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AS CIDADES DA AMAZONIA: NOVAS TERRITORIALIDADES E VELHAS EXCLUSOES REENCONTRADAS José Aldemir de OLIVEIRA* Introdugdao As cidades, especialmente mas nado apenas na Amazénia, sdo lugares privilegiados de reprodugao das relagées sociais e constituem-se bases para a realizagao ampliada da intervengdo direta do Estado na produgao do espago e na ligag&o de pontos que possibilitam a expansao de novas formas de relagdes de produgao na regiao. No passado como no presente, este processo que representa uma espacializagao essencial ao desenvolvimento do capital, nao tem ocorrido sem sobressaltos. Os conflitos resultam da imbricacao, no processo, de miltiplos agentes portadores de diferentes praticas socio-espaciais, tomando as cidades da Amazénia o lugar por exceléncia das lutas sociais. Observe-se que nas cidades da Amazénia podem emergir formas de relagdes sociais que nado se tornaram vencedoras, que revelam o virtual ainda nao transformado em real, mas que se colocam num determinado momento histérico como possibilidade de emerséo de outros modos de vida, de espacialidades diferentes as que se tornaram dominantes. A resisténcia, em diferentes épocas, constituiu-se, do ponto de vista sdcio-espacial, no inconformismo com as novas relagdes sociais de produgdo que se impunham. Este processo, continuo mas nao linear no tempo e no espago, reflete multiplas dimensGes da vida, cujos residuos ficaram na paisagem. Portanto, é preciso compreender a Amaz6nia na sua diversidade e complexidade. Os _ conflitos existentes em alguns lugares podem ser observados em outros, 0 que nao quer dizer que sejam dotados da mesma dindmica, embora existam pontos em comum, como por exemplo a confrontagao estabelecida, de um lado, pela determinagdo do Estado ¢ do capital visando a construgéo de um espago homogéneo, hierarquizado ¢ controlado e, de outro, pelas praticas espaciais exteriorizadas nas acgdes concretas dos varios agentes sociais que criam mecanismos de resisténcia ‘ Gedgrafo da Universidade Federal do Amazonas, Manaus. E-mail: jaldemir@uol.com.br 53 para garantir o direito a diferenga. Disso decorre que a produgdo de um espago nao se constitui apenas de uma determinagao do Estado e do capital. Embora esta determinagao seja dominante, ela nao é exclusiva. Sendo o espago produzido na Amazé6nia o resultado de contradigdes e de miltiplas relagdes, é dificil identificar a unidade, ou uma unica determinagao. Por causa desta dinamicidade e antagonismo nortcadores do processo, proponho, neste artigo, a discussdo partindo de duas questées: 1) As metodologias das Ciéncias Sociais, especialmente da Geografia, sobre a investigagao da cidade sao aplicaveis as cidades da Amaz6nia? Quais os seus limites ¢ as suas possibilidades? A questdo central ¢ fazer uma reflexao sobre a dimensdo tedrico-metodologica na qual se assenta a pesquisa geografica sobre a cidade ¢ como aplica-la 4 Amazénia; 2) As relagécs sociais de produgao na Amazé6nia tém sido produzidas ¢ reproduzidas numa espacialidade concretizada e criada para possibilitar a expansio do capitalismo que tendencia tanto 4 fragmentagdo como a homogeneizagao, estabelecendo condigées de controle para inserir a Regido na escala global. Entretanto, isso é apenas uma parte do processo, pois existem outras Amaz6nias que nao foram atingidas pela “modernizagdo” ou, mesmo quando atingidas, as dimensdes de tempo e espaco sao estabelecidas a partir de outras dinamicas que se contrapdem a légica dos Grandes Projetos e da globalizacao, sendo também os lugares da resisténcia. 1. As cidades amaz6nicas como espagos-tempos de vida Chega-se maioria das pequenas cidades pelo rio ¢ delas é possivel contemplar uma paisagem cujo limite é 0 reencontro das paralelas no horizonte em que o céu € as Aguas parecem se abragar. A paisagem citadina € avistada ao longe, aparecendo aos poucos, preguigosamente aos olhos de quem se aproxima sem pressa de chegar. Assim vista, a maioria destas pequenas cidades situadas as margens dos rios assemelha-se a um quadro emoldurado pela folhagem verde-escuro da floresta que lhe guarnece. “Parece um recanto sedutor”.” No entanto, a aproximagao encarrega-se de restabelecer a realidade, © o quadro de moldura passa a ter outra dimensao. Essas pequenas cidades tém um padrao urbano caracteristico com ruas e caminhos que terminam invariavelmente no porto. A rua da frente ou a rua primeira tem as melhores casas e as ruas de tras, cascbres cobertos de palha. As pequenas cidades da ? Charles Wagley. Uma comunidade amazdnica, p. 45. Sa AmmazOnia, parccem ter sido criadas para serem vistas de longe, pois de jwerto toda a dimensio de beleza que existia no primeiro olhar esvai-se no arruamento cadtico, nas casas novas, mas com as fachadas desbotadas ¢ precocemente envelhecidas. Talvez fosse melhor que delas s6 tivéssemos a primeira impresso. Entretanto, é preciso compreender que esta paisagem ¢ © resultado das relagdes sociais ¢ contém vida, sentimentos, cmogdes que se traduzem no cotidiano das pessoas. Outras cidades da Amazénia sao alcangadas por estradas esburacadas, permitindo um passar que, se nio ¢ tio rapido, possibilita o ir ¢ © vir, Uns fazem o caminho de Gnibus, outros de caminhio, uns poucos de automovel e alguns a pé. De qualquer forma, se vai ou se vem. Ao longo do eaminho ha boas casas, outras nem tanto, sendo a maioria casebres. Depois de muito caminhar, nao tanto pela distancia percorrida, mas pelo tempo gasto, a monotonia de uma paisagem de floresta aparentemente uniforme ¢ quebrada: "cidade a vista!" Nada de extraordinario. E preciso boa vontade do caminhante para superar o primeiro impacto ¢ identificar na paisagem das pequenas cidades cor de terra, (onde a poeira impregna as casas ¢ as arvores, magoa a vista tinge o olfato, ferindo a alma), algo que possa ser designado como belo. Kimbora a paisagem das pequenas cidades nada tenha de especifico, pois assemelha-se a de tantas outras areas da frontcira ou as periferias das grandes e médias cidades da Amazénia, a impress4o imediata ¢ que ela ¢ tinica. O que é o imediato? "O imediato ¢ o (relativamente) simples; por conseguinte é também © comego. Mas a simplicidade da sensagao revela-se aparente...",’ pois ha espanto, surpresas ¢ descobertas a fazer, j4 que a cidade nao se resume a paisagem aparente. Ela se produz e reproduz a partir do cotidiano de quem a constréi, contendo vida, fragmentos de vida e a dimensao do uso do espago ¢ do tempo. S6 a partir do reconhecimento disso é que se pode compreender a cidade para além da aparéncia. Nas pequenas cidades da Amazénia, mais do que em qualquer lugar, meméria ndo se encontra no espaco social que se esta construindo, mas nos scus construtores, pois cada fragmento do que se produz contém uma parte de quem o faz. E o processo do construir construindo-se, dando a dimensdo do nado acabado. Neste sentido, a cidade é o lugar do vivido, mas de um vivido espedagado em que a memoria nao detém a ago do produzir o espago, havendo no processo de criagao da cidade a predomindncia do esquecimento e do desenraizamento. ‘ Henri Lefebvre. Légica formal légica dialética, p. 271. 55 . A criagdo das cidades recentes na Amaz6nia quase sempre ocorreu @ partir da aplicagdo da politica de "desenvolvimento" que produziu espagos ¢ tempos diferentes dos até ent&éo vividos pelas populagdes amazénicas, os quais passaram a ser vistos com novos valores e novas fungGdes. Espagos ¢ tempos que foram produzidos através da atuagdo do Estado e da expansdo do capital na Amazé6nia. Porém, dizer sé isso ndo basta. O que se deve buscar é a explicitagdo de que capital, de qual Estado e de qual Amazénia se esta falando para que a analise do processo de construgao do espago nao se transforme numa abstragado. Por isso, é necessario verticalizar a analise visando compreender o Processo que so tem sentido quando tomado no contexto dos varios elementos que se articulam para a produgdo do espago, tais como os pequenos agricultores, os pescadores, as populagdes ribeirinhas, os assalariados, os trabalhadores auténomos sem terra‘, especialmente os Possciros, os pedes, os caboclos ¢ as populagées indigenas. Pressupde também os capitalistas que estado nas grandes, médias e pequenas empresas € uma extensa rede de intermediarios situados na propria Regido e que se completa fora dela através do capital financeiro e das empresas multinacionais. O processo de produgao do espago ocorre por meio da ago de todos esses atores ¢ da rela¢do entre si ¢ com a natureza. Completa-se com a aruaciig ieee so Esa aa complexo e extenso sistema burocratico, cri: e reformulado, nos ultimos 50 anos, para possibilitar a Amazé6nia como fronteira. ane ts a Mas 0 proceso nao se esgota ai, é preciso ir além ¢ considerar outras dimensées. A Amazénia de hoje é um lugar bem diverso do que era no inicio do século, para nao retomar tempos mais remotos, nado s6 porque a natureza foi modificada, mas principalmente porque a cultura mudou de modo consideravel, sobretudo no decorrer das ultimas cinco décadas. Este processo evidenciou que a relagdo entre o homem ¢ a natureza que passou a predominar na Amazénia_ teve, ¢ continua tendo, como principal caracteristica a tendéncia 4 degradagéo do homem e da natureza. Embora seja preciso superar posi¢des simplistas tendentes a ecologia naturalista, a verdade é que a persisténcia do mito da produtividade ilimitada, apesar do vergonhoso fracasso de todas as iniciativas em grande escala para desenvolver a Regiao, constitui-se em um dos mais notaveis paradoxos do nosso tempo. * José de Souza Martins. Expropriagdo e violéncia, p. 79. 56 I preciso compreender que 0 espago que se produz no interior da AmazOnia ocorre no contexto de uma mais abrangente visdo de produgaéo wm que homens, enquanto seres sociais, produzem sua historia, sua wonsciéncia ¢ seu mundo para além da produgao natural. Neste sentido, é necessario contrapor a viséo de espago como palco ‘nde se desenrolam e se localizam as atividades ¢ os fenémenos humanos a \déia do espaco produzido através do trabalho humano. Na _ primeira, jredomina a concepgao de um espaco organizado e de uma exterioridade em yolag’io ao homem; na segunda, ocorre a interiorizagdo da produgado humana, wondo 0 espago um produto social ndo apenas por ser habitado pelo homem, sas por ser produto ¢ condigao de produgdo para o homem.> O espaco é produzido pelo homem nao como um objeto qualquer, {ampouco como um meio, mas como requisito da propria condi¢éo humana, num processo de produzir, produzindo-se © reproduzindo-se. O modo pelo qual os homens produzem o espago depende das condigdes concretas dos imeios de produgao, como também da forma de manifestagdo da vida que determina de certa forma a natureza do espago. Por isso, 0 espaco nao pode ser reduzido a natureza nem ao ambiente construido, mas considerado como ‘4s formas de controle que se adequam a produgdo dos meios materiais para a existéncia do homem, ampliando-se num processo geral de produgdo da sociedade.° Também o espago urbano que se produz num lugar qualquer da Amazénia nao é unico. Ele esta contido ¢ contém uma totalidade que inclui tanto 0 processo de desenvolvimento recente para a Regiaio, como a forma de produgao da sociedade nacional, refletindo a maneira da espacializagao de outras cidades brasileiras assinalada pela contradi¢ao: de um lado, as ilhas de luxo, riqueza c bem estar ¢, de outro, os arquipélagos de extrema miséria. Todavia, existem as especificidades decorrentes da historia do lugar, da capacidade de resisténcia ¢ da forma nao cquanime de como as inovagdes atingem o lugar e de como as pessoas se relacionam com o novo. Todos estes aspectos, mediados pelos usos e costumes, determinam a forma de produgdo do espago que se traduz na articulagdo entre o lugar, o nacional ¢ 0 global. Por isso, a analise do processo de produgdo do espaco num lugar especifico da Amazénia pressupde 0 entendimento de que a produgdo do espago n&o se encerra em si mesma, a medida que é condigao, meio e produto da sociedade. Deve-se lembrar que 0 espago nao é um produto ° Ana Fani Alessendri Carlos. A (re)produgdo do espago urbano, p. 33. * Ihid., p. 15. 57 qualquer, "ele existe fora do individuo ¢ se impde tanto a este quanto a sociedade considerada como um todo".’ Ou Scja, 0 espago é produto, mas também se imbrica na produgdo da sociedade. Produgdo tomada no sentido mais amplo, ndo se restringindo ao econémico, mas a reprodugdo da vida, haja vista 0 espago nao depender apenas das relagées de produgdo, mas abranger outras dimensdes como a politica, a cultura e o lazer. Entdo, sua produgao possui a dimensao da totalidade que abarca 0 cotidiano. Considerado apenas como o aparente, o cotidiano pode ser o ponto de partida para a investigacdo da realidade, pois cla nao esta 4 margem da vida de cada dia. Mas o cotidiano nao é sé isso, é também o receptaculo da passividade, da desesperanga, da repetitividade enfadonha, da falta de perspectiva, enfim, da miséria do dia a dia e, no caso, nos confins da Amazénia. E mais: ¢, sobretudo, o que contém a possibilidade de mudanga da vida, pois ele também possui uma dimensdo de riqueza nao apenas material, concentrada nas mos de poucos, mas virtual, que reproduz a vida e que aponta para o fato de que o social ndo se restringe ao econémico, indo além ao se referir as relagdes sociais entre os individuos, entre estes ¢ 0 grupo e¢ deste com a sociedade. Além disso, ¢ no nivel do cotidiano que as relagdes se humanizam, contrapondo-se a uma globalizago que tendencia a homogeneizar costumes ¢ modos de vida. Portanto, é no cotidiano que emergem as resisténcias. Considerar © cotidiano na investigagdo das pequenas cidades da Amazénia no se constitui despropésito. Afinal, a cidade (pequena ou grande) é o lugar onde as pessoas vivem bem ou mal, ricas ou miserdveis. "E no cotidiano que elas ganham ou deixam de ganhar a vida, num duplo sentido: nfo sobreviver ou sobreviver, apenas sobreviver ou viver plenamente. E no cotidiano que se tem prazer ou se sofre",® se vive e se buscam mecanismos que possibilitem a reprodugdo de uma nova vida nao sO econémica, mas social ¢ cultural. Vida, sempre em sua dimensdo mais ampla. Sobretudo, é nas pequenas cidades do interior, como as da Amazé6nia, que se coloca de forma mais clara a tendéncia de imposigao do cotidiano como parte de um processo de homogeneizagao baseado na predominancia do valor de troca sobre o valor de uso. Portanto, tentar compreender o cotidiano é buscar o desvendamento da realidade. Mas, ao mesmo tempo, esse cotidiano pode esconder a tealidade. "A anilise da vida de cada dia constitui - em certa medida, apenas - a via de acesso 4 compreensiio e A descrigdo da realidade; além das suas ’ Milton Santos. Por uma geografia nova, p. 128. * Henri Lefebvre. A vida cotidiana no mundo moderno, p. 27. SR possibilidades, cla falscia a realidade".” Neste sentido, a realidade nao pode “er comprecndida apenas desvendando-se o cotidiano, mas numa dimensao em que este se inclui na totalidade. O cotidiano tem que ser compreendido 440 contexto social em que o espago da cidade é produzido, nao sendo a soma meednica de atividades diversas, mas a totalidade que as engloba e que determina a produgao do espago. A produgdo do espago urbano na Amazé6nia se da a partir de um processo conflituoso. Neste processo, as novas relagGes destroem ¢ reconstroem as antigas relacgdes, sendo que o novo no exclui o velho. Isto leva a tendéncia de se produzir um espago controlado e homogeneizado que, fo entanto, ndo se concretiza em sua inteireza, a medida que 0 novo espago nilo se produz excludentemente. Deste modo, ele reproduz as diferencas e as resisténcias que ndo restauram as relagdes sociais anteriores, mas as recriam em outras dimensGes. O novo, completamente novo, nao existe e é nas brechas encontradas no processo de produgdo que a populagao do lugar e os migrantes criam as condigdes de resisténcia, visando alcangar as transformagdes do espaco produzido. Na Amazénia como um todo, tais agdes podem ser detectadas na resisténcia da populagdo indigena e dos caboclos que tentam interferir na produgdo do espago de maneira que o direito a diferenga hes seja garantido. No nivel local, pequenas agdes tém contribuido para que aflorem formas de lutas visando nao permitir que o espago se produza exclusivamente conforme as feicdes da classe dominante e de acordo com as estratégias do Estado. Na maioria das vezes, sio agdes localizadas, sem conseguir articulagao mais ampla. Isso, no entanto, nao retira o carter politico que lhes da sustentagio. Portanto, o estudo das pequenas cidades da Amaz6nia aponta paraa analise da vida social que se desenrola no espago, buscando compreender ndo apenas o possivel, mas o impossivel, ndo apenas o que ¢, mas principalmente o que poderia ser. Com isso chega-se a um resultado de investigagao cuja base de andlise é geografica, tentando superar a Geografia que nao alcangou o entendimento da deterioragdo do espago social pois se deteve a descrig&éo dos fenémenos no espago para concebé-la enquanto ciéncia capaz de explicar a produgdo do espago a partir de fatos reais postos pela vida concreta dos homens. Esta viséo aponta para uma concep¢ao de Geografia cuja base é a compreensio do uso do espago. A tese sustentada nesta investigagao do urbano na Amazénia é que a expansio da fronteira se da a partir de um processo contraditério, baseado ° Karel Kosik. Dialética do concreto. p. 72. 59 num tripé: a destruigio das formas espaciais existentes, a criagdo das resisténcias e a reconstrucfo de formas e contetdos espaciais dotados de novas dimens6es ¢ significados. A dimensao social desse processo é também uma dimensio espacial, sendo, por isso, concebida como uma pratica sdcio- espacial, tendo o espago como o lugar geografico da ago. A forma como o espago € produzido na fronteira pode ser um instrumento de perda, mas também pode se constituir numa alternativa de libertagao.'” A tesisténcia ndo é uma dadiva. Pressupée, de um lado, que as pessoas tenham condi¢des de sobrevivéncia; de outro, que sc contraponham ao que se lhes ¢ imposto, sem perder a capacidade de indignagdo e de revolta "n&o sO contra as condigdes particulares da sociedade existente até entio, mas contra a propria produgdo da vida vigente e contra a atividade total em que se baseia"."’ 2. A produgao do espago.urbano na Amazénia As anilises sobre a Amaz6nia quase sempre privilegiam dois temas: a natureza ¢ o que genericamente poderiamos chamar de Amaz6nia Oficial, ou seja, a Amazénia dos Grandes Projetos. Essas abordagens, embora importantes, sdo limitadas. Na primeira, 0 territério é visto apenas do ponto de vista da natureza, tornando-se indcuo, pois sao as relagdes sociais que o constréem, o destroem, o inventam e o reconstroem num processo que pressup6e conflitos, contradigdes ¢ lutas dos sujeitos. Na segunda, embora seja preciso reconhecer que o processo de transformagio ocorrido na Regio determinou novos significados para as cidades, deve-se reconhecer que parte significativa da Amazénia nfo foi atingida por este processo, o que nao quer dizer que nao seja influenciada por ele. Neste sentido, é preciso uma discusséo geografica sobre as pequenas cidades da Amaz6nia repensando o lugar do homem na Geografia ¢ o significado da produgaio do espago na Amaz6nia. As taxas de crescimento da populagdo urbana da Amazénia (Regido Norte), na ultima década, foram superiores 4 média nacional. Todavia, o grau de urbanizacao é o menor do Brasil, com 58,2%, sendo que este percentual esta desigualmente distribuido, concentrando-se a maioria da populagao nas cidades capitais. Com excegéo do Para, nenhum dos demais 1° Esta tese foi sustentada no trabalho Cidades na selva: urbanizagdo das Amazonas, apresentado como tese de doutoramento na Universidade de Stio Paulo em 1995. Karl Marx. & Friedrich Engels. op. cit., p. 57 60 Hstados da Regiiio apresentava, no Censo de 1991, outras cidades que nao as fapitais com mais de 100 mil habitantes. Tomando-se como exemplo o Amazonas, a cidade de Manaus concentra quase a metade da populagao de todo o Estado. Esse aspecto é tanto mais significativo quando consideramos que a populagio total das 05 cidades mais populosas do Estado do Amazonas ¢ inferior a 17% da populagao da cidade de Manaus ¢ que ienhuma dessas 05 cidades, atingiu, em 1991, 50 mil habitantes. Portanto, uma parte significativa da populagao urbana da Amazénia sti localizada em pequenas cidades. Estas cidades séo espagos produzidos socialmente e cimentam uma cultura datada num determinado tempo ¢ lugar. Na Amazénia, sejam localizadas na beira dos rios ou das estradas, as cidades retratam um determinado periodo de busca de riquezas. Ao iiesmo tempo, como sc observou antes, as cidades refletem as condigdes specificas do lugar ¢ dos conflitos que nao podem ser considerados exclusivamente econémicos, pois tém dimensdes culturais, politicas ¢ idcolégicas ¢ retratam o vivido de quem as constréi. As cidades da Amazénia, embora pequenas ¢ com pouca ou nenhuma importancia para as outras regides do pais, ttm organizag4o e estrutura que extrapolam sua dimensao especifica, configurando formas ¢ estilos que estio além da circunscrigao espacial. Nelas_ encontram-se instituigdes regionais, nacionais © até internacionais, influenciando de forma direta ou indireta o cotidiano. E preciso, por isso, conccber as cidades por meio de caracteristicas cspecificas, tentando n&o as ver como pedagos de uma cultura mais geral, nem com a mesma dimensio ¢ complexidade dos nucleos urbanos mais dindmicos. Em outras palavras, as cidades da AmazOnia sao produzidas a partir do especifico, tendo dimensGes gerais. Tais relagées sao portadoras de grande significado cultural sendo necessario compreendé-las, pois representam especificidades que refletem a configuragéo de um urbano em construgéo na Amazonia, cujas espacialidades so produzidas pela interagdo de fatores exdgenos ¢ endégenos. Cada uma dessas cidades é um lugar especifico, 0 que nao quer dizer exclusivo, pois faz parte de um contexto maior. Contudo, os eventos que as atingem tém dindmicas proprias, dificultando, sendo impossibilitando, generalizagdes. 3. A cidade enquanto dimensdo do vivido O modo como o grupo se organiza para produzir ¢ atender suas necessidades n&o explica per se toda a sociedade. Também, o processo de 61 producao nao se completa nem se encerra em si mesmo. Considerar apenas © econémico, ou mesmo colocd-lo em primeiro plano, choca-se com numerosas objegdes, podendo destruir qualquer _perspectiva de compreender o processo de produgdo da sociedade, entendendo a produgio no sentido mais amplo, que capta as transformagédes do vivido, abrindo caminho para o entendimento da vida, pois as relagdes sociais de produgdo encerram multiplas contradigées sociais, politicas e econémicas. Essas contradigGes explicitam-se ¢ podem ser identificadas no dia a dia das pessoas que moram nas pequenas cidades da Amazonia. Por exemplo, na forma como se relacionam com a natureza Meninos descalgos, seminus, correm contra 0 vento, ¢ com toda a forga vao ao "banho" na cachocira. Banham-se a lavar nao o corpo, mas 0 cspirito. Brincam ¢ tém a natureza a testemunhar seus sonhos ¢ a ofcrecer frutas frescas que alimentam scus corpos frageis. Corpos pequeninos cuja dimensao de liberdade ¢ de grandeza sao comparaveis a imensa floresta que parece sorver aguas © corpos numa gula insaciavel. A vida, para esses meninos, passa como a agua do pequeno rio. Nem tao rapida que nao possa ser vivida, nem tao lenta que nao se renove. Nessa simetria, 0 rio engravida a vida que nasce para um novo dia. Mais do que a dimensdo natural, a cachocira ¢ fonte de vida ¢ nela os meninos brincam e vivem. Essa perspectiva de natureza, cxpressa no uso da cachocira como area de lazer numa pequena cidade amazénica, contrapde-se a uma outra que relaciona a sua utilizago como fonte de lucro. Outras cachociras na mesma. cidade ja estdo sendo apropriadas por particulares que as interditam, objetivando a exploragao turistica posterior. Esta contradigaéo demarca um limite nas concepgdes dos que produzem 0 novo espago na Amazénia. Para uns, a naturcza é captada enquanto necessidade para o uso, dela _retirando o necessario para a sobrevivéncia, para a construgao de abrigo ou ainda usando-a como lugar da festa e do encontro. Para outros, a natureza é vista enquanto potencial turistico, mercadoria a ser vendida nos cartées postais. Neste sentido, as pequenas cidades da Amaz6nia foram e¢ sdo produzidas a partir de contradigées e de conflitos que nao estdo circunscritos as questées econémicas. Excluir 0 vivido pode ser uma forma sutil de camuflar 0 que o precede ¢ o sucede. Por isso, a produgao do urbano na Amazonia tem um componente importante que ndo pode ser desconsiderado enquanto configuragdo das cidades, a influéncia da cultura indigena. As aldeias nao podem ser consideradas como os embrides das cidades. As missdes € os povoados constituiram-se a partir das aldeias, mas eram a sua negacao. Os aldeamentos em muitos casos, foram criados distantes das aldcias ¢ alguns transformaram-se em vilas ¢ posteriormente em cidadcs. A 02 we econdmica foi fixada a partir da exploragéo de recursos naturais yatraidos da floresta ¢ dos rios, tendo na mao-de-obra indigena um de seus wtenticulos. Isto nos leva a perguntar se existe influéncia da cultura iwdigena nas cidades da Amazénia? A cultura indigena se enquadra enquanto manifestagao da cultura jopular, sendo quase sempre vista como fazendo parte de "uma manifestagdo wultural dominada, invadida, aniquilada pela cultura de massa e pela industria cultural, invadida pelos valores dos dominantes (...) manipulada jwla folclorizagao nacionalista, demagogica e exploradora, em suma, como impotente face a dominagdo, arrastada pela poténcia destrutiva da lignagaio"."? E necessario, entretanto, como também sugere Marilena Chaui, eautcla quanto a considerar a cultura popular apenas na perspectiva da perda. No caso da cultura indigena, este aspecto parece relevante pois, apesar de sempre ter sido colocada como perdedora ¢ ndo se querer aqui estabelecer parimetros de empréstimo cultural, ¢ possivel identificar em algumas ics da Amazonia, especialmente naquelas situadas as margens dos rios, sua influéncia. Na alimentacdo: os vinhos de abacaba, agai, pataua, 0 peixe moqueado, o beiju, a carima, a piracaia; na cestaria, especialmente o panciro; nos instrumentos de pesca, 0 arco ¢ a flecha. Mas é na habitagao das pequenas cidades da Amaz6nia e até nas periferias das cidades maiores que ha um marcante trago da influéncia indigena até agora pouco valorizado pelos que estudam a regiao. Trata-se do terrciro batido que guarda semelhanga com o terreiro das aldcias indigenas. isse terreiro faz parte da frente das casas (s6 identificado em casas de madeira) ¢, embora pertenga ao terreno, nao é cercado, ndo faz parte do quintal que so se inicia a partir da parede externa frontal da casa. Esta parte da frente da casa, entre a casa ¢ a rua, 6 formada por uma area de terra batida, muito limpa, quase sempre com uma 4rvore ao centro para fazer sombra c um banco. Nao é ajardinada c, embora possa ser facilmente identificada como pertencendo a uma determinada casa, parece mais um espago coletivo onde as pessoas se reunem para conversar ¢ as criangas para brincar. Esta influéncia praticamente inexiste em areas de colonizagéo recente. '*. Marilena Chaui. Cultura e democracia, p. 63. 63 4. As pequenas cidades da Amaz6nia: 0 lugar como resisténcia Como ja aludido anteriormente, quase sempre as analises, nio apenas no nivel das Instituigdes do Estado, mas também na academia, partem da Amazénia dos Grandes Projetos, os quais, no limite, poderiamos dizer séo predominantes, mas nao esto cm toda a Amazénia. Existem outras Amazé6nias que precisamos buscar entender. Por que entender? Para tentar captar o essencial no acidental, perceber a instancia do possivel, sem ignorar que além do racional ha também o nao racional: ultrapassar a visio de Amazénia apenas pela expansio da fronteira, desconsiderando as Amazénias que nao foram atingidas por esse processo. De outro lado, é preciso buscar superar uma visio da Amaz6nia como exuberante, grandiosa, folclérica © fotogénica, concebendo apenas a paisagem aparente, no considcrando as relagées sociais que a produzem. Reitero que o estudo de areas especificas da Amazonia permite-nos compreender que cada lugar da Amaz6nia ¢ especifico, produzido por um homem especifico, 0 que nao quer dizer que este lugar ¢ este homem sejam exclusivos, pois fazem parte de um contexto maior. Contudo, os eventos que os atingem tém dindmicas proprias. Em decorréncia, os conflitos que ocorrem num lugar qualquer da Amazénia podem se produzir em outros, ndo podendo, entretanto, ser entendidos como iguais. A raiz dos conflitos esta na confrontagdo que se estabelece, de um lado, pela determinagdo do espaco homogéneo explicitado nas praticas espaciais do Estado e das grandes cmpresas ¢, de outro, pelas praticas sdcio-espaciais dos varios agentes sociais que buscam cstabelecer as condigdcs de permanéncia de valores de uso. O cstudo das transformagées que esto ocorrendo nas pequenas cidades da Amazénia revela 0 retrato de pessoas que sao identificadas no Processo que fragmentou o espago, vendido aos pedacos, ao mesmo tempo que se retoma o passado através de coisas ¢ sentimentos que mudaram ou se refizeram num outro patamar. O exemplo a seguir reflete essa contradi¢do.'* O espaco produzido a partir da construgdo da Usina Hidroelétrica de Balbina, na area nordeste do Estado Amazonas, implicou na destruigao de florestas, rios, mas sobretudo de modos de vida da populagéio do rio Uatuma. Com isso, ocorreu o Tompimento do modo de vida tradicional, terminando a unidade que determinava as antigas relagdes. ™ Retirado de Cidadey na selva; wbanizagao das amazonas, p. 133-135. 64 Apesar da pobreza destes trabalhadores que vivem na vila Atroari ¢ i vila que da suporte 4 Hidroelétrica, 0 convivio com eles pode nos levar a deseobrir uma vida intensa que desperta uma admiragdo inquietante. Na conversa com uma familia de pescadores que morava no rio Vatuma ¢ migrou para a Vila, foi possivel observar a relagdo que essas jessoas tém com a natureza. A familia estava reduzida a trés pessoas, pois os outros filhos migraram. O pai, um senhor com aproximadamente 50 anos, fa csposa aparentando a mesma idade, e um menino de mais ou menos 13 anos. Durante toda a conversa, o casal, especialmente a senhora, mostrava-se preocupado com a auséncia do filho. Ja ao anoitecer 0 menino chegou. Indagado sobre onde esteve, respondeu: "Estava no lago olhando o pér-do- sole lembrando do nosso ri Os trés rostos se encheram de "brilho", mas logo se turvaram pelas lembrangas do rio que ja nado é mais deles. Seus semblantes se fecharam ¢ nada falaram. Nem era preciso, pois o siléncio, a se imbricar com a mudez do anoitecer na selva, continha os sentimentos ¢ a marca da tragédia. So quem conhece a Amaz6nia e, principalmente, quem sabe da importancia do rio para a reprodugdo da vida, ¢ capaz de entender a resposta do menino, a emogdo que contagiou os dois velhos e de compreender a vida dessas pessoas, de onde brotam sentimentos tao profundos, mas que quase sempre s&io desconsiderados, pois estado eivados por coisas simples, transmutadas numa sensagdo de extrema obviedade pela freqiiéncia do estar sempre por aqui. "Assim, o poeta falara do Sol ou da cidade. Falara de um objeto que sera o mesmo para outros, mas néo sera o mesmo objeto".'' Aqucle menino criado as margens do rio, no meio da natureza, falava de um sol, de um lago ¢ de um rio que nao sio as mesmas coisas para muitos de nds. "O sol ¢ um simbolo e mais que um simbolo; revela o mundo, exprime 0 cosmo, o centro de energia ¢ focos de ardor, os ciclos ¢ os retornos, os desaparecimentos tragicos e as ressurreigdes. (...) O Sol confirma ao olhar o que ensina (...) uma tripla existéncia: empirica (nivel em que é encarada como objeto da ciéncia), social (reguladora do tempo e do espaco no caso das atividades humanas), poética enfim (simbdlica e mitica). Esta ultima é a da mais alta importancia (valor)”.'> Para aquelas pessoas, o sol e o rio tém dimensées que ultrapassam o ato de contemplagao. Esta compreensio do ato de observar 0 pér-do-sol sé sera possivel a partir do conhecimento da historia '" Henri Lefebvre. Hegel, Marx, Nietzsche ou o reino das sombras, p. 203. 'S Thid., p. 204. 65 da terra, sendo, corre-se o risco de se tentar adivinhar os mistérios que envolvem as relagdes das pessoas com a natureza. Mas isso sozinho também nao explica, pois ha uma dimensao de sentimentos. Ento, qual a importancia da expressio do menino que vé o sol se por num lugar qualquer da Amaz6nia? Existe o sentido da beleza, da natureza ¢ principalmente da vida, a medida que existe uma estreita relagdo entre o sujeito que contempla ea natureza contemplada, num éxtase em que se enlagam agdes e¢ reagdes, com a natureza _ ativando-se enquanto reguladora da vida e do tempo de quem a observa. O menino nao exerce apenas uma atitude contemplativa, de meditagdo ¢ enlevo, cle tem na natureza um fator de vida, isto é, de identificagao e por isso sua atitude é, na esséncia, uma agao que reflete a relagdo do homem com a natureza e como seu espago. O sol determina a sua hora, a ida ou nao a caga, 4 pesca, serve “também de energia para conservar seus alimentos ¢ secar os produtos de sua lavra. O rio serve-lhe a circulagdo ¢ é 0 principal fornecedor de proteina animal, sendo também meio de vida. A atitude contemplativa reflete Principalmente as transformagdes que ocorreram no espago ¢ conseqiientemente na vida, marcando o processo de estranhamento que se inicia. O rio nao é mais o meio de circulagao para a populagao local, nem a principal fonte de sua subsisténcia, mas a matéria prima para a produgao de energia elétrica. A populacado que ocupava suas margens foi reduzida a abstragao dos dados estatisticos ou de categorias nao menos abstratas de "atingidos pela barragem", "populacdo a Jusante", etc., a enriquecer os relatérios manipulados nos gabinetes oficiais. O espago perdeu uma das dimensées da vida, um tempo espontaneo, simbolizado pelo io. Antes da construgao da Usina Hidroelétrica, a captura de pescado que garantia a alimentagao dos moradores era obtida com "pouco esforgo", em areas proximas as moradias, constituindo-se numa atividade que podia ser realizada pelas criangas c/ou pelos adultos, antes ou depois da jornada de trabalho na agricultura. O espago novo modificou esta relagdo e produziu uma ligagdo com a natureza que antes estava ausente para o homem do lugar. . E por isso que o sentimento poético traduz com maior agudeza o sofrimento, contribuindo, de um lado, para externar o inconformismo, de outro, para entender as mudangas ocorridas no espago, no tempo e, mais que isso, serve para entender as transformagdes da vida decorrentes da introdugao de inovagées que se, de um lado, no contribuiram para a melhoria das condigdes das pessoas que moravam as margens do rio Uatumé, de outro, determinaram profundas transformagées na relagdo que 66 WH Com a natureza. As relagdes se perderam, em parte, mas, enquanto as jeekoas conservarem esta ligago simbolica ¢ mitica, clas estardo resistindo » Wiweando recuperar ndo o mesmo espago, mas um espa¢o transformado. "A poesia nao interdita o conhecer. Pelo contrario, partindo do Yivido, penetra num conhecer qualitativamente diferente do saber. Este yonhecer do "viver" ¢ do "vivido" recupera as outras esferas (0 empirico, 0 s0e10-lOgico, 0 sécio-politico), conferindo-lhes um outro sentido".'° No caso slow pescadores do Uatuma, o outro sentido é a busca de uma nova vida que ali corre como "o tempo que flui como a imagem de um sonho. Flui no jiouco da noite que resta e no instante de luz que anuncia o amanha"."’ Flui #4 lua, serpente noturna surgida no brilho das aguas, sinuosa, acompanhando 4 eorrenteza do rio, téo afavel, parecendo acaricia-lo. Flui com o sol posto ive ccrtamente voltara para anunciar um novo dia pois, para os pescadores que moram na vila Atroari, a fronteira entre 0 sofrimento ¢ o prazer € tio {Qnue quanto a profundidade entre o diac a noite. : : Apesar de todas as transformagées ocorridas que objetivam integrar 4 regido ao mercado, aniquilando as formas de relagdes sociais existentes, persiste a dimenséo humana, simbolizada na contemplagéo do pér-do-sol que tem um sentido poético, apesar de quem o faz talvez nado compreenda dimensao. Mas o faz, reinventando formas de relagdo com a natureza, "de qualquer modo a gente sabe: 0 rumo ¢ 0 do pér-do-sol”."* Na Amazénia, essas agdes podem ser percebidas como formas de diferentes sujeitos tentando interferir na produgdo do espago de maneira que © direito 4 diferenga thes seja garantido, Sao pequenas agdes que tém contribuido para que aflorem formas de lutas visando nao permitir que o espago se produza cxclusivamente as feigdes da classe dominante e de acordo com as estratégias de um modelo tendente 4 homogeneizagio. Como ja referido anteriormente, na maioria das vezes, sido agdes localizadas que niio conseguem ampla articulagao, o que nao lhe retira o carater politico que lhes da sustentagdo. Por isso, quando se fala de Amazénia, ¢ preciso explicitar de qual Amaz6nia esta se falando. Existem Amaz6nias que ja viraram o milénio, outras que est&o no final do milénio ¢ outras que ainda nio o iniciaram. ons pois ' Ibid, p. 205 '’ Milton Hatoum. "Reflexdo sobre uma viagem sem fim", p. 65. "" José de Souza Martins. Os camponeses e a politica no Brasil, p. 137. 67 5. Consideragées finais O afastamento geografico nado impediu que as cidades da Amazénia sofressem a influéncia de um contexto cultural mais amplo, pois os homens nao produzem suas culturas isoladas de todas as outras. Em decorréncia, nas cidades da Amazénia, a tendéncia, em especial nos nicleos criados recentemente, é do enfraquecimento da influéncia de uma cultura local, pois 0 espago urbano esta sendo produzido nao de forma isolada, mas a partir de um contexto maior, mesmo com certas especificidades resultantes da experiéncia dos que chegam e dos que estado no local ¢ sao sujeitos da criagdo. O estudo das transformagdes do espago amazénico, especialmente das pequenas cidades, revela o retrato de pessoas em um processo que fragmentou 0 espago, vendido aos pedagos. Ao mesmo tempo retoma-se 0 passado por meio de coisas ¢ sentimentos que mudaram ou se refizeram num outro patamar. Por isso, é necessdrio compreender ¢ considerar as pessoas como participantes ativos de um processo que dilacera o coragdo e fere a alma embora ambos se recomponham. Contudo, se de um lado esse processo tem uma grande carga de tragédia, por outro tem a capacidade de embalar novos sonhos ¢ novas ilusdes sem melancolias nem saudosismos, mas com "Odio sossegado e com paciéncia". E neste sentido que, no estudo das pequenas cidades da Amazénia, indios, posseiros, pedes, sejam considerados Sujeitos e construtores do espago, o que nao significa deixar de reconhecer a sua condi¢ao de excluidos. A paisagem é 0 resultado das relagdes sociais de produgdo e, por isso, contém vida, sentimentos e emogGes que se traduzem no cotidiano das pessoas. E possivel que este cotidiano seja malditamente enfadonho para as pessoas que moram nas pequenas cidades do interior da Amazénia ou talvez nem exista, mas quem sabe ndo tenha la seus encantos. Entretanto, € preciso procurar nas coisas simples a beleza e a poesia onde nao se fala disso ou talvez onde nem exista. E preciso compreender 0 olhar, o sorriso, todos os gestos ¢ agdes que abrem a porta para o infinito, tornando a vida mais agradavel, as distincias menores e os momentos mais intensos. E mister compreender que, num lugar como a Amazénia, a beleza nao esta apenas nas formas aparentes, mas no estado d’alma e na condigdo de vida concretizada em cantigas, em versos, na singeleza de celebrar a festa para exprimir solidariedade, fraternidade ¢ dissimular perdas E preciso compreender ainda, que a espacialidade que resulta das duras condi¢ées de vida, mas também da resisténcia, da forga inquebrantavel OR ‘4 construg’io de uma nova vida que nao ¢ necessariamente melhor ou oy, mas ¢ uma nova vida. E preciso entender, como sugeriu José de Souza jartins, “por que a cultura popular neste pais se constitui num arquivo, jelulho da Historia do povo, de cangdes que celebram 0 amor ¢ a festa e, - fyeqiientemente dissimulam a guerra ¢ 0 luto ¢ proclamam, no gesto da luta, i resisténcia, da ruptura e da desobediéncia, sua nova condigéo, seu saminho sem volta, sua presenga maltrapilha, mas digna na cena da Historia”.'” Estas agdes que se concretizam em espacialidades, que quase sempre sao desconsideradas pelo proprio fato de estarem eivadas de coisas simples, transmutadas numa sensagao de extrema obviedade por serem vonsideradas lugar comum e porque quase sempre a nossa preocupacao ¢ om as caréncias e com as perdas, estudando o espago como inumano. Neste sentido, o estudo das pequenas cidades da Amazénia pode restabelecer na Geografia aquilo que Milton Santos considerou como perda: ter deixado de ser a0 mesmo tempo ciéncia ¢ arte. Nibliografia CARLOS, Ana Fani Alessandri. 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