a um outro modo de pensar, de interpretar, é algo absolutamente


conectado à identificação do direito como produto da linguagem e, mesmo, do próprio intérprete,
como “entidade constituída pela linguagem.” (destacado) (CARVALHO, 2016a, p. XVIII).
Dessa maneira, é categórico o Jurista paulista em afirmar que “[...] a utilização da língua, mediante
atos de fala, produzindo mensagens, é algo cuja dimensão vai ao infinito.” (CARVALHO, 2016a,
p. XVIII).

Com isso, refoge-se de um dimensão estritamente interna, focada em erigir o diálogo


vencedor com base na linguagem competente, e passa-se à busca de um dialogismo: promovendo
uma “modelagem” do pensamento de Bakhtin (2003) à Hermenêutica Jurídica, importa dar crédito
à palavra do outro, buscar um sentido profundo, estabelecendo graduações para o nível de
concordância sobre determinado sentido atribuído ao texto jurídico, criando estratos de sentido que
permeiam um mesmo documento em uma fusão de horizontes que completa a compreensão e
ultrapassa os supostos limites da coisa compreendida.

Dessa maneira, o percurso gerador de sentido do CLS, sem representar um campo interno
de um sujeito solipsista (STRECK, 2014b), representa uma possibilidade que se insere em uma
dimensão maior, na qual ficam agregados outros discursos, sem relações hierárquicas, até que
sobrevenha uma decisão de autoridade competente, e que estabeleça horizontes interpretativos com
base na pré-compreensão e nos valores eleitos pelo ordenamento.

A alteridade, assim, realiza o fechamento dos caracteres ideiais integrantes do percurso


gerador de sentido no CLS e, por que não dizer, no círculo hermenêutico que se perfaz no direito
tributário brasileiro.
232

CAPÍTULO 10. PANORAMAS HERMENÊUTICOS JURÍDICO-


TRIBUTÁRIOS DO “FUTURO QUE JÁ SE FAZ PRESENTE”
ESTRUTURADOS COM AMPARO NA ANÁLISE DE JULGADOS DOS
TRIBUNAIS SUPERIORES RELATIVOS À INCIDÊNCIA DO ICMS NAS
OPERAÇÕES DE CIRCULAÇÃO DE MERCADORIAS
Neste capítulo, passar-se-á a dispor de um aspecto estrutural relativo ao IPVA que,
diferentemente do apontado há instantes, ainda não reverberou nas cortes superiores e cuja
ressonância na doutrina ainda não parece evidente. É uma abordagem situada no Constructivismo
Lógico-Semântico, o que representa uma tomada de posição hermenêutica a partir do texto e das
potencialidades semânticas e pragmáticas inerentes aos signos.

10.1 STF: TUTELA PROVISÓRIA NA ADI Nº 5.866/DF. COMPREENDENDO A


COMPLEXIDADE NA ATRIBUIÇÃO DE RESPONSABILIDADE TRIBUTÁRIA NO ICMS
Uma pausa antes de serem elucidados os aspectos estruturantes da responsabilidade
tributária na legislação brasileira, especificamente quanto ao Imposto sobre Operações Relativas à
Circulação de Mercadorias e sobre Prestações de Serviços de Transporte Interestadual e
Intermunicipal e de Comunicação (ICMS): dessa maneira, primariamente, serão estabelecidas as
bases sob as quais se assentam a substituição tributária.

Assim, a substituição tributária315 é uma das técnicas que mais contribuíram para a redução
da sonegação, promoção da justiça fiscal e dinamização das atividades a serem desenvolvidas tanto
pelos contribuintes quanto pelas administrações tributárias316. A medida surge com o foco

315
Falar-se em responsabilidade tributária conecta-se irremediavelmente à substituição tributária, dado que nesta tem-
se uma “proposição que não altera a norma individual e concreta de constituição do crédito, se, desde o início, o
responsável tributário for o sujeito passivo da relação [...]. O responsável diferencia-se do contribuinte por ser
necessariamente um sujeito qualquer (i) que não tenha praticado o evento descrito no fato jurídico tributário; e (ii) que
disponha de meios para ressarcir-se do tributo pago por conta de fato praticado por outrem.” (FERRAGUT, 2013, p.
39).
316
Os aspectos históricos da utilização da técnica da substituição tributária foram evidenciados pelo ministro Edson
Fachin em seu voto como como relator do RE nº 593.849/MG, pela inclusão do “Histórico jurisprudencial e normativo
da substituição tributária progressiva”, no qual ficam evidenciados todos os diplomas normativos que já dispuseram
sobre a substituição tributária no Brasil: nesse ponto, a substituição tributária já se encontrava na redação originária do
CTN, em seus artigos 58, § 2º, 128, inciso II, bem como fora alvo de modificações com o Decreto-lei nº 406, de 1968,
e Lei Complementar nº 44, de 1983. Não se pode esquecer, ainda, que já constava também no Convênio ICM nº 66,
de 1988, o qual foi introduzido em atenção ao § 8º do art. 34, da ADCT, na CF/88, e, com a Emenda Constitucional nº
3, de 1993, à CF/88, incorporou-se ao art. 150, com a seguinte redação de seu § 7º: “A lei poderá atribuir a sujeito
passivo de obrigação tributária a condição de responsável pelo pagamento de imposto ou contribuição, cujo fato
gerador deva ocorrer posteriormente, assegurada a imediata e preferencial restituição da quantia paga, caso não se
233

especialmente direcionado a operações de circulação de mercadorias específicas, e nas quais


haveria uma melhor visualização da delimitação da cadeia de mercancia, tais como petróleo,
inclusive lubrificantes, combustíveis líquidos e gasosos dele derivados, e energia elétrica317.

Pode-se afirmar, inicialmente, que para fins de classificação dessa técnica aplicável à
tributação, ela pode ser considerada como “substituição tributária interestadual”, cujo
disciplinamente é oferecido por meio de acordo celebrado no âmbito do Conselho Nacional de
Política Fazendária (CONFAZ) (art. 9º, LC nº 87/96) (BERGAMINI, 2015, p. 611), ou como
“substituição tributária interna”, estabelecida pelo próprio ente federado competente, nos termos
de sua legislação específica. Em ambos os casos, conectam-se de maneira umbilical a
responsabilidade tributária e a substituição tributária.

Ainda mais, “[...] há três possíveis formas de se implementar a substituição tributária: (i)
substituição tributária regressiva; (ii) substituição tributária concomitante; ou (iii) substituição
tributária progressiva”. (BERGAMINI, 2015, p. 611)318. Para os fins deste trabalho, o qual
representa uma análise da Tutela Provisória na ADI nº 5866, concedida pela Presidente do STF,
ministra Carmem Lúcia, o trabalho se cingirá à substituição tributária interestadual progressiva ou
“para frente” e, especificamente, uma análise do Convênio ICMS nº 52, de 7 de abril de 2017, que
dispõe sobre as normas gerais319 a serem aplicadas aos regimes de substituição tributária e de
antecipação do ICMS com encerramento de tributação, relativos às operações subsequentes,
instituídos por convênios ou protocolos firmados entres os Estados e o Distrito Federal.

realize o fato gerador presumido”. (STF, RECURSO EXTRAORDINÁRIO: RE 593.849/MG. Relator: Min Edson
Fachin. DJe 068, publicado em 05/04/2017. Disponível em:
http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=12692057. Acesso em 2 fev. 2018).
317
Contudo, hoje é bastante comum os Estados alargarem a base de operações sob as quais institui a substituição
tributária, estabelecendo substituições tributárias internas, sob os mesmos argumentos favoráveis e que moldaram
inicialmente o instituto.
318
Para Carrazza (2015, p. 388), contudo, só há que se falar em duas divisões relativas à substituição tributária: “O
instituto da substituição tributária subdivide-se em: a) substituição tributária para trás; e b) substituição tributária para
frente. Só a substituição tributária “para trás” pode prosperar no Brasil. A outra (a substituição tributária ‘para
frente’) – posto muito difundida, na prática – é inconstitucional, porque agride valores que nossa Lei Maior encampou
e que os interesses fazendários não podem atropelar.” (destacado no original).
319
Interessante é que a própria ementa do Convênio ICMS nº 52, de 2017, parece apontar para a pretensão desse
documento normativo, cujo conteúdo seria mais adequado em uma lei complementar nacional relativa ao ICMS, este
sim, instrumento apropriado a estabelecer normas gerais em matéria tributária, nos termos do art. 146, inciso III, alínea
“b”.
234

Assim, começando a análise pela CF/88, tem-se que a substituição tributária relativa ao
ICMS mereceu destaque pela determinação de que a ela caberia a edição de lei complementar, nos
termos da alínea “b”, inciso XII, § 2º, art, 155320, além da tradicional necessidade de lei
complementar para o ICMS, tomado em sua acepção geral, nos termos do art. 146, visando a dispor
sobre conflitos de competência, regular as limitações ao poder de tributar e estabelecer as normas
gerais desse imposto.

Assim, seguindo os ditames constitucionais e após o Convênio ICMS nº 66, de 1988321, o


texto normativo que perfaz as exigências há pouco expedidas é a Lei Complementar nº 87, de 13
de setembro de 1996 (MOURA, 2009, p. 143)322. Deve-se ressaltar, apenas, que ao lado desta lei
complementar, integrando o susbsistema tributário relativo ao ICMS, tem-se também a Lei
Complementar nº 24, de 7 de janeiro de 1975323, a qual foi reconhecida como recepcionada pela
CF/88 em diversas oportunidades pelo STF324, além do próprio CTN.

320
É válida a transcrição do inteiro dispositivo: “Art. 155. (...) § 2º (....) XII - cabe à lei complementar: a) definir seus
contribuintes; b) dispor sobre substituição tributária; c) disciplinar o regime de compensação do imposto; d) fixar,
para efeito de sua cobrança e definição do estabelecimento responsável, o local das operações relativas à circulação de
mercadorias e das prestações de serviços; e) excluir da incidência do imposto, nas exportações para o exterior, serviços
e outros produtos além dos mencionados no inciso X, "a"; f) prever casos de manutenção de crédito, relativamente à
remessa para outro Estado e exportação para o exterior, de serviços e de mercadorias; g) regular a forma como,
mediante deliberação dos Estados e do Distrito Federal, isenções, incentivos e benefícios fiscais serão concedidos e
revogados; h) definir os combustíveis e lubrificantes sobre os quais o imposto incidirá uma única vez, qualquer que
seja a sua finalidade, hipótese em que não se aplicará o disposto no inciso X, b; i) fixar a base de cálculo, de modo
que o montante do imposto a integre, também na importação do exterior de bem, mercadoria ou serviço”.
321
Pelo qual ficaram “[...] aprovadas as normas constantes do Anexo único, destinadas a regular provisoriamente a
instituição do Imposto sobre Operações Relativas à Circulação de Mercadorias e sobre Prestações de Serviços de
Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação – ICMS.” (Cláusula primeira do Convênio ICMS nº 66,
de 1988), em cumprimento ao art. 34, § 8º, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) da
Constituição Federal de 1988.
322
Assim conclui Frederico Araújo Seabra de Moura (2009, p. 143): “A lei complementar que foi editada para
regulamentar este dispositivo constitucional foi a de n. 87, de 13 de setembro de 1996 (Lei Kandir), que faz as vezes
do Código Tributário Nacional, no que tange ao ICMS, porque se presta a veicular normas gerais sobre o aludido
imposto, uma vez que o Código [CTN] não mais trata do assunto (todos os enunciados prescritivos atinentes ao antigo
‘Imposto Estadual sobre Operações Relativas à Circulação de Mercadorias’ foram revogadas[os] pelo Decreto-lei n.
406/68 e pelo Ato Complementar n. 36/67)”.
323
Dispõe sobre os convênios para a concessão de isenções do imposto sobre operações relativas à circulação de
mercadorias, e dá outras providências.
324
Dentre todos os julgamentos, destaque-se a ADI nº 2.663/RS, 4.276/MT, 429/CE e a Medida Cautelar na ADI nº
1.179/SP. Na ementa de todos esses julgados é indubitávea ideia de que a LC nº 24/1975 harmoniza-se com a nova
ordem constitucional: “Ementa: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. TRIBUTÁRIO. ISENÇÃO
FISCAL. ICMS. LEI COMPLEMENTAR ESTADUAL. EXIGÊNCIA CONSTITUCIONAL DE CONVÊNIO
INTERESTADUAL (CF, ART. 155, § 2º, XII, ‘g’). DESCUMPRIMENTO. RISCO DE DESEQUILÍBRIO DO
PACTO FEDERATIVO. GUERRA FISCAL. INCONSTITUCIONALIDADE FORMAL. CONCESSÃO DE
235

Ao se perquirir sobre os dispositivos da Lei Kandir, que dispõem acerca da substituição


tributária, deve-se destaque aos artigos 6º a 10, que estabelecem as normas gerais a serem
observadas pelos Estados e pelo DF na utilização desta técnica e, particularmente importante,
dispõe sobre a responsabilidade tributária. Nessa medida, vale aqui a transcrição dos arts. 6º e 9º,
da Lei Kandir, que se revelam como de fundamental importância na compreensão da Tutela
Provisória na ADI nº 5.866/DF:

Art. 6o Lei estadual poderá atribuir a contribuinte do imposto ou a depositário


a qualquer título a responsabilidade pelo seu pagamento, hipótese em que
assumirá a condição de substituto tributário.
(...)
Art. 9º A adoção do regime de substituição tributária em operações
interestaduais dependerá de acordo específico celebrado pelos Estados
interessados.
§ 1º A responsabilidade a que se refere o art. 6º poderá ser atribuída:
I - ao contribuinte que realizar operação interestadual com petróleo, inclusive
lubrificantes, combustíveis líquidos e gasosos dele derivados, em relação às
operações subsequentes;
II - às empresas geradoras ou distribuidoras de energia elétrica, nas operações
internas e interestaduais, na condição de contribuinte ou de substituto tributário,
pelo pagamento do imposto, desde a produção ou importação até a última
operação, sendo seu cálculo efetuado sobre o preço praticado na operação final,
assegurado seu recolhimento ao Estado onde deva ocorrer essa operação.
(...).

ISENÇÃO À OPERAÇÃO DE AQUISIÇÃO DE AUTOMÓVEIS POR OFICIAIS DE JUSTIÇA ESTADUAIS.


VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA ISONOMIA TRIBUTÁRIA (CF, ART. 150, II). DISTINÇÃO DE TRATAMENTO
EM RAZÃO DE FUNÇÃO SEM QUALQUER BASE RAZOÁVEL A JUSTIFICAR O DISCRIMEN.
INCONSTITUCIONALIDADE MATERIAL. PROCEDÊNCIA DO PEDIDO. 1. O pacto federativo reclama, para
a preservação do equilíbrio horizontal na tributação, a prévia deliberação dos Estados-membros para a
concessão de benefícios fiscais relativamente ao ICMS, na forma prevista no art. 155, § 2º, XII, ‘g’, da
Constituição e como disciplinado pela Lei Complementar nº 24/75, recepcionada pela atual ordem
constitucional. 2. In casu, padece de inconstitucionalidade formal a Lei Complementar nº 358/09 do Estado do Mato
Grosso, porquanto concessiva de isenção fiscal, no que concerne ao ICMS, para as operações de aquisição de
automóveis por oficiais de justiça estaduais sem o necessário amparo em convênio interestadual, caracterizando
hipótese típica de guerra fiscal em desarmonia com a Constituição Federal de 1988. 3. A isonomia tributária (CF, art.
150, II) torna inválidas as distinções entre contribuintes “em razão de ocupação profissional ou função por eles
exercida”, máxime nas hipóteses nas quais, sem qualquer base axiológica no postulado da razoabilidade, engendra-se
tratamento discriminatório em benefício da categoria dos oficiais de justiça estaduais. 4. Ação direta de
inconstitucionalidade julgada procedente” (destacado). (STF, AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE:
ADI 4.276/MT. Relator: Min Luiz Fux. DJe 181, publicado em 18/09/2014. Disponível em:
http://stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarjurisprudencia.asp?s1=%28ICMS+RECEPCIONADA+24%2F75%
29&base=baseAcordaos&url=http://tinyurl.com/y8wa46bg. Acesso em 4 fev. 2018).
236

No que se relaciona ao CTN, apesar de parcela da doutrina identificar o fato de que o sujeito
passivo indireto poderia ser classificado como substituto e como responsável (BECHO, 2014b, p.
38), não se pode olvidar que o CTN não se utilizou desta separação, dispondo especificamente que
o sujeito passivo lato sensu será classificado como contribuinte (direto) ou responsável (indireto),
não adentrado subclassificações deste (incisos I e II, parágrafo único, art. 121) (PAULSEN, 2014,
p. 93).

Por fim, Paulo de Barros Carvalho (2015, pp. 298-299) realiza uma importante descrição
dos estudos realizados por Rubens Gomes de Sousa e que acabaram impactando na configuração
do CTN como acima expendida:

A teoria de que falamos vislumbrava no sujeito passivo aquela pessoa que estava
em relação econômica com o fato jurídico tributário, dele extraindo vantagens.
(...) A sujeição passiva indireta apresenta duas modalidades: transferência e
substituição; (...). (....) não há, em termos propriamente jurídicos, a divisão dos
sujeitos em diretos e indiretos, que repousa em considerações de ordem
eminentemente factuais, ligadas à pesquisa das discutíveis vantagens que os
participantes do evento retiram de sua realização. (...) Está bem claro que, na
hipótese, o legislador nada substitui, somente institui [ao dispor acerca da
substituição tributária] (destacado).

No concernente ao papel do CONFAZ na consecução específica das medidas que realizem


a substituição tributária, devem ser feitos alguns esclarecimentos: conforme há pouco transcrito, o
caput do art. 9º da Lei Kandir determina que “[...] a adoção do regime de substituição tributária
em operações interestaduais dependerá de acordo específico celebrado pelos Estados
interessados”.

Assim, não se olvidando que a imposição da responsabilidade tributária, que corporifica o


próprio regime da substituição tributária, deve-se dar mediante lei específica (Art. 121, parágrafo
único, inciso II, CTN), seria ainda forçoso lembrar que as leis ordinárias de cada Estado vigoram,
no País, “[...] fora dos respectivos territórios, nos limites em que lhe reconheçam
extraterritorialidade os convênios de que participem, ou do que disponham esta [CTN] ou outras
leis de normas gerais [no caso do ICMS, a LC nº 87/96] expedidas pela União” (Art. 102, CTN)
(destacado).

Sabe-se que, no que toca à utilização do vocábulo “convênios”, acima transcrito, estes não
foram utilizados no mesmo sentido daquele empregado na Lei Complementar nº 24, de 1975 (e,
237

portanto, nove anos após o CTN), nesta caso específico, como instrumento adequado à concessão
de “isenções, benefícios e incentivos fiscais nos moldes do artigo 155, § 2º, XII, g, da CRFB/1988
e da Lei Complementar nº 24/1975” (ADI nº 4.628, Rel. Min. Luiz Fux). Nos termos do CTN, os
convênios nada mais representam do que “normas complementares das leis, dos tratados e das
convenções internacionais e dos decretos” (Art. 100, inciso IV).

Dessa maneira, a rigor, ao ser determinado pela LC nº 87/96 que “[...] a adoção do regime
de substituição tributária em operações interestaduais dependerá de acordo específico
celebrado pelos Estados interessados” estar-se-ia a apontar para a figura dos protocolos, os quais
materializam os interesses325 de dois ou mais Estados e Distrito Federal, visando à implementação
de políticas fiscais e permuta de informações e fiscalização conjunta (incisos I e II, art. 38,
Convênio ICMS nº 133, de 1997 – Regimento Interno do CONFAZ).

O Regimento Interno do CONFAZ, entretanto, também determina que a este Conselho


também cabe “a celebração de atos visando o exercício das prerrogativas previstas nos artigos 102
[acima destacado] e 199326 da Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966 (Código Tributário Nacional),
como também sobre outras matérias de interesse dos Estados e do Distrito Federal” (inc. II, art. 3º,
Convênio ICMS nº 133, de 1997), além da “[...] celebração de convênios, para efeito de concessão
ou revogação de isenções, incentivos e benefícios fiscais do imposto de que trata o inciso II do art.
155 da Constituição, de acordo com o previsto no § 2º, inciso XII, alínea “g”, do mesmo artigo e
na Lei Complementar nº 24, de 7 de janeiro de 1975” (inc. I, art. 3º, Convênio ICMS nº 133, de
1997).

Nesse ponto, então, admite-se que o CONFAZ celebre, dentre outros, os seguintes tipos de
documentos normativos:

325
Em sentido filosófico, “interesse (‘inter-esse’), falando ser entre, no meio, está falando de um modo de ser que já é
sempre desde dentro (inter) de um modo possível de ser (esse) ou um verbo, isto é, possibilidade, isto é, um sentido-
antecipador-realizador de toda e qualquer realidade possível” (FOGEL, 2015, p. 30)
326
CTN: “Art. 199. A Fazenda Pública da União e as dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios prestar-se-ão
mutuamente assistência para a fiscalização dos tributos respectivos e permuta de informações, na forma
estabelecida, em caráter geral ou específico, por lei ou convênio. Parágrafo único. A Fazenda Pública da União, na
forma estabelecida em tratados, acordos ou convênios, poderá permutar informações com Estados estrangeiros no
interesse da arrecadação e da fiscalização de tributos”.
238

(i) Convênios que visem à concessão ou revogação de isenções, incentivos e benefícios


fiscais em sede de ICMS, com fundamento na alínea “g”, §2º, inciso XII, art. 155, CF/88, e na Lei
Complementar nº 24, de 7 de janeiro de 1975;

(ii) Convênios que visem ao reconhecimento da extraterritorialidade da legislação tributária


dos Estados e do DF, relativa ao ICMS, com fundamento no art. 102 do CTN e art. 9º da LC nº 87,
de 1996;

(iii) Convênios que tenham por finalidade a prestação de mútua de assistência para a
fiscalização do ICMS e permuta de informações entre os entes, além do compartilhamento de
cadastros, conforme disposto no art. 37, inciso XXII327, da CF/88 e art. 199 do CTN;

(iv) Protocolos, entre dois ou mais Estados e Distrito Federal, estabelecendo


procedimentos comuns visando a implementação de políticas fiscais, a permuta de informações e
fiscalização conjunta, ou outros assuntos de interesse dos Estados e do Distrito Federal, e desde
que não aumentem, reduzam ou revoguem benefícios fiscais, nos termos do art. 38, Convênio
ICMS nº 133, de 1997 – Regimento Interno do CONFAZ.

Diante de tudo isso, algumas conclusões podem ser extraídas da conjugação de todas essas
normas que compõem o arcabouço da substituição tributária progressiva:

(i) é instrumento previsto pelo legislador constitucional (§7º do art. 150, CF) e que permite
a atribuição de responsabilidade, por lei¸ para o pagamento de imposto ou contribuição cujo fato
gerador deva ocorrer posteriomente;

(ii) ao dispor acerca da responsabilidade tributária, o CTN também impõe que sua
atribuição deve se dar de modo expresso, por meio de lei (art. 121, parágrafo único, inciso II c/c
art. 128, ambos do CTN);

327
CF: “Art. 37. (...) XXII - as administrações tributárias da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos
Municípios, atividades essenciais ao funcionamento do Estado, exercidas por servidores de carreiras específicas, terão
recursos prioritários para a realização de suas atividades e atuarão de forma integrada, inclusive com o
compartilhamento de cadastros e de informações fiscais, na forma da lei ou convênio” (destacado).
239

(iii) a Lei Kandir, no art. 6º, determina que lei estadual atribua a contribuinte do imposto
ou a depositário a qualquer título, a condição de substituto tributário. Aqui, dados os princípios
decorrentes da vigência territorial das normas estaduais e distrital328, defende-se que só se pode
concatenar este artigo ao estabelecimento das chamadas substituições tributárias internas;

(iv) a Lei Kandir, no art. 9º, traz um requisito suplementar à substituição tributária
interestadual: a necessidade de acordo específico entre os Estados interessados (convênio ou
protocolo). Além disso, em consonância com tudo quanto exposto acima, relativamente à
necessidade de lei, prevê a atribuição de responsabilidade aos contribuintes que realizarem
operações interestaduais com petróleo (e seus derivados), e às empresas geradoras e distribuidoras
de energia elétrica, nas operações internas e interestaduais.

Pelas conclusões ora elencadas, serão evidenciados os posicionamentos adotados pelo STF
na Tutela Provisória na ADI nº 5.866/DF. Vale ressaltar que todos os motivos que ensejaram a
suspensão expressa329 de boa parte das cláusulas do Convênio ICMS nº 52, de 2017330, já estavam
devidamente sedimentados em farta jurisprudência antecedente, fundamentando a decisão ora
exarada.

328
Vale a observação proposta por Paulo de Barros Carvalho (2015, p. 101) para quem “[...] as normas jurídicas
aditadas por um Estado são vigentes para colher os fatos que aconteçam dentro de seus limites geográficos, o mesmo
ocorrendo com os Municípios e com a própria União. Todavia, desde que se celebrem convênios entre os Estados e
entre os Municípios, alguns princípios de extraterritorialidade podem ser eleitos e, nessa estrita dimensão, as normas
de um serão vigentes no território do outro”. Em dissertação específica acerca da matéria, Lucas Galvão de Britto
(2014a, p. 129) refere-se ao “domínio espacial de vigência”, como aquele que “diz respeito ao conjunto de referências
espaciais que circunscrevem os limites para a aplicabilidade da norma tributária. [...] A vigência, como se observa bem
do dispositivo citado [art. 1º da LINDB], não é circunscrita somente ao tempo, mas também, ao espaço, abrangendo a
totalidade do território da pessoa legiferante, salvo disposição em contrário.” (destacado no original).
329
Pode-se defender a ideia de que, expressamente, como elencado abaixo, teriam sido suspensas as Cláusulas 8ª a 14ª,
16ª, 24ª e 26ª do Convênio ICMS nº 52, de 2017; contudo, a despeito disso, diversas outras cláusulas do acordo se
encontram afetadas, dada a conexão necessária que há entre todas e a importância capital das que foram suspensas.
330
Conforme decidido pela Presidente do STF, ministra Carmem Lúcia, na Tutela Provisória da ADI nº 5.866/DF: “17.
Pelo exposto, pela qualificada urgência e neste juízo provisório, próprio das medidas cautelares, defiro parcialmente
a medida cautelar (art. 10 da Lei n. 9.868/1999), para suspender os efeitos das cláusulas 8ª, 9ª, 10ª, 11ª, 12ª, 13ª,
14ª, 16ª, 24ª e 26ª do Convênio ICMS n. 52/2017, celebrado pelo Conselho Nacional de Política Fazendária –
CONFAZ, até novo exame a ser levado a efeito na forma definida pelo insigne Relator, o Ministro Alexandre de
Moraes.” (STF, TUTELA PROVISÓRIA NA AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE: ADI 5.866
TP/DF. Relator: Min Alexandre de Moraes. Decisão exarada pela Presidente do STF, ministra Cármem Lúcia [Petição
Avulsa STF nº 78.958/2017]. DJe 019, publicado em 02/02/2018. Disponível em:
http://redir.stf.jus.br/estfvisualizadorpub/jsp/consultarprocessoeletronico/ Consultar
ProcessoEletronico.jsf?seqobjetoincidente=5334996. Acesso em 05 fev. 2018).
240

O objeto desta análise será especificamente a alegação da Confederação Nacional da


Indústria (CNI) de que o dito convênio teria desbordado do Texto Constitucional na medida em
que o mesmo “[...] [a]o fugir dos limites reservados pela Constituição às matérias a serem versadas
mediante convênio (art. 155, §2º, XII, ‘b’ e ‘g’)331 e invadir o campo de inafastável incidência da
lei (art. 150, §7º)332, inclusive complementar (art. 146, III, ‘a’ e 155, §2º, XII, ‘a’, ‘b’, ‘c’ e ‘i’)333,
[...] está por merecer, na sua integralidade, a declaração de inconstitucionalidade pelo STF”. E
dentre as matérias que podem ser analisadas com base nesta fundamentação, ressoa a relativa ao
estabelecimento da substituição tributária “para frente”, especificamente no que respeita à
determinação do substituto.

Voltando-se às conclusões exaradas no capítulo anterior, podem estas ser ratificadas a partir
dos dispositivos constantes da ADI nº 5.866 TP/DF, relativamente à substituição tributária
progressiva:

(i) A CF/88, o CTN e a Lei Kandir requerem sempre lei para a atribuição de
responsabilidade. Conforme se viu acima, tal intelecção é obtida pela leitura sistemática do § 7º,
art. 150, da CF; do inciso II, parágrafo único, art. 121, do CTN; e dos arts. 6º e 9º da LC nº 87, de
1996. Daí que o fundamento na tutela é no sentido de que

Nos autos agora examinados, revela-se pertinente o argumento central


desenvolvido pela Autora de não obediência, na edição do Convênio ICMS n.
52/2017, da cláusula constitucional de reserva de lei, prevista nos arts. 146, inc.
III, 150, § 7º, e 155, § 2º, inc. XII, notadamente no que concerne às cláusulas

331
CF: “Art. 155. [...] § 2º O imposto previsto no inciso II [ICMS] atenderá ao seguinte: [...] XII - cabe à lei
complementar: [...] b) dispor sobre substituição tributária; [...] g) regular a forma como, mediante deliberação
dos Estados e do Distrito Federal, isenções, incentivos e benefícios fiscais serão concedidos e revogados”
(destacado).
332
CF: “Art. 150. [...] § 7º A lei poderá atribuir a sujeito passivo de obrigação tributária a condição de responsável
pelo pagamento de imposto ou contribuição, cujo fato gerador deva ocorrer posteriormente, assegurada a imediata e
preferencial restituição da quantia paga, caso não se realize o fato gerador presumido” (destacado).
333
CF: “Art. 146. Cabe à lei complementar: [...] III - estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária,
especialmente sobre: a) definição de tributos e de suas espécies, bem como, em relação aos impostos discriminados
nesta Constituição, a dos respectivos fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes;” e “Art. 155. [...] § 2º O imposto
previsto no inciso II [ICMS] atenderá ao seguinte: [...] XII - cabe à lei complementar: a) definir seus contribuintes;
b) dispor sobre substituição tributária; c) disciplinar o regime de compensação do imposto; [...] i) fixar a base de
cálculo, de modo que o montante do imposto a integre, também na importação do exterior de bem, mercadoria ou
serviço” (destacado).
241

8ª, 9ª, 10ª, 11ª, 12ª, 13ª, 14ª, 16ª, 24ª e 26ª do ato normativo impugnado”
(destacado).

Observando-se o teor específico da Cláusula Oitava334 do Convênio ICMS nº 52, de 2017,


percebe-se que ele atribui a responsabilidade a qualquer contribuinte do imposto que remeta
mercadorias ou bens que possuam a sistemática de substituição tributária disposta em convênio ou
protocolo. Ora, de qual dispositivo legal se poderia extrair tal responsabilidade? Por conta do
caráter nacional do imposto, uma responsabilidade nessa dimensão não deveria se fazer constar em
lei complementar de caráter nacional, conforme já apreciado pelo STF nos julgamentos das ADIs
nº 1.945 e 4.628?

Desse modo, diferentemente da dinâmica que vinha sendo empreendida pelo CONFAZ em
outros instrumentos335 e que se repetiu no Convênio ICMS nº 52, de 2017, não há como se
visualizar no subsistema normativo nacional do ICMS qualquer dispositivo que previamente
determinasse a possibilidade de que qualquer contribuinte pudesse ser chamado à responsabilidade
por “fatos geradores presumidos”. Na Lei Kandir especificamente, que estabelece as normas gerais
em matéria de ICMS, apenas o art. 9º seria vocacionado, na atual redação, a dar respostas, ainda
que insatisfatórias e incompletas, à atribuição de responsabilidade na substituição tributária.

(ii) No pertinente à intelecção possível entre os arts. 6º e 9º da Lei Kandir, para fins de
resguardar as substituições tributárias progressivas interestaduais pode-se afirmar que elas só se
sustentam na medida em que editada uma lei complementar nacional que estabeleça as diretrizes
básicas para regulamentação geral da atribuição de responsabilidade por substituição tributária.

Em assim sendo, o art. 6º da Lei Kandir seria o texto normativo necessário e suficiente para
dispor sobre o regramento relativo à substituição tributária interna, e cujo alcance poderia
extrapolar as regras de territorialidade inerentes à vigência especial das normas, na medida em que
houvesse convênio celebrado entre os Estados e o DF. Dado o caráter nacional do ICMS, porém,

334
Convênio ICMS nº 52, de 2017: “Cláusula oitava O contribuinte remetente que promover operações interestaduais
com bens e mercadorias especificadas em convênio ou protocolo que disponha sobre o regime de substituição tributária
será o responsável, na condição de sujeito passivo por substituição, pela retenção e recolhimento do ICMS relativo às
operações subsequentes devido à unidade federada de destino, mesmo que o imposto tenha sido retido anteriormente”
(destacado no original).
335
Tudo o quanto apontado do tocante à necessidade de reserva legal no Convênio ICMS nº 52, de 2017, aplicava-se
ao Convênio ICMS nº 81, de 1993, que foi revogado por aquele.
242

não se pode descurar que a atribuição de responsabilidade na substituição tributária há de ser


realizada em lei complementar nacional, em redação cujo teor é semelhante ao já realizado pelo
Poder Legislativo nacional quando da aprovação dos incisos I e II, § 1º, art. 9º, da LC nº 87/96. E
tal se dá pois

[...] os imperativos constitucionais relativos ao ICMS se impõem como


instrumentos de preservação da higidez do pacto federativo, et pour cause, o fato
de tratar-se de imposto estadual não confere aos Estados membros a
prerrogativa de instituir, sponte sua, novas regras para a cobrança do
imposto, desconsiderando o altiplano constitucional” (ADI n. 4.628, Relator
Ministro Luiz Fux, Plenário, DJe 24.11.2014).

Nessa medida, não basta os entes tributantes, em um exercício isolado de sua competência
tributária, resolverem instituir “novas regras para a cobrança do imposto”, especialmente se estarão
em jogo operações interestaduais com bens e mercadorias. Previamente a tudo isso, deve-se ter
uma disciplina mais abrangente do que a hoje disposta no art. 9º da Lei Kandir, que parece ter um
espectro de ação bem tímido relativamente à substituição tributária, ante o que esta técnica
alcançou na atualidade.

Por fim, quanto à atuação do CONFAZ no disciplinamento das regras necessárias à


substituição tributária, algumas ressalvas hão de ser feitas: a primeira delas que, dadas as maneiras
distintas de tipos de convênios que podem ser celebrados pelos representantes das administrações
tributárias dos Estados e do DF, não é correto sustentar, como feito na Tutela Provisória na ADI nº
5.866/DF, que “[...] os convênios celebrados pelo Conselho Nacional de Política Fazendária –
CONFAZ devem restringir-se ao que previsto em sede constitucional”.

Observando-se os julgados que a Presidente do STF elenca como sendo base para tal
afirmação (ADI nº 4.628, Relator Min. Luiz Fux, Plenário, DJE 24.11.2014 e ADI nº 286, Relator
Min. Maurício Corrêa, Plenário, DJ 30.08.2002), não decorrem que os convênios celebrados pelo
CONFAZ devem restringir-se às hipóteses de concessão de benefícios fiscais em sede de ICMS,
mas a formulação oposta: as hipóteses de concessão de benefícios fiscais em sede de ICMS só
podem ser materializadas por convênios celebrados no âmbito do CONFAZ, o que ressoa de forma
diversa. E isso se justifica na medida em que outras hipóteses de convênios vieram expressas no
CTN e que não parecem se confrontar com o Texto Constitucional.
243

10.2 O “SILÊNCIO RETÓRICO” DA CIÊNCIA DO DIREITO TRIBUTÁRIO BRASILEIRO


COM A PROMULGAÇÃO DA LEI COMPLEMENTAR Nº 160, DE 2017336

Um tema que causa estranheza é o “silêncio retórico” dos juristas brasileiros ante a
aprovação da Lei Complementar nº 160, de 7 de agosto de 2017337, que seria “a grande salvação”
ou a medida que intentaria resolver a “guerra fiscal” que há anos foi deflagrada no âmbito do ICMS:
faz lembrar a afirmação de Caenegem (2010, p. 108) para quem “o jurista338 não tem nenhum poder
direto [...]. O melhor que ele pode fazer é tentar influenciar os que estão no poder, ou simplesmente
servi-los”339. Nessa medida, parece que o silêncio se justifica para trazer a segurança que
notadamente os grandes contribuintes de ICMS340 têm interesse de afirmar, frente às incertezas que
são desenhadas nas posturas dos Poderes Executivo e Judiciário.

336
A despeito desse silêncio doutrinário, em uma atitude absolutamente isolada, o Estado do Amazonas, que já se
manifestara contrário à aprovação do Convênio ICMS nº 190, de 2017, ingressou com a Ação Direta de
Inconstitucionalidade nº 5.902, no Supremo Tribunal Federal. Apesar deste texto ter sido redigido antes da
protocolização desta ADI, alguns pontos confluem.
337
Dispõe sobre convênio que permite aos Estados e ao Distrito Federal deliberar sobre a remissão dos créditos
tributários, constituídos ou não, decorrentes das isenções, dos incentivos e dos benefícios fiscais ou financeiro-fiscais
instituídos em desacordo com o disposto na alínea “g” do inciso XII do § 2 o do art. 155 da Constituição Federal e a
reinstituição das respectivas isenções, incentivos e benefícios fiscais ou financeiro-fiscais; e altera a Lei no 12.973, de
13 de maio de 2014.
338
Já em um sentido de aceitação do status quo da doutrina, longe de qualquer ideal de neutralidade, mas com efetivas
inclinações de ordem política, econômica, pessoal ou profissional, Sundfeld (2008, p. 312) defende que “o debate
doutrinário jurídico deve valorizar a dimensão subjetiva. Interpretações, teses e teorias são criadas pelos publicistas a
partir de provocações ou necessidades da política, da economia, da vida pessoal ou empresarial. Eles são pessoas
concretas, cuja produção evidentemente reflete sua particular visão de mundo. Mas qual é a visão que gera os conceitos
e conclusões de pareceres, artigos, monografias, manuais, petições e sentenças elaboradas pelos publicistas? Eles
constituem um grupo com razoável unidade interna, com regras de admissão e conduta mais ou menos estáveis,
ocupando um espaço próximo do mundo jurídico”.
339
Nesse ponto, vale citar Edgar Morin (2010) que defende a responsabilidade do pesquisador perante a sociedade e o
homem (Capítulo 5). E isso se dá, pois, “responsabilidade é noção humanista ética que só tem sentido para o sujeito
consciente. Ora, a ciência, na concepção ‘clássica’ que ainda reina em nossos dias, separa por princípio fato e valor,
ou seja, elimina do seu meio toda a competência ética e baseia seu postuçado de objetividade na eliminação do sujeito
do conhecimento científico. Não fornece nenhum meio de conhecimento para saber o que é um ‘sujeito’.
Responsabilidade é, portanto, não sentido e não ciência. O pesquisador é irresponsável por princípio e profissão. [...]
A última descoberta da epistemologia anglo-saxônica afirma ser científico aquilo que é reconhecido como tal pela
maioria dos cientistas. Isso quer dizer que não existe nenhum método objetivo para considerar ciência objeto da ciência,
e o cientista, sujeito”. (MORIN, 2010, pp. 117-119). Na Ciência do Direito, essa polêmica se agigante e, de fato, ainda
está em vias de ser aprofundada por pesquisadores realmente responsáveis. Na prática, sob o rótulo de Ciência do
Direito, erigem-se muitas teses com o fito único de emplacarem o discurso vencedor, com financiamento de
gigantescos contribuintes, que detém incontestável poderes econômico e político, sem que se aprofundem todos os
caracteres complexos do fato. E a Lei Complementar nº 160, de 2017, é um exemplo precioso disso.
340
Isso se justifica pois os pequenos e médios contribuintes, assim considerados aqueles que se enquadram nos
conceitos da Lei Complementar nº 123, de 2006, que institui o Estatuto Nacional da Microempresa e da Empresa de
Pequeno Porte, estão fora de toda essa dinâmica de instabilidade, já que optam por um outro regime de tratamento
diferenciado e favorecido.
244

Como se sabe, a Constituição Federal, em seu art. 155, § 2º, inciso XII, alínea “g”,
determina que cabe à lei complementar regular a forma como, mediante deliberação dos Estados
e do Distrito Federal, serão concedidos incentivos e benefícios fiscais e sede de ICMS. Dessa
maneira, dois aspectos são fundamentalmente constitucionais: (i) há de haver uma lei
complementar, com fulcro no artigo supracitado e especialmente pela temática dos benefícios
fiscais de ICMS serem expressão da limitação constitucional ao poder de exoneração fiscal do
Estado-membro ou do DF (art. 146, inciso II, CF); (ii) tal lei complementar disporá apenas sobre a
forma, isto é, trará o procedimento necessário para que se dê a deliberação dos Estados e do
Distrito Federal, esta sim, requisito constitucional.

É por falta dessa deliberação dos Estados e do Distrito Federal que a temática da “guerra
fiscal” é atraída para o Supremo Tribunal Federal, pois o requisito da deliberação pelos entes é
matéria constitucional e sua violação, assim, diz respeito à competência do STF. O STF, assim,
está confrontado por dois tipos de questões constitucionais, pelo menos, em se tratando de guerra
fiscal:

(i) pela primeira, os Estados concedem benefícios ou incentivos fiscais em matéria de


ICMS, mediante lei ordinária aprovada em suas assembleias legislativas, isto é, com cumprimento
ao princípio da estrita legalidade tributária relativa à concessão de “subsídio ou isenção, redução
de base de cálculo, concessão de crédito presumido, anistia ou remissão” do ICMS, nos termos do
§6º do art. 150, CF, porém sem que haja deliberação dos Estados e do Distrito Federal, isto é,
sem que a matéria tenha sido debatida no âmbito do CONFAZ, conforme art. 155, § 2º, inciso XII,
alínea “g”, CF. No STF, vide as ADIs nº s 1247/PA, 2548/PR, 3246/PA e 3794/PR.

(II) Pela segunda, os Estados concedem benefícios ou incentivos fiscais em matéria de


ICMS, havendo deliberação dos Estados e do Distrito Federal no âmbito do CONFAZ, conforme
art. 155, § 2º, inciso XII, alínea “g”, CF, mas por sei que haja a aprovação de lei ordinária específica
estadual, nos termos do art. 150, § 6º, CF, utilizando-se apenas de decreto do Chefe do Poder
Executivo, que é a medida costumeiramente341 adotada pelas unidades federativas. No STF, vide

341
Como aduzido anteriormente, salvo melhor juízo, apenas o Estado do Rio Grande do Sul e o Distrito Federal
internalizam os benefícios e incentivos fiscais deliberados no âmbito do CONFAZ por meio de lei ordinária específica
estadual, o que se coaduna com a defesa de Charles McNaughton (2011, p. 172), para quem normas que “deformem o
245

o Referendo no Agravo Regimental na Medida Cautelar da ADI nº 4635/SP e a Medida Cautelar


na ADI nº 2155/PR.

Isto posto, pertinente ao ICMS, não resta o exercício de uma competência tributária estadual
sob os moldes tradicionais: conforme já decidido pelo STF, é tributo de caráter nacional342, como
será visto logo a seguir em se tratando da temática da “Responsabilidade tributária e Substituição
Tributária”, o que faz ressoar que os Estados e o DF se veem na contigência de verem suas
prerrogativas competenciais previamente delimitadas na própria Constituição Federal, a fim de
resguardar a possível (e por que não dizer, hodiernamente, real) ocorrência da guerra fiscal. Assim,
a obrigatoriedade de deliberação entre os Estados e o Distrito Federal decorre da própria CF,
cabendo à lei complementar disciplinar, apenas, a forma segundo a qual esta deliberação irá se
materializar.

Nesse contexto é que foi aprovada a Lei Complementar nº 160, de 2017, que visa a pôr fim
à guerra fiscal, com fulcro no art. 146, inciso II, CF, dada a necessidade dessa espécie normativa
para regular as limitações constitucionais ao poder de exonerar (que é reflexo ao poder de tributar),
bem como por estabelecer a forma como deve ocorrer a deliberação dos Estados e do Distrito
Federal na concessão de incentivos ou benefícios fiscais, nos termos do art. 155, § 2º, inciso XII,
alínea “g”, CF.

campo de abrangência do consequente [sic], para possibilitar a concretização de obrigações de [...] menor onerosidade
ao sujeito passivo e que voltem diretamente para as autoridades administrativas, têm de ser criadas, [...] como veículo
introdutor composto das seguintes espécies: Lei Complementar, Lei Ordinária, Medida Provisória e Lei Delegada, [...].
A exceção fica por conta do Imposto sobre Produtos Industrializados (‘IPI’), Imposto sbre Operações Financeiras
(‘IOF’), Imposto sobre Importação (‘II’) e Imposto sobre Exportação (‘IE’)[...]”.
342
Excerto da ementa da Medida Cautelar na ADI nº 1247/PA: “ICMS E REPULSA CONSTITUCIONAL À
GUERRA TRIBUTÁRIA ENTRE OS ESTADOS-MEMBROS: O legislador constituinte republicano, com o
propósito de impedir a ‘guerra tributária’ entre os Estados-membros, enunciou postulados e prescreveu diretrizes gerais
de caráter subordinante destinados a compor o estatuto constitucional do ICMS. Os princípios fundamentais
consagrados pela Constituição da Republica, em tema de ICMS, ( a) realçam o perfil nacional de que se reveste esse
tributo, ( b) legitimam a instituição, pelo poder central, de regramento normativo unitário destinado a
disciplinar, de modo uniforme, essa espécie tributaria, notadamente em face de seu caráter não-cumulativo, (
c) justificam a edição de lei complementar nacional vocacionada a regular o modo e a forma como os Estados-membros
e o Distrito Federal, sempre após deliberação conjunta, poderão, por ato próprio, conceder e/ou revogar isenções,
incentivos e benefícios fiscais” (STF, MEDIDA CAUTELAR NA ADI: ADI 1.247 MC/PA. Relator: Min Celso de
Mello. DJ publicado em 8/9/1995. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC
&docID=346923>. Acesso em 28 fev. 2018).
246

Propõe-se, com esta lei complementar, regulamentar o modo do convênio a ser celebrado
no âmbito do CONFAZ para perdoar “[...] créditos tributários, constituídos ou não, decorrentes das
isenções, dos incentivos e dos benefícios fiscais ou financeiro-fiscais instituídos em desacordo
com o disposto na alínea “g” do inciso XII do § 2o do art. 155 da Constituição Federal”. E tal
convênio, após intensas discussões no âmbito do CONFAZ, ainda que sem a unanimidade dos
Estados (por não haver a necessidade, conforme Regimento Interno do CONFAZ da unanimidade
nessa matéria): trata-se do Convênio ICMS nº 190, de 15 de dezembro de 2017343.

A essa altura, alguns pontos precisam ser colocados acerca dessa complexa matéria e que
só são permitidos com uma tomada de atitude genuinamente comprometida com uma interpretação
que realize os valores constitucionais e que permita o desdobrar-se da intertextualidade e a
inesgotabilidade de sentidos dos documentos normativos:

(i) não se tem dúvidas de que todos os incentivos e benefícios fiscais relativos ao ICMS que
tenham sido ofertados com base em decisões unilaterais dos Estados e do DF, isto é, sem que
tenham sido precedidos de acordo no âmbito do CONFAZ, são, pelo menos sob o âmbito
dogmático em virtude de inúmeras decisões tomadas pelo STF, inconstitucionais, por afronta ao
art. 155, § 2º, inciso XII, alínea “g”, CF;

(ii) dessa forma, dada a inércia do Poder Judiciário, para que haja a declaração expressa
dessa inconstitucionalidade, deve-se intentar uma ação constitucional específica, normalmente
seguindo a vida da Ação Direta de Inconstitucionalidade;

(iii) como a prática da guerra fiscal é generalizada entre as unidades da Federação, isto é,
dado que todos os Estados e o DF, em alguma medida, já concederam incentivos ou benefícios
fiscais relativos ao ICMS sem que houvesse deliberação no âmbito do CONFAZ, o que encontra
justificação, ainda que inaceitável juridicamente344, de que se trata de uma maneira de se proteger

343
Dispõe, nos termos autorizados na Lei Complementar nº 160, de 7 de agosto de 2017, sobre a remissão de créditos
tributários, constituídos ou não, decorrentes das isenções, dos incentivos e dos benefícios fiscais ou financeiro-fiscais
instituídos em desacordo com o disposto na alínea “g” do inciso XII do § 2º do art. 155 da Constituição Federal, bem
como sobre as correspondentes reinstituições.
344
Essa constatação comprova, pragmaticamente, a afirmação de Denise Lucena Cavalcante e Raimundo Márcio
Ribeiro Lima (2015, pp. 139-140) que de se vive uma “ilusão” quanto ao pacto federativo cooperativo no Brasil.
Assim, defendem que “a desproporcional capacidade financeira entre os entes políticos, identificada no poder de
247

de decisões unilaterais dos outros entes345, o acesso ao Poder Judiciário, frente à quantidade de
normas potencialmente inconstitucionais, sempre foi mínimo;

(iv) em assim sendo, dadas as peculiaridades constitucionais para a edição de lei


complementar, existe a previsão de que estas sejam utilizadas, ainda que mediatamente, para
apagar vícios de inconstitucionalidade que seriam insanáveis? Com fulcro em qual inciso do
art. 146 da CF estaria o legislador nacional habilitado a autorizar a convalidação de textos
normativos que ferem frontalmente a CF, por falta do cumprimento do requisito da deliberação
entre os entes: quer-se justificar que se trata do poder inerente à regulação das limitações
constitucionais ao poder de exonerar, como visto acima, se, em verdade, se está é a derrogar um
dos limites que já haviam sido colocados no Texto Constitucional?

(v) E dado esse desvio na atividade legislativa, outro há que se acrescentar: a essa mesma
“instituição” Congresso Nacional que decretou o conteúdo posteriormente sancionado pelo
Presidente da República da Lei Complementar nº 160, de 2017, caberia a função fiscalizatória
(CORREIA NETO, 2016) no tocante à concessão de incentivos fiscais de ICMS, por ser tributo de
caráter nacional e que, assim, ultrapassa os limites da competência tributária estadual: não só não
exerce essa função como autoriza a convalidação de atos inconstitucionais.

A adoção de tal medida e o silêncio dos juristas quanto à questão não servem mais do que
“por panos quentes” em uma questão que é estrutural para a manutenção do pacto federativo e de
um nível mínimo de respeitabilidade entre os entes, tudo com vistas a atingir os objetivos
fundamentais da República Federativa do Brasil, dentre os quais, a garantia do desenvolvimento

tributar dos Municípios, denuncia uma intrincada relação entre a imensidão dos custos das prestações públicas e a
ilusão do pacto federativo cooperativo, até mesmo por conta do federalismo centrípeto”.
345
O que já foi rechaçado como motivo aceitável para a edição de leis que concedam incentivos ou benefícios fiscais
relativos ao ICMS, pelo STF, conforme excerto da seguinte ementa: “INCONSTITUCIONALIDADES NÃO SE
COMPENSAM – A outorga unilateral, por determinado Estado-membro, de benefícios de ordem tributária em
tema de ICMS não se qualifica, porque inconstitucional , como resposta legítima e juridicamente idônea à
legislação de outro Estado-membro que também se revele impregnada do mesmo vício de inconstitucionalidade
e que, por resultar de igual transgressão à cláusula constitucional da reserva de convênio, venha a provocar
desequilíbrios concorrenciais entre referidas unidades federadas, assim causando gravame aos interesses do Estado-
membro alegadamente prejudicado. É que situações de inconstitucionalidade, porque reveladoras de gravíssima
transgressão à autoridade hierárquico-normativa da Constituição da República, não se compensam entre si.
Precedente” (STF, REFERENDO NO AG. REG. NA MEDIDA CAUTELAR NA ADI: ADI 4.635 MC-AgR-Ref/SP.
Relator: Min Celso de Mello. DJe nº 29, publicado em 12/2/2015. Disponível em:
<http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=7734171>. Acesso em 28 fev. 2018).
248

nacional e a erradicação da pobreza e da marginalização e a redução das desigualdades sociais e


regionais.

E desde já se deve registrar o fato de que não se acredita que uma medida como a Lei
Complementar nº 160, de 2017, que remexe apenas na superficialidade do problema da guerra
fiscal, consiga, com base em uma autorização para perdoar créditos tributários advindos de normas
inconstitucionais, enfrentar os níveis mais complexos de desestrutura que podem ser facilmente
visualizados no ICMS, na atualidade.

10.3 OUTRA PAUSA PARA O IPVA: O QUE ESPERAR DA ADI Nº 5.654/CE

Neste subcapítulo, passar-se-á a dispor de um aspecto estrutural relativo ao IPVA que,


diferentemente do apontado há instantes, ainda não reverberou nas cortes superiores e cuja
ressonância na doutrina ainda não parece evidente. Nesse ponto, vislumbra-se a oportunidade de,
mais uma vez, aprofundar-se a Hermenêutica sob o viés da Ciência do Direito, dada a importância
da doutrina para a própria estruturação da jurisprudência.

E nesse ponto, para iniciar, vale o alerta feito por Paulo de Barros Carvalho (2016c, p. XX)
no Prefácio à obra “A prova no direito tributário”346, ao cuidar da criatividade do legislador:

[...] assim como a potência para criar frases linguísticas é infitiva, dentro do
âmbito de determinado idioma, as possibilidades criativas do legislador são
atambém intermináveis, mantendo-se rigorosamente dentro dos limites da
gramaticalidade própria da comunicação normativa. Tudo porque os functores
deôntico são interdefiníveis e a matéria do social estende-se numa pluralidade sem
fronteiras.

Ora, tomada a doutrina como uma rede que conecta diversos doutrinadores, será esta a
responsável por legitimar as diversas leituras feitas pelos julgadores, estruturando a jurisprudência
(CARNEIRO, 2015, p. 149-150), que se vivifica no núcleo inquebrantável dos textos escritos, quer
de direito positivo, quer de Ciência do Direito347. É enaltecido, por fim, o papel doutrinário como
um sistema de referência, com base em uma visão estruturalista (BORGES, 2007, p. 150).

346
Tese de doutoramento de Fabiana Del Padre Tomé.
347
Aqui, não se pode deixar de apontar que a ideia referenciada por Wálber Araujo Carneiro (2015, pp. 133-151) é
estruturada em um sentido mais estreito do que o aqui posto. Isso porque, defende o autor que “não é a jurisprudência
que legitima a doutrina, e sim a rede doutrinária que legitima [a] jurisprudência. Ao juiz é dada a possibilidade de
249

Daí a importância de contribuir para o aprofundamento das meditações interpretativas


decisionais, sob os influxos de novas ideias por parte da doutrina, sempre partindo do direito posto.
Nesse ponto, a redação do art. 155, §6º, inciso II, da CF, assim enuncia: “Art. 155, § 6º O imposto
previsto no inciso III [IPVA]: (...) II - poderá ter alíquotas diferenciadas em função do tipo e
utilização”. Tal redação, vale pontuar, foi inserida na CF a partir da Emenda Constitucional nº 42,
de 2003. Interessa, a partir de agora, fixar-se no signo “tipo”.

Aqui, então, o recurso ao conteúdo do dicionário será esgotado, para este ensaio, em três
consultas ao signo: na primeira, realizada no Michaelis (2009, p. 1846), pode-se dizer do tipo:

2 coisa ou indivíduo que possui caracteres distintivos de uma classe, um grupo


etc.; símbolo (...) 3 espécie, gênero (...) 9 COM conjunto das características que
indicam as qualidades de um produto <leite t. A> 12 LING na relação
tipo/ocorrência, cada vocábulo configurando um elemento da língua, por oposição
às ocorrências que o caracterizam como elemento da fala 13 SEMIO signo que
representa uma categoria ou um conjunto de casos ou indicações, por oposição às
ocorrências particulares mediante as quais uma categoria se manifesta.

A seguir, efetuada em um dicionário etimológico-prosódico (BUENO, 1968, p. 3979), tem-


se por tipo “figura, fôrma, modêlo, exemplo, classe, símbolo”. Por fim, em sentido filosófico, tipo
pode ser empregado “no sentido de modelo, forma, esquema ou conjunto interligado de
características que pode ser repetido por um número indefinido de exemplares” (ABBAGNANO,
2000).

Com isso, ao se apontar para “tipo de veículos”, está-se a pretender identificar classes,
modelos, conjuntos, grupos. E em sendo essa atividade, de formulação de tipos, tem-se que se
abrem múltiplas possibilidades ao legislador estadual348. É interessante observar, dentre os sentidos

romper com a jurisprudência somente se a rede doutrinária assim o permitir, sendo que esse rompimento atrai o ônus
argumentativo do rechaço do modelo jurisprudencial rechaçado, bem como dos modelos doutrinários que o
sustentava”. Na defesa desta tese, longe de se pugnar por um niilismo interpretativo, ou por um subjetivismo ilimitado,
que autorizaria qualquer interpretação por parte dos cientistas do direito ou mesmo em sendo processo de positivação
do direito, não se pode olvidar que, no que concerne ao Direito Tributário, cujos estudos científicos são relativamente
recentes no Brasil, bem como por um tecnicismo muitas vezes exagerado e confuso da legislação tributária, o qual
dificulta o aprofundamento teórico, não é raro inexistir doutrina acerca de matérias específicas. E isso é encontradiço
no IPVA. Nesse caso, o autor desenvolve tese no que denomina Teoria Dialógica do Direito.
348
Aqui, reitere-se a ausência de lei complementar estabelecendo normas gerais acerca do IPVA, o que faz operar um
vácuo ainda maior entre o Texto Constitucional e os textos estaduais e distrital.
250

apontados, aquele que indica um uso comercial do termo, constante no Michaelis: “conjunto das
características que indicam as qualidades de um produto <leite t. A>”.

E aí, talvez um retrocesso histórico dê a noção exata de como o Texto Constitucional pode
se adaptar aos novos valores que a sociedade elege, pelos novos conteúdos hermenêuticos. Isso
porque, o movimento não ocorre do texto legislado para a realidade: é exatamente o sentido oposto
que se verifica. Na medida em que as diferenças vão se fazendo visíveis na sociedade, é que o
direito passa a se expressar de maneira diferenciada, a fim de acompanhar as mudanças fácticas,
que são muito mais intensas que as alterações normativas.

Ainda em 1988, época da promulgação da Constituição, ao se falar em veículo automotor,


e não propriamente nos tipos dele, a sociedade não dispunha praticamente de opções: tinha-se o
que depois veio a ser denominado, jocosamente, de verdadeiras “carroças”: a mudança, ainda que
leve, e direcionada a classes sociais específicas, ocorreu apenas com o Governo Collor, quando
houve a abertura ao mercado estrangeiro, na aquisição de veículos349. Assim, não haveria muito
sentido falar em tipos de veículos pois não se contava com opções relevantes, desbordando apenas
em uma chamada categoria tipológica primária, que abrangeria o que se poderia delimitar com a
ideia de gênero.

A interpretação que se pretende fazer, contudo, aponta para vetores culturais diferenciados,
especialmente em virtude de uma dinâmica do mercado que revolucionou o modo como a
sociedade encara os “tipos” de veículos. Assim, existem diferenças fundamentais que podem ser
estabelecidas entre um carro com potência de até 100 cavalos e outro cuja potência é superior a
180 cavalos. Inclusive, diante de tais diferenças, a própria indústria automobilística aponta para
nichos de mercados distintos, com gostos absolutamente divergentes e com características de renda
básica dos consumidores na aquisição de tais veículos.

Dessa forma, por exemplo, levando em conta características deste jaez, o próprio legislador
federal selecionou “tipos” de veículos diferenciados, voltados normalmente ao consumo das
classes C e D, ao estabelecer a redução da alíquota do IPI de 7% para zero, para veículos de até

349
Vide interessante matéria no blog do Estadão, que atualiza essa temática. Disponível em: http://blogs.estadao.
com.br/primeira-classe/a-volta-das-carrocas/. Acesso em 29 mar. 17.
251

1000 cilindradas. Para veículos de 1000 a 2000 cilindradas, a redução na alíquota, à época, foi de
13% para 6,5%350. Ainda mais, as próprias legislações estaduais do IPVA já estabelecem, há
bastante tempo, alíquotas diferenciadas para veículos automotores terrestres em função do
combustível utilizado, chegando a isentar os veículos elétricos, em prestígio ao art. 225 da
Constituição Federal, em verdadeira utilização de categorias tipológicas e que visem a alcançar
finalidades outras que não a mera arrecadação do tributo.

Aqui, o tema seria farto para fins de defesa de tipos diferentes de veículos. Nesse ponto, em
que o legislador estadual manifesta a sua criatividade no sentido de alcançar a máxima efetividade
do Texto Constitucional, tributando com alíquotas menores tipos de veículos que sejam menos
poluentes ao meio ambiente, ou mesmo não os tributando, como é o caso dos veículos elétricos,
não há como se imaginar que a classificação tipológica deva se restringir a automóveis, ônibus e
caminhões.

E aqui, ainda se poderia citar o Programa de Incentivo à Inovação Tecnológica e


Adensamento da Cadeia Produtiva de Veículos Automotores (Inovar-Auto)351, instituído pelo
Governo Federal, e que, por meio de benefício fiscais, cria um estímulo à produção de veículos
que se diferenciem pelo consumo de combustíveis, prestigiando aqueles que se revelem mais
econômicos em sua utilização.

Nesse movimento, algumas leis estaduais relativas ao IPVA passaram a diferenciar suas
alíquotas, tomando por base a potência máxima de seus motores (com a utilização da grandeza
cavalo-vapor) e, em se tratando de motocicletas, utilizando-se da grandeza “cilindrada” ou volume
do motor. Tome-se como exemplo o Estado do Ceará, que nas alterações empreendidas na Lei
Estadual nº 12.023, de 20 de novembro de 1992, por meio da Lei nº 15.893, de 27 de novembro de
2015, passou a dispor da seguinte redação, relativamente à fixação das alíquotas aplicáveis ao
IPVA:

Art. 6º Aos veículos abaixo discriminados aplicar-se-ão as seguintes alíquotas:


(...)
III – motocicletas, motonetas, ciclomotores e triciclos com potência:

350
Vide Decreto Federal nº 6.809, de 30 de março de 2009.
351
Os contornos desse programa, bem como de toda a legislação que o rege, estão disponíveis em <http://
inovarautomdic.gov.br>. Acesso em 29 mar. 17.
252

a) de até 125 cilindradas, 2,0% (dois por cento);


b) superior a 125 e até 300 cilindradas, 3,0% (três por cento);
c) superior a 300 cilindradas, 3,5% (três vírgula cinco por cento);
IV – automóveis, camionetas, caminhonetes e utilitários com potência:
a) de até 100cv, 2,5% (dois vírgula cinco por cento);
b) superior a 100cv e até 180cv, 3,0% (três por cento);
c) superior a 180cv, 3,5 (três vírgula cinco por cento). (destacado)

De modo semelhante, o Estado de Pernambuco se valeu do mesmo critério de diferenciação


na Lei nº 10.849, de 28 de dezembro de 1992:

Art. 7º. As alíquotas do IPVA são:


(...)
III - para motocicleta, ciclomotor, triciclo, quadriciclo, motoneta e similares,
observada a respectiva motorização:
b) no período de 1º de janeiro de 2016 a 31 de dezembro de 2019:
1. 1,0% (um por cento), no caso de veículo com motor inferior a 50 cm³
(cinquenta centímetros cúbicos);
2. 2,5 % (dois vírgula cinco por cento), no caso de veículo com motor de
cilindrada até 300 cm³ (trezentos centímetros cúbicos);
2. 3,0 % (três por cento), no caso de veículo com motor de cilindrada acima de
300 cm³ (trezentos centímetros cúbicos) até 600 cm³ (seiscentos centímetros
cúbicos); e
3. 3,5 % (três vírgula cinco por cento), no caso de veículo com motor de
cilindrada acima de 600 cm³ (seiscentos centímetros cúbicos). (destacado)

Assim, não parece ser adequada ao panorama atual a interpretação trazida pela
Procuradoria-Geral da República (PGR), inaugurando a ADI nº 5654. Chega a PGR a afirmar que
“[...] motocicleta de até 125cc não é tipo de veículo automotor diferente de outra com 300cc. Do
mesmo modo, automóvel com 100cv não é, necessariamente, tipo de veículo diverso (...) de
automóvel de 180cv”. Nesse ponto, pode-se dizer que a realidade dos argumentos até aqui
expedindos suplanta essa afirmação.

Encerrada essa fase inicial, que teve intuito de colmatar o conteúdo semântico do Texto
Constitucional, em particular ao se cingir aos aspectos inerentes aos “tipos de veículos”, partir-se-
á para outro parâmetro de análise, o qual revela conexão com a interpretação feita pelo próprio
Supremo Tribunal Federal no RE nº 562.045/RS. Nesse processo, o STF admitiu a
constitucionalidade das legislações estaduais que estabelecessem alíquotas progressivas para o
Imposto sobre a Transmissão Causa Mortis e Doação de Bens e Direitos (ITCMD), ainda que tal
progressividade não tenha sido plasmada em disposição constitucional. E aqui o princípio mais
prestigiado na intelecção foi justamente o da capacidade contributiva.
253

Nesse ponto, sobreleva o texto do §1º, art. 145, da CF352. Ao observar o estabelecimento de
alíquotas diferentes para veículos automotores terrestres nas legislações cearense e pernambucana,
não se tem a aplicação da técnica da progressividade, corriqueiramente utilizada para graduação da
capacidade contributiva: não se trata de, sobre uma mesma grandeza, imputar um plexo de alíquotas
distintas, tal qual se julgou relativamente ao ITCMD instituído pela lei gaúcha.

Diferentemente disso, os fundamentos do RE nº 562.045/RS podem ser aqui utilizados pois


se percebe que, com base neste julgado, e considerado o voto do ministro Eros Grau, parece
desapegar-se da noção de que o art. 145, §1º, da CF, aplicar-se-ia, exlcusivamente, aos impostos
ditos “pessoais”, em contraposição àqueloutros denominados de impostos reais.

Nesse ponto, merece destaque a ênfase feita pelo à Constituição Federal, na medida em que
reitera que, em momento algum, o art. 145, §1º, da CF, revela um conteúdo limitador para sua
aplicação. Em sendo assim, defende:

O que a Constituição diz é que os impostos, sempre que possível, deverão ter
caráter pessoal. A Constituição prescreve, afirma um dever ser: os impostos
deverão ter caráter pessoal sempre que possível. E, mais, diz que os impostos,
todos eles, sempre que possível serão graduados segundo a capacidade econômica
do contribuinte.
7. Há duas sentenças aí : (1) terem caráter pessoal e (2) serem graduados, os
impostos, segundo a capacidade econômica do contribuinte. Sempre que possível.
Assim devem ser os impostos.
8. Permitam-me insistir neste ponto: o § 1º do artigo 145 da Constituição
determina como devem ser os impostos, todos eles. Não somente como devem ser
alguns deles. Não apenas como devem ser os impostos dotados de caráter
pessoal. Isso é nítido. Nítido como a luz solar passando através de um cristal,
bem polido. (destacado). STF, Voto-vista do Ministro Eros Grau. RE nº
562.045/RS.

Esta é questão que deve ser reacendida na jurisprudência brasileira, no sentido de fortalecer
o entendimento acima identificado, o qual torna mais plena a aplicação do princípio da capacidade
contributiva no direito tributário brasileiro.

352
CF, art. 145, § 1º: “Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade
econômica do contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses
objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as
atividades econômicas do contribuinte”.
254

Com tudo isso, não se pode duvidar que a variedade de tipos distintos de veículos que têm
sido ofertada ao mercado nacional guarda estreita consideração com recursos de ordem econômica
das pessoas que adquirem tais bens. A título de exemplo, a média de valores de um automóvel de
até 100 cavalos se perfaz em torno de R$ 40.000,00 (quarente mil reais). Enquanto isso, carros que
possuam mais de 180 cavalos ultrapassem em pelo menos três vezes esse valor.

Assim, são estabelecidas em nichos de mercados distintos, possibilidades amplas de


utilização da capacidade contributiva, a fim de graduar o tributo, ainda que de caráter real, segundo
a capacidade econômica do sujeito passivo. Nesse ponto, o critério pelo qual se pautaram as leis
ordinárias estaduais não se revelam absurdos e desarrazoados, tal qual seria se vislumbrassem tipos
distintos de veículos levando em conta a quantidade de portas ou mesmo a cor do automóvel.

Em sentido contrário, nada mais fez o legislador do que estruturar na norma jurídica em
sentido estrito, notadamente sob o viés do critério quantitativo, diferenciações que já vinham sendo
amplamente adotadas pela sociedade, e que revelam conteúdos incontroversos de riqueza.
255

CAPÍTULO 11. PERSPECTIVAS FUTURÍSTICAS ARRIMADAS NO


CONSTRUCTIVISMO LÓGICO-SEMÂNTICO: O INTÉRPRETE COMO
UM JANO MULTIFRONTE E A ÊNFASE NA CONSTRUÇÃO COLETIVA
Diante de tudo o que foi exposto acerca da interpretação jurídico-tributária, que hoje seria
mais bem identificada com uma teoria da decisão, o que dizer acerca de perspectivas desse “futuro
que já se faz presente”, que inapelavelmente, já chegou? Essa é uma indagação que deve permear,
particularmente, aqueles que têm o dever de estruturar a atividade estatal para os próximos anos,
seja no exercício da atividade legislativa, seja no julgamento das lides que lhes são apresentadas,
dando-lhes viabilidade para continuar atendendo às demandas sociais, e em oitiva permanente dos
demais atores envolvidos no processo interpretativo. No que pertine aos cidadãos, espera-se uma
conduta mais participativa353 na estruturação e no desenvolvimento das atividades estatais, dado
que o custo do conflito é muito alto para todas as partes nele envolvidas. Ainda mais quando se
fala em ICMS, o qual representa a maior fonte de arrecadação dos Estados e do DF.

Voltando-se, contudo, a esse futuro que já se torna real, podem ser feitas algumas
conjecturas, especialmente focadas no modo como a interpretação será realizada. E esta última
parte envolverá, justamente, o discorrer sobre essas conjecturas. Algumas observações, no entanto,
hao de ser postas e que se concatenam com o próprio conceito de ciência que foi exposto no
Capítulo 2 do Livro I, e que aprofundam as dificuldades para trilhar o caminho da Ciência do
Direito.

Nessa medida, será feita um (re)desenho do percurso gerativo de sentido, ou trajetória de


interpretação, de Paulo de Barros Carvalho, com o fito de integrá-lo a novas perspectivas que se
apresentem ao hermeneuta diante do deslocamento da tensão do legislador/doutrina dogmática para
juiz/doutrina dogmática (FERRAZ JR, 2014a, p. XV) ou do “[...] deslocamento do polo de tensão
entre os poderes do Estado em direção à jurisdição (constitucional), pela impossibilidade de o

353
Tal desejo também é compartilhado por Hugo de Brito Machado Segundo (2010, p. 225) para quem o
aperfeiçoamento da legitimidade da ordem jurídica passa pelo “incremento na participação política dos cidadãos.
Afinal a democracia pressupõe a participação. Essa participação, para a qual a educação é indispensável, pode dar-se
não apenas no momento de eleger representantes, mas no acompanhamento de suas atividades, hoje tornado possível
e acessível a todos por meio da Internet [sic], instrumento de baixo custo (comparativamente aos demais), cada vez
mais acessível a um número maior de brasileiros, e que pode ter seu uso incrementado para ampliar o diálogo entre
representantes e representados”.
256

legislativo (a lei) antever todas as hipóteses de aplicação.” (STRECK, 2014, p. 69). Isso será feito,
na mesma perspectiva do CLS, pela idealização de imagem gráfica, identificada com a
pluridimensionalidade que caracteriza os tempos deste futuro que já chegou.

Assim, os planos propostos por Paulo de Barros Carvalho serão potencializados pela noção
de dimensões alcançáveis no percuso gerativo de sentido, tal qual os ideais da Física
Contemporânea. É sob essa perspectiva, representativa de uma mera operação mental, que se
buscará lidar com a construção do sistema jurídico, em épocas em que o eixo se desloca da lei para
a jurisdição, com o enaltecimento do pragmatismo, o qual ganha vulto na hermenêutica
(CAMILOTTI, 2018, p. 29)354.

Antes, entretanto, conceda-se uma pausa para falar acerca do intérprete: considerada a
interpretação como débito ou destino da vida de qualquer ser humano, o intérprete é “[...] um
autêntico peregrino – um peregrino da prudência, um peregrino da sabedoria, um peregrino do
conhecimento” (PASQUALINI, 2005, p. 163). Nessa medida, longe de desenvolver uma atividade
individual e isolada ao interpretar, este ser humano carrega em si toda a humanidade, projetada
interna e externamente pela linguagem.

Nessa medida é que se define como sobejamente difícil sustentar a afirmação de que
existiria “o” intérprete, no sentido de um ser insulado, visceralmente desconectado de todos os
demais e que se baseando em uma suposta neutralidade científica, poderia erigir “a” interpretação
mais correta para determinada norma, no caso concreto, ou mesmo ao erigir a dogmática jurídica.
Foi com base em uma proposta semelhante, mas ligada à ideia de neutralidade do Poder Judiciário,
que exsurgiu a Ciência do Direito, ainda no século XIX (FERRAZ JR, 2014a, p. 3). E é justamente
pela apreensão da falibilidade desta ideia, que se busca a elaboração do direito que se funda mais
em um sentido coletivista qualificado (como doutrinariamente nasce o ideal de jurisprudência, por
exemplo, como um conjunto reiterado de decisões em um dado sentido), do que, propriamente, em
um sentido individualista-colegiado pseudoqualificado. Não se pode dispensar, contudo, o fato de

354
Vale a citação da defesa de José Renato Camilotti ao pragmatismo: “Assim o fazemos, fortes nas premissas de que
o pragmatismo, na porção epistêmica que já expusemos, deve ser adotado como postura hermenêutica nos sistemas de
direito positivo. O exame da pragmática do discurso jurídico, considerando, assim, seu contexto e suas consequências,
ganha vulto na hermenêutica que pretendemos adjetivar como a que mais se aproxima da funcionalidade do sistema,
com relação à consecução de seus objetivos”.
257

que ambos os movimentos estejam em conformidade com as regras e princípios estabelecidos pela
Constituição Federal.

E isso no direito tributário atinge superimportância, dado o tecnicismo alcançado pela


legislação compreendida neste “ramo” do direito, bem como na doutrina e na jurisprudência que
exsurgem. Nas mais das vezes, ao se pensar em uma discussão acerca da matéria tributária no
Congresso Nacional ou mesmo nas assembleias legislativas, por exemplo, visualiza-se que a
questão se centra nos grupos de interesse que serão afetados com tal ou qual mudança: quem será
mais ou menos impactado pela exação. Discussões acerca dos fundamentos para a utilização de um
signo propriamente dito ou outro são particularmente inexistentes, pois de cuida de uma disciplina
com rigores conceituais cujo domínio raramente é encontrado em um representante do Poder
Legislativo: como afirmou o ministro Luís Roberto Barroso, no voto no RE nº 593.849/MG, “o
Direito Tributário, às vezes, é tratado, [...], como cum culto esotérico apenas para os iniciados”.

E esse “suposto” tratamento dado do Direito Tributário não é gratuito ou fortuito:


infelizmente, firmou-se como verdade, diante das incertezas advindas da dificuldade em se lidar
com os fatos jurídicos tributários, estabelecendo-lhes as relações tributárias por força da imputação
normativa. E em meio a esse árduo percurso gerativo de sentido, representantes dos fiscos e dos
contribuintes tentam chegar a bom termo acerca dos critérios eleitos nas normas gerais e abstratas
que estabelecem obrigações tributárias principais e deveres instrumentais.

Em assim sendo, essa incerteza também passa a permear a atividade daqueles que erigem a
Ciência do Direito, os quais tateiam entre teses elaboradas, de olho nas decisões judiciais, a fim de
que estas afirmem aquela ideia que se sagrará vencedora. Nessa medida, se a incerteza chegou ao
ambiente das chamadas ciências duras, com todas as dificuldades em se erigir teorias com graus de
certeza mais aproximado, por que as ciências sociais, que lidam com dados muito menos
objetiváveis, iriam ficar ao largo de tamanha indeterminação?

Alguns diriam que se trata de conteúdos científicos absolutamente diferenciados, com


objetos e métodos que em nada se aproximam; contudo, a conexão que se faz aqui nesta tese é
meramente para assentar semelhanças na evolução de cada uma dessas ciências, pela comparação
de um modelo pluridimensional com o modelo do percurso interpretativo.
258

Isto se faz apropriado considerando-se o quanto exposto por Lourival Vilanova (2015, p.
2), que já aproximou estas duas ciências (e incluindo outras) a partir do conceito de causalidade:

Só obtemos a causalidade, como um gênero de terminação que articula o domínio


do fáctico, mediante a abstração generalizadora. Temos de pôr entre parênteses o
que é diferencial do fato físico, do fato biológico, do fato psíquico, do fato sócio-
histórico, isolando a causalidade como relação, cujos termos são fornecidos por
subáreas ou por subdomínio dos fatos. Os fatos de cada subdomínio especificam
a causalidade, que não perde, por isso, suas propriedades abstratas, as que a
elevam ao nível da lei geral de causalidade. A causalidade física, a causalidade
biológica, a causalidade psicológica, a causalidade sócio-histórica (que abrange a
causalidade sociológica e a causalidade histórica) são irredutíveis entre si, como
espécies, mas confluem como subtipos de uma lei universal de determinação.
Universal que dizer com validade para todo um universo-de-objetos. Ou, ainda,
que especifica a relação de um conjunto de entidades. Estas – objetos, fatos –
pertencem ao conjunto-universo porque articulam-se com a relação causa/efeito.
É por assim dizer, a propriedade definiente (em rigor, relação, não propriedade)
da pertinência de n-objetos ao conjunto universal.

Com isso, inspirando-se no Mestre pernambucano, e fixado o modelo de interpretação


jurídica do percurso gerador de sentido, buscar-se-á tecer considerações, ainda que incipientes, de
uma nova maneira de enxergar este último esquema, congregando-se todo o arcabouço há pouco
descrito355.

11.1 POR UM NOVO MODELO PARA O PERCURSO GERADOR DE SENTIDO:


PLURIDIMENSIONALIDADE E NOVAS PERSPECTIVAS HERMENÊUTICAS

Ao se idealizar a Física de teor clássic, sob o viés que aqui se permite, três pensadores foram
por demais importantes: Galileu Galilei, Johannes Kepler e Isaac Newton. Quanto aos dois
primeiros, estes já haviam concebido a ideia de uma lei natural, enquanto algo que

355
Pensou-se, ao início, em se idealizar um modelo de “teoria do tudo” para a interpretação jurídica. Tal teoria, na
Física moderna, visa a criar um só modelo teórico-matemático, integrando os fenômenos físicos à luz da Mecânica
quântica e da relatividade geral. É uma estrutura bastante controversa e que ainda está longe de romper a barreira
empírica própria das chamadas “ciências naturais”. Almejar-se-ia, assim, propor um modelo que integrasse todos os
“tipos” de interpretação jurídicas, sob um olhar que envolvesse os quatro planos descritos por Carvalho, além da
infinitude que representa o contexto e os horizontes culturais do intérprete. Acredita-se firmemente que, da mesma
maneira que o universo, a operação mental de interpretação também tende ao infinito, considerando-se toda a
complexidade das dimensões aqui descritas, o que propicia a aproximação entre a Física e o Direito. Uma descrição
completa do universo sempre foi uma aspiração humana, exacerbando-se no fim do século XIX, quando se imaginava
que o espaço fosse preenchido por um meio contínuo denominado “éter” (HAWKING, 2002, p. 4).
259

irremediavelmente mostraria a sua eficácia, nos casos práticos, mas só a aplicaram em poucos
fenômenos particulares (GLEISER, 2014, pp. 77-83).

Em assim sendo, Newton superou o pensamento de Galilei e de Kepler ao ocupar o lugar


de grande unificador: o homem que conectou a Física da Terra (de Galileu) com a Física dos céus
(de Kepler), criando o modelo da lei universal da gravitação. Tal modelo descreveu que a queda
dos objetos (da Terra) e as órbitas planetárias (dos céus) são expressão da mesma Física, e que
resultam da atração gravitacional entre dois corpos (GLEISER, 2014, p. 80).

Em seu Principia, Isaac Newton (1996, p. 31) enuncia os axiomas ou leis do movimento:

Lei I: Todo corpo permanece em seu estado de repouso ou de movimento


uniforme em linha reta, a menos que seja obrigado a mudar seu estado por forças
impressas nele.
Lei II: A mudança do movimento é proporcional à força motriz impressa, e se faz
segundo a linha reta pela qual se imprime essa força.
Lei III: A uma ação sempre se opõe uma reação igual, ou seja, as ações de dois
coros um sobre o outro sempre são iguais e se dirigem a partes contrárias.

Ora, a se pensar sob o viés da Física newtoniana, tem-se a descrição de um plano


tridimensional, em que as estruturas se limitam em um só espaço-tempo. É um modelo teórico “[...]
que afirma que a força de atração entre dois corpos é proporcional ao produto de suas massas e
inversamente proporcional à sua separação.” (HAWKING, 2002, p. 208). Tal conteúdo é
plenamente refletido por um gráfico com três coordenadas (x, y, z), utilizando-se da Geometria
Analítica Tridimensional.

A seguir, contudo, com as teorias da Relatividade Geral e Restrita, de Albert Einstein,


combinou-se “[...] o tempo real e as três dimensões do espaço em um espaço-tempo
quadridimensional” (HAWKING, 2002, p. 60). Assim, o universo torna-se deformável, elástico, a
depender da quantidade de matéria ou de energia que existe em certa região. Além disso, espaço e
tempo não são mais entidades rígidas, como via Newton, passando a existir o contínuo do “espaço-
tempo”, em que ambas se entrelaçam (GLEISER, 2014, p. 92).

E pode-se até pensar que tal ideia, de âmbito meio futurista e aparentemente desconectado
da atividade jurídica, não deve promover uma profunda reflexão no modo como o direito é pensado,
seja normativa ou doutrinariamente. É esse mesmo espaço que, em um sentido tradicional, é
260

absolutamente incontestável para a configuração do fato jurídico tributário, na medida em que,


conforme o esquema lógico-formal da regra-matriz de incidência tributária, o critério espacial
integra a tríade fundamental para configuração da entidade “fato”. Os caracteres de precisão e
certeza, porém, precisam ser repensados, bastando um olhar atento à “realidade”: se o CTN, por
exemplo, remete a uma ideia de um fato gerador com coordenadas de espaço certas e infalíveis, a
pragmática das relações sociais vem trazer o complicador de operações e prestações que ocorrem
fora do conteúdo tradicional de estabelecimento, como espaço físico, ocorrendo, por exemplo, em
um ambiente virtual.

A própria definição de estabelecimento, para os fiscos estaduais, representa um dos maiores


desafios: como se desvincular da ideia de um estabelecimento que não possui mais espaço físico356,
mas que congrega, apenas, uma teia de contratos sucessivos, geradores de fatos jurídicos tributários
afetados pelo ICMS? Como aceitar que um mesmo espaço possa ser aproveitado por mais de um
contribuinte? Como lidar com a inexistência do estoque físico tradicional, à disposição para vistoria
pela fiscalização, diante da possibilidade de que isso se torne impraticável na dinâmica de um
mercado que não é mais local, mas global?

Dessa maneira, não se acredita em uma desconexão dos patamares de conhecimento


alcançados pelas outras ciências com aquilo que se julgará como aceitável pela Ciência Jurídica. E
não se tem dúvida de que as possibilidades negociais que se tornaram realidade em decorrência da
utilização da internet promoverão uma revolução nos conceitos de alguns tributos357, e, em
especial, para o ICMS, bem como da nova mentalidade característica das novas gerações que se
sucederão neste mundo, ainda na transição de um padrão de materialidade para um de
imaterialidade, ou de um movimento de vendas presenciais para vendas à distância.

356
Tal como se vê com a inauguração de vários espaços de coworking, que dominam o mercado, e que podem ser
utilizados por frações de tempo, especificamente para receber um cliente e celebrar um contrato.
357
Um exemplo pode elucidar essa questão no ICMS. Tradicionalmente, a estrutura de circulação de mercadorias
operava-se em uma lógica que envolvia a indústria, o comércio atacadista e, por fim, o comércio varejista; contudo,
dado que a internet tem diminuído distâncias entre o mercado consumidor e a própria indústria, não é incomum que as
primeiras organizem a sua logística e criem estruturas adequadas para vender diretamente para os consumidores finais.
Ora, isso enseja influxos efetivos nesses negócios, na medida em que os os clientes tradicionais da indústria, que são
os comércios, passam a ter por concorrente o seu fornecedor, que pode, por exemplo, criar um site de venda direta de
uma filial comercial que constitua. Isso é muito comum na atualidade, quando se fala em computadores, pneus,
veículos, dentre outros tipos de itens.
261

Assim, o propósito de apresentar novas perspectivas para o modelo do percurso gerador de


sentido, do Constructivismo lógico-semântico, não significa, em absoluto, o encerramento da
questão. Como se sabe, estudos são empreendidos, no plano da neurociência358, que podem mudar
substancialmente a forma como o homem compreende o processo intelectivo, alterando-se o
panorama atual de modo radical, o que passa pela própria ideia de pensamento. É uma resposta que
só o tempo trará: “[...] o templo da ciência apresenta-se como um edifício de mil formas.”
(EINSTEIN, 1981, p. 137).

Importante é destacar, ainda, que a perspectiva doutrinária desenvolvida por Paulo de


Barros Carvalho em tudo se adapta ao modelo ora proposto. Apenas se defende a ideia de que a
imagem que foi utilizada pelo autor para configurar o seu percurso possui um desenho que reduz
as imensas possibilidades da trajetória de interpretação e não abarcam tudo aquilo que quis o Jurista
paulista dizer. Nessa medida, tal percurso denota que a interpretação jurídica é atividade de caráter
geral, desvencilhada das tradicionais “técnicas de interpretação da lei”, caracterizando-se como um
modo de conhecimento (DWORKIN, 2001), o que atribui a ela caracteres pelos quais é ressaltada
a complexidade e infinitude do processo. Nesse caminho, dialogam, incessantemente, Ciência e
Filosofia: aqui o ser pensante dialoga consigo mesmo e está imerso no diálogo interminável no
qual todos estão compreendidos (GADAMER, 1983)359.

11.2. A PLURIDIMENSIONALIDADE DO PERCURSO GERADOR DE SENTIDO DO CLS:


PELA IDEALIZAÇÃO DE UM PERCURSO AMPLIADO DE POSSIBILIDADES
HERMENÊUTICAS

358
Dentre todos os importantes estudiosos dessa área, cite-se o brasileiro Miguel Nicolelis (2011, p. 359), cujas ideias
absolutamente inovadoras consolidaram sua posição de cientista respeitável na esfera internacional. Em um de seus
insights, aventou a possibilidade de criar uma interface cérebro-cérebro, conectando dois indivíduos. Nesse ponto,
imaginem-se as complexidades de se desenvolver um modelo para o percurso gerador de sentido, considerando-se que
são duas pessoas, com horizontes culturais absolutamente distintos e que conjugariam inteligência para se chegar a
uma interpretação única, um sentido singular.
359
Dada a singularidade do pensamento, vale a transcrição de fragmento de Gadamer (1983, pp. 24-25): “O modelo
de ciência, que caracteriza o nosso tempo, deveria proteger-nos, também, da tentação de levar a cabo, com construções
apressadas, a satisfação da necessidade de unidade da razão. Assim como nossa experiência total do mundo representa
um processo sem fim de sujeição – e, usando palavras de Hegel, em um mundo que sempre se apresenta como estranho,
para nós, porque é um mundo modificado por nós mesmos – também a necessidade de justificação filosófica é um
processo que não tem fim. Nele se realiza não só, o diálogo que cada ser pensante trava consigo mesmo, mas também
o diálogo no qual estamos todos compreendidos e que nunca cessará, ainda quando se proclame que a filosofia está
morta”.
262

Por tudo o que já se viu até aqui, sabe-se que não basta o reconhecimento de que o direito
é texto, visto que isso corresponde apenas ao acesso inicial ao reconhecimento da realidade
jurídica: assim, interessa com maior atenção se definir como ocorrerá o processo de interpretação
da mensagem legislada, ou seja, como se dará a argumentação, em um trajeto de infinitas
possibilidades.

Tudo o que foi exposto assume importância fulcral pois, em última análise, conhecer o
direito é compreendê-lo e interpretá-lo, constituindo o conteúdo e conferindo o sentido e o alcance
que a comunicação legislada pretendeu oferecer. Com isso, o ser humano é fundamental para que
se deem a compreensão e a interpretação do direito, visto que este se trata, por excelência, de um
objeto cultural, completamente aberto a valorações, ocorrendo o sentido em todas as dimensões em
que se enxerga o jurídico (FALCÃO, 2010, p. 16-17).

E para configurar esse processo interpretativo, facilitando sua idealização, Paulo de Barros
Carvalho estruturou o “percurso gerador de sentido”, chegando à conclusão de que há dificuldades
em se estabelecer a norma enquanto unidade mínima e irredutível de significação do deôntico, com
sentido completo (CARVALHO, A. T., 2013), bem como em se estabelecer as relações de
coordenação e de subordinação que envolvem a construção de todo o sistema jurídico, tratando-se
de um empreendimento intelectual e emocional que requer muita energia de quem se dispõe a
executá-lo (CARVALHO, 2015, p. 134).

E nesse ponto impõe-se evidenciar que as interpretações podem se dar, simplificadamente


falando, com duas finalidades distintas: pela primeira, o intérprete, identificado como legislador ou
aplicador do direito360, debruça-se sobre o ordenamento e empreende, ao final, a inserção de um
novo comando normativo, isto é, agrega-lhe um novo conteúdo prescritivo; pela segunda, o
hermeneuta, identificado como jurista ou estudioso do Direito Positivo, aproxima-se do mesmo

360
Essas expressões querem significar “a acepção ampla do vocábulo ‘legislador’”. Nesta inserem-se “[...] as
manifestações singulares e plurais emanadas do Poder Judiciário, ao exarar suas sentenças e acórdãos, veículos
introdutórios de normas individuais e concretas no sistema do direito positivo. O termo abriga também, na sua
amplitude semântica, os atos administrativosexpedidos pelos funcionários do Poder Executivo e até atos praticados
por particulares, ao realizarem as figuras típicas na ordenação jurídica.” (CARVALHO, 2015, p. 36).
263

ordenamento, com o fito de estudá-lo, de aprofundar o conhecimento acerca da matéria, emitindo


um ponto de vista que se espera seja fundamentado nas normas confrontadas pelo estudioso.

Não se pode olvidar, contudo, que dada a impregnação do direito nas questões mais
particulares e que influenciam a vida em sociedade, potencializada pela facilidade de disseminação
do conhecimento, na atualidade, “argumentos jurídicos são acompanhados e debatidos pela opinião
pública, não só por profissionais do direito” (FERRAZ JR, 2014a, p. XI). Se antes, o papel da
imprensa era lidar com os influxos do Direito na vida em sociedade a partir de casos pontuais, nos
quais se escutava a opinião de um jurista, presentemente, é o próprio cidadão quem digere o
conteúdo normativo, fazendo as inferências e elaborando o “seu” sistema jurídico: é o cidadão
comum, por outro lado, assistindo a tudo isso, e qualificando-se como intérprete da interpretação
feita pela autoridade, ainda que isso venha a ser considerado como irrelevante para o direito.

Nessa medida, em todos esses casos, esses argumentos se fazem com base em um trajeto
de interpretação, em que se interpenetram com maior facilidade o anseio social, o sentimento de
(in)justiça e o contéudo dos textos normativos. Nos casos em que é possível o acompanhamento,
pelos canais televisivos, dos julgamentos do STF, por exemplo, transmite-se, oralmente, um voto
de um um ministro que, pragmaticamente, pode representar o conteúdo constitutivo de uma norma
individual e concreta, por exemplo. No mais, o próprio acesso on line aos textos normativos
escritos, por meio da pesquisa dos julgamentos realizados, bem como de toda a legislação, alterou
profundamente a maneira de tratamento do dado normativo, desvinculado ou apartado do ambiente
social.

Neste momento, parte-se para a idealização de um percurso gerador de sentido


quadridimensional (ou pluridimensional), e cujas dimensões deem conta do iter dinâmico e
complexo da interpretação da realidade jurídica ante a realidade social.

11.2.1 O porquê de uma nova perspectiva para o percurso gerador de sentido

Inicialmente, deve-se ressaltar que o motivo em se formular uma nova imagem para o
modelo de interpretação do Constructivismo Lógico-Semântico se justifica pela necessidade de
alinhar todo o conteúdo dogmático desta Escola com a pluridimensionalidade que ela evoca nos
intérpretes, pelos seus textos. Diferentemente do gráfico apontado na Figura 1 deste trabalho,
264

relatado em formato bidimensional, acredita-se que ele não acompanha a arrojada idealização feita
por Paulo de Barros Carvalho o qual, ao identificar os planos (sintático, semântico e pragmático)
pelos quais se pode acessar a linguagem, que é o Direito, praticamente torna impossível que alguma
faceta não tenha sido devidamente retratada, não significando isso que o suporte atual existente
não possa ser aprimorado. Nessa medida, tal se coaduna com o deslumbramento expresso por Lenio
Luiz Streck (2014b, ll. 204-207), ao afirmar que apenas após se perceber que tudo se funda na
linguagem, nisto incluído o próprio direito, e que seu funcionamento também se dá por meio de
pressupostos linguísticos, é que se dá conta do potencial inovador dessa inovação para a Ciência,
para a Filosofia do Direito e para a própria Hermenêutica Jurídica.

Ainda mais, com a conclusão de que o Constructivismo Lógico-Semântico oferece “[...] a


aplicação de um sistema filosófico de base para [...] (III) a compreensão do fenômeno jurídico e a
interpretação de seus enunciados e para (IV) o processo de argumentação e conclusões jurídicas,
téoricas e práticas” (BEZERRA NETO, 2018, p. 106), e por tudo o quanto foi exposto até aqui
neste trabalho, não restam dúvidas da firmeza intelectual de suas elaborações nem das inúmeras
possibilidades para seu emprego no arrojos de uma teoria da argumentação e da decisão, por
exemplo361.

Outra perspectiva para uma nova idealização advém do intensivo caráter culturalista do
CLS, o que é identificado, no percurso gerador de sentido, com os chamados horizontes culturais
do intérprete. Esses representam balizas, ou limites (no sentido fraco do termo), com os quais irá
se deparar fatalmente todo aquele que busca construir o sentido do texto normativo. Assim, o
movimento evocado pela promulgação da Constituiçao Federal de 1988, que “gira o eixo” do
direito brasileiro de um viés privatista para um viés constitucionalista, resulta, no direito tributário,
em uma mudança na perspectiva tradicional de se realizar a interpretação jurídica, como se viu no
Livro I, potencializando os textos jurídicos por meio da voluptuosidade emanada dos valores.
Quanto a isso, não há novidades no CLS, que, inclusive, inaugura outro momento na Hermenêutica
Jurídico-Tributária brasileira, como se defende nesta tese.

361
Como foi realizado por Bianor Arruda Bezerra Neto (2018), em tese intitulada “O que define um julgamento e quais
são os limites do juiz?”, que aponta os elementos para construção de uma teoria da decisão.
265

Dessa maneira, para o CLS, o processo hermenêutico requer uma pré-compreensão de


quem se lança à atividade interpretativa que o faz verter, recorrentemente, um olhar sobre o
passado: contudo, o que existe além do presente? Absolutamente nada. O tempo passado faz parte
da memória, idealização do conteúdo de verdade individual, e acessá-lo parece ultrajar as leis
físicas, encontrando, contudo, reverberação na Teoria da Relatividade (Einstein362). Em sendo,
porém, interpretação jurídica, pode-se dizer que um rol documental363 faz as vezes dessa expressão
do passado, facilitando o acesso daquele que queira se debruçar sobre o fenômeno jurídico neste
momento.

11.2.2 Imagem pluridimensional do percurso gerador de sentido para o Constructivismo Lógico-


Semântico e o hiperplano do presente

Para guiar toda a estruturação que será empreendida neste momento, desde já se apresenta
o modelo, que pode ser utilizado no acompanhamento das descrições que se seguem:

362
O físico Stephen Hawking (2002, p. 142) afirma ser possível uma viagem no tempo, “[...] em uma região do espaço-
tempo onde há anéis de tempo, trajetórias que se movem abaixo da velocidade da luz, mas que, mesmo assim,
conseguem retornar ao local e tempo iniciais por causa da deformação do espaço-tempo”. Imaginando-se, contudo,
situações corriqueiras, a mente humana torna possível acessar o passado por meio das emoções, como ao se sentir um
cheiro ou um gosto que lembre a infância, ou uma música que evoque um grande amor. É um empreendimento
absolutamente fantástico e que pode ser “sentido” pelo intérprete em seu percurso gerador de sentido: cada um, de
acordo com seus valores, constituirá uma interpretação carregada de conteúdo emocional, justificando-se a
heterogeneidade e a infinitude de possibilidades interpretativas.
363
Aqui se faz lembrar do conjunto de decisões emanadas pelo Poder Judiciário, de tudo quanto possa ser identificado
como jurisprudência, bem como de manifestações do Poder Executivo e do Poder Legislativo, e que se materialize nos
textos.
266

Figura 2 – Modelo de espaço quadridimensional.

Começando pelo meio, isto é, por aquilo que se denominou de hiperplano do presente,
como ponto de intercessão do passado com o futuro364: é nesse “espaço-tempo” que se localiza um
“INTÉRPRETE-OBSERVADOR”, “criatura humana como entidade central” (CARVALHO,
2015, p. 41), “entidade constituída pela linguagem” (destacado) (CARVALHO, 2016a, p.
XVIII), que pretende percorrer uma trajetória interpretativa com vistas a inserir novo conteúdo
prescritivo ou a realizar novas proposições científicas acerca do Direito. Da mente deste
“INTÉRPRETE-OBSERVADOR”, não se pode dizer que se trata de tábula rasa, dado que o
processo de compreensão já carece de uma compreensão prévia das coisas e do mundo, a que se
chama de “pré-compreensão” (STRECK, 2014a), como se verá a seguir. No primeiro caso, para
uma visualização melhor, ter-se-ia um “INTÉRPRETE-LEGISLADOR365”; no segundo caso, um
“INTÉRPRETE-ESTUDIOSO”.

Essa cisão, contudo, que faz remontar à imagem construída por Kelsen no fatídico Capítulo
VIII de sua Teoria pura do direito, não significa trazer para este momento as características que

364
Tal modelo se coaduna à proposta de Tercio Sampaio Ferraz Junior (2014a), ao descrever o Direito sob a perpectiva
substantivada de algo que se “situaria” entre o passado e o futuro.
365
O caractere adjetivante de “legislador”, aqui enunciado, é tomado no sentido amplo do termo, compreendendo tanto
aquele que insere normas gerais e abstratas, quanto o que, ao resolver casos “concretos”, dispõe de competência para
exarar normas individuais e concretas. Entre ambos, um rol de outros indivíduos aptos a todas as conjugações possíveis
dessas categorias normativas (gerais e concretas e individuais e abstratas).
267

se julga, aqui, como incompatíveis com o movimento estabelecido pela Constituição de 1988.
Nessa medida, nem se pugna aqui pelo relativismo kelseniano, pelo qual o julgador poderia dizer
o que bem entendesse do caso levado à sua apreciação, dada a amplitude dos conteúdos semânticos
dos textos, nem se propugna a ideia de que a Ciência do Direito produzisse proposições que se
relacionem de maneira estritamente lógico-formal (STRECK, 2014, p. 35), como se verá a seguir.

Esse hiperplano do presente, no entanto, contém substratos múltiplos, e que são utilizados
na tarefa hermenêutica a depender da finalidade almejada pelo intérprete: se é de um
INTÉRPRETE-LEGISLADOR, em sentido estrito, além do manancial de documentos
normativos366 vigentes, que será mais bem detalhado a seguir, com a Dimensão S1, será
fundamental saber colher a realidade social, aqui tomada como o contexto no qual se insere: ambos
serão interpretados e, em um processo de positivação, novo conteúdo normativo será acrescido ao
sistema. Nessa medida, elementos pré-jurídicos, políticos e sociais ganham configuração reforçada
e influem decisivamente no conteúdo final formatado. Dessa forma, textos jurídicos novos surgem
ou são atualizados.

Se é um INTÉRPRETE-LEGISLADOR em sentido amplo, “cuja interpretação consiste em


propor ou em decidir, atribuindo a uma determinada expressão um determinado significado com
preferência de todos os outros” (GUASTINI, 1999, p. 203)367, identificado com o aplicador do
direito, sua tarefa será a de aplicar o direito levando em conta o substrato discursivo das partes, o
direito posto legislado, seja nas normas de caráter geral e abstrato, seja por meio das sentenças368
que exara, formando o corpo da jurisprudência369, a significação da regra-matriz de um novo tributo

366
Aqui se faz rememorar José Souto Maior Borges (2015, p. 38) para quem “a forma é uma escrava do conteúdo.
Só quando ela se mostra idônea para explicá-lo, ou seja, descrever congruentemente o sentido normativo objetivo de
um preceito, demonstrando-lhe a compatibilidade intrassistemática, é que o teste confirmará provisoriamente a teoria
formal. Portanto, o formal tem para o material um valor jurídico apenas metodológico. Valor que se caracteriza
estritamente pela sua idoneidade para solucionar problemas de interpretação e aplicação do Direito.”
367
Tradução livre do seguinte fragmento: “2) Interpretación-decisión. Otras veces, em cambio, la interpretación
consiste em proponer o em decidir atribuir a uma determinada expresión un determinado significado con preferencia
sobre otros. La ‘interpretación-decisión’ [...] es una estipulación”. (destacado) (GUASTINI, 1999, p. 203).
368
É muito interessante lembrar, com Tercio Sampaio Ferraz Jr (2016, p. 274), que “a palavra sentença, pela qual se
pronuncia o juízo, tenha relação com sentir. Ou, como assinala Couture [...], o sentimento é o conteúdo da sentença,
‘originariamente é algo que foi sentido, daí seu nome sentença’, que não se confunde com o documento que temos em
mãos, prolatado pelo juiz”.
369
Tem-se por inquestionável que os juízes “criam novo direito” ao exercerem suas atividades. Contudo, ainda que o
façam, fundamentam-se no direito posto que, em tese, não tem condição de reconhecer todas as possibilidades factuais
pretendidas (DWORKIN, 1999).
268

(GAMA, 2011), os quais também são permissivos, especialmente pela utilização de princípios, ao
contexto. Nesse ponto, dado que não é sujeito isolado do resto da comunidade, ainda é sensível a
elementos pré-jurídicos e políticos, por exemplo, mas que só serão admitidos caso consigam
fundamentação adequada conforme linguagem preordenada do direito.

Já se o caso é de um INTÉRPRETE-ESTUDIOSO, a sua atividade intelectual margeia-se


pelos textos legislados cujos signos produzem texto doutrinário descritivo (GAMA, 2011;
GUASTINI, 1999370) e pode-se utilizar de outros conteúdos dogmáticos371, sempre com o intuito
de expor a(s) interpretação (ões) possível(is) em determinado ordenamento, quer apreciando-o sob
uma feição estática ou no seu aspecto dinâmico (CARVALHO, 2015, p. 42). Identicamente ao ora
exposto, a intertextualidade interna e externa, já esclarecidas anteriormente, podem permitir
construções arrojadas e que impõem nova dinâmica à maneira de se enxergar um mesmo texto
jurídico.

Nessa medida, a atividade deste intérprete não é cingida exclusivamente aos conteúdos
semânticos, quando busca estabelecer as diversas interpretações possíveis para determinado texto,
dado que interessa prestigiar, também, a dimensão pragmática: “[...] o texto é inseparável de seu
sentido; textos dizem sempre respeito a algo da facticidade; interpretar um texto é aplicá-lo; daí a
impossibilidade de cindir interpretação de aplicação” (STRECK, 2014, p. 227).

E aqui se revolve a um ideal de neutralidade, que nasce junto com a própria Ciência do
Direito, como já visto em passagens anteriores deste escrito: sob o rótulo de ciência, pretende-se
incluir as abordagens possíveis para questionamentos acerca de determinada problemática
envolvendo o fenômeno jurídico. Nessa medida, conta-se muito mais com dúvidas do que com
certezas. Diferentemente disso, tem-se a postura de “pseudojuristas” que, a pretexto de fazer

370
Literalmente, assim se manifesta Riccardo Guastini (1999, p. 203): “1) Interpretación-conocimiento. A veces, em
efecto, la interpretación consiste en conocer – es decir, en determinar y describir – o em conjeturar el significado o los
significados de una expresión determinada. La ‘interpretación-conocimiento’ (si así convenimos en llamarla) es
absolutamente análoga a la definición lexicográfica”. Aqui vale citar que, dada a identidade entre os estudiosos, para
o desenvolvimento do seu trabalho, Tácio Lacerda Gama (2011) desenvolveu um subcapítulo específico, denominado
“6.5 Elementos de sentido IV – instrumentos para a precisão do discurso”, em que trabalha com as diferenciações entre
definições estipulativa, lexicográfica, denotativa e conotativa”, amplamente utilizada por Guastini (1999).
371
Conforme defende Paulo de Barros Carvalho (2013b, p. XIX), atualizando os seus contéudos dogmáticos anteriores,
“[...] a matéria de que se ocupa a Ciência do Direito não é, somente, o conjunto das normas positivadas pelos órgãos
do sistema, mas tudo começa no encontro com os enunciados inscritos nos documentos prescritivos”.
269

ciência, utilizam-se de argumentos de autoridade que nitidamente defendem a existência de uma


só via possível na complexa realidade jurídica, o que, semântica e pragmaticamente, é impossível
de se erigir.

11.2.3 A pré-compreensão como a dimensão anterior ao hiperplano presente e integrante do


percurso gerador de sentido

A seguir, feitas breves asserções acerca do hiperplano presente, potencializa-se a


importância da pré-compreensão, ocupando uma dimensão própria e infinita no processo
hermenêutico: antes do próprio texto, o intérprete já chega com seu mundo, que também é infinito,
permeado de seus valores e crenças, e que certamente impregnarão a sua atividade, que o antecede
e que possibilita o seu desenvolvimento (CARVALHO, 2015, p. 135), o que se faz pela fixação de
seus horizontes culturais, o que pressupõe uma instância no tempo passado.

A todo instante, o intérprete se vê obrigado a lançar visão retrospectiva, recuperando


fundamentos, tendo em vista que o direito se configura em objeto cultural, o que define o
dinamismo do modelo (CARVALHO, 2013a, p. 181). Aqui, a pré-compreensão aparece como algo
por demais relevante no processo hermenêutico. A assunção desta dimensão no percurso gerador
de sentido não se faz sem fundamentado arcabouço filosófico: nesse ponto, as considerações de
Streck (2014b), na esteira de Gadamer372 e de Heidegger, sedimentam o terreno para uma melhor
construção Hermenêutica Jurídico-Tributária.

Nessa medida, representa aproximação com um outro giro, este agora, ontológico-
linguístico, sem qualquer conexão com uma acepção ligada a subjetivismos e endossando a postura
antirrelativista gadameriana (STRECK, 2014b), “[...] a partir de estruturas prévias que
condicionam e precedem o conhecimento” (STRECK, 2014b, l. 6251): “[...] para interpretar
necessitamos compreender; para compreender, temos de ter uma pré-compreensão, constituída de

372
Como adverte Eduardo Bittar (2005, p. 183), Gadamer define a “idéia [sic] de que a compreensão está recheada de
‘pré-conceitos’, proto-idéias [sic] formadas a partir de experiências e vivências que ocupam o espaço da compreensão
e condicionam a aproximação de todo hermeneuta de um objeto do conhecimento, de todo leitor de um texto”.
270

estrutura prévia de sentido (Vorhabe), visão prévia (Vorsicht) e concepção prévia373 (Vorgriff) –
que já une todas as partes do ‘sistema’.” (destacado no original) (STRECK, 2014b, l. 6754-6757).

Concede-se uma pausa para tais horizontes culturais: ao apontar para eles, como limites à
interpretação e à geração de sentido, Paulo de Barros Carvalho (2013a; 2015) parece construir um
modelo que se harmoniza com aquele idealizado por Tercio Sampaio Ferraz Jr (2014a), mediante
o qual, sob a óptica do tempo, é traçado o vetor da interpretação com vistas à aplicação374: a norma
funciona como uma determinação imputativa do presente, como a antecipar o futuro mediante a
conduta do passado, o que obriga o intérprete a “ler” a norma não apenas com base nos seus
próprios valores e ideologias, mas a partir dos valores e das ideologias inerentes à própria norma375:
aqui se “localizam” os pontos de partida do intérprete, e que são os fins, os valores e a manutenção
ou busca dos bens jurídicos essenciais à realização desses fins e preservação desses valores
(ÁVILA, 2010, pp. 34-35).

Isso faz conexão com o quanto foi dito acerca de Schleiermacher ao início deste trabalho,
quando este remete antecipar o sentido do texto melhor do que o faria o seu próprio autor, bem
como com Gadamer (2014, p. 272), quando este assinala que “[...] quem quiser compreender um
texto, realiza sempre um projetar”.

A identidade dos modelos ainda é demonstrada ao se enaltecer essa descontinuidade, dado


que o vetor do tempo é deslocado do futuro para o passado e vice-versa, o que, em Paulo de Barros
Carvalho, faz apontar para a ocorrência do percurso gerador de sentido tantas vezes quantas o

373
Fundando-se no próprio Heidegger (2015, pp. 211-212): “A interpretação de algo como algo funda-se,
essencialmente, numa posição prévia, visão prévia e concepção prévia. A interpretação nunca é apreensão de um dado
preliminar, isenta de pressuposições. Se a concreção da interpretação, no sentido da interpretação textual exata, se
compraz em se basear nisso que ‘está’ no texto, aquilo que, de imediato, apresenta como estando no texto nada mais é
do que a opinião prévia, indiscutida e supostamente evidente, do intéerprete. Em todo princípio de interpretação, ela
se apresenta como sendo aquilo que a interpretação necessariamente já ‘põe’, ou seja, que é preliminarmente dado na
posição prévia, visão prévia e concepção prévia”.
374
Como afirma Gustavo Just (2014, p. 28), “a aplicação é atualização”, pois “é a partir de questões atuais, e em função
delas, que o intérprete interroga o seu objeto”.
375
Vale transcrever o exemplo ofertado por Ferraz Jr (2014a, p. 21), para facilitar a compreensão: “Em termos
temporais, a ordem normativa positiva é determinação (imputativa) do presente do sujeito por meio da possibilidade
futura de ele se mostrar contra o seu passado (por exemplo, ser rebelde e não dirigir bêbado). Ou, em outras palavras,
o tempo normativo corre às avessas: do futuro para o passado! Entenda-se: mediante imputação, a conduta no passado
cronológico (matar alguém) tem o sentido de um futuro (sancione-se o ato de matar alguém) mesmo antes de alguém
matar alguém. O tempo da imputação corre do futuro para o passado”.
271

intérprete assim carecer, acontecendo esse movimento em caráter incessante, sem que haja um
ponto final no labor hermenêutico. E isso mais uma vez faz lembrar Gadamer (2014, p. 274), para
quem

Aquele que quer compreender não pode se entregar de antemão ao arbítrio de


suas próprias opiniões prévias, ignorando a opinião do texto da maneira mais
obstinada e consequente possível – até que este acabe por não poder ser ignorado
e derrube a suposta compreensão. Em princípio, quem quer compreender um
texto deve estar disposto a deixar que este lhe diga alguma coisa. Por isso, uma
consciência formada hermeneuticamente deve, desde o princípio, mostrar-se
receptiva à alteridade do texto. Mas essa receptividade não pressupõe sem uma
“neutralidade” com relação à coisa nem tampouco um anulamento de si mesma;
implica antes uma destacada apropriação das opiniões prévias e preconceitos
pessoais.

Diante de tudo isso, o reconhecimento da convergência não apenas dos horizontes culturais
em que está imerso o intérprete376, mas também de fatos de fundo ideológico e psicossocial, além
de “[...] interesses imediatos e mediatos envolvidos na tomada de decisão interpretativa”
(CARVALHO, 2011, p. XVIII), tudo isso para qualificar ainda mais o “caldo” hermenêutico. Nessa
medida, a oportunidade de se promover essa pré-compreensão com base em outros discursos, com
uma abertura inclusiva e dialética ao diálogo processual ou, mesmo em se tratando da Ciência do
Direito, às diversas correntes que enxergam o mesmo fenômeno, em uma intensa troca de opiniões.

Assim, imaginar-se o processo hermenêutico importa romper com a realidade, tendo em


vista que o pensamento não encontra limites físicos para alcançar o sentido que se almeja:
reconhece-se que “toda vez que me aproximo de um objeto, não o conheço, simplesmente, mas já
o interpreto” (BITTAR, 2005, p. 183)377. Nessa medida, onde estará esse sentido? Jamais se pode
olvidar que a linguagem que verterá o resultado desse processo interpretativo nada mais opera do
que reduzir a potencialidade do pensamento, este sim absolutamente indescritível e impossível de
ser minudentemente estruturado. Veem-se apenas sombras.

376
Tácio Lacerda Gama (2011, p. 184), ao evidenciar os dois eixos fundamentais para a construção de sentido (texto
e contexto), identifica este como uma pesquisa externa ao texto, pela qual se “busca apreender os fatores que podem
influenciar as relações de significação, marcadamente naqueles pontos que têm a ver com os valores aceitos e
praticados num grupo social”.
377
Nessa mesma toada, identifica Eduardo Bittar (2005, p. 186) o conceito de experiência hermenêutica, pelo qual a
interpretação e a hermenêutica são o próprio modo de existir do ser, o “viver como um continuum interpretativo”, de
que já se falou linhas atrás.
272

Após o reconhecimento da inevitabilidade do “dado” da compreensão, parte-se à Dimensão


S1 propriamente dita, a qual configura uma instância que, antes de se delimitar por uma fatalidade
ínsita à literalidade, também é constituída com base na pré-compreensão.

11.2.4 As Dimensões S1, S2, S3 e S4: voltando ao hiperplano presente e permitindo a circularidade
hermenêutica

Tudo o quanto foi disposto neste capítulo representa apenas um modo de objetivação da
realidade, por meio da idealização de um intérprete situado em um espaço-tempo delimitado, e que
tem diante de si um texto normativo. Conforme já se asseverou, a única coisa de que dispõe o
homem é do tempo presente, sendo este instante o limite que o separa do passado, com sua herança
cultural, bem como do futuro. Assim, é a realização de uma operação mental extremamente
complexa: busca arranjar dimensões distintas (passado-futuro, cultura-interpretação), com vistas à
construção de sentido.

Em todos os casos, toma-se a Dimensão S1, que materialmente falando é formada pelo
conjunto de suportes físicos, de textos legislados vigentes, “sinal linguístico” (CANOTILHO,
2003, p. 1218), mas não apenas378, em um determinado país. Apenas é a “porta de entrada”, “único
e exclusivo dado objetivo” (CARVALHO, 2015, p. 113) para que se possa, ao final, alcançar a
integralidade do sistema jurídico. Concebido o texto, porém, como plano da expressão, não se pode
olvidar que, especialmente, se trata do percurso gerativo de sentido realizado pelo aplicador do
direito, este normalmente não desconsidera o conteúdo dogmático da matéria, espraiado nos textos
da Ciência do Direito, que podem ser utilizados como fundamentos de suas decisões.

Da mesma forma, ainda que mais incomum, o legislador também pode se valer, no conteúdo
da matéria legislada, de categorias dogmáticas, de “símbolos científicos” (CARVALHO, 2015, p.
36), o que representa uma interpenetração da Ciência do Direito no Direito Positivo, configurando

378
É importante deixar claro, ainda, que mesmo a utilização de normas já revogadas no ordenamento, pode ser de
grande valia para o intérprete. Imagine-se o caso de uma elaboração que vise a enaltecer aspectos históricos de
determinado instituto jurídico. Nessa medida, longe da se firmar apenas nos diplomas vigentes, aquele que busca
compreender pode se aventurar por outros planos, tentando compreender a modelagem normativa que veio se seguindo
ao longo do tempo. Identicamente, mesmo para o aplicador do direito, este pode ter de resolver situações relativas a
fatos jurídicos constituídos sob a vigência de outras legislações, como se daria em uma análise presente (em 2018), de
um fato gerador do ITCMD ocorrido em 2012, no Estado do Ceará: regendo esse fato estaria a Lei nº 13.417, de 2003,
que foi revogada pela Lei nº 15.812, de 2015.
273

um conceito de norma jurídica em sentido amplo. Como exemplo, podem ser citados alguns textos
normativos do Estado do Ceará, em que se faz menção à regra-matriz de incidência normativa, que
é uma categoria descritiva da Ciência do Direito Tributário brasileira. Dentre todos, cite-se o
Decreto nº 32.489, de 8 de janeiro de 2018379, no qual se lê:

DECRETO N.º 32.489, DE 08 DE JANEIRO DE 2018.


DISPÕE SOBRE A SUBSTITUIÇÃO TRIBUTÁRIA NAS OPERAÇÕES
INTERNAS, INTERESTADUAIS E DE IMPORTAÇÃO COM MASSAS
ALIMENTÍCIAS, BISCOITOS, BOLACHAS, BOLOS, PÃES E OUTROS
DERIVADOS DA FARINHA DE TRIGO.
O GOVERNADOR DO ESTADO DO CEARÁ, no uso das atribuições que lhe
conferem os incisos IV e VI do art. 88 da Constituição Estadual,
CONSIDERANDO a necessidade de estruturar toda a legislação interna relativa
à substituição tributária, propiciando a completa configuração do fato gerador
do ICMS, em obediência aos critérios estabelecidos em sua regra-matriz de
incidência tributária;
DECRETA:
Art. 1º Nas operações interestaduais, internas e de importação com os produtos
alimentícios derivados da farinha de trigo ou de sua mistura a outros produtos,
classificados nos Códigos Especificadores da Substituição Tributária – CEST
constantes do Anexo Único deste Decreto, fica atribuída ao fabricante, ao
importador, ao adquirente ou ao destinatário, na qualidade de substituto tributário,
a responsabilidade pela retenção e recolhimento do ICMS devido nas operações
subsequentes. (destacado)

Nessa medida, como já defendido por Paulo de Barros Carvalho (2011), ao discutir acerca
da natureza jurídica do Preâmbulo na Constituição Federal, os “Considerandos” dos decretos, por
integrarem o texto final, possuem conteúdo prescritivo, o que bem demonstra a interpenetração do
direito positivo com a Ciência do Direito há pouco discutida. Também é interessante o exemplo
ofertado por Lenio Luiz Streck (2016) acerca da inserção dos requisitos da coerência e da
integridade, que não estavam na redação proposta originalmente para o Novo Código de Processo
Civil, em seu art. 926380, e que é fruto de ampla discussão dogmática na escola da Crítica

379
Disponível em: http://www.sefaz.ce.gov.br/Content/aplicacao/internet/Legislacao_Download/gerados/legislacao
_2011.asp. Acesso em 21 fev. 2018.
380
Como afirma André Karam Trindade (2016, pp. 17-18), “é possível afirmar que o novo Código de Processo Civil
inaugurará uma nova etapa do direito processual brasileiro. Isso porque, ao suprimir o livre convencimento, ao
delimitar os elementos de uma fundamentação válida (art. 489, §1º) e, sobretudo, ao exigir que os tribunais mantenham
a jurisprudência estável, coerente e íntegra (art. 926), o legislador promoveu uma revolução paradigmática no modo
de produção das decisões jurídicas. [...] Desse modo, a coerência e a integridade ingressam de uma vez por todas no
ordenamento jurídico brasileiro do Direito, buscando concretizar a igualdade e, assim, reforçar a força normativa da
Constituição. Tais exigências, aliadas à estabilidade, aumentam a responsabilidade política dos juízes, na medida em
que representam a antítese do voluntarismo”.
274

Hermenêutica do Direito: nessa medida, a partir de fundamentos apresentados por este Jurista, o
Parlamentar relator da matéria, deputado Paulo Teixeira, promoveu a interprenetração de uma
categoria dogmática com a novel legislação, seguindo, por óbvio, os trâmites legislativos
adequados381. Assim, de proposta da Ciência do Direito, os requisitos da coerência e da integridade
passaram a configurar conteúdo normativo em sentido amplo.

No que concerne à Dimensão S2 (ou Plano S2 no percurso gerador de sentido), é o “[...]


conjunto dos conteúdos de significação dos enunciados prescritivos” (CARVALHO, 2015, p. 116),
obtido com base nos textos constantes da Dimensão S1, o que faz ingressar no plano do conteúdo,
superando a forma (S1): nesse ponto, emerge a porção proposicional, isto é, “[...] a substância
significativa que se pode adjudicar à base material que lhe dá sustentação física” (CARVALHO,
2015, p. 116). Aqui se faz lembrar, em Aristóteles (2013, p. 3), as chamadas “afecções da alma”, e
que poderiam “abarcar os significados das coisas em seus limites, a imagem, o pensamento, os
estados da alma (sentimentos) (MATA, 2013, p. 77), consagrados no Plano S2, dos significados.

No pertinente a essa Dimensão S2, vale fazer um acréscimo: os conteúdos de significação


propostos na trajetória de interpretação, dado que se considera a essencial função do contexto e da
pré-compreensão, em um caráter dinâmico e complexo, mais se alia à ideia de “tema”, em Bakhtin
(2014), do que propriamente de significação. Como defende o Filósofo russo (2014, p. 134):

O tema da enunciação: “Que horas são?”, tomado em ligação indissolúvel com a


situação histórica concreta, não pode ser segmentado. A significação da
enunciação: “Que horas são?” é idêntica em todas as instâncias históricas em que
é pronunciada; ela se compõe das significações de todas as palavras que fazem
parte dela, das formas de suas relações morfológicas e sintáticas, da entoação
interrogativa. O tema é um sistema de signos dinâmico e complexo, que procura
adaptar-se adequadamente às condições de um dado momento da evolução. O
tema é uma reação da consciência em devir ao ser em devir. A significação é
um aparato técnico para a realização do tema. Bem entendido, é impossível
traçar uma fronteira mecânica absoluta entre a significação e o tema. Não há
tema sem significação, e vice-versa. Além disso, é impossível designar a
significação de uma palavra isolada [...] sem fazer dela o elemento de um
tema, isto é, sem construir uma enunciação, um “exemplo”. Por outro lado, o
tema deve apoiar-se sobre uma certa estabilidade de significação; caso

381
O transcurso dessa alteração do Código de Processo Civil é noticiado pelo próprio Lenio Luiz Streck, em artigo
publicado no CONJUR. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2014-dez-18/senso-incomum-cpc-mecanismos-
combater-decisionismos-arbitrariedades. Acesso em 21 fev. 2018.
275

contrário, ele perderia seu elo com que precede e o que segue, ou seja, ele perderia,
em suma, o seu sentido.

Nessa medida, partindo-se de uma construção de sentido por um intérprete situado


historicamente e que se debruça diante de textos jurídicos envoltos em contextos distintos de
criação, a busca da significação na Dimensão S2 realiza-se de modo bem mais complexo,
instaurando uma ordem dinâmica e que se adapta às condições de um dado momento do direito
positivo e da Ciência do Direito.

Para fechar esses novos contornos ao Plano S2, pela análise da dimensão que se segue,
pode-se dizer que “[...] para o ponto de vista dialético e dialógico de Bakhtin, a palavra não é uma
unidade ‘neutra’, uma forma abstrata da língua à espera de um falante que individualmente atualize
seu sentido e a faça renascer para o fluxo contínnuo da linguagem” (CEREJA, 2013, p. 203), sendo
sempre “interindividual” e aglutinadora de todas as vozes do passado e do presente (CEREJA,
2013). Nessa medida, buscar as significações dos textos contidos na Dimensão S1 representa mais
do que a realização de uma análise combinatória de todas as significações possíveis de cada um
dos termos: como Paulo de Barros Carvalho não deixa esquecer, todo esse movimento é margeado
pelos horizontes culturais do intérprete, o que, neste trabalho, possui uma amplitude incomum na
construção do sentido.

No que concerne à Dimensão S3, em que para o CLS representa “[...] o conjunto articulado
das significações normativas – o sistema de normas jurídicas stricto sensu” (CARVALHO, 2015,
p. 120) pode fazer uma observação, relativa ao contexto: este permeia todo o processo gerador de
sentido, na medida em que se compreende que não há texto sem contexto. Assim, a “promoção da
contextualização” que parece ser um traço acentuado no Plano S3, é medida que já ocorre nos
outros planos, com vistas a se poder constituir a unidade mínima e irredutível de manifestação do
deôntico com sentido completo.

Nessa medida, seu objetivo é confrontar os temas (ou as significações em seu aspecto mais
ampliado) obtidos na Dimensão S2, os quais já vêm carregados de conteúdos axiológicos, inerentes
às próprias palavras contidas nos textos normativos, “[...] outorgando unidade ideológica à
conjunção de regras que, por imposição dos próprios fins regulatórios que o direito se propõe
implantar, organizam os setores mais variados da convivência social” (CARVALHO, 2015, p.
276

122). Nesse ponto, sem representar um conteúdo hermético, inacessível aos valores, a
Hermenêutica Jurídico-Tributária aqui representada manifesta intensa evidenciação da carga
valorativa, o que sempre foi defendido por esta Escola. Ainda mais, na esteira de José Renato
Camilotti (2018, p. 35), que a construção da norma está inserida em um contexto mais amplo de
comunicação, e é expressão da contextualidade, o que faz surgir um intenso pragmatismo.

Por fim, o Plano S4 do CLS, de “organização das normas construídas no nível S3”,
estabelecendo os “[...] vínculos de coordenação e de subordinação que se estabelecem entre as
regras jurídicas” (CARVALHO, 2015, p. 123), dá lugar à Dimensão S4, a qual representa um
campo infinito de possibilidades hermenêuticas, dada a pujança de conteúdos de que dispõe. Nessa
dimensão, o papel do intérprete é fundamental: é do conhecimento de que este dispõe que será
possível a estruturação de um conjunto mais ou menos amplo.

Tal dimensão faz reverberar a existência de um “[...] conjunto autorreferencial, ou seja,


como um domínio que se autoconstitui em um processo dialético interno”. Aqui, um olhar que
permita múltiplas possibilidades construtivas advém da compreensão desse processo dialético
interno como resultado de uma ampla dialética promovida antes, durante e após a trajetória de
interpretação do indivíduo, dada a importância, para o CLS, da pluralidade discursiva. Além disso,
em razão do caractere da alteridade, enfatizado no CLS, não se pode esquecer que ao trajeto
construído por uma determinada hermenêutica juntar-se-ão outros trajetos, que propiciarão a fusão
de horizontes pretendida no discurso dialógico (BAKHTIN, 2003): “os sujeitos capazes de falar e
agir aprendem no decorrer da socialização as práticas fundamentais de seu modo de vida e o
correspondente saber relativo às regras” (HABERMAS, 2004, p. 25).

Nesse ponto, sem flagrar um momento hermenêutico estruturado com base em argumentos
de autoridade, impermeáveis a “outras verdades, caracteriza-se o CLS por uma tomada de posição
rigorosa no sentido de aceitabilidade de discursos opostos, estabelcendo um sistema mais
estruturado e cujo caráter da alteridade é enaltecido.

Com tudo isso, para o Constructivismo Lógico-Semântico a atividade interpretativa é


sempre construtiva, como o próprio nome denuncia (CARVALHO, 2018), cabendo ao intérprete
atribuir os sentidos com base em uma fusão contínua dos horizontes (STRECK, 2014b, l. 6749-
6752) o que, figurativamente, é retratado neste percurso pluridimensional.
277

Por fim, mas não menos importante, traz-se uma observação sobre essa idealização: a
trajetória de interpretação, sem representar a divisão em partes do processo de interpretação,
denunciada por Streck (2014b, ll. 6745-6747) como contrária ao pensamento de Gadamer, como
se fossem momentos estanques, visa apenas a, essencialmente, criar uma imagem de algo que, até
mesmo pelas palavras, muitas vezes é difícil de descrever. Nessa medida é que se optou aqui por
modelos mais arrojados de imagens, dada a complexidade ínsita ao universo que cada intérprete
representa, em sua busca incessante em construir aquilo que se denominou de Direito.

CONCLUSÃO
Promover a interpretação jurídico-tributária é tarefa das mais complexas com as quais se
depara o estudioso do direito. E a promoção de medidas simplificadoras dessa atividade, sempre
vem acompanhada de uma profunda parcialidade na análise e de resultados que podem parecer
frustrantes: ainda quando se queira promover abordagens o mais completas possível, a marcha da
interpretação é sempre parcela diante de um universo de possibilidades. Sob a dinâmica dessa
(in)certeza foram identificados dois movimentos distintos na Hermenêutica Jurídico-Tributária
brasileira.

O primeiro deles, denominado aqui de “passado que ainda se faz presente”, possui uma data
de “inauguração” e que corresponde à entrada em vigor do Código Tributário Nacional. Dado o
caráter de longevidade que alcançou esse diploma, ainda vigente no direito brasileiro, pode-se dizer
que o mesmo ainda caracteriza os tempos atuais, o que se faz pela aceitação de que este movimento
“ainda é presente”.

O “ainda”, contudo, tem um caráter de lamento que o encobre: e tal se dá pois não se trata
de uma crítica ao CTN em si, mas a todo um modelo de interpretação das normas jurídico-
tributárias que já poderia ter sido superado por paradigmas que respondam, de modo mais
adequado, aos problemas postos pela sociedade (com um viés que inclui estudiosos do direito,
contribuintes, entes políticos instituidores de tributos, julgadores em sentido lato, dentre outros).
Assim, identifica-se uma dinâmica que, na prática, não atendeu aos reclamos de certeza e de
278

segurança que a utilização de métodos poderia conduzir, especialmente se se tratar da confusa


realidade normativa do ICMS.

Como se viu, a identificação desse “passado” não se conecta a critérios de ordem


cronológica propriamente dita. Longe disso, pensar em algo que estaria situado no passado e no
presente ao mesmo tempo, faz ressoar uma característica desse movimento paradigmático no
direito tributário: o CTN emerge como um dos primeiros documentos normativos no
desenvolvimento científico do Direito Tributário e promove, especificamente no que concerne à
Hermenêutica Jurídico-Tributária, um disciplinamento exaustivo e com pretensões de solucionar
de forma ótima as situações intrincadas relativas à complexa dinâmica relativa à incidência
tributária.

Não se pode descurar, contudo, que é um código anterior à CF/88, composto por estruturas
que têm viabilizado a manutenção de suas “vigas-mestras” nas manifestações das autoridades
administrativas, da doutrina e da jurisprudência, e que tem influenciado a renovação da legislação
tributária. Tais manifestações, contudo, em alguns casos, revelam-se incompatíveis com o sistema
tributário nacional a ser estruturado pós-CF/88.

No que concerne ao ICMS, apesar de ser a exação parcialmente nova na CF/88382 do ponto
de vista da sua materialidade, não se pode olvidar que seus contornos básicos já se encontravam
previamente traçados na figura do ICM. Não se descure, ainda, que apresenta um modelo de
sujeição ativa sui generis, ao permitir que entes distintos recebam uma competência tributária
individual e, ao mesmo tempo, compartilhada, em um caráter nacional que já foi vislumbrado tanto
por parte da doutrina especializada, quanto pela jurisprudência. Nesse subsistema relativo ao
ICMS, não se pode esquecer da figura problemática da Lei Complementar nº 24, de 1975,
recepcionada pela nova ordem constitucional, e que articula deficitariamente os caracteres relativos
às concessões de benefícios e incentivos fiscais em sede de ICMS, por meio de deliberações dos
entes federativos no âmbito do CONFAZ.

382
Se se tomar, obviamente, o conjunto das materialidades insertas no Texto Maior. Isso porque, como já se abordou,
este ICMS é apenas o somatório de tributos já existentes no ordenamento, mas que eram de competência de outros
entes.
279

O primeiro momento hermenêutico da legislação tributária revela-se com base em uma


interpretação que busca “extrair” o conteúdo dos textos. Na jurisprudência, isso se manifesta pela
adoção de fundamentações situadas em uma pretensa “vontade do legislador” (aqui, vide o caso do
IPVA, em que o STF edifica um julgamento com base na pretensa vontade do legislador
constitucional, ao afirmar que esse imposto teria sido criado em substituição à antiga Taxa
Rodoviaria, o que leva ao desprezo do conteúdo semântico das palavras contidas no Texto
Constitucional, que evidenciam a competência a ser exercida pelos Estados e DF) ou mesmo da
“vontade da lei”, sob uma perspectiva objetivista, que permitiria uma incursão nos institutos de
Direito Privado, por exemplo, para conseguir definir as competências tributárias, em uma inversão
do vetor interpretativo promovida pelo art. 111 do CTN.

Além disso, por parte da doutrina e com base em dispositivos do CTN, edificam-se métodos
distintos, com base nos quais se pode dizer praticamente tudo o que se quiser em matéria de
descrição do contéudo das normas tributárias ou, ainda mais, chegar-se a elaborar qualquer
manifestação jurisprudencial.

Desse modo, a interpretação literal, que é a que melhor simboliza esse “passado que ainda
se faz presente”, é expediente retórico que serve para curar qualquer “mal estar” na legislação
tributária: tanto é utilizada para restringir o alcance de benefícios fiscais (veja-se o exemplo do
leite in natura, constante nas cestas básicas do Estados, aos quais é aplicável uma carga tributária
minorada), o que seria favorável ao Estado em termos de arrecadação, quanto para ampliar a própria
redação constitucional (no caso do RE nº 593.849, pelo qual onde se lê na CF/88 que a restituição
do ICMS ST é cabível “caso não se realize o fato gerador presumido”, entenda-se: “‘caso não se
realize o fato gerador presumido” e “caso se realize o fato gerador presumido por um valor maior
do que o fato gerador real’”.

Associado a isso, a sedimentação de uma doutrina que, no plano desse “passado que ainda
se faz presente”, ainda é dominante por um “viés de tradição meramente expositiva, fincada em
argumentos de autoridade, como garantia, quase que exclusiva, da procedência dos enunciados”.
Assim, embora direcione o intérprete para uma interpretação chamada tradicional, mesmo diante
de novas possibilidades hermenêuticas, o texto normativo do CTN promoveu sempre giros
hermenêuticos dentro de estruturas tradicionais.
280

Isso evidenciou uma parca permissibilidade a novas correntes interpretativas, bem como à
própria evolução da disciplina. Tal corrente doutrinária, ao afirmar maneiras fatais de enxergar o
dado jurídico (“o art. 50 do CTN deve ser interpretado da seguinte forma: [...]”), chega mesmo a
negar as possibilidades reconhecidas por Hans Kelsen, ao falar em uma moldura interpretativa
como um universo de respostas distintas que se pode chegar de um mesmo texto ou de uma
combinação de textos legislados.

Por fim, pertinente ainda ao Livro I, percebeu-se que essa presença do passado ainda
contamina uma parte da atuação das administrações tributárias, especialmente quando demonstram
um apego excessivo a atos infralegais, em detrimento do estabelecimento das relações de
coordenação e de subordinação das normas jurídicas, o que faz concetar-se ao conceito de sistema
jurídico. Na doutrina, como se viu, o “passado que ainda se faz presente” revela-se pela repetição
de fórmulas prontas e acabadas extraídas do CTN, sem que se vislumbrem as imensas
possibilidades ofertadas pela CF/88. Na jurisprudência, por fim, ao se servir de uma doutrina que
desconhece as complexidades do processo hermenêutico, bem como de precedentes que não
confrontaram com firmeza os institutos basilares para a incidência jurídico-tributária, a exemplo
da análise empreendida pelo STF sobre o conceito constitucional de mercadoria, mostrou-se o
quanto pode se desgarrar de uma análise profunda e pertinente, que esgote, ao menos sob essa
perspectiva, toda a largueza decorrente do texto relativo ao Sistema Tributário Nacional (CF/88).

Já no que se refere ao “futuro que já se faz presente” este possui características que lhe são
peculiares e que o diferenciam daquel’outro, descrito no Livro I deste trabalho, e pelo qual fica
caracterizada a Hermenêutica Jurídico-Tributária tradicional brasileira. Assim, pelas perspectivas
abertas pelos estudos desenvolvidos por Paulo de Barros Carvalho, na esteira de fundamentos
dogmáticos-filosóficos de Lourival Vilanova, escolheu-se a obra “Direito Tributário: fundamentos
jurídicos da incidência”, publicada em 1997, como caracterizadora desse movimento futurista na
interpretação jurídico-tributária, o que se revela por alguns traços característicos.

Como primeiro traço desse futuro que se instalou há cerca de 21 anos, tem-se uma com
traços de positivismo analítico, mas que, em virtude da sua concepção culturalista e do acesso à
semiótica, faz nela ressoar diversas outras perspectivas que seriam fundamentais para enfrentar as
complexidades atualmente encontráveis no fenômeno tributário, e que estavam adormecidas em
281

uma linguagem aparentemente simples e com diplomas que promoviam um recorte do mundo de
uma maneira singela.

Assim, muito distante de uma concepção de positivismo exegético, que fora contemporânea
desta obra de Carvalho, dados os escritos de uma parte da doutrina tributarista, erigiu-se uma escola
(ou um método) diferenciado para lidar com o dado jurídico e que se caracteriza por transitar no
movimento do giro linguístico, e que, pela sua importância, representa uma segunda perspectiva
para se lidar com a filosofia, ao lado dos paradigmas do “ser” e da “consciência”.

Nessa medida, tomar o Direito como linguagem inaugura perspectivas realmente


diferenciadoras para o direito tributário na medida em que, de pronto, fulmina com modos de lidar
com o texto jurídico normativo e que pareciam lhe conferir uma precisão, especialmente com a
utilização dos chamados métodos interpretativos repetidamente utilizados por boa parte da doutrina
e da jurisprudência, em particular, pela chamada “interpretação literal”.

Como defende a obra do CLS, a literalidade, as “marcas de tinta no papel”, não conseguem,
em nada, harmonizar-se ao que se compreende como interpretação, na medida em que apenas
inauguram o processo hermenêutico, promovendo o influxo inicial para que aquele que defronta o
texto, independentemente da finalidade a que se proponha, possa construir sentido. Isso sim, não
mais extrair conteúdo mas, verdadeiramente, lidar com o “construir”: de cientista que lida com
previsões acertadíssimas em laboratório, o jurista passa a engenheiro, a arquiteto da norma, ao
perceber as potencialidades que o reconhecimento dos planos sintático, semântico e pragmático
ofertam à linguagem.

A seguir, por se tomar o direito como linguagem, emergiu a possibilidade da


intertextualidade, a qual representa um movimento que harmoniza tanto o direito, considerado sob
a perspectiva de conjunto de normas válidas, quanto os outros textos que não normativos, mas que
encartam a realidade sob a qual se fundamenta o direito. Nesse medida, fez ressoar um movimento
de diálogo entre textos e entre intérpretes, o que também representa uma dinâmica inovadora,
especialmente se se tratar de direito tributário, em que as relações se polarizam entre o Estado e o
sujeito passivo.
282

Sem pretender se buscar “a” interpretação correta, o CLS inaugurou um mundo de


possibilidades interpretativas, sempre abertas a novas leituras, dado o desenvolvimento que se
promove no interior da linguagem e que se espraia por todo o ser. O homem (o intérprete) é pela
linguagem383. Nessa perspectiva, que flerta com um outro giro, agora ontológico-linguístico (sob
o sentido heiddegeriano) da interpretação, potencializam-se os modos de lidar com o dado jurídico.
E todo esse manancial pode ser elaborado a partir do CLS.

Como se viu, o ponto de partida de Carvalho se erigiu sobre sua teoria da norma, que a
identifica como unidade mínima e irredutível de manifestação do deôntico, e trazendo a implicitude
de uma processo que o intérprete já iniciou o que denominou de percurso gerador (ou gerativo) de
sentido, ou mesmo, trajetória de interpretação: nessa trajetória, diferentemente das perspectivas
tradicionais, focadas no texto, naquilo que dele pudesse ser extraído, o CLS faz margear-se pelos
horizontes culturais do intérprete, ensejando o que aqui se denominou de uma pré-compreensão.
Assim, aquele que pretende iniciar este percurso não parte de um ponto zero hermenêutico,
porquanto já vem carregado com todos os seus valores, todas as suas experiências e imerso nos
próprios conceitos, tudo isso mediado pela linguagem.

A seguir, a interpretação, assim, foi qualificada como verdadeiro momento de confluência


de linguagens, aberto a novas perspectivas e sob um signo caracterizador altamente vocacionado a
lidar com um mundo complexo e, ao mesmo tempo, que admite a existência das linguagens
competentes, mas não rechaça as linguagens incompetentes: assim, longe de descrever o processo
com base apenas no discurso vencedor, reconhece-se que a alteridade pode fornecer vasto
conteúdo para novas elaborações e potencializa a utilização do plano pragmático, pelo
reconhecimento de novas perspectivas “reais” de utilização do dado jurídico, o que faz fundir as
linguagens da teoria, da prática e da experiência na Hermenêutica Jurídico-Tributária de forma
decisiva.

383
Alaor Caffé Alves (2016, p. 11), nesse mesmo sentido, afirma que “o discurso científico e o pensamento não vivem
separados, porém se distinguem. Um não existe sem o outro, um é pelo outro, mas um não é o outro. Não há linguagem
sem conceitos, nem conceitos sem linguagem, [...]. A ciência é um saber organizado conceitualmente, expresso
mediante discursos linguisticamente articulados, fundado na verificação e controle consciente dos dados da realidade,
obtidos pela experiência sensorial e investigação sistemática, sempre num plano socioeconômico e histórico”. Nesse
ponto, estas expressões bem resumem a construção que se erige nesta tese.
283

Por fim, vem o percurso gerador de sentido do Constructivismo Lógico-Semântico. Sob a


idealização tradicional, a imagem deste percurso permitiria compor os quatro planos pelos quais
perpassa a trajetória de interpretação: Plano S1 (conjunto de suportes físicos), Plano S2 (conjunto
dos conteúdos de significação dos enunciados prescritivos), Plano S3 (o conjunto articulado das
significações normativas – o sistema de normas jurídicas stricto sensu) e Plano S4 (nível de
sistema, estabelecendo relações de coordenação e de subordinação das normas jurídicas). Ao lado
de uma espiral que representaria os quatro planos estão os elementos culturais, horizontes do
intérprete, e que fatalmente limitam a interpretação.

Conforme imagem inicial, Carvallho pretendeu um percurso bidimensional, que instauraria


tantas indas e vindas quantas pretendesse o hermeneuta, a apontar para a infinitude do processo
interpretativo. Diante, porém, de modelos que melhor empreendam essa idealização, buscou-se
desenhar uma imagem com planos pluridimensionais, a significar que a compreensão desperta o
aparecimento das dimensões (e não mais planos) diferenciadas, em virtude da complexidade ínsita
à linguagem e que se perfaz no próprio sujeito interpretante.

Nesse ponto, permitiu-se um percurso gerador de sentido pluridimensional, em que se


destaca um intérprete situado em um espaço-tempo que se defronta com um conjunto de normas
vigentes. Como força absolutamente incontestável, localiza-se uma dimensão que o precede (não
em um sentido temporal estrito), mas que, de certo modo, é um dado do qual não pode se
desvencilhar: nesse ponto, o universo da cultura, posto o direito ser, por sua essência, um fenômeno
cultural, encontra-se o intérprete absolutamente amarrado pela pré-compreensão.

A seguir, os planos S1, S2, S3 e S4 transmutam-se nas dimensões S1, S2, S3 e S4, com
diferenças mínimas já em conformidade com o CLS mas que trazem alterações que permitem lidar
melhor com as dificuldades ingentes ao processo hermenêutico: caso se reconheça o direito como
limitado pelos horizontes culturais, melhor seria se falar em “tema”, e não mais em “significação”,
ao se tratar da Dimensão S2, por exemplo. Isso porque, a significação envolve um olhar estático
no movimento interpretativo, o que não se coaduna com o dinamismo decorrente do plano
pragmático, por exemplo.

No que pertine à Dimensão S4, reconhece-se nele o diálogo instaurado a partir de um


processo dialético interno, resultado de uma ampla conversa promovida antes, durante e após a
284

trajetória de interpretação do indivíduo, dada a importância, para o CLS, da pluralidade discursiva.


Neste diálogo, ficarão pontuadas as relações de coordenação e de subordinação entre as normas,
alcançando-se o patamar de sistema. Além disso, dado o caractere da alteridade, enfatizado no
CLS, não se pode esquecer que ao trajeto construído por uma determinada hermenêutica, juntar-
se-ão outros trajetos, que propiciarão a fusão de horizontes pretendida no discurso dialógico. E em
decorrência desta fusão que se fala em uma construção coletiva, e não individual e reclusa, dos
sentidos normativos. Por isso a defesa de dimensões que se interpenetram, do que, propriamente,
de planos que se limitam.

Por fim, uma análise de panoramas hermenêuticos na jurisprudência de tribunais superiores


revela um diálogo de textos em que desde já se reconhece a complexidade da linguagem, não
partindo para soluções simplistas ou esquemáticas. Em razão do maior apuro doutrinário e mesmo
do reconhecimento de que se lida com a linguagem, com todas as difiduldades inerentes a esse
dado, evidencia-se que o diálogo entre textos deve-se dar de maneira bem mais apurada,
congraçando o texto normativo enriquecido pela pragmática, o que faz soar um modo de descrição
(construção) do fenômeno jurídico qualificada.

Nessa medida, assenta-se um movimento diferenciado na doutrina e na jurisprudência e que


é fruto de um amadurecimento na maneira de se encarar o próprio direito, seja qualificando-o pela
utilização de meios que potencializam o seu emprego como linguagem, seja reconhecendo o
próprio intérprete como sujeito que é pela linguagem, desamarrando-se dos convencionais métodos
que só estimulavam uma interpretação restritiva, no sentido vulgar, e que não se mostra mais
adequada a enfrentar os grandes problemas que surgem no Direito Tributário.

Com isso, no que concerne à atuação do CONFAZ, tal tema é permeado de complexidades,
por ser uma estrutura também criada antes da Constituição de 1988 e cuja atuação institucional
precisa ser repensada com a maior brevidade possível. Nesse ponto, viu-se o acerto da decisão
proferida pela ministra Carmem Lúcia, na ADI nº 5.866, que tenta reaver o conceito de
responsabilidade tributária que fora estruturado pelo CTN pela eleição legal de terceiros que
possuam vínculo com o fato gerador.

Nesse ponto, tanto no Convênio ICMS nº 52, de 2017, como em diversos outros convênios
e protocolos, o que se vê, na atuação do CONFAZ, é a utilização arbitrária do poder que lhe foi
285

conferido para deliberar sobre incentivos e benefícios fiscais em sede de ICMS, para estabelecer
normas gerais relativas a esse imposto, tal qual se tratasse de legislador nacional.

A seguir, uma crítica que se fez à doutrina tributarista, que se quedou calada diante da
aprovação da Lei Complementar nº 160, de 2017, que tem a pretensão de encerrar a “guerra fiscal”
do ICMS, e que permitiu a celebração de um convênio pelo CONFAZ que convalidasse todos os
benefícios que já nasceram inconstitucionais por falta de deliberação naquele conselho.

Ora, assumir a pretensão de lidar com a complexidade do dado jurídico aproxima o cientista
do reconhecimento das múltiplas perspectivas que envolvem todo o ordenamento,
compromissando-se por enfrentá-las em sua atividade. Dessa forma, ainda que sob um viés da sua
particular atuação profissional, o jurista se veja atado a determinadas defesas, não deve calar-se
diante das afrontas ao Texto Constitucional. Assim, o exercício da advocacia ou mesmo da
atividade fazendária, há de fazer coro para a constituição de um sistema que se estribe na
Constituição e cujo sentido seja promovido pelo respeito aos ditames deste texto fundamental.

Com tudo isso, sem a pretensão de oferecer uma resposta final ao modo como se estrutura
a trajetória interpretativa no Direito Tributário, e, ainda mais, distante de acolher uma visão de que
a matéria aqui tratada se encerra sob essas perspectivas, é reconhecido o trabalho infinito e
circunstancial de todos os que lidam o Direito. Assim, sob o viés de ferramental adequado,
procurou-se demonstrar o quanto o Constructivismo Lógico-Semântico contribuiu, e continuará
contribuindo, para que diversas formas distintas de elaboração do pensamento tributário possam
ser erigidas. E reconhecendo que esta tese, singelamente, é só mais uma perspectiva; e que, como
perspectiva científica, possa ser brevemente superada.
286

REFERÊNCIAS
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