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Entre Biblia e Teologia Marto || Ravasi || RUPNIK «Da beleza formal destas intervengées irradia o esplendor dos respetivos contetidos. Pertence-nos captar e transmitir o seu fulgor.» Emilia Nadal, in Prefacio D. Antonio Augusto Dos Santos Marto Bispo de Leiria-Fatima Membro da Associagao Europeia de Tedlogos Catdlicos. Cardeal GIANFRANCO RAVASI Presidente do Conselho Pontificio da Cultura Renomado biblista e hebraista, com vasta obra literdria Marko IVAN RUPNIK Artista e tedlogo jesulta esloveno Diretor do Centro Aletti, Roma, oO ANTONIO MaRTO GIANERANCO RAVASI Marko Ivan RuPNIK Ve angetho da Belega Gi. Coordenagto da colegao: Titulo original Tradugéo ‘Tradutor Capa Pré-impressio Impressdo e acabamentos Depésito legal ISBN José Tolentino Mendonca Grafia conforme o Acordo Ortografico de 1990 (autores: Gianfranco Ravasi e Marco Ivan Rupnik): I fascino del bello © 2010, Edizioni San Paolo ~ Milao © Paulinas Editora Maria do Rosario Pernas Departamento Gréfico Paulinas Paulinas Editora ~ Prior Velho Artipol - Artes Tipogréficas, Lda. - Agueda 342 992/12 978-989-673-238-7 (edic4o original 978-88-215-6822-0) Abril 2012, Inst. Miss. Filhas de Séo Paulo Rua Francisco Salgado Zenha, 11 2685-332 Prior Velho Tel. 219 405 640 - Fax 219 405 649 e-mail: editoraepaulinas.pt www.paulinas.pt PREFACIO Aaspiracao a plenitude da felicidade é inerente ao ser humano no seu desejo de harmonia e bem-aventuranga. Prova-o a histéria das culturas e das religides, na diver- sidade de interpretacées que revestiram aqueles concei- tos, nos modos como influenciaram a vida dos povos e das sociedades, e plasmaram as linguagens das artes e do culto religioso. Quando as realidades visiveis e invisiveis s4o perce- cionadas como beleza, tendem.a despertar 0 espanto ea interrogac4o que permitem a abertura do ser a experién- cia estética e a revelacdo do inefavel. O fascinio por tudo 0 que se entende ser beleza e bondade, ou suscetivel de ser admirado e amado, deve-se a todos os niveis da per- cecdo que concorrem para o mais elevado nivel do conhecimento. A quest4o que nos ocupa radica, assim, no 4mago da percecao humana e no plano da consciéncia, nao como ideia mas como realidade transformante que encontra express4o em linguagens simbélicas que mediatizam a comunicagao entre o divino e o humano, e a relacdo deste como o santo e o sagrado. Neste sentido, sera possivel afirmar que a pedagogia 3 da revelacao divina, e a aco do Espirito Santo, corres- pondem exatamente a forma percetiva e recetiva da sua criatura? Sera possivel associar aquela forma (molde) aos conceitos da «imagem» e da «semelhanga», no relato das origens? (Gn 1,26) Acomplexidade dos temas que envolvem as questées do Belo e da Beleza, e a inexisténcia de instrumentos cientificos adequados ao seu estudo, podem justificar 0 n4o terem sido objeto de interesse para uma reflexao constante e sistematica, na Area da teologia. A persis- téncia de mitos culturais que desvalorizam Areas do conhecimento conotadas com a subjetividade, explicam que o tema da Beleza tenha permanecido no capitulo da espiritualidade. A tensao que atualmente existe entre o pensamento niilista, que é subjacente As artes e a cultura das elites, e a cultura esteticista, que enforma a civilizacdo das maassas e das aparéncias, exige que a teologia reavalie os contornos de uma questdo que, sendo essencial 4 comu- nicacéo do Evangelho como revelacao da pessoa e dos mistérios de Nosso Senhor Jesus Cristo, é estruturante da cultura crista. Sob o titulo O Evangetho da Beleza, publicam-se textos de autores que respondem Aquela exigéncia, propondo uma leitura atualizada do percurso do pensamento cris- t&o sobre o tema. Igualmente assertivas, as intervencées de D. Anténio Marto, Gianfranco Ravasi e Marko Ivan Rupnik abrem diferentes perspetivas de abordagem 4 Aquele pensamento e propdem novas metodologias no campo das respetivas especializagées. O entendimento da realidade cultural como lugar teo- ldgico, e nao como fator de ordem socioldgica, e as dina- micas relacionais da fé, perpassam nas intervencées agora publicadas, sendo explicitas em D, Antonio Marto, enquadrando-se o tema da Beleza na proposta da esté- tica teolégica, na perspetiva profética de H. U. von Balthasar. Percorrendo as Sagradas Escrituras e os itinerarios do pensamento das tradicées classica e hebraico-crista, os textos dos Padres e dos tedlogos do Ocidente catélico e do Oriente ortodoxo, Gianfranco Ravasi e Marko Ivan Rupnik refletem, respetivamente, sobre o sentido teol6é- gico do Belo e das suas manifestac6es, e o seu efeito na revelacao divina e na relacao da humanidade com o Mis- tério Trinitdrio. A recorréncia a linguagens simbdlicas ea referéncia a express6es de poetas, escritores e artistas, é outra cons- tante comum aos trés autores, integrando as perspetivas das artes, da estética e da mistica, como elementos intrinsecos da questo da beleza e da propria Revelacao. Um estilo de reflexao aberta a outras especialidades, e em aproximacées sucessivas, parece configurar um novo paradigma do pensamento teoldgico; nao j4 a pro- cura do sentido do Belo ou da Beleza, a partir de uma teologia abstrata, mas o inverso, uma teologia que inclui 5 a experiéncia espiritual, a interdisciplinaridade e a reali- dade da existéncia humana na sua totalidade. Neste conjunto de textos, salienta-se ainda uma caracteristica particular: sio abordagens muito persona- lizadas que radicam numa experiéncia da fé vivida e re- fletida: Propdem a reconversdo de alguns enfoques que persistem na teologia e na exegese, e propéem a arti- culacdo do pensamento teolégico com a dimensao esté- tica da fé e da Revelacao. Da beleza formal destas intervencées irradia 0 es- plendor dos respetivos contetdos. Pertence-nos captar e transmitir 0 seu fulgor. EMiLiA NADAL Abril, 2012. ANTONIO Marto 0 Cruistianisamo porte de Nima culhuce de Bel. & & ee D. ANTOn1o Aucusto pos SANTOS MARTO Nasceu em 1947, no concelho de Chaves. Estudou Teologia Sistemética na Pontificia Universidade Gre- goriana de Roma, onde fez o doutoramento. De- senvolveu importante atividade docente no Instituto de Ciéncias Humanas e Teoldgicas (Porto), no Cen- tro de Cultura Catélica (Porto), na Faculdade de Teologia e na Faculdade de Direito da Universidade Catélica Portuguesa (Porto). Nestas instituiges, in- tegrou diversas comissées, tanto ao nivel cientifico como diretivo. E membro da Sociedade Cientifica da Universidade Catélica e da Associacao Europeia de Tedlogos Catélicos. Foi sagrado bispo em 2000, e desempenhou o cargo de Bispo Auxiliar de Braga, de 2001 a 2004, de Bispo de Viseu, de 2004 até 2006. Neste ano, rece- beu a nomeacao para Bispo de Leiria-Fatima. Tanto na sua produgSo teoldgica como na pratica pastoral tem dado uma atencdo privilegiada ao tema da be- leza. Publicou, entre outros, os seguintes titulos: Eucaristia e Beleza de Deus (2005), Descobrir a be- leza e a alegria da vocagéo cristé (2006), A beleza do rosto trinitério de Deus na mensagem de Fatima (2007). «Sabeis que a humanidade pode passar sem os Ingle- ses, pode passar sem a Alemanha, nada lhe resulta mais facil do que passar sem os Russos, para viver nao neces- sita de ciéncia nem de pio, mas s6 a beleza lhe é indis- pensavel, pois, sem beleza, j4 nao haveria nada a fazer neste mundo! Ai reside todo o segredo; toda a historia esta ai» '. Assim exprime Dostoievski a sua profunda convic¢ao, na obra Os possessos. Uma outra grande figura do realismo russo, Gogol, abandonado as suas amargas ilus6es, exclama: «Como é terrivel a nossa vida e os seus contrastes entre o sonhoe a realidade... Mais te teria valido, 6 beleza, nao existir, permanecer alheia a este mundo...!»”. Por sua vez, no primeiro volume da sua monumental obra Gléria. A percecao da forma, H. U. Von Balthasar es- creve que «a nossa palavra inicial se chama beleza» e que «a beleza é, também, a ultima palavra que o intelecto pensante pode ousar pronunciar!» E a razdo da afirma- 1 Citado por Paut EvDoximoy, Elarte del icono. Teologia de la belleza, Madrid, 1991, p. 41. 2 Ibidem, p. 42. ao é que o homem é imagem de Deus-beleza e palavra de resposta ao Deus vivo, por conseguinte forma (ima- gem) que nao coarta o espirito e a liberdade, mas se identifica com eles. Perante as imagens insuportaveis do horror e da an- gustia, deve ser, pois, proposta a questao da estética teo- légica, da teologia da beleza em relacado com a cultura e as diversas formas da arte. No centro da nossa reflex4o es- tara a cruz, acontecimento absolutamente decisivo, no qual o homem é definido pela «forma de Cristo» (G14,19), onde a beleza de Deus se manifestou de forma paradoxal e suprema, por conseguinte, na sua originalidade. A atualidade do belo: entre a utopia e o desencanto, «a via da beleza» A época da chamada modernidade € caracterizada pela «raz4o forte», absoluta, e pela utopia: a época em que a razdo moderna pensava ter compreendido tudo e em que a vontade de poder das ideologias pretendia impor a realidade, complexa e dramatica, a totalidade clara e sem sombras da ideia, a aspiracdo utépica de um «reino do homem» perfeito. Nesta ambi¢do, nao restava espaco para a beleza, porque nao pode haver lugar para ela onde ndo se reconhe¢a o que esta mais para além da realidade, o indizivel, o inefavel, 0 mistério. A beleza evoca, nao captura; suscita, ndo prende; invoca, nao pre- 10 sume. Por isso, no tempo da utopia da razo adulta, a beleza foi exilada ou reduzida a cAlculo ou kitsch. Afirma von Balthasar: «A beleza desinteressada, sem a qual o velho mundo era incapaz de compreender-se, despediu- -se, na ponta dos pés, do mundo moderno dos interes- sés, para abandonéa-lo a sua cupidez e A sua tristeza» *. A consequéncia dramatica deste exilio da beleza esta na inevitavel perda do sentido do verdadeiro e do bem: «Num mundo sem beleza... também o bem perdeu a sua forca de atra¢o, a evidéncia do seu dever ser cumprido... Num mundo que no se cré mais capaz de afirmar 0 belo, os argumentos em favor da verdade esgotaram a sua forca de conclusao légica»®. De igual modo se exprimiu A. Solzenitzyn, em Esto- colmo, ao receber o Prémio Nobel: «O mundo moderno, agarrando-se a grande Arvore do ser, partiu o ramo da verdade e do bem. Resta sé o ramo da beleza, e compete- -lhe, agora, assumir toda a linfa do tronco. A forca de conviccdo que esta insita numa auténtica obra de arte é absolutamente inconfundivel, obriga a submeter-se, mesmo 0 coracdo mais hostil» ®, No final da época moderna, torna-se urgente uma re- cuperacao da beleza da verdade e do bem que os torne 3 Cf, BRUNO FORTE, La porta della bellezza, Per una estetica teologica, Bréscia, 1999, pp. 61-63. 4 Hans U. von BALTHASAR, Gloria I. La percezione della forma, Miléo, 1975, p. 10. 5 Ibidem, p. 11. © Citado por C. M. Martini, Coraggio, non temetel, Bolonha, 2000, p. 486. 11 amaveis porque, como diz Sto. Agostinho, «sé se pode amar 0 que é belo»’. A uma humanidade que descobriu tao intensamente a mundaneidade do mundo e pro- curou emancipar-se de toda a perspetiva estranha ao horizonte terreno, é necessario, mais do que nunca, propor a verdade amavel, o bem atraente, o «escandalo», ao mesmo tempo fascinante e inquietante da humani- dade de Deus. Quer dizer, é necessdrio redescobrir a chave estética da aproximag4o a verdade que salva, ao bem que liberta. A cultura da pés-modernidade é caracterizada pela razao débil e pelo desencanto em que a visdo totalitaria da razdo cedeu o lugar a uma visao fragmentada, a mas- sificacdo das ideologias deu lugar a multidao de solidées. Nesta cultura niilista, do vazio de verdades e valores uni- versais, de suspeita em rela¢do a todos os grandes hori- zontes de sentido, sé a beleza pode oferecer-se como via de encontro com aquilo pelo qual valha a pena viver e viver juntos, com aquilo que seja capaz de vencer a dor e a morte, e dar esperanga a vida. Entre a utopia e o desencanto apresenta-se-nos, hoje, a redescoberta do belo, «a via da beleza» como metafora de um caminho possivel e fecundo para restituir aos fragmentos um horizonte de sentido e captar, na Ver- dade, no Bem e no Amor tltimos, a verdadeira fonte da dignidade e da beleza de cada fragmento. 7 Acostinuo DE Hipona, De Musica, VI 13, 33. 12 «O homem ndo pode viver num mundo sem beleza e esta é, em Ultima instancia, um reflexo e uma participa- &o da gloria (beleza) de Deus. Depois de séculos de sa- turac4o pela moral e pela psicologia, a consciéncia con- temporanea reclama a estética e a mistica»®, nota Olegario de Cardedal. E preciso, pois, abrir-se ao sentido do belo, a ser edu- cado ao amor da beleza que salva, oferecida na revelacao crista. $6 a compreensio da beleza da verdade e do bem podera estar em condicées de falar com eficdcia ao mun- do humano, demasiado humano, que é o nosso mundo pos-moderno, a razdo e ao corac4o do homem pés- -moderno. Ele nao tem necessidade de provas de for¢a (apoditi- cas), depois de tantas oferecidas pelas ideologias. Nao tem sequer necessidade de rentincias débeis, de um esté- ril refugio no privado individual. Aquilo de que todos temos necessidade é da oferta da proximidade do Amor, capaz de misericérdia e compaixdo - redentor. O rosto da verdade e do bem que mais pode atrair a si a humanidade é 0 da beleza humilde do Amor eterno, in- carnado e crucificado. A estética teoldgica é chamada a anunciar aos homens, em chave de beleza, a alegria da salva¢do que, no Verbo incarnado, lhes foi e é dada. Revisitar as linguagens da beleza, na meméria teol6- gica e cultural do Ocidente é, pois, o caminho para res- ® OLecariO DE CARDEDAL, La entratia del cristianismo, Salamanca, 1997, p. 130. 13 Silt ponder 4 questo decisiva sobre onde e como podera ser possivel, ao pensamento moderno e aos homens de hoje, reapropriar-se da via salvifica da beleza, e como ela é fonte de uma cultura de beleza. A Beleza que salva Na Carta aos Artistas, o papa Joao Paulo II aponta o advento da beleza salvifica no mistério da encarna¢do: «Fazendo-se homem, o Filho de Deus introduziu, na his- téria da humanidade, toda a riqueza evangélica da ver- dade e do bem e, através dela, pés a descoberto também uma nova dimensao da beleza, de que esta completa- mente cheia a mensagem evangélica» °. De facto, Jesus Cristo, Verbo encarnado, é 0 ponto culminante de toda a Beleza divina que se manifesta na criac&o e ao longo da Historia da Salvacao. B a beleza de Deus manifestada no mundo, de modo humano, unico e irrepetivel. A figura de Cristo é figura suprema do belo. Mas como entendemos a beleza? Em que relacao est com o bem, com Deus, com as realidades profundas e ultimas do homem e da historia? Pode ajudar-nos, nesta compreensdo, um autor russo: Dostoievski. No seu ro- mance O idiota, pée nos labios do ateu Hipélito a se- guinte pergunta ao principe Mi8kin: «E verdade, prin- * Joo Pauto II, Carta aos Artistas, 1999, n.° 5. 14 cipe, que disseste, um dia, que a beleza salvara o mundo? Senhores - gritou forte para todos -, 0 principe afirma que o mundo seré salvo pela beleza... Que beleza salvara o mundo? O principe fez siléncio...» A pergunta fica em suspenso. Mas 0 siléncio de Mi8kin ~ que estd cheio de compaix4o, ao lado dum jo- vem prestes a morrer de tuberculose, aos 18 anos — parece querer dizer que a beleza que salva o mundo é o amor que partilha a dor”. O grande autor russo pensa na beleza redentora de Cristo. Respondera a esta per- gunta, numa carta 4 sobrinha Sénia Ivanova, dizendo: «No ha nem pode haver nada mais belo que Cristo. Existe no mundo um unico ser absolutamente belo, o Cristo, mas a aparicdo desse ser infinitamente belo é, com certeza, um milagre infinito» Abeleza de que aqui falamos nao 6, pois, a beleza ex- terior, sedutora e efémera. £, antes, aquela beleza «tao antiga e tao nova» que Santo Agostinho confessa como objeto do seu amor purificado pela conversio, ao excla- mar: «Tarde te amei, 6 Beleza sempre antiga e sempre nova, tarde te amei!» Para ele, a beleza nao é qualquer coisa, mas Alguém, o Tu amado ~ a Beleza de Deus que transparece no rosto de Cristo, o Pastor belo que da a vida pelas suas ovelhas. Sera pois a hora pascal a revelar o rosto desta beleza. 1° C£. C, M. Martini, Quale bellezza salvera il mondo?, Milao, 1999, p. 11. 11 F, Dostolgvski, «Lettera alla nipote Sonia Ivanova», in L'Idiota, Milao, 1982, p. XII. 15 A Tradi¢ao da Igreja exprime a beleza de Cristo com as palavras do Salmo 45[44],3: «Tu és o mais belo entre os filhos dos homens; dos teus labios derrama-se a graca.» A Igreja 1é este salmo como expresso poética e profé- tica da relacdo esponsal de Cristo com a sua Igreja. A gtaca que se derrama dos seus labios significa a beleza intima da sua palavra de graca, a beleza do seu anuncio de salvacao. £ a beleza de Deus que nos atrai e nos faz correr ao encontro do Amor que nos chama e salva?2. Mas, paradoxalmente, a liturgia crista também aplica a Cristo o texto de Isaias 53,2: «Nao tem beleza, nem aparéncia. Vimo-lo: um rosto desfigurado pela dor.» Como se conciliam estas duas visdes? O mais belo entre os filhos dos homens é tao miserdvel de aspeto que nos recusamos olha-lo, privado de toda a beleza exterior. Santo Agostinho vé, neste paradoxo, um contraste, mas nao uma contradicdo. Escutemo-lo num texto ver- dadeiramente genial: Duas flautas tocam de modo diverso, mas um mesmo Es- pirito sopra dentro delas. Diz a primeira: «Ele 6 o mais belo entre os filhos dos homens» (SI 45,3). E a segunda, com Isafas, diz: «Vimo-lo: nao tinha beleza nem aparéncia» (53,2). As duas flautas sao tocadas por um tnico Espirito: elas nao podem soar dissonantes. Nao deves renunciar a ouvi-las; Cf, J. RaTZINGER, In cammino verso Gesi Cristo, Cinisello Balsamo, 2004, p.27. 16 deves, antes, procurar compreendé-las. Interroguemos 0 apéstolo Paulo, para ouvir como nos explicou a perfeita har- monia das duas flautas. A primeira toca: «O mais belo entre os filhos dos homens», porque «embora sendo de condicao divina, nao considerou como uma usurpa¢ao ser igual a Deus» (Fl 2,6). Eis pois em que aspeto supera em beleza os filhos dos homens. A segunda flauta toca também: «Vimo-lo: nao tinha bele- za nem aparéncia», isto porque «despojou-se a si mesmo, assumindo a condicdo de servo e tornando-se semelhante aos homens, sendo identificado como homem» (Fl 2,7). «Ele nao tinha beleza nem aparéncia» para te dar a ti bele- za e aparéncia. Que beleza? Que aparéncia? O amor da cari- dade, a fim de que tu possas correr amando e amar corren- do... Contempla Aquele pelo qual foste feito belo”. £ o amor com que Cristo nos amou que transforma o «homem das dores, diante do qual se tapa 0 rosto», no «mais belo dos filhos dos homens»: Cristo, o Amor cruci- ficado, entregue até a cruz, revela — porque o é em pes- soa ~ a Beleza que salva o mundo“. E a beleza que fere, mas que, deste modo, chama o homem ao seu destino ultimo: a salva¢do. Um tedlogo bizantino do séc. XIV, Nicolau Cabasilas, ilumina ainda mais este aspeto: «Seres humanos que ali- mentam em si um desejo humano tao poderoso que 33 AcosTINHO DE HironA, Joahnnis Epistulam, IX, 9. 14 Cf. B. Forte, Seguendo Te, luce della vita, Milao, 2004, p. 179. 17 supera a sua natureza, que anseiam mais de quanto ao homem seja licito esperar, estes seres foram feridos pelo Esposo, que feriu os seus olhos com um raio da sua be- leza. A amplidao da ferida revela quéo grande é a irra- dia¢do; a intensidade do desejo deixa intuir quem langou o dardo», E o encontro do corag&o com a beleza, o ser-se atin- gido pelo dardo da beleza, ser-se tocado pela presenga pessoal de Cristo. Quem cré em Deus, no Deus que, precisamente no rosto desfigurado do crucificado, se manifestou como amor até ao extremo, sabe que se trata da beleza do Amor que excede toda a inteligéncia e todo o conhecimento. No paradoxo de Cristo, a experiéncia do belo recebe uma nova profundidade, um novo realismo. Falar da be- leza da cruz significa, pois, falar de beleza num sentido «convertido». A cruz obriga-nos a repensar e a ampliar a nossa nocdo de beleza e a dizer a verdade da beleza do proprio Deus. K. Barth e von Balthasar insistem muito neste ponto. A no¢4o crista de beleza - e em especifico da beleza divina - deve compreender também a cruz «e tudo aquilo que para uma estética mundana... é arru- mado como ndo mais suportavel» "6. A cruz dé um sen- tido novo ao aforismo de Rilke, na primeira das Elegias a Duino: «O belo nao 6, de facto, outra coisa sendo 0 inicio +5 Citado por J. RATZINGER, 0.c., p. 29. 18 HU. voN BALTHASAR, 0.c., p. 175. 18 do horrendo» *”. No rosto desfigurado de Cristo aparece a auténtica e extrema beleza do Amor que ama até ao fim, mostrando-se mais forte que toda a mentira e vio- léncia, pecado e morte. A desfiguracao e a deformidade de Cristo na cruz, por causa da cruz, revelam esse outro tipo dialético de bele- za, tao proprio da visao crista do homem: «A sua defor- midade foi a nossa beleza» #8; «a humilhacdo de Cristo éa nossa gloria; a sua glorificacdo é 0 nosso desafio» "°. E preciso aprender a «ver» Cristo. Nao basta conhecé- -lo por palavras. £ preciso deixar-se ferir pelo dardo da sua beleza paradoxal através do encontro pessoal com Ele, com o seu amor. N§o se trata pois da beleza como uma propriedade formal e exterior, mas do modo de ser préprio de Deus a que aludem os termos biblicos «gléria, esplendor, fasci- nio», isto 6, manifestag4o da sua santidade, da sua mise- ricérdia, do amor entranhado, da graca vivificante, do poder ressuscitador. E isso que provoca fascinio e atrai, suscita surpresa agradavel e gratificante, dedicacao fer- vorosa, enamoramento, entusiasmo, assombro. E tudo o que o amor descobre na pessoa amada. A Beleza é, pois, o Amor crucificado, entregue até 4 morte, revelacdo do coracdo divino que ama, com o seu amor de misericérdia ea sua ternura fiel. 27 Ip,, Verbum Caro, Madrid, 2001, p. 115. 38 AGOSTINHO DE Hipona, Confissées X, 53. 18 LEAo Maeno, Sermo LXXIV, 4. 19 Todavia, a beleza do Crucificado nao pode ser sepa- rada da sua vitéria sobre a morte, a ressurreicao, en- quanto sinal da vitéria.de Deus na historia humana e transfiguracdo definitiva do rosto desfigurado. A cruz nao ¢ boa ou bela em si. Sé reveste beleza, enquanto ex- pressdo de um ato de amor. E 0 amor é belo porque, por fim, nao é derrotado, mas vence - mais forte do que a morte! Desejaria sublinhar que tudo isto nao é sé um proble- ma da teologia, mas também da pastoral, que deve voltar a oferecer ao homem o encontro com a beleza da fé. O encontro com a beleza pode tornar-se no golpe do dardo que fere a alma, abrindo-lhe os olhos, isto é, dando-lhe uma nova capacidade de ver a realidade pro- funda: o esplendor da beleza de Deus no rosto de Cristo, e da nossa vida com Deus em Cristo. Dard origem a uma nova cultura da beleza que se oponha e supere a cultura do feio, que procura convencer que toda a beleza é en- gano e que sé a representacdo da crueldade, da baixeza e da vulgaridade é verdade e iluminagao. O Cristianismo, fonte de uma cultura de beleza A liturgia, icone da beleza divina Este mistério da beleza de Deus em Cristo é expresso e comunicado aos homens, de modo singular e simbélico ~ sacramental, antes de mais, na liturgia crista. Como 20 diz S. Leao Magno «Quod erat visibile in Christo, transivit in eclesiae sacramenta», de tal modo que a liturgia é um lugar privilegiado do esplendor da beleza, particular- mente o mistério da Eucaristia. De facto, a Eucaristia é o mais alto icone da beleza de Deus revelada em Cristo, porque é a presenca real do «mais belo entre os filhos dos homens» (S] 45[44],3) na totalidade da sua pessoa de Crucificado-Ressuscitado e na plenitude do seu mis- tério: a beleza do amor que se dé a nés, que nos redime e transfigura, que nos revela o olhar do Pai que, de modo permanente, nos cria e nos faz bons e belos. Como diz S. Bernardo: «Deus ama-nos, n4o porque somos bons e belos; mas somos bons e belos, porque Deus nos ama.» A liturgia é, simultaneamente, culto e cultura. A voca- go duma liturgia inculturada é introduzir-nos, com todo o nosso ser, na grandeza e beleza do mistério da fé, na aco salvifica de Deus no seu Filho Jesus. A liturgia é bela, porque exprime a beleza da santi- dade de Deus. Ela permite a passagem do «para nés» ao «maior e mais intimo que nds», A liturgia sé é bela e ver- dadeira se desprovida de toda outra motivacao que nao seja a celebracao do Senhor. O préprio rito é o caminho da beleza. A beleza dos ritos, dos sinais e simbolos, dos gestos, dos cAnticos e dos ornamentos da celebracdo tem como finalidade introduzir-nos no encontro com o mis- tério de Cristo, que renova para nds, sem cessar, 0 seu sacrificio de amor. Ela exprime a beleza da comunhao com Ele e com os irmos, a beleza duma harmonia pro- 21 funda que se traduz em gestos, simbolos, palavras, ima- gens e melodias, que tocam profundamente o cora¢4o e o espirito, que suscitam o assombro, o deslumbramento de encontrar o Senhor ressuscitado «Porta da Beleza». A liturgia é também «porta da beleza», através da qual irradia para nés a beleza divina e nés a contemplamos e nos deixamos envolver por ela. Era a ora¢do eucaristica de Teresa, Doutora da Igreja: «Meu Bem amado, vem viver em mim. Oh! Vem, a tua beleza arrebatou-me. Digna-te transformar-me em ti!» Aarte, epifania da beleza A experiéncia crist4 precisa de ser traduzida na lin- guagem da beleza, na linguagem artistica, como diz Joao Paulo II, na Carta aos Artistas: «Para transmitir a mensa- gem que Cristo lhe confiou, a Igreja tem necessidade da arte. De facto, deve tornar percetivel e, até, o mais fasci- nante possivel, o mundo do espirito, do invisivel, de Deus. Por isso, tem de transpor para formulas significa- tivas aquilo que, em si mesmo, é inefavel. Ora a arte tem uma capacidade muito prépria de captar os diversos as- petos da mensagem, traduzindo-os em cores, formas, sons que estimulam a intuicdo de quem vé ou ouve»”4, E o Papa relé, no seu documento, toda a historia da 0 Cf, Lufs MALDONADO, Liturgia, Arte, Belleza. Teologia y estética, Madrid, 2002, pp. 81-96. 1 JoKo Pauto II, Carta aos Artistas, n.° 12. 22 salvacdo, até aos nossos dias, para mostrar como o mis- tério cristao na Biblia foi, desde as origens do Cristianis- mo, uma fonte rica de inspirac4o artistica. Durante sécu- los, tem sido o maior reportério simbélico e iconografico da humanidade. Como dizia Paul Claudel, um «imenso dicion4rio de simbolos», «os vitrais transparentes do nosso apocalipse»; ou, segundo Eliot, «o jardim da ima- ginacdo»; e ainda, no dizer de Chagall, «o alfabeto cor da esperan¢a», «um atlas iconogrdafico» onde a cultura ea arte foram beber. Quem observar com atenc&o, aperceber-se-A de que nasceram e continuam a nascer, através da inspiragdo da fé crista, obras de arte notaveis, tanto no Ambito da imagem como no da miisica e da literatura.. Em sintese admiravel e densa, von Balthasar mostra como a fé se torna for¢a inspiradora de artistas crentes e nao crentes e do belo que resplandece nas suas obras: O belo voltard a existir tio somente se — entre a salvacdo teologal e o mundo perdido no positivismo e na falta de cora- ¢4o — a energia do coracdo cristao se tornar suficientemente grande para experimentar o cosmo como revelac¢ao de um abismo de graca e amor absoluto e incompreensivel. Nao meramente «crer», mas experimentar. E claro que Dante, Shakespeare e Calderén foram capazes disso. Mas mais surpreendente é que também Eichendorf e Runge, que se encontravam ja presos do fragmentario, o con- seguissem de igual modo; para j4 ndo falar do milagre de Mozart que, separado de todo 0 auténtico mundo mitico, por 23 um muro de convencionalismos, tem a suficiente energia de cora¢do para ver todo o convencional a luz do auténtico e infundir a todo o ser criado um som, que é ao mesmo tempo cristao e césmico. A sua maneira, de modo discreto, também Hopkins al- canga a pureza de uma harmonia e o seu coragdo mantém tenso 0 arco que vai desde as «exercitagées espirituais» até a criagao, experimentada de maneira verdadeiramente mitica. O mundo total de Claudel, que ele chamava catélico, mas que, a mitdo foi acusado de conter inconscientemente ele- mentos pagaos, é um mundo de natureza e graca, de Céue Terra, de Biblia e natureza, de eros e caritas, de prazer na con- criatura e de humilhagdo, de paixdo fria de descobridor e de amor mistico ao mistério insondavel: este mundo sé pode ser hoje o produto de um cora¢o cristo cheio de energia. Ne- nhum outro autor deu, no nosso século, um sim tao rotundo ao ser, na sua totalidade, por muito que queiram critica-lo os existencialistas. E, a seu lado, ndo tao vitoriosamente compacto, mas tal- vez com maior energia de cora¢4o, na sua combinacao de «alma pag e alma cristd», esta Charles Péguy, cuja poesia se converte diretamente em ora¢do e em monélogo de amor de Deus Pai, a vista do mundo criado por Ele, com o seu Filho morto no centro, envolvido no suave obscurecimento da noite... Mas, certamente, a hora atual é a hora da falta de amor que priva radicalmente os seres da sua beleza eterna”, 22 H. U. von BaLrHasar, Verbum Caro, pp. 118-119. 24 Para definir a influéncia decisiva que 0 mistério cris- t4o tem na arte, poder-se-ia também partir de um artis- ta concreto, de um escritor, de um poeta, de um misico, de um pintor, de um cineasta e, até, de cada uma das suas obras, dos seus quadros ou filmes. Mas isso seria uma tarefa ciclépica, para a qual me falta talento! Gos- taria de sugerir o modelo de Marc Chagall. O que ele diz da Biblia, pode referir-se a todo o mistério cristao: «Eu néo li a Biblia, sempre a sonhei. Sempre me pareceu e continua a parecer que é a maior fonte de poesia de todos os tempos. A Biblia é como uma ressonancia da natureza e procuro transmitir este segredo»”°, G. Ba- chelard dizia: «Chagall lé a Biblia e, imediatamente, as personagens biblicas se convertem em luz», E a sinto- nia da fé com uma mensagem que é infinita, mas que é também carne, sangue, lagrimas, riso, musica, cores, simbolos, aromas, desejo insaciavel, vida. A Biblia é 0 canto da presenca de Deus, no meio destas lagrimas e deste gozo, e Chagall vé na dor e na in- felicidade da existéncia humana a reprodug4o da Biblia quase em filigrana, numa genuina atualizacao. A exegese visual de Chagall esta orientada pela fé ea fé é abertura ao infinito; é a tentativa de romper o silén- cio do mistério, Chagall é o cantor do novo dia da histé- 2 G. Ravast, Biblia y cultura: arte, in P. RossaNo-G. Ravasi-A. GIRLANDA (dir.), Nuevo Diccionario de Teologia Biblica, Madrid, 1990, p. 206. 24 Ibid,, p. 207. 25 ria da salvag4o, um dia de esperanga e de cores, purifi- cado pelas lagrimas. A interag4o fecunda entre a fé e a arte é de tal forma que, segundo o tedlogo Marie-Dominique Chenu, citado pelo papa Jodo Paulo II, «o historiador da teologia faria obra incompleta, se nao reservasse a devida atencao as realizac6es artisticas, literdrias ou plasticas, que consti- tuem, a seu modo, ndo sé ilustrag6es estéticas, mas ver- dadeiros lugares teoldgicos» 75. E J. Ratzinger, a seu modo, confirma: «Ouvindo Bach e Mozart, na igreja, ambos nos fazem sentir, de modo magnifico, a gléria de Deus: nas suas musicas encontra- -se o infinito mistério da beleza, deixando-nos experi- mentar, mais do que em muitas homilias, a presenca de Deus, de forma mais viva e genuina» *, A beleza da santidade «Nem todos sao chamados a ser artistas, no sentido especifico do termo. Mas, segundo a expressdo do Génesis, todo o homem recebeu a tarefa de ser artifice da propria vida: de certa forma, deve fazer dela uma obra de arte, uma obra-prima» ”. Cada um de nés pode e deve fazer da prépria existéncia, pessoal e comunita- ria, algo de belo, um anuncio da beleza de Deus, reflexo da sua santidade. ?5 JoKo Pauto II, Carta aos Artistas, n.° 11. 28 J, RatzineEr, Introdugiio ao esptrito da liturgia, Lisboa, 2001, p. 108. 27 JoAo Pauto II, Carta aos Artistas, n.° 2. 26 A santidade da existéncia é expresso incarnada da beleza da vida em Cristo e com Cristo, que se faz cultura quotidiana na retiddo da consciéncia e da vida, no dom de si, no servico da caridade. Como diz Sto. Agostinho: «Quanto mais cresce em tio amor, mais cresce a beleza, porque a caridade é a beleza da alma.» Ha um dado evangélico que nos ajuda a reconhecer a beleza da santidade. Sublinha-o Pavel Florenski, o «Leo- nardo da Vinci russo», génio da ciéncia e do pensamento filoséfico e teolégico, sacerdote de Cristo e martir do ex- terminio estalinista. Comentando Mt 5,16 («Assim res- plande¢a a vossa luz diante dos homens para que, vendo as vossas boas obras deem gléria ao vosso Pai que esta nos céus»), ele observa que «os vossos atos bons» nao quer dizer «atos bons» em sentido moralista. Quer dizer «atos belos, revelagées luminosas e harmoniosas da per- sonalidade espiritual - sobretudo, um rosto luminoso, belo, de uma beleza através da qual se expande para fora aluz interior do homem ~ e, ent4o, vencidos pela irre- sistibilidade desta luz, os homens louvam o Pai celeste, cuja imagem resplandeceu assim sobre a terra»”*. Onde a caridade irradia, ai aflora a beleza que salva, ai se louva o Pai celeste, ai cresce a unidade dos homens em Cristo. % Paver A. FLORENSKC, Le porte regali. Saggio sull'cona, Milao, 1999, p. 50. 27 A consolagéo da beleza O antigo contencioso entre beleza e dor tem uma fi- gura de resolu¢do: a consolacéo”*. Um sofrimento nao negado pode encontrar sentido e respirac4o, se encontra uma pessoa ou um acontecimento capaz de derramar o 6leo da consolacao sobre as suas feridas. Tudo permane- ce idéntico e, todavia, cada coisa é vista de modo novo: quando uma luz dourada recai sobre os objetos, que esti- veram sempre diante dos nossos olhos, eles, embora permanecendo idénticos, nao sao mais o que eram antes. Nada mais longe da consolacdo do que o esqueci- mento que se limita a envolver as coisas num cinzento nublado. E uma experiéncia insita na alma humana, que o belo pode consolar, que, entre os seus bracos, o peso da exis- téncia encontra alivio. O belo pode ser consolador, mas nao é uma terapia. Propor, a quem esta mergulhado na dor, a beleza como resposta que vence o seu sofrimento, é cair numa pretensdo impiedosa. A dimensao de consolacao ligada a beleza s6 é possi- vel, se somos surpreendidos pelo belo e nao o considera- mos alheio ao mundo da dor e do sentido. A beleza capaz da consolag4o testemunha que é possivel aceder e abrir- -se a uma «outra dimensdo», diversa e mais intensa do que a dimensdo quotidiana, que projeta um raio de luz » Cf. P. Srerant, «La consolazione della bellezzam, in Il Regno, 12 (2004), p.436. 28 sobre a «noite escura» de Sexta-Feira Santa, e uma pala- vra de esperanca sobre o siléncio sepulcral do Sabado Santo da histéria, que esta entre a dor da Cruz e a ale- gria da Pascoa. A noite é um simbolo muito usado para descrever situagées interiores da mente e do coracao, mas também situa¢6es exteriores da histéria. Basta pensar numa das obras mais conhecidas da mistica catélica: a Noite escura de S. Joao da Cruz. E um livro belissimo, que comeca com um cantico da alma do préprio santo — um dos can- ticos mais famosos de toda a literatura espiritual -, cuja primeira estrofe recita: Numa noite escura Com dinsias de amor toda inflamada O feliz ventura! Sai sem ser notada Estando jé a minha casa sossegada. Podemos recordar também a afirmacao de Pascal, quando, referindo-se a uma sua noite luminosa, excla- mava: «Deus de Abrado, Deus de Isaac, Deus de Jacob... Alegria, alegria. Lagrimas de gloria!» A beleza destes instantes nao é uma fuga. Eles pro- vam, para si e para os outros, que o viver tem um signifi- cado, um sentido, e indicam que, se nem tudo é ainda resgatado, algum fragmento ja o pode ser e, precisa- mente por isso, nao fica fechado em si mesmo. O adjetivo «inesquecivel» ou a expressdo «nao esque- 29 cido», que caracterizam estas experiéncias de beleza, ao longo da repetitividade dos dias, confirmam que esses instantes ndo ficam fechados em si mesmos; sao «outra coisa», mas a sua recordacdo acompanha-nos, ao longo do caminho quotidiano. O seu carater fragmentario, guardado na memoria, pode assim transformar-se em esperanca de uma plenitude ainda nao alcancada. Para uma antropologia teolégica que nao se confronta s6 com a natureza, mas cré na criagdo e na ressurreicao, o sofrer pode estar para a beleza como as dores para o parto. Alguma coisa deve nascer, mas, quem veio a luz, é ainda s6 uma primicia a espera de um renascimento maior. A beleza é consoladora, somente, se desabrocha na esperanga. Mas para ser digna da esperanga, deve tomar a sério o sofrer universal, na solidariedade e na compaixdo. A civilizagéo da beleza e do amor A experiéncia crista tem em si uma forga intrinseca de irradia¢ao, para o mundo, da beleza que salva. A fé, a esperanca, a caridade, vividas no mundo e celebradas na liturgia, sdo fonte de uma cultura humanistico-social, na medida em que s4o portadoras de atitudes e comporta- mentos pessoais e sociais, nos varios 4mbitos da convi- véncia humana: 0 testemunho do mistério, a experién- cia da fraternidade, o espirito da reconciliacao e da paz, o sentido da partilha e da solidariedade, a forca da espe- 30 ranga, a busca da justica, a experiéncia da Igreja como «casa e escola de comunhAo», as atitudes de acolhimento e hospitalidade, a dimensao festiva da vida, a celebracao do domingo como principio de humaniza¢4o e de repou- so interior e exterior dos homens com Deus, com os outros e com a natureza, sdo atitudes fundamentais que configuram uma espiritualidade incarnada no mundo, contributo indispensdvel para construir a civilizacdo da Beleza e do Amor. Nao ha beleza sem amor; e onde ha amor, ai ha beleza! Acontemplacdo da beleza O belo é para contemplar. E da ordem do olhar, e nao do tato. Uma cultura sem beleza é uma cultura sem con- templa¢4o; e uma cultura sem contemplacao é uma cul- tura sem beleza. Mas a contemplac4o requer uma con- versao do olhar interior e exterior, requer o despertar da capacidade simbélica do homem, a unidade de concen- tracao dos sentidos corpéreo-espirituais. A uma sociedade como a nossa, que quer viver tudo em pouco tempo, é preciso opor e propor a coragem do longo prazo, do tempo, da liberdade e da concentracao do espirito e dos sentidos. O ritmo da sociedade apres- sada, pressionada, estressada nao é conciliavel com a verdadeira percecao, a interiorizacao, o deslumbramento ea contemplacdo. A velocidade a qual se sucedem as imagens de um 31 videoclip nao nos permite olhd-las verdadeiramente. Hoje, aprende-se a falar de uma obra, mas néo se apren- de a deixar-se penetrar pelo sentido real que nela esta presente e que dela emana. E preciso encorajar tudo o que estimula a nossa facul- dade de contempla¢ao, para que a beleza nos atraia, nos transforme. Paul Ricoeur falava da «segunda ingenui- dade», tao necessaria, depois do Século das Luzes. Nao é um sinal de fraqueza, mas antes de grandeza do homem, deixar-se emocionar, porventura até as lagrimas, pelo Belo e pela Beleza que salva. Jean Guitton, falando da arte, cita esta frase de Bra- que: «A obra de arte comeg¢a por um problema e acaba por uma oracdo» *°, Falando nés da beleza, terminemos também com uma ora¢4o que é uma obra de arte, um hino a Beleza que salva, e nos convida a contemplé-la: «Bem eu sei a fonte que mana e corre», de S. Jodo da Cruz, em que Deus, no seu amor trinitario, é 0 mistério da fonte, e o mundo e os homens s4o 0 mistério da sede: Bem eu sei a fonte que mana e corre, Embora seja noite. Aquela eterna fonte ndo a vé ninguém E bem sei onde é e donde vem, Embora seja noite. %0 JeaN GITTON, Ultimas Palavras, Lisboa, 2000, p. 130. 32 Nao sei a fonte dela, que néio ha, Mas sei que toda a fonte vem de ld, Embora seja noite. Nao pode haver, eu sei, coisa tao bela E céus e terra, beleza bebem dela, Embora seja noite. A claridade sua no escurece E sei que toda a luz dela amanhece, Embora seja noite. Tao caudalosas sao suas correntes Que regam céus, infernos e as gentes, Embora seja noite. E esta eterna fonte esta escondida Em este vivo pao a dar-nos vida, Embora seja noite. Aqui esté a chamar as criaturas Que bebem desta dgua, e ds escuras, Porque é de noite. Esta fonte viva que desejo, Em este pao de vida, ai a vejo, Embora de noite. 33 ot “he a . & ? @ F ALOTIEVLE & 1. Fach, oo LE Ee & INTRODUGAO «A beleza salvar4 o mundo», exclama o principe Miskin, no Idiota de Dostoievski. Uma frase tao concisa e volun- tariamente enigmatica pode suscitar uma miriade de duvidas. possivel que duas interrogacées ressoem de imediato na nossa mente, acima de todas as outras: como e porqué. Nas paginas que se seguem, Ravasi e Rupnik* apresentam uma solu¢do para estes quebra- -cabecas, tragando um percurso em que a experiéncia bi- blica e a reflexdo teoldgica se deixam fascinar pela cria- ¢&0 e pelo modo como o homem a tem representado. A palavra esta em primeiro plano na histéria biblica. Assim, Ravasi parte dos termos gregos e hebraicos, utili- zados para descrever a beleza. Através do percurso bi- blico, leva o leitor a reconhecer, na obra lida na integra, um «grande cédigo» estético. Embora os autores biblicos, avessos aos juizos estéti- * S40 dois contributos que também se podem encontrar em G. RAVASI, «Bellezza», in R. PENNA-G. PEREGO-G. Ravas! (ed.), Temi teologici della Bibbia (Temas teoldgicos da Biblia), Cinisello Balsamo, San Paolo, 2010, pp. 127-133; eem M. RurniK, «Bellezza», in G. BARBAGLIO-G. Bor-S. DIANICH (ed.), Teologia, Cinisello Balsamo, San Paolo, 2002, pp. 154-179, 36 cos, tenham deixado os seus interlocutores livres para imaginar o que foi narrado, os relatos de Gnie 2,no inicio da biblioteca sacra, revelam-se como a chave para abrir 0 escrinio que é fonte de deslumbramento diario do homem: a criacao. Nesta cenografia de carater tao excecional, cada artista, em busca de tracos de infinito, tenta fixar, na sua obra, tudo o que contempla e sobre o qual medita. Eis o percurso tracado, na segunda parte, pelo tedlogo e artista Rupnik. Analisando filésofos e escritores cristéos que tém participado em debates sobre a estética, traca um itinerdrio a volta do qual o pensa- mento ocidental e oriental se desenvolvem. Um amplo espaco é reservado A teologia oriental, em que a criatividade artistica e o pensamento se confron- tam e se interpelam, tentando compreender 0 divino. 37 CCARDEAL GIANFRANCO RAVASI Nasceu em 1942, em Merato (Lecco, norte de Ita- lia). Renomado biblista e hebrafsta, foi prefeito da prestiglada Biblioteca-Pinacoteca Ambrosiana de Milo e docente de Exegese do Antigo Testamento na Faculdade Teolégica da Italia Setentrional. ‘A sua vasta obra literdria, que se estende por cen- tena e meia de titulos, versa temas biblicos e de es- piritualidade, conseguindo, como poucos autores, extrair da Palavra 0 ouro da sua valéncia poética e sapiencial, Igualmente notavel é 0 modo como 0 seu pensamento mergulha tanto na tradicso como na contemporaneidade, num didlogo, polifénico, aberto, carregado de intensidade. E, atualmente, Presidente do Conselho Pontificio da Cultura, das Comissées Pontificias para os Bens Cul- turais da Igreja e de Arqueologia Sacra, e promotor do projecto «Atrio dos Gentios> (Cortile dei Gentili). £m 2007, foi ordenado arcebispo e, em 2010, no- meado cardeal pelo papa Bento XVI. coro RSE TIRE SI EE TI TE EE IE i : | \ / | t i | j BELEZA E MUNDO BIBLICO Gianfranco Ravasi O Belo é util «Em comparacao com o pensamento grego, impressio- na, antes de mais, a pouca importancia que o conceito do belo tem no Antigo Testamento. No seu conjunto, este problema nao suscita o interesse do pensamento bi- blico.» Esta declaracado bastante radical de W. Grund- mann, na entrada «Kalos» do Grande Léxico do Novo Testa- mento, é reiterada, em grande parte, por J. Wanke, na entrada andloga de outro léxico, o Diciondrio exegético do Novo Testamento, ao afirmar que, «nos dois Testamentos, o belo, no sentido da conce¢4o platénica e helenista, nao é tomado em consideracao». O mesmo exegeta — evo- cando as palavras paulinas «escAndalo» e «loucura» para a cultura em que o Cristianismo surgiu e floresceu [cf. 1Cor 1,23] - nota que «a cruz é, certamente, a mais radi- cal dissolug4o do conceito classico de perfeicao e beleza». Nao ha duvida que o mundo classico greco-latino de- dicou ao tema do belo reflexées de extraordinaria inten- sidade e fascinio, embora de formas muito variadas, 39 apesar de, em sentido estrito, a estética ser uma disci- plina relativamente recente, tendo sido, de certo modo, codificada, e tendo recebido este nome especifico, apenas no século XVIII, com Alexander Baumgarten. E evidente, porém, que a grande metafisica grega, sobre- tudo com Fedro e Banquete de Platao, tal como a gnosio- logia, ja tinham fornecido as bases para exaltar a ligacao entre ser, bem e belo, enquanto, com Plotino, se cele- brava o carater religioso do kalon, que ja nao é apenas epifania do ser em si, mas do Ser universal e divino, ver- dadeira teofania da Beleza transcendente. Além disso, como se sabe, a contemplacao pura e livre da harmonia das formas dava origem aos cAnones da arte e da litera- tura daquela civilizacao. Tudo isto — ha que reconhecé-lo - nao apaixona os autores biblicos, nos quais também esta ausente a ati- tude «romantica» de quem se detém, fascinado, perante as maravilhas césmicas ou o esplendor das formas, em- bora, a este respeito, se possam verificar algumas exce- es, como teremos ocasido de confirmar. Temos, com efeito, uma concec4o muito mais funcional do belo, tal como este aparece no Salmo 8 - um de muitos exemplos possiveis -, e como poderemos confirmar em seguida. Neste hino, o salmista contempla «os céus, obra das vossas [de Deus] mos, a lua e as estrelas que 14 colocas- tes», parecendo abandonar-se 4 descoberta dos im- ponentes espacos siderais, numa noite de calmaria; na verdade, a interrogac4o que dele brota é de alcance ético- 40 -teolégico: «Que é o homem para que vos lembreis dele, o filho do homem para dele vos ocupardes?» (v. 5). O préprio Jeremias, considerado por alguns como o profeta-poeta mais atento a beleza da natureza, quando se detém a admirar, por exemplo, a «verdejante oliveira de belos frutos» (11,16) ou «o cardo do deserto... [que] habita na secura do deserto, numa terra salobra» (17,6), fa-lo com atitude «ética», pronto a extrair, de imediato, uma moral para Israel. Poderiamos dizer, em sintese, que, embora seja ver- dade que o autor sagrado tem consciéncia da dimensao estética do ser césmico, humano e divino, a ponto de confessar que «sdo belas as coisas que [se] veem» (Sb 13,7), ele adota de imediato o metro teoldgico para interpretar essa beleza, como dira, de modo axiomatico, o sabio judeu-helenista do livro da Sabedoria: «Na gran- deza e na beleza das criaturas se contempla, por analo- gia, o seu Criador» (13,5). Um pouco de linguagem A funcionalidade teolégica ou ética da experiéncia es- tética é confirmada, em certo sentido, também a nivel lexical. O principal termo estético biblico - além de yapheh, ao qual regressaremos - é tub: este repete-se 741 vezes e revela um espectro semantico muito fluido, que vai desde «bom» a «belo», a «itil» e a «verdadeiro», a 41 ponto de a versdo dos Setenta recorrer a pelo menos trés adjetivos gregos diferentes para traduzir este vocabulo (agathos, «bom»; kalos, «belo»; chrestos, «atil»). De modo semelhante, no grego neotestamentario, o termo kalos, que aparece 100 vezes, é normalmente sinénimo de aga- thos, exceto num unico caso, quando Lucas recorda que, diante do templo herodiano de Jerusalém, «alguns di- ziam que estava adornado de belas pedras» (Lc 21,5). Esse vocdbulo, pelo contrario, destina-se sempre a deli- near as qualidades morais de um ato ou de uma pessoa, ou a sua capacidade funcional. Assim, por exemplo, fala- -se de «obras boas», de «boa conduta», de «boa conscién- cia», usando sempre 0 adjetivo kalos Como se sabe, Cristo autodefine-se, em Jo 10,11.14, como «pastor kalos», mas o significado primario — explici- tamente confirmado nas varias versées — é o de «bom pastor», e o mesmo acontece noutros usos desse adjetivo: «bom servo» (1Tm 4,6), «bom soldado» (2Tm 2,3), «bons administradores» (1Pe 4,10). S. Paulo usa o verbo kalo- poieo para indicar o «fazer 0 bem» (2Ts 3,13), sendo suges- tiva a exclamagdo da multidao, frente aos milagres de Jesus: «Fez kalos todas as coisas!» (cf. Mc 7,37), sendo evi- dente que esse kalos equivale ao advérbio «bem». Pode- riamos multiplicar os exemplos que confirmam o subs- tancial decalque do kalos neotestamentario sobre o tub hebraico, com uma aplicagao ética, teolégica ou ainda fun- cional, como quando se fala de fruto (Mt 3,10), de terreno fértil (Mc 4,8), de semente fecunda (Mt 13,24), de pérola 42 preciosa (Mt 13,45), de peixes comestiveis (Mt 13,48), de arvore de fruto (Lc 6,43), de melhor vinho (Jo 2,10). Dito isto, h4 que reconhecer, porém, que os autores sagrados nao ignoram a beleza como tal, de tal modo que, na Biblia, também aparece o termo yapheh, que tem uma ace¢ao sobretudo estética: «estupendo», «encantador», «belo», assim como na’wé evoca qualquer coisa «fascinan- te». Todavia, mantém-se uma espécie de ressaibo moral que — precisamente devido a uma gnosiologia simbdlica e unitdria, e uma andloga antropologia e cosmologia - pre- tende considerar sempre, de modo compacto, bem e belo, bom e admiravel, ética e estética. A esta afirmacdo, que ja formuldmos no inicio do nosso discurso, queremos pres- tar agora particular aten¢4o e confirmacao. Poesia biblica: coreografia de Deus O entrelacado entre bondade e beleza, mistério e per- tenga é constante nas Escrituras, podendo ser documen- tado de modo coerente e sistematico. Consideremos, por exemplo, aquela joia literaria que é o primeiro discurso de Javé em Job 38-39: as dezasseis grandes estrofes, marcadas por solenes interrogagées retéricas, nao tem por objetivo representar uma maravilhosa tapegaria de cenas césmicas e animais de tracos vivamente pict6ricos, mas sim revelar ao homem a existéncia de uma ‘zd, ou seja, de um «projeto» transcendente inerente a criacao, 43 e afirmar a sua legitimidade e coeréncia, nao obstante o seu carater aparentemente incompreensivel para a racio- nalidade humana. De igual modo, é verdade que outra admirdvel pagina poética, o Salmo 18A{19], descreve, de modo deslumbrado, o resplendor do Sol, comparando-o aum esposo que sai, ao alvorecer, do seu quarto nupcial, ou a um her6i atlético que se lanca numa corrida frené- tica, ao longo do seu trajeto; na realidade, porém, o sal- mista quer levar-nos a decifrar, nesse quadro luminoso, uma epifania da palavra divina césmica: «Os céus procla- mam a gloria de Deus e o firmamento anuncia a obra das suas maos. O dia transmite ao outro esta mensagem ea noite a dé a conhecer a outra noite» (vv. 2-3). A colossal coreografia césmica que o Salmo 148[149] implica nao é tanto um desfile de vinte e duas (ou vinte e trés) criaturas, tantas quantas as letras do alfabeto he- braico, sinal de plenitude, que deve ser admirado com assombro; trata-se, pelo contrario, de um coro de aleluias que se eleva ao Criador, no interior de uma espécie de ca- tedral césmica. O mesmo se deve repetir em relacao a outros textos de salmos, a primeira vista semelhantes a «um esbo¢o do mundo, pintado com algumas pinceladas», como é definido o grandioso cAntico das criaturas, que éo Salmo 103[104], pelo pai da moderna climatologia e oceanografia, Alexander von Humboldt (1769- 1859); na realidade, também nesse caso, o poeta biblico pretende exaltar a obra do Criador, que «envia o seu espirito» para dar origem a vida e «renovar a face terra» (cf. v. 30). 44 O mesmo entrelagado, entre estética e teologia, rege a extraordindria sequéncia narrativa das trinta e cinco pardbolas de Jesus (setenta e duas, se estendermos a lista as imagens e as metdforas desenvolvidas). Ele parte, como é dbvio, do panorama que tem a sua frente, feito de terrénos 4ridos, de sementes e de semeadores, de ervas daninhas e de messes, de vinhas e de figueiras, de ove- lhas e de pastores, de c4es, avezinhas, peixes, serpentes, abutres, escorpiées, arvores da mostarda, lirios, cardos, ventos, relampagos, chuva, seca e assim por diante. Tam- bém se detém perante pequenos quadros da vida social, como aquelas criancas que brincam nas pracas, as cenas nupciais, os construtores de casas e de torres, os traba- lhadores rurais e porteiros, os servos e donas de casa, filhos dificeis e vitivas corajosas, prostitutas e adminis- tradores corruptos, moedas e tesouros, mesas postas segundo as regras da pureza ritual, e outras coisas mais. Todavia, nés sabemos que Cristo ndo se coloca pe- rante o voo dos passaros ou a fragrancia delicada - e ao mesmo tempo intensa ~ dos lirios do campo, para com- por um poema, mas para conduzir, quem os contempla, aum horizonte transcendente. Nao é por acaso que, muitas vezes, as pardbolas comegam assim: «O Reino dos Céus é semelhante a...». A estética esta, portanto, em fun¢4o do anuncio religioso, beleza e verdade entre- cruzam-se, a harmonia é outro rosto do bem. O anun- ciador do Reino de Deus transmite a sua mensagem de um modo belo e incisivo. Nao era por acaso que 0 45 salmista j4 convidava os fiéis a cantar a Deus «os hinos mais belos» (S1 46[47],8). E a «gloria» divina, que refulge na criagdo, é sempre representada na Biblia como es- tando mergulhada na luz que é plenitude de beleza e de perfeigdo (cf. Ecl 11,7). Génesis 1: a obra-prima de Deus Chegados a este ponto, porém, é possivel darmos um passo em frente e, sem perder de vista a constante liga- ¢40 teolégica, reconhecer também na Biblia a existéncia de uma percecao e meditacdo diretas da beleza em si. £ significativo o relato simbélico da criacao, em Génesis 1. La, como se sabe, no termo de cada ato da obra caden- ciada da criacdo em seis dias, é colocada uma «férmula de aprova¢do», que se repete sete vezes (Gn 1,4.10.12. 18.21.25.31) e que diz o seguinte: «Deus viu que era tub», 0 tipico adjetivo ético-estético que jd definimos. Ora, é evidente que 0 aspeto estético, nestas passagens, tem uma certa primazia: o facto de Deus «ver [contemplar]», a subentendida satisfac4o pela obra realizada e aimagem do Criador artifice (e artista) induzem-nos a traduzir aquela férmula assim: «Deus viu que era boa/bom», ou ainda: «Deus viu: e era belo!» Nao se exclui, obviamente, o carater positivo do ser criado (cf. Sb 11,24), mas nao ha duvida que a qualidade estética «nao é uma coisa acres- centada a criacdo; pelo contrario, faz parte do seu proprio estatuto e da sua estrutura» (C. Westermann). 46 «Como és bela...!» A ultima aplicacao da «f6rmula de aprovagdo», acima citada, diz respeito a criatura humana, para a qual se introduz o superlativo (tub mead: «muito boa», em Gn 1,31). A Biblia exalta, por varias vezes, a beleza humana, a partir das «filhas dos homens» (Gn 6,2), de Rebeca (Gn 24,16), de Sara (Gn 26,7), de Betsabé (2Sm 11,2), de Tamar (2Sm 13,1), da rainha Vasti (Est 1,11), de Ester (Est 2,2-7), de Judite (Jdt 8,7), chegando também aos homens, como ao pequeno Moisés (Ex 2,2), a David (1Sm 16,12), a Absalao (2Sm 14,25-26), a Adonias (1Rs 1,6), aos trés jovens hebreus da Babilénia (Dn 1,4.15), e assim de seguida. Nesta sequéncia, devemos introduzir aquela joia poética que é o Cantico dos Canticos, na qual a dimensio estética da paisagem e, sobretudo da pessoa humana, é muito acentuada, embora sempre na linha da exaltacdo do amor, realidade superior e transcendente (cf. 8,6), celebrada naqueles versiculos admiraveis. No centro, encontra-se «um jardim fechado», ou antes, um «paraiso» (pardeés) vegetal (4,12), povoado de arvores odoriferas, jardim que se transforma em vinha luxuriante com videiras em flor; aparece, em seguida, um verdadeiro «herbario», dominado pelo lirio (ou ané- mona), acompanhado pelo narciso e por um denso bosque de amor com cedros, juniperos, macieiras, roma- zeiras, palmeiras, figueiras, mandrdgoras, plantas aro- miaticas, nogueiras, etc. Montes, colinas, penhascos, 47 vales, campos, nascentes, rios, Aguas, lagos, desertos e chamas estendem-se perante o leitor, enquanto, acima da terra, envolta numa doce primavera (2,8-17), voaa pomba, ave simbélica do Cantico, por ser emblema de amor, de beleza, de ternura e de fidelidade; correm gaze- las e veadinhos, de valor simbélico igualmente impor- tante; movem-se rebanhos, cavalos, ledes, leopardos, ra- posas e corvos, enquanto o leite e o mel nos fazem pensar em vacas e em abelhas. Mas é sobretudo 0 corpo humano, masculino e femi- nino, representado em quadros cheios de eros (4,1-5; 5,10-16; 6,4-7.10), que constitui o vértice da beleza, como é confirmado pela repetida exclamac¢4o de assom- bro: «Ah! Como és bela (yapheh), minha amiga! Como s&o lindos...! Ah! Como é belo o meu amado! E como é doce (noim)!» (1,15-16); «Toda bela és tu, 6 minha ama- da, e em ti defeito nao ha!» (4,7). A mesma paisagem, descrita na sua beleza fresca e atraente, é, na realidade, um espelho da experiéncia estética gerada pelo amor, com o seu aparato de felicidade, harmonia e plenitude. Esta intensa e criativa contemplagao estética e extatica da corporeidade — que, no simbolismo biblico, é expres- sao ndo sé do fisico mas de toda a personalidade - tem uma finalidade mais profunda: a de celebrar, precisa~ mente, a experiéncia suprema do amor. 48 «Cada obra supera a beleza da outra» No entanto, na Biblia também ha uma certa capaci- dade de exaltar a beleza da criancga, na sua harmonia estrutural (embora sem nunca perder de vista o fundo teolégico de semelhante celebra¢ao: n4o foi por acaso que us4mos 0 termo «cria¢gdo» e nao o termo neutro «na- tureza»). O livro de Ben Sira [Siracide] oferece-nos, a este respeito, uma pagina com um hino de forte impacto estético-emotivo (42,15-43,33). E verdade que o mundo é sempre «teofania»: «Considera assim todas as obras do Altissimo, duas a duas, e uma oposta a outra. ... Todas as coisas vao aos pares, uma corresponde a outra» (33,15; 42,24). O hino, porém, tem uma clara apresentacAo tri- partida (42,15-25; 43,1-33), e, nele, lirica e teofania movem-se em sintonia, estética, poesia e pedagogia sa- piencial iluminam-se reciprocamente. O aspeto mais propriamente teolégico é sublinhado na primeira e na terceira parte do cantico, ao passo que a atitude lirica se manifesta no centro do texto. O Siracide debruca-se com assombro sobre as maravi- lhas do universo, fazendo-as desfilar diante dos nossos olhos, deslumbrados com tanta beleza. E uma sequéncia pictorica que parte do limpido firmamento, no qual irrompe, antes de mais, o sol, ao qual est4 reservado um pequeno esboco que pée em destaque a incandescéncia das suas radiacées (cf. 43,1-5). Sucede-lhe, natural- mente, 0 pequeno quadro dedicado 4 lua, celebrada so- 49 bretudo na sua fungao «cronolégica», sendo a matriz do calendario lunar liturgico e civil (43,6-8). A ela se asso- ciam as estrelas, concebidas como sentinelas que vigiam durante a noite (43,9-10). Imediatamente a seguir, irrompe, majestoso, o arco-iris, tragado no céu pela mao divina (43,11-12). Associada, de certo modo, a abébada celeste, vem depois a meteorologia com os relampagos, dotados de «raios justiceiros», as nuvens, que «voam como aves de rapina», as pedrinhas de granizo seme- lhantes a poeira, o trovao que abala a terra e os ventos impetuosos (43,13-17). Uma deliciosa miniatura é reservada a neve, cuja queda ligeira se compara ao voo dos passaros e as pragas de gafanhotos: «Os olhos admiram a beleza da sua bran- cura e o cora¢4o maravilha-se de a ver cair» (43,18). Aela estA associada a geada, semelhante a graos de sal que tornam brilhantes como cristais os ramos em que pou- sam (cf. 43,19). O gélido vento norte, congelando a su- perficie das Aguas, tornam-nas semelhantes a uma cou- raca (cf. 43,20) produzindo, paradoxalmente, efeitos de aridez na vegetacdo, efeitos semelhantes aos induzidos pela seca de vero (cf. 43,21). Eis-nos chegados ao verao ardente, em que se espera 0 orvalho, que fecunda a terra gretada (cf. 43,22), enquanto a ultima série de imagens nos leva até ao mar, onde foram «plantadas» as ilhas, quais oasis ou flores. Do seu mistério de abismos, tem- pestades, monstros e terrores, bem conhecidos da cos- mologia biblica, restam os testemunhos emocionados 50 dos navegantes, que sé podem confiar na palavra divina que salva (cf. 43,23-26; cf. Jb 38,8-11). A exclamacao de abertura do hino, marcada por uma interrogacdo retérica, é a expressdo ideal de uma admi- racao lirica que descobre o fulgor da beleza: «[Cada] obra contribui para o bem da outra, e quem se saciaré de con- templar a sua gloria?» (Sir 42,25). A dimensio estética é reconhecida, portanto, embora — repitamo-lo mais uma vez — ela nunca seja o fim de si propria, tornando-se sempre uma via pulchritudinis para chegar ao Criador, ao seu projeto césmico e a sua obra criadora. Do Antigo ao Novo Testamento: kabod e doxa Israel, como guardiao do ideal do Reino de Deus, nos caminhos da histéria, também faz experiéncia da beleza, dentro do recinto em que ele préprio é guardado pela Lei. Ja que tudo se exprime nos termos de uma cultura inspirada pela revelacao do verdadeiro Deus, a experién- cia da fé, o reconhecimento do Absoluto e da sua pre- sen¢a, define o culto, e o culto define a compreensao do mundo da qual deriva a cultura. Para Israel, 0 culto torna-se, assim, o espaco sagrado em que ele percebe a integridade de si préprio e do mundo, e toma conscién- cia de si e do mundo, enquanto criacdo, como «mundo do culto». O mundo revela-se deste modo na sua intei- reza, como integridade e n4o corrup¢ao, como totali- 51 dade percebida como beleza. Toda a outra beleza é peri- gosa, aplicando-se, em relac¢do a ela, uma «proibicao pedagoégica» (cf. Pr 6,25; Sir 9,8). Esta experiéncia de integridade transborda, depois, em todos os campos da vida pessoal e social: desde as prescricées referentes aos alimentos, 4 regulamentacdo das relacées familiares, econdmicas, juridicas, sanitarias, a arte (que nasce como «arte sacra», como decoracao da arca da Lei), a literatura e A histéria. Para Israel, a inte- gridade da criac4o ou da histéria do povo significa uma realidade carregada da presenca de Deus. Tal presenga deve-se a uma op¢ao de Deus, que, através da sua ac4o, da sua alianga, torna o mundo sagrado, por intermédio do seu povo. Tanto a literatura como a arquitetura do templo estdo ao servico desta presenga, como uma espé- cie de meméria. Tal esboco explicita como a beleza, a integridade do mundo, baseadas na alianca com Deus, na sua presenga, na sua a¢do, que se «apoia» no homem, encerra em si um drama, visto que se baseia na fidelidade a uma relacao. A beleza no mundo biblico adquire, assim, mais o carAter da histéria, do caminho, por estar baseada na relagao entre Deus e o homem. Neste sentido, talvez seja de kabod/doxa que nos vem um maior numero de sugestées. Kabod, extensdo de kbd, que tem sobretudo o significado de «pesado, sélido, maci¢o», também significa aquilo que, de certo modo, apreende, intui, a substancia interior das coisas. Refe- 52 rido a Deus, indica aquilo que, pertencendo a Deus, é captado pelos sentidos, até se tornar, na linguagem do Antigo Testamento, um verdadeiro termo técnico. A na- tureza deste kabod é muito semelhante a qualquer coisa luminosa, irradiante, visto que Moisés, ao descer do monte, tinha um rosto tao radiante que ninguém conse- guia aguentar o seu olhar (cf. Ex 34,30). Quando, na versao dos Setenta, se traduz kabod por doxa, o termo grego sofre uma transformaco radical. Desaparece a sua antiga conotacao de «opiniao», com toda a sua caracte- ristica de subjetividade, e o termo passa a exprimir a objetividade absoluta do mundo de Deus. A ace¢io, completamente ausente no grego profano, de magnificéncia, esplendor, reflexo, no sentido de ima- gem (eikon), torna-se totalizante: o homem é doxa theou ea mulher é doxa andros (cf. 1Cor 11,7). A doxa assume o sentido de esplendor divino, indicativo da sublimidade, da majestade e, também, da propria esséncia de Deus e do seu mundo: «Quando a minha gloria passar, colocar- -te-ei na cavidade do rochedo e cobrir-te-ei com a minha mao» (Ex 33,22). A esperanca de ver Deus nao é uma coisa apenas grega, mas também hebraica, embora muitas vezes se sublinhe o carter fortemente auditivo da fé de Israel. A escuta da Palavra estd orientada para a visdo escatoldgica da gléria de Deus (leia-se, por exem- plo, Jr 31,34 ou Is 35,2). No Judaismo rabinico existem afirmagées, segundo as quais o homem teria participado do kabod de Deus, e 53 este esplendor teria sido afetado pelo pecado. A histéria da salvacao seria um longo e doloroso processo que teria por objetivo restaura-lo. Além disso, como doxa é um termo que se refere ao divino, é muito significativo que seja atribuido a Jesus. A gloria que se manifesta no mo- mento do seu nascimento, como sinal da sua provenién- cia do mundo divino, tem o mesmo valor da de Jo 17,5. E, se os Sindpticos usam este termo de forma restrita em referéncia ao Jesus terreno, Jodo, pelo contrario, emprega-o com mais frequéncia, porque descreve a vida do Senhor, a luz da sua gl6ria final. Todavia, o conheci- mento da gloria, de momento, n4o é questao de visao imediata, mas de fé, de pistis. Também para Joao, como para os Sindpticos, a doxa do Jesus terreno nao é visivel por si sé, mas o mistério da sua pessoa precisa de ser revelado e aceite. S6 assim se compreende toda a terminologia da gloria, da glorifi- cacao de Jo 12-17. E pela fé que nos é, paradoxalmente, revelada a gloria de Cristo, na sua paixdo e morte. A paixdo é, ao mesmo tempo, a hora da glorificagao de Jesus e o acontecimento pelo qual «Deus foi glorificado nele» (cf. Jo 13,31), ou seja, a certeza de que a cruz im- plica a participagao nessa mesma doxa que indica a irra- diac&o da pessoa de Deus. Assim, contemplar a paixao é contemplar a doxa ja na vida terrena de Jesus. A gloria de Deus, no mundo e na historia, é a sua pre- senca como Criador e Salvador que se manifesta no seu esplendor. Esta presenca 6 uma presenga pessoal, esta- 54 belecida na alianga e que, na plenitude dos tempos, ha- bita o mundo e a histéria, mediante Jesus Cristo, Filho de Deus. A sua acao é 0 amor do Pai como unica reali- dade, que se pode tornar presente na propria tragédia, na morte, ou seja, no lado obscuro da historia. Por isso, a suprema gloria de Deus, que podemos ler como beleza, é Jesus Cristo, na sua realidade concreta divino-hu- mana, no acontecimento da Pascoa. Este paradoxo é tao forte que sé sera acessivel mediante uma luz que ilumina a mente, essa mesma luz que conduz o préprio Cristo, no sacrificio pascal, que é o Espirito Santo. Tanto o Antigo como o Novo Testamento, embora tendo sentido da beleza da criag4o, que celebram, elabo- yam sobretudo um conceito de beleza associado a histéria - como vida da alianca -, recuperam a beleza como luz, mas na novidade radical constituida pela ma- nifestacdo e pela realizacao da beleza na assuncao do lado tragico da vida. O kalon, belo e bom, realiza-se, de facto, como destrui¢ao do pecado, oposto a boa obra, e tal destruicdo tem lugar mediante um sacrificio amoroso onde, embora o mal desfigure, deforme, desfeie, tam- bém se realiza um kairos: a plenitude da gloria mani- festa-se na sua aco salvifica nesse mesmo rosto desfi- gurado. Pelo Novo Testamento, torna-se evidente que o amor e a beleza sao inseparaveis. Eles encontram-se nao num objeto a contemplar, mas num acontecimento a viver, seguindo uma vocac4o, respondendo a uma chamada, vivendo uma histéria de relagées. 55 » A gloria de Deus nao é grandiosidade de um esplen- dor divino autoconcluido, mas beleza do amor que torna o pecador amavel, reconciliando. Assim, como, no Anti- go Testamento, com Moisés, o «ver» 6 uma coisa incon- cebivel e carregada de consequéncias, também para o Novo Testamento ele continua a ser o fim escatolégico supremo: «contemplarao Aquele a quem traspassaram» (Zc 12,10) e saberdo ver nele toda a beleza do amor do Pai. Todavia, esse ver, a partir de agora, j4 é um partici- par: refletimos de rosto descoberto, como num espelho, a gloria do Senhor, sendo «transfigurados na sua prépria imagem» (2Cor 3,18; cf. Fl 3,21). Pelo Espirito Santo, participamos na gloria de Cristo como salvacao. No ultimo livro do Novo Testamento, esta gloria manifesta- -se como esplendor e cumprimento, plenitude do amor na qual os préprios sinais do drama ser4o transfigurados em alegria. A Biblia, «grande cédigo» estético Chegados a este ponto, o discurso poderia estender- -se também a percursos muito especificos, como, por exemplo, 4 presenga, nas paginas biblicas, de descricdes de obras de arte e de artistas: basta pensar em Becalel, o arquiteto da arca da Alianca, dotado de uma «inspirac4o» divina prépria (cf. Ex 31,3-5). Ou entdo, poder-se-ia evocar também 0 motivo sapiencial tradicional da vai- 56 dade da beleza privada de alma: «A graca é enganadora e a beleza é va: a mulher que teme o Senhor, essa sera lou- vada» (Pr 31,30; cf. ainda 11,22). Assim, seria necessdrio um espaco imenso para analisar a qualidade estética dos textos biblicos que, na exegese recente, s4o muitas vezes avaliados também sob este perfil poético, narrativo ou simbélico, sobretudo perante obras-primas como o livro de Job, o Cantico dos C4nticos, o Apocalipse ou muitas paginas dos Salmos e dos profetas. De momento, porém, abordaremos apenas, brevemente, outro aspeto, ou seja, a eficacia da influéncia exercida pela Biblia na historia da arte ocidental, precisamente através do seu extraor- dinario arsenal iconogréfico, histérico e literario, que fez dela o «grande cédigo» da cultura ocidental, para usar uma locugao jé famosa do critico Northrop Frye. Em certo sentido, podemos afirmar que, a par da exe- gese que tem acompanhado constantemente o texto biblico, embora segundo métodos e abordagens diferen- tes, também se registou uma reinterpretacao das Escri- turas, através de modelos artisticos. Estes podiam assu- mir tipologias diversas. Pensemos, por exemplo, na reactualizacdo, mediante a qual uma pagina biblica é reconduzida para dentro de coordenadas contem- Ppordaneas, respondendo, Pportanto, a novos contextos sociocultu-rais e, sobretudo, a novas interrogacées. Pensemos, apenas como exemplo, no célebre sacrificio de Isaac (Gn 22) ena respetiva releitura cristolégica, ou na recuperacdo da «atadura» (aqedah) do filho de Abraao 57 sobre o altar sacrificial do monte Moria, como simbolo do sofrimento vivido pelo povo hebraico, nas varias perseguicées sofridas ao longo da sua histéria. Ou ainda, na transformacao dessa vivéncia numa parabola da fé na sua pureza, como propord o filésofo Soren Kierkegaard, na sua obra Temor e tremor. Outra tipologia interpretativa paradoxal é a degene- rativa: a Biblia é deformada e orientada para fins que lhe so estranhos e, por vezes, antitéticos. Assim, por exem- plo, Job, segundo a carta de Tiago (5,11) e dos Padres da Igreja, é lido com base no paradigma da paciéncia, de- tendo-se este nas narrativas do inicio e do fim do livro (capitulos 1-2 e 42) e ignorando o tempestuoso e ator- mentado protesto do poema central. Neste sentido, mover-se-4, também, a histéria da arte, ou seja, certas utilizagées surpreendentes, como a Resposta a Job (1952), de Carl G. Jung, em que o célebre protagonista biblico se ergue como sinal de moralidade e de responsa- bilidade, perante um Deus completamente livre de toda a ética, na sua omnipoténcia e omnisciéncia. Algo seme- Ihante realizara Sigmund Freud com base na figura de Moisés, nos seus trés ensaios sobre O homem Moisés e a religido monoteista (1913). O texto biblico, também nestas releituras deformadoras e, por vezes, dessacrali- zantes, revela a sua fecundidade e poder, e a sua capaci- dade de provocar e de interpelar. Por fim, a beleza ndo sé estética, mas também ideal, da Biblia, torna-se ainda mais percetivel, através da 58 transfiguracdo que a arte consegue realizar com os seus recursos expressivos. Neste sentido, pode ser emblema- tica a musica que, de modo alusivo, transforma, por exemplo, uma pagina dos Salmos, revelando os senti- mentos e a fé nela contidos, através da harmonia sono- ra. Pensemos nao sé nos grandes «oradores» que, no século XVII, também fizeram reviver paginas menores das Sagradas Escrituras, como o Jefte de Giacomo Ca- rissimi (1605-1674), mas também o moderno Moses und Aaron de Arnold Schénberg (1874-1951), um testemu- nho (incompleto) da forga interpretativa da musica. Po- demos evocar também as diversas Paixées compostas livremente com base no relato evangélico: uma referén- cia, para todos, é a Paixdo segundo Mateus de J. S. Bach (1685-1750). Também a grande pintura, com a sua in- tuicdo criadora, ou a literatura, com a capacidade genial de um Dante, atestam esta transfigurac4o constante que faz da Biblia nao sé veiculo de verdade, mas também de beleza. E a licao de um grande tedlogo, como Hans Urs von Balthasar, com a sua obra-prima Gloria, demonstra a necessidade de uma teologia e de uma exegese que nao ignorem, por um lado, o esplendor do texto sagrado (a qualidade estética forma um todo com a propria mensa- gem) e, por outro, a sua ressonancia admirdvel na grande cultura de todos os tempos, instrumento pre- cioso de uma ulterior compreensao da Biblia. 59 H ! Marko Ivan RUPNIK Natural de Zadlog (Eslovénia), onde nasceu em 1954, é artista e tedlogo jesuita; docente de Estética Teolégica, na Universidade Gregoriana, Roma, e em diversos centros internacionais. Artista e mosaicista, associado ao Atelier dell‘arte spiri- tuale do Centro Aletti (Roma), de que é diretor, tem rea- lizado trabalhos de impressiva beleza e monumentalidade, tal como os mosaicos da Capela Redemptoris Mater, no Vaticano, os da Igreja da Santissima Trindade, em Fatima, os da Basilica de San Giovanni Rotondo, ou os da fachada do Santuério de Lourdes. Com 0 seu grupo, 0 tedlogo-artista Rupnik aprofunda a relacdo entre a arte e o lugar litdrgico, inspirando-se na tradico iconografica das Igrejas do Oriente e do Oci- dente, porque sé assim, «a plenos pulmées», se pode re- novar a arte cristé. Nos contrastes entre as cores, na pesquisa da harmonia entre elas entrecruzam-se os temas mais profundos: «Deus é a luz e tudo o que esta em Deus esté na luz. A comunhao é a luz dos homens. A comunhio percebe-se nas cores. A comunhao em Deus é a harmonia nas cores. Mas a harmonia é possivel na di- versidade. 0 amor é a forca que cria uma sinfonia a par- tir das cores.» E autor de numerosos livros de teologia e espiritualidade. ‘Tem publicados pela Paulinas Editora os seguintes titulos: O Discernimento e O Exame de Consciéncia. _ corre romana aonec rere on mam EN aE BELEZA E PENSAMENTO TEOLOGICO Marko Ivan Rupnik Um problema de abordagem cultural Bastaria sobrevoar o extenso material disponivel para a investigacao acerca da importancia teoldgica da beleza, na histéria do Cristianismo, para nos apercebermos, ra- pidamente, da insuficiéncia de uma busca baseada apenas na andlise do termo. Podemos, por exemplo, folhear os dicionarios biblicos ou os repertérios patristi- cos sem encontrar grande coisa. Nao sé porque a estética é uma ciéncia jovem que, com o sentido atual, n4o exis- tia até meados do século XVIII, quando Alexander G. Baumgarten usou este termo pela primeira vez, mas também porque, antes desse século, uma reflex4o sobre a beleza nao se compreendia necessariamente nos termos de uma disciplina particular, que se bastasse a si propria. As mesmas palavras, que se tornaram o universo lé- xico, no interior do qual se move a reflexAo estética, fun- 61 cionam e funcionaram de maneira diferente, em linguas e épocas diferentes, como ainda hoje o demonstra a flui- dez léxica — e, ainda antes, conceptual — de muitas lin- guas, nas quais, numa multiplicidade de situagées, a seméantica «estética» da beleza e «ética» do bem se com- penetram mutuamente, tornando-se intermutaveis. Isto aplica-se ainda mais a épocas anteriores 4 moder- nidade, onde a ideia daquilo que é belo, estético, ainda no é demasiado distinta das outras ideias. Quanto mais recuamos no tempo, mais podemos observar como bon- dade e beleza, em certo sentido, se penetravam, até, por se identificarem com a nascente da vida, para a qual con- vergiam, fortemente mergulhadas no dado experiencial. Uma tentativa descritiva de um material selecionado com base em critérios categérico-terminolégicos, de- pressa se mostra casual e privada de sentido. Além disso, foi dito que «a auséncia de uma ciéncia estética supée, como premissa e compensa¢4o, uma mais forte colora- go estética das outras formas de compreensio do ser (como, e vice-versa, o delinear da estética numa discipli- na particular compensou a (des)estetizacao da visdo do mundo com a qual se pagou o nascimento da «cientifici- dade» e do «empirismo», na Europa moderna). Enquan- to nao houve estética, enquanto tal, tao-pouco houve coisa alguma que nao fosse estética»?, 2S, AVERINCEV, L’anima e lo specchio. L'universo della poetica bizantina, Bolo nha, 1988, p. 66. 62 Isto significa que uma exposic4o acerca da compreen- sdo teoldgica da beleza deve ter em conta no sé crité- rios categérico-terminolégicos, mas, sobretudo, estilos relacionados com uma perce¢4o do mundo, uma perce- ¢40 muito mais direta do que agora, em que tudo é me- diado. Tudo isso significa incluir na reflexdo aspetos e temas que a primeira vista nado pareceriam perfeita- mente congruentes. Por tais motivos, a reda¢do deste ensaio? é feita de modo aberto, interlocutdrio, tentando evidenciar os pontos mais significativos da reflexao, para indicar as raizes da problematica em torno da be- leza, tal como a apreende o pensamento contempora- neo, sem, no entanto, ser exaustivos nas descri¢ées. Isso significara sintetizar épocas inteiras, com todas as gene- ralizagdes que isso implica, ou ignorar autores que sao importantes. O ser, a vida ea beleza A. Baumgarten definiu a estética como gnoseologia, e, além disso, inferior. Ja na demarcagao entre ontologia e gnoseologia, que desmembra o cardter unitario do pen- samento filoséfico na época moderna, se compreende o corte com o mundo antigo. Para Kant, o ser nado é um predicado real, mas apenas uma jungdo légica aposta ao ? «Desta entrada», no original, porque se trata de um artigo para um dicio- nario teolégico [nota do editor]. 63 predicado, uma possibilidade de predicagdo do sujeito. A estética ndo se ocupa do ser, ou seja, do autocolocar-se das coisas para 0 seu 4mago, mas apenas do precolocar- -se dessas mesmas coisas para o olhar do sujeito que as observa, as conhece e as avalia, e que possui «capacidade de ajuizar», ou seja, a faculdade de avaliar mediante um sentimento de prazer fundado num sentir universal comum: o gosto (Cf. Critica da razéo pura 2,3-4). Para os antigos, contudo, nao era assim. O ser - que esta cheio de vida e, portanto, representando um dado de objetividade existente — impée-se com a plenitude da sua vida e, por isso, com a totalidade das perfeigées, de que também faz parte a perfeicao estética. Desde o pen- samento grego antigo, o ser é perfeicdo, no sentido de cumprimento da forma interior, integridade, plenitude em si conclusiva e equilibrada. O feio, o disforme e o de- sordenado ~ formas de resisténcia do caos a forca orde- nadora do ser ~ sao, na linguagem platénica, me hon («aquilo que nao é», e dai o conceito patristico, segundo o qual o mal do mundo é um vazio, uma sombra a volta do ser, um nada, para o qual nao existe consisténcia ontoldgica). O belo, tal como o bem, é uma realidade que diz res- peito ao ser, sobretudo, no seu aspeto interior, conside- rado como «coisa em si», mais do que como valor sub- metido ao olhar avaliador do sujeito. A questao da beleza néo sera, entao, primeiramente, uma questo de valor estético, ou seja, o decidir se a realidade é bela (em que 64 tanto o termo «valor» como o termo «realidade» se refe- rem a um «objeto» sujeito 4 nossa observaco, que possui a realidade e que a exibe), mas uma questo da plenitude do ser, que a coisa encerra no seu interior. Ge- neralizando, com todas as imprecisdes que isso implica, poderiamos concluir que, para os antigos, a beleza é, segundo as palavras de Plotino, «florescimento do ser» (Enéadas 5,8,10). Plato: a Beleza entre ideia e manifestacao Por causa deste nexo entre o ser como perfeicdo ea beleza, nao é um paradoxo que Plat&o fosse um adversa- rio explicito da estética. O belo nao é aquilo que existe como tal, nao é um objeto em si, uma relacao conceptual, uma sensa¢ao, um sentimento ou um valor matematico (Hipias Maior 287d5), mas aquilo gracas ao qual uma coisa existe em beleza (Hipias Maior 287d6), 0 eidos do Belo (Hipias Maior 289d), um Belo qualitativamente di- ferente porque incorpéreo, insensivel, ndo-gerado, eter- no, absoluto, puro (Banquete 221a-b). Os artistas, por sua vez, tém necessidade da aparéncia, da cria¢ao de ilu- ses, ndo atingem o ser. O verdadeiro exige o ser, que coincide com o bem. Por isso, embora Platao sé possa construir a sua ontologia com categorias manifestamen- te estéticas, ele condena, repetidamente, os artistas e a 65

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