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DOOR n er ey Brasilia | ano 52 | n® 205 | separata janeiro/margo - 2015 Do direito de familia ao direito das familias A repersonalizagao das relac6es familiares no Brasil Ménica Teresa Costa Sousa Bruna Barbieri Waquim SENADO FEDERAL SECRETARIA DE EDITORACAO E PUBLICAGOES COORDENACAO DE EDICGES TECNICAS Do direito de familia ao direito das familias A repersonalizagao das relagées familiares no Brasil em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina. Avaliadora do MEC/ INEP Professora da Universidade Federal do Maranhéo. Bruna Barbieri Waquim 6 mestranda em Direito e Instituigdes do Sistema da Justiga da Universidade Federal do Maranhdo. Especialista em Direito de Familia e Sucessées em Direito Civile Direito Processual Civil. Presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Familia - Secao do Estado do Maranhao. Servidora piiblica do Tribunal de Justica do Estado do Maranhao. MONICA TERESA COSTA SOUSA BRUNA BARBIERI WAQUIM Sumario 1. Introdugio. 2, A familia antiga: da religiao ao patrimonialismo. 3. O(s) moderno(s) conceito(s) de familia. 4. Conclusées. 1, Introdugao ‘Tratar sobre o assunto “familia” contemporaneamente nos evoca a imagem de pais e filhos reunidos em um lar acolhedor, em um ambiente de fortes lacos, respeito e cuidado. Porém, essa visio que hoje temos da familia decorre, na verdade, de ‘um longo processo de construgao e reconstrugao da fungao da familia na histéria, pois a cada momento vivido pela sociedade, de acordo com a respectiva cultura, a familia e seus membros tiveram um papel e uma importancia. No Brasil, durante muitos séculos, o modelo legal e, portanto, legiti- mo de familia era aquele constituido pelo casamento religioso ou civil. Ainda que boa parte da populacio nao possuisse os recursos financeiros necessatrios para arcar com os custos da solenidade do casamento, ou que nio professasse a fé catdlica, ou simplesmente nao desejasse a autorizagio do Estado para a constituigao de uma familia, as entidades formadas a margem da lei eram, da mesma forma, marginalizadas pelos Poderes Piblicos, sendo alvo de grande preconceito na sociedade. Da adogao pelo Estado de um modelo tinico para a formagao de uma familia decorreram imimeros desdobramentos com a mesma carga ‘Ano 52 Namo 205 jan mer. 2015, reconceitual ¢ restritiva de uberdades Por exemplo, os filhos, para serem seston Iii, deveriam nascer no seio de um ®2¥0- mento vilido. Mesmo senascessem de genito ‘a auséncia do vinculo do casamento pit hha de ilegitimos, Ihes contaminava com a pec astardos ou espirios. i ‘A familia tradicional brasileira, assim, pos suia duas fungdes bem delimitadas no espaco social: a de legitimar a transmissio do patrim®- nioe a procriacdo. Tais fungdes expressavam as caracteristicas da propria sociedade da época, patriarcal, patrimonialista, hierarquizada, in- dividualista e com pouca preocupagéo com 0 bem-estar social. ‘Mas a dinamica da vida social, aliada as grandes revolugdes do século XX, permitiram a desconfiguracao do perfil tradicional nao 36 da familia como da propria sociedade. A industrializagéo, 0 movimento feminista, 0 ingresso da mulher no mercado de trabalho, a descoberta de formas artificiais de reprodusao, ‘osurgimento do Estado Democritico de Direito contribuiram para derrubar os paradigmas até entdo vigentes no Brasil, acarretando com isso a transformacio da mentalidade das pessoas e dos institutos juridicos e politicos. No presente artigo, foi realizado um levan- tamento bibliogréfico sobre o escorco histérico da familia no ambito mundial e no Brasil, para tragar as mudangas sofridas na sua caracteriza- do e qualificacao, A seguir, buscou-se pontuar quais mudan- as foram significativas para a expansio das liberdades individuais no ambito da familia, © que tais mudancas representaram no cendrio da sociedade brasileira. Por meio de pesquisa jurisprudencial, foram analisados alguns dos julgamentos do Superior Tribunal de Justiga e do Supremo Tribunal Fe- deral que demonstram como 0 Poder Judicidrio tem-se comportado diante das demandas por (2) Revista de Informagao Legistativa definigdes juridicas decorrentes das indefini- ‘goes legislativas. A partir da ética de Amartya Sen, é possivel chegar A conclusio de que, a despeito dos in- dices oficiais de desenvolvimento econdmico e social, a expansio das liberdades individuais no Brasil, decorrente da repersonalizagao das. relagdes familiares, nao deve ser desconsiderada para afirmar 0 sucesso do desenvolvimento da sociedade brasileira. 2. A familia antiga: da rel patrimonialismo © vocébulo utilizado, em cada época e cul- tura, para denominar o que hoje entendemos por familia também evoluiu 4 medida que a nogio de entidade familiar se transformava, € 0 significado dos vernaculos ajuda a esclarecer © que o termo “familia” representou em cada momento histérico. Na Antiguidade Classica, a reunido de pes- soas em uma familia recebia o nome de epistion, que significa “aquilo que esta junto ao fogo” (COULANGES, 2004). Isso porque 0 que ligava os membros de uma familia nao era o afeto nem o sangue, mas oculto.a mesma religido doméstica, simbolizada pela chama dos rituais de adoragio aos manes (COULANGES, 2004), A religido da época baseava-se em duas categorias de deuses: os superiores, ligados aos fenémenos naturais e conhecidos por todos, € os deuses inferiores, domésticos ou manes, que eram os antepassados de cada familia que passavam a ser adorados (MADALENO, A; MADALENO R,, 2013). Era um tempo em que a adocao nao sé era bem aceita como incentivada, para preservar a adoracao dos ancestrais, Por meio do casamen- to, a esposa abandonava os seus antepassados © passava a cultuar os manes de seu esposo, nao existindo a possibilidade de cultuar duas linhagens de deuses,o que significaria pertencer a duas familias (COULANGES, 2004). Quando falecia o patriarca, seus filhos vardes adquiriam personalidade e passavam a constituir outras familias, nos quais passavama assumira condicio de pater familias. O conjun- to dessas familias formava a familia communi jure, formada pelos parentes por linha mascu- lina, pois o parentesco materno nao produzia efeitos jurfdicos (NADER, 2013). Com o crescimento da populacdo e 0 de- senvolvimento das relacées interpessoais, os casamentos deixaram de ser realizados entre 0s membros de um mesmo grupo para serem realizados entre membros de grupos (ou gens) diferentes (MADALENO, A; MADALENO R., 2013), quebrantando o lago religioso como for- mador de uma entidade familiar e instituindo ‘0s lagos cognaticios (nome e consanguinidade) como elemento formador de uma familia (PES- SOA, 1997). A teligido doméstica, em declinio, foi pau- latinamente substituida pela ideia de familia como espaco para a transmissio de patrim6- nio, como se extrai do termo que passou a ser utilizado para denominar uma familia: famel, da raiz latina famul, que significa servo ou conjunto de escravos pertencentes ao mesmo patrao (FARIAS; ROSENVALD, 2010). Nocenério do Direito Romano, permaneceu a figura do paterfamilias - 0 patriarca. O patriar- ca adquiria bens e administrava o patrimonio familiar (domenica potestas), exercia 0 poder sobre as pessoas dos filhos (patria potestas), sobre a mulher (manus) € sobre os escravos (dominica potestas), ou seja, centralizava.a auto- tidade familiar e patrimonial (PESSOA, 1997). Aproximando-se da Idade Média, a familia adquiriu natureza econémica, transformando- -se em unidade de produgio. Cada lar era uma Pequena oficina, da qual todos os membros da familia retiravam sua subsisténcia (VENOSA, 2013). Dessas transformacdes nio se eximiu 0 Brasil. Gilberto Freyre, na aclamada obra "Casa- ~Grande & Senzala’,traga um primoroso retrato da familia tradicional brasileira, influenciada pela coloniza¢ao portuguesa. Gilberto Freyre (2003) destaca que a for- ‘magio patriarcal do Brasil é explicada menos em termos de raca e religiao do que em termos econémicos, de experiéncia de cultura e de organizagio da familia. A casa-grande patriarcal era fortaleza, cape- la, escola, oficina, santa casa, harém, convento de mogas, hospedaria e até mesmo banco. Na hierarquia patriarcal, a meméria dos mortos da familia era cultivada abaixo dos santos € acima dos vivos, por meio de retratos, trangas € cachos guardados, em um culto doméstico que lembra 0 dos antigos gregos e romanos (FREYRE, 2003). Foi a familia, no sentir de Freyre (2003), a verdadeira responsével pela colonizacao brasi- leira, pois era a unidade produtiva que fornecia capital para desbravar 0 solo, que instalava as, fazendas, comprava os animais para a lavoura ‘ou o engenho, e que constituia o capital social que se desdobrava na politica, por meio da aristocracia colonial mais poderosa jé vista na América, Laurentino Gomes reforga esse retrato, afirmando que a sociedade conservadora, ca- t6lica e patriarcal da tradigo cultural brasileira epresentava parte da heranca ibérica e portu- guesa. A submissio da mulher era um traco tio caracteristico que influenciou até mesmo a arquitetura das casas, que possuiam janelas por trds, por meio das quais as mulheres, que nunca safam de casa, podiam observar a rua sem serem vistas (GOMES, 2013). © casamento religioso e, apés a proclama- io da Repiblica ea edi¢io do Decreto n* 180, ‘Ano 52 Nimero 206 jan mar. 2015, to civil eram as tnicas formas vilidas de instituicao de uma ° anne do qualquer outro: modelo familiar marginalizado pelo Estado, fama. sent oa sociedade, Da adocao do modelo familiar ‘nico pelo ae tidor da funcéo maior de transmissio de patriménio ¢ — on tambéma distincao da natureza de filhos legitimos fee de acordo com as circunstancias do seu nascimento, : ae Pianovsky Ruzyl esclarece que (2005, p. 118-119): A familia patrarcal, extensa e transpessoal emerge como discurso le. gitimador de uma dada condigdo social que se avalia pela estirpe, ‘Trata-se de uma familia que tem por fungSes, na perspectiva aludida mais acima, a transmissdo do status e do patrimonio, servindo como fonte de manutencio de poder politico, com a criagio de lagos de dependéncia. Para o atendimento dessas fungdes, a estabilidade do corpo familiar & cessencial, de modo que os lagos de solidariedade se mantenham firmes. ( responsavel por essa fungio é 0 patriarca, que centraliza a direcio da familia, a esposa tem papel definido nessa estrutura familiar como de subordinagdo, papel este para o qual é criada desde a mais tenra infin- cia, As filhas devem, pois, ser criadas para ocuparem seu papel de boas esposas no Ambito da familia de seus futuros maridos. O desenvolv- ‘mento das virtudes das ‘boas mocas’é fator indispensével & obtencio de casamentos e aliancas ~ vantajosos com outros fazendeiros e homens de posse, ‘bem nascidos, de modo a assegurar a manutengao do status e da condigio econdmica |... Esse cendrio comeca a ser transformado a partir da Revolucio In- dustrial, quando as indistrias passaram a assumir a fungao de producéo econdmica antes exercida pelas familias. O espaco familiar comega a perder a caracteristica de unidade de producdo e passa a ser considera- do paulatinamente um espaco para o desenvolvimento moral, afetivo, espiritual e de assisténcia reciproca entre seus membros (ALMEIDA JUNIOR, 2004). Trazendoa discusséo para o campo do Direito, é certo que nos séculos XVIII e XIX predominava o individualismo e a igualdade formal. No chamado Liberalismo, a preocupagao era a garantia juridico-formal dos direitos e liberdades fundamentais, sendo papel do Estado atender seus fins econdmicos e estando a propriedade privada no topo da valoracao dos bens juridicos (PEREIRA; ALEMAR, 2010). Para que fosse possivel prestar tais garantias, o Direito Privado recebeu a necessiria codificacdo, visando assegurar a ordem social sob o prisma do individualismo. Impregnada pelo liberalismo juridico, a codificagio tinha como fonte tinica o Estado, concebendo o homem como sujeito abstrato (PEREIRA; ALEMAR, 2010). Sob essa inspiracao foi editado o ‘Cédigo Civil de 1916, consolidando @ protecao legal a familia tradicional da época: matrimonializada, patriar- evista de Informagao Legistaiva cal, hierarquizada, heteroparental, biolégica e institucional, vista como unidade de producio e de reprodugio (MADALENO, 2011). Fabio Anderson de Freitas Pedro (2012) também reforga que o Cédigo Civil de 1916 teve como marcos tedricos a propriedade e a familia pa- triarcal, como pressupostos da hierarquizacdo social que se observava na sociedade brasileira, de intensas contradigGes e desigualdades. O principal valor ali consignado era o individualismo, como desenvolvimento dos ideais liberais da época, o que demandava uma intensa codificagio das. rnormas da vida privada com o objetivo de proteger essa esfera do Estado, alimentando, assim, a dicotomia Direito Publico - Privado. Como ressalta Silvio de Savio Venosa (2013, p. 6), “o Cédigo Civil brasileiro de 1916 foi dirigido paraa minoria da Casa-Grande, esquecendo da Senzala, Esse, de qualquer forma, era o pensamento do século XIX” A partir do pés-Primeira Guerra Mundial, o Estado Liberal comega a ser substitu{do pelo Estado Social de Direito, ou Estado do Bem-estar, ‘© que modifica a visio até entéo dominante do Direito Privado, que se conformava em garantir a igualdade formal. Como Estado do Bem-estar, a igualdade perseguida era a substancial (PEREIRA; ALEMAR, 2010). Por conseguinte, a realidade do século XX, acompanhada pela devida pressio social, exigiu a edigdo de estatutos para suprir as falhas ou omissdes do Cédigo Civil, os quais passaram a complementar ou revogar 0 contido na codificagdo. Assim, a descentralizacao do sistema de Direito Privado passou a atender as emergéncias sociais (PEREIRA; ALEMAR, 2010). Fabio Anderson de Freitas Pedro (2012) relembra que, aquela época, 0 modelo do Cédigo Civil de 1916 tinha sido edificado sobre a valorizagio do individualismo e, por conseguinte, o movimento de Codificagao pre- tendia algar o Cédigo Civil anorma maxima na esfera privatista, buscando dentro da dicotomia piblico-privado uma das justificativas tedricas da supremacia do Cédigo Civil para as relagdes privadas. Jaa Constituigéo Federal, prossegue o autor, embora tivesse reconhe- cidamente o papel de Lei mais importante do sistema normativo de um pals, ficava relegada a uma funcio de mera representatividade de ideais e principios, enquanto 0 Cédigo Civil representava a efetividade das normas a serem seguidas pela sociedade. Numa clara inversio simbilica, 0 Cé- digo Civil representava o instrumento juridico de maior relevancia para a sociedade, visto que as condutas humanas estavam em bojo definidas do ponto de vista privado. ‘Varios movimentos influenciaram a edigao de outras normas ordi- nitias para atender aos novos anseios de igualdade material: os movi- mentos feministas, o individualismo moderno, o desejo de felicidade ¢ liberdade pessoais, a inclusio da mulher no mercado de trabalho, o ‘Ano 52 Nimero 206 jan mar, 2015 fim da indissolubilidade do casamento, tudo isto Ea Para uma mudanga paradigmatica, deixando de ser a familia um niicleo essencial. mente econdmico e de ae para se tornar um espaco de afeto i REIRA, 2005). ae an 0 longo da vigéncia do Cédigo de 1916, inimeros 3s legais que buscavam, cada um, regular uma rea especifica da vida privada, gerando “a formacao deum polissistema com a edigég de um conjunto de regras ocupando espagos que o Cédigo Civil jé nig conseguia preencher” (PEDRO, 2012, p. 79). = Essas leis esparsas foram alcunhadas de “legislacao extravagante” ¢ “demonstram que 0 Cédigo Civil nao tem o condao de prever todas as condutas humanas, 0 que em espécie de fato é impossivel a qualquer ordenamento que venha edificado em um sistema sem flexibilidade” (PEDRO, 2012, p. 80). ‘Na jurisprudencia se percebia uma ainda maior dilatagio de direitos, pois os casos da vida real, na omissdo da legislagao vigente, eram resol- vidos pelo Judicidrio com base em princ{pios gerais do Direito, a fim de garantir as entidades familiares marginalizadas e as relagdes nao insti- tucionalizadas (como as unides estéveis, familias monoparentais, filhos gerados por meio da biotecnologia) o acesso a direitos fundamentais, principalmente a dignidade. Havia, assim, a necessidade de que na Carta Magna da Repiblica se dispusessem os valores e principios fundamentais que representassem documento: 0s reais anseios da populagdo como um todo, sem esquecer as minorias que adotavam padrdes de vida nao tradicionais. ‘Nesse contexto, Rolf Madaleno comenta (2011, p. 4): “A Constituigio Federal de 1988 realizou a primeira e verdadeira grande revolucio no Direito de Familia brasileiro, a partir de trés eixos: a) 0 da familia plural, com virias formas de constituicio (casamento, unio es- tavel ea monoparentalidade familiar); b) a igualdade no enfoque juridico da filiagdo, antes eivada de preconceitos; ec) a consagragio do principio da igualdade entre homens e mulheres” A antiga ideia de familia-instituicao, com protecdo justificada por si mesma, importando nao raro violagées dos interesses das pessoas nela compreendidas, foi entao derrubada pelo conceito de familia-instrumento do desenvolvimento da pessoa humana, evitando qualquer interferéncia ue viole os interesses dos seus membros. A familia passa a existir em tazdo de seus componentes, e nao estes em fungdo daquela (FARIAS; ROSENVALD, 2010). Autores como Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald (2010) ¢ Rolf Madaleno (2011) situam esse momento hist6rico de transformagio evista de nformacto Legislatva as vésperas da promulgacdo da Constituicéo da Reptiblica Federativa do Brasil de 1988, mas o certo é que a superagio dos paradigmas da familia tradicional brasileira, e principalmente, do seu modelo tinico de legitimacao, é fruto de um longo proceso sociocultural, econdmico ehistérico. Eoestopim desse processo pode ser buscado na consolidacio da ideia de eficécia horizontal dos direitos humanos, em queas liberdades e ga- rantias fundamentais passam a inspirartambém. as relagdes privadas, e ndo apenas as relagdes entre a Administragio Piblica e 0s cidadaos (a chamada eficicia vertical dos direitos humanos). Essa tendéncia permitiu 0 surgimento do fendmeno da repersonalizacao das relagées de familia, representado pela valorizagao do ser humano sobre o patriménio na familia, como defende Paulo Lébo (2004): “A familia, ao converter-se em espaco de realizagao da afetividade humana e da dignidade de cada um de seus membros, ‘marca odeslocamento da funcio econémica- -politica-religiosa-procracional para essa nova funcdo. Essas linhas de tendéncia ‘enquadram-se no fendmeno juridico-social denominado repersonalizagio das relagoes civis, que valoriza o interesse da pessoa hu- ‘mana mais do que suas relacdes patrimoniais. © anacronismo da legislacio sobre familia revelou-se em plenitude com o despontar dos novos paradigmas das entidades familiares” Essa nova forma de pensar a familia foi cristalizada na Constituigao Federal de 1988, que rompeu com a dogmitica juridica até entio utilizada nas Cartas Constitucionais. Antes de 1988, todas as Cartas Magnas prescreviam, em sintese, que a familia formada pelo casamento deveria receber especial protecio do Estado, ¢ 4 essa afirmagio se resumiam, ao estabelecer © modelo dinico familiar, constituido pelo casamento, Na Constituigao de 1988, rompendo a tradigao na escrita, o artigo 226 desvencilhou- se da adocdo de um modelo tinico de familia legitima para prescrever, tio somente, que “A familia, base do Estado, tem especial protegao do Estado” Ao ser retirada a qualificacao “familia cons- tituida pelo casamento” da disposicao consti- tucional, a Constituigéo de 1988 inaugurou o princfpio da pluralidade das formas familiares, segundo o qual qualquer grupamento humano baseado no afeto, no respeito ena consideraao miituos poderia ser reconhecido como familia, mesmo que 0 casal no fosse casado entre si. A quebra do modelo tinico familiar cons- tituido pelo casamento foi seguido de outras mudangas paradigmaticas, no tocante a filiacdo, planejamento familiar e assisténcia aos mem- bros mais vulnerdveis da familia, por meio das demais prescrigdes dos parégrafos do artigo 226 edos artigos 227 a 230 da Constituicao Federal, Ademais, a atengao despertada pelo legisla- dor constituinte de 1988 em elevar o Direito de Familia ao Ambito constitucional, cujas regras juridicas até entio eram buscadas na legislagio ordinéria, abriu espago para que toda a princi- piologia da Constituigio de 1988 se prestasse a0 servigo da nova configuracao das familias, particularmente os principios fundamentais da dignidade da pessoa humana e da cidadania, além dos objetivos fundamentais de construir uma sociedade livre e solidéria, garantindo 0 bem de todos, sem preconceitos ou qualquer forma de discriminagio (artigos 1° e 3° da Constituicéo Federal). A partir de 1988, entio, podemos vislum- brar uma nova tébua de valores oriunda das relages familiares que passam a se fincar no afeto € na realizacao pessoal do individuo (MADALENO, 2011), e ndo mais no interesse do Estado e/ou da Igreja de regular a procriagio ea transmissio do patriménio. ‘Ano 52 Nimero 208 jan /mar. 2015 despontam transformagbes a realidadesociojurdic fesse sentido, ‘i profundamentos. brasileira, que merecem a 3. O(s) moderno(s) conceito(s) de familia por Farias € Rosenvald (2010), a familia tem sey quadro evolutivoatrelado ao proprio avango do homem eda sociedad, wrativel de acordo com as novas conquistas da humanidade e descober- rndo sendo crivel, nem admissivel, que esteja submetida presas a valores pertencentes a um passado distant, futuro remoto. Como bem pontuam os ‘sempre adaptada aos valores vigentes, Direito a reconhece ea norma. Como ressaltado tas cientificas, a ideias estaticas, nem a suposigées incertas de um autores, familia é realidade viva a ser ‘A familia nao existe apenas. porque 0 tiza, e tampouco as mudangas na familia se operam simplesmente porque a lei foi alterada, Antes, as alteragdes na familia precedem a alteracio das normas juridicas, que apenas contemplam as mudancas que foram consolidadas com o tempo (RUZYK, 2005). ‘Apartir da Constituigio de 1988, que consagrou o fendmeno da reper sonalizacio das rlagbes familiares, chamada familia constitucionalizada passou a ser configurada por dois aspectos fundamentais: 2) qualquer grupamento humano baseacdo no afeto pode ser consi derado (e protegido) como familia, independentemente de os membros serem ligados pelo casamento ou por lagos consaguineos; }) todos os membros da familia, independentemente do género, da idade ou das escolhas de vida, merecem ser respeitados, protegidos eter suas potencialidades saudavelmente desenvolvidas no espaco familiar. Como desdobramento da dinamica social, essas transfromacées representaram em concreto duas inovagées juridicas principais: a) o reconhecimento de outras formas de familia que nao a matri- monializada, como a formada pela unio estavel, familias monoparentais (formada por um dos genitores e sua descendéncia) e até mesmo anapa- rentais (sem hierarquia entre os membros, como a familia formada por duas irmas solteiras), familias homoafetivas, entre outras; e b) a afirmacao da socioafetividade como elemento de configuracao a filiagao, para permitir o reconhecimento de filhos que tenham essa qualidade pablica mesmo que néo compartilhem do mesmo material genético daqueles considerados genitores, inclusive para permitir fa- miflias pluriparentais, em que a filiagao biologica convive com a filiagao socioafetiva. Essa ampliagao do conceito de familia, agora plural e de significativs oe eae fundamentais da pessoa humana, tem sido rentes esferas dos Poderes Piiblicos. Revista de Informagao Legistatva Lourival Serejo (2014) aponta que o artigo 16 da Lei n® 8.213/1991, que dispoe sobre os planos de beneficio da Previdéncia Social, rela- ciona como dependentes do segurado nio s6 0 cOnjuge, companheiro, filho menor de 21 anos nao emancipado ou que seja invilido, também. os pais, 0 irmio ndo emancipado, menor de 21 anos nio emancipado ou que seja invalido, oenteado ¢ © menor tutelado, demonstrando m conceito de familia com um alcance social, spirado pelos principios de solidariedade e fraternidade, A Lei n® 10.836/2004, de instituicio do Bol- sa Familia, considera como familia a unidade nuclear, eventualmente ampliada por outros individuos que com ela possuam lacos de pa- entesco ou de afinidade, que forme um grupo domiéstico, vivendo sob 0 mesmo teto e que se mantém pela contribuigao de seus membros. A Lei Maria da Penha (Lei n® 11.340/2006), nessa mesma linha, considera como familia a comunidade formada por dois individuos que sio ou se consideram aparentados, unidos por lagos naturais, por afinidade ou por vontade expressa, independentemente de orientacio sexual, ressaltando Lourival Serejo (2014) que essa € a primeira lei que admite a existéncia de uma familia homoafetiva. A Lei da Adogio (Lei n® 12.003/2009) traz © conceito de familia extensa como aquela que se estende para além da unidade pais e filhos ou da unidade do casal, formada por parentes préximos com os quais a crianca ou adoles- cente convive e mantém vinculos de afinidade e afetividade, Prossegue 0 citado autor apontando a Lei n*12.424/2011, sobre o Programa Minha Casa, Minha Vida, que criou o conceito de grupo familiar como a unidade nuclear composta por ‘um ou mais individuos que contribuem com 0 seu rendimento ou tém suas despesas por ela atendidas e abrange todas as espécies reconhe- cidas pelo ordenamento juridico brasileiro, incluindo até mesmo a familia unipessoal. Daf concluir Lourival Serejo (2014, p. 29) que “o Direito de Familia vai para onde a familia for e renova-se com a mesma velocidade’. A superagio do modelo familiar tinico, constituido pelo casamento, vem corrigir uma desigualdade social ha muito debatida no seio juridico, quanto & parcela da comunidade que nio dispoe de recursos financeiros para arcar com os custos da solenidade, ou que apenas de- sejaa liberdade de escolhera forma de conduzir seus interesses privados, inclusive na opcao de como constituir uma familia. Olga Krell (2008, p. 51), analisando a hist6- ria do concubinato no Brasil até sua evolugio para o instituto da unio estavel, tece o seguinte panorama: “Um dos fatores de fomentagio e promogio do concubinato no Brasil foi a inexisténcia do divorcio até 1977, que obrigou os egressos do casamento falido a buscarem uma nova formacio para suas familias, embasadas numa convivéncia, meramente fética, Isto Porque, antes da Lei do Divércio, havia apenaso chamado desquite, que nao acabava com o vinculo matrimonial, permanecendo os envalvidos no estado civil de casados, im- pedidos, portanto, de constituir formalmente uma outra familia, {..] Essa alternativa ao casamento jéestava enraizada de tal maneira em nossa cultura que. introducio do divér- cio no conseguiu mais reduzir 0 nimero de concubinatos, uma vez que a cobranca de altos emolumentos para 0 processo de habiltagao para casamento ea mentalidade social permissiva formaram um terreno fértil para.a sua proliferagéo” A plurissignificagao da familia também foi © substrato te6rico a permitir a equiparacio das unides de casais homoafetivos a categoria da unio estavel, que, por expressa disposi¢ao egal, possui natureza heterossexual (§ 3° do artigo 226 da Constituicdo Federal). ‘Ano 52 Nimero 206 jan mar. 2015 ento da Arguicao de Preceito ‘Pundamenta' n S7(BRAST. Supremo Tribunal Federal entendeu queo. Lead es Pessoas nig 2 ree ror de desigualacio juridica, salvo disposicio constny, se presta como ouimplicita em sentido contrario, pois 0 inciso lV do art, cional ee Federal profbe 0 preconceito, por colidir frontalmente = naka constitucional de “promover o bem de todos’. No julgam obj : é ee ainda que o siléncio normativo da Carta Magna respeity in do concreto uso do sexo dos individuos atraia aplicagio da tears seal negativa’, segundo a qual “o que néo a fee oo ou obrigado, estéjuridicamente permitido’. Assim, recon = 0 direitos Jferéncia sexual como direta emana¢ao do pense da lignidade da - humana’, equacionando-0 ao direito 4 autoestima no mais eleva. ean da conscltncia do individuo e 0 direito a busca da) Felicidade, ‘Afinal, continua o Supremo, a proibicéo do preconceito evolui em entendimento para a proclamacio do direito a liberdade sexual, e 0 con. creto uso da sexualidade faz parte da autonomia da vontade das pessoas naturais, Logo, 0 uso empirico da sexualidade nos planos da intimidade da privacidade é constitucionalmente tutelado. Assim resta pacificado pelo Supremo Tribunal Federal, no exercicio do seu papel institucional de guardar a Constitui tizacao dos direitos fandamentais: 0 e efetivar a concre- “O Supremo Tribunal Federal - apoiando-se em valiosa hermenéutica construtiva e invocando princfpios essenciais (como os da dignidade a pessoa humana, da liberdade, da autodeterminaco, da igualdade, do pluralismo, da intimidade, da nao discriminacdo e da busca da feli- cidade) - reconhece assistir, a qualquer pessoa, o direito fundamental a orientagéo sexual, havendo proclamado, por isso mesmo, a plena legi- timidade ético-juridica da uniéo homoafetiva como entidade familiar, atribuindo-Ihe, em conseqiiéncia, verdadeiro estatuto de cidadania, em ordem a permitir que se extraiam, em favor de parceiros homossexuais, relevantes conseqiténcias no plano do Direito, notadamente no campo previdenciario, e, também, na esfera das relagdes sociais e familiares, - A extensio, as unides homoafetivas, do mesmo regime juridico aplicivel uunido estivel entre pessoas de género distinto justifica-se e legitima-se pela direta incidéncia, dentre outros, dos principios constitucionais da igualdade, da iberdade, da dignidade, da seguranga juridica e do postu- Jado constitucional implicito que consagra o direito & busca da felicidade, s quais configuram, numa estrita dimens: de inclusio decorrente da pré Il, e art. 3°, IV), ‘40 que privilegia o sentido ria Constituigdo da Republica (art. 1% fundamentos auténomos e suficientes aptos a conferit Suporte legitimador & qualificagao das conjugalidades entre pessoas do ‘mesmo sexo como espécie do género entidade familiar, — tem o direito fundamental de constituir familia, sua orientagdo sexual ou de ide da uniéo homoafetiva nao mesmos direitos, Toda pessoa independentemente de ntidade de género, A familia resultante Pode sofrer discriminacao, cabendo-Ihe os Prerrogativas, beneficios e obrigagdes que se mostrem Revista de informagao Legstativa acessiveisa parceiros de sexo distinto que integrem unives heteroafetivas A DIMENSAO CONSTITUCIONAL DO AFETO COMO UM DOS FUNDAMENTOS DA FAMILIA MODERNA. - O reconhecimento do afeto como valor juridico impre novo paradigma que inforn ‘gnado de natureza constitucional: um a inspira a formulagdo do proprio conceito de familia. Doutrina, DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E BUSCA DA FELICIDADE. - O postulado da dignidade da pessoa humana, que representa ~ considerada a centralidade desse principio essencial (CF, art. 1%, Il) ~ significative vetor interpretativo, verdadeiro valor-fonte que conforma e inspira todo 0 ordenamento constitucional vigente em nosso Pais, traduz, de modo expressivo, um dos fundamentos em que s€ assenta, entre nds, a ordem republicana e democritica consagrada Pelo sistema de direito constitucional positive. Doutrina. ~ O principio onstitucional da busca da felicidade, que decorre, por implicitude, do iicleo de que se irradia o postulado da dignidade da pessoa humana, assume papel de extremo relevo no processo de afirmagin, 070 ¢ expan. io dos direitos fundamentais, qualificando-se, em fungio de sua prépria teleologia, como fator de neutralizagio de préticas ou de omissées lesivas cuja ocorréncia possa comprometer,afetar ou, até mesmo, esterilizar direitos ¢ franquias individu, - Assiste, por isso mesmo, a todos, sem qualquer exclusio, 0 direito & busca da felicidade, verdadeiro postulado constitucional implicito, que se qualifica como expressio de uma ideia- -forsa que deriva do principio da essencial dignidade da pessoa humana, Precedentes do Supremo Tribunal Federal e da Suprema Corte americana. Positivacio desse principio no plano do direito comparado. A FUNCAO. CONTRAMAJORITARIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E A PROTECAO DAS MINORIAS. - A protecio das minorias e dos grupos vvulneréveis qualifica-se como fundamento imprescindivel plena legit ‘magio material do Estado Democratico de Direito. - Incumbe, por isso ‘mesmo, 20 Supremo Tribunal Federal, em sua condigio institucional de ‘guarda da Constituicio (0 que lhe confere “o monopélio da wiima pala- va" em matéria de interpretagdo constitucional), desempenhar funcio contramajoritiria, em ordem a dispensar efetiva protegdo as minorias ‘contra eventuais excessos (ou omiss6es) da maioria, eis que ninguém se sobrepde, nem mesmo os grupos majoritérios, a autoridade hierdrquico- -normativa ¢ aos principios superiores consagrados na Lei Fundamental do Estado, Precedentes. Doutrina” (BRASIL, 2011). A equiparagio do relacionamento estivel homoafetivo & qualidade de tunido estavel, longe de representar mera abstragao teérica, tem o condo de produzir intimeros efeitos concretos, que perpassam pelas diversas esferas da vida publica e privada, como a possibilidade de percebimento de pensio alimenticia e beneficios previdenciérios, inclusio do compa- nheiro dependente na Declaracao de Imposto de Renda, possibilidade de adogao de criangas e adolescentes, entre outros. Este julgamento, por certo, representa uma das maiores defesas da familia como espaco de promogao de afeto e dignidade, a despeito de limitagGes juridicas ou institucionais que nao correspondam & dinamica da vida real. Ano 52 Nimero 205 jan far. 2015 i dificagdo, pode-se também lo pritico dessa mo : Jae an eae pig de bem efi pl Uap, a. mie de proteger os nicleos familiares formados por parents oie até mesmo por pessoas solteiras, demonstrando a ampliagig da garantia aos direitos fundamentais dos individuos, ainda que nig previsto expressamente em lei: “PROCESSUAL. EXECUCAO ~ IMPENHORABILIDADE- Mover : RESIDENCIA, DEVEDOR SOLTEIRO E: SOLITARIO. 7 3.09/90, ~ A, interpretacdo teleoldgica do Art. 1°, da Lei 8.09/90, revela gues nerma nio se limita ao resguardo da familia. Seu escopo definitivo é a protecio de um dircito fundamental da pessoa humana: o direito & moradia, Se assim ocorre, nio faz sentido proteger quem vive em grupo ¢ abandonar 0 individuo que sofre o mais doloroso dos sentimentos: a solidio, - & impenhoravel, por efeito do preceito contido no Art. 1* da Lei 8.009/90, ‘oimével em que reside, sozinho, o devedor celibatario” (BRASIL, 2003), “EXECUGAO. BEM DE FAMILIA. AO IMOVEL QUE SERVE DE MO- RADA AS EMBARGANTES, IRMAS E SOLTEIRAS, ESTENDE-SE A IMPENHORABILIDADE DE QUE TRATA A LEI 8.009/90” (BRASIL, 1995). Em um segundo aspecto, o estabelecimento do afeto como princi- pal elemento formador de uma familia tem permitido uma verdadeira revolugio nas relacGes de filiago, ao quebrantar o primado do critério biol6gico em prol do vinculo socioafetivo que tenha sido estabelecido entre o suposto genitor e a crianga ou adolescente com 0 qual convive. ‘Tribunais de todo o pais, diante de agdes negatérias de paternidade, tém entendido pela manutengao do registro civil da crianga ou adoles- cente mesmo quando o exame de DNA atesta a inexisténcia de relacio consanguinea entre o infante e 0 pai que deseja eximir-se da paternidade, sempre que os julgadores vislumbram o estabelecimento de vinculos psicol6gicos de afeto e consideracio entre aqueles. Desta forma, qualquer pretensdo de anular registros civis em virtude da descoberta de auséncia de vinculo consanguineo esbarra na impossibi- lidade de se desconstituir vinculos afetivos jé estabelecidos, sob pena de violar o melhor interesse da crianca ou do adolescente de ter garantido o direito fundamental 4 convivéncia familiar. Nesse sentido, o Superior Tribunal de Justica jd entendeu que: “.. em conformidade com os principios do Cédigo Civil de 2002 e da Constituicao Federal de 1988, o éxito em acio negatéria de paternidade depende da demonstragao, a um s6 tempo, da inexisténcia de origem biolégicae também de que no tenha sido constituido o estado de filiacio, fortemente marcado pelas relacies socioafetivas e edificado na convi- Revista de Informagio Legislativa véncia familiar, Vale dizer que a pretensio yoltada a impugnacio da paternidade nio pode prosperar, quando fundada apenas na origem genética, masem aberto conflito com a paternidade socioafetiva” (BRASIL, 2012). Recentemente, o Superior Tribunal de Jus- tiga desenvolveu ainda mais a potencialidade da paternidade socioafetiva ao estabelecer que nem mesmo este vinculo poderia impedir a busca pela identidade genética do interessado, qual pode passara conviver com uma situagio demultiparentalidade como expressio maxima do seu direito & origem genética, corolirio dos direitos da personalidade: “PAMILIA. FILIACAO. CIVILEPROCESSO CIVIL. RECURSO ESPECIAL. ACAO DE INVESTIGACAO DE PATERNIDADE. VINCULO BIOLOGICO. PATERNIDADE SOCIOAFETIVA. IDENTIDADE GENE- TICA. ANCESTRALIDADE. ARTIGOS ANALISADOS: ARTS. 326 DO CPC E ART. 1.593 DO CODIGO CIVIL. 1. Agéo de investigacdo de paternidade ajuizada em 25.04.2002, Recurso especial concluso a0 Ga- binete em 16/03/2012. 2. Discussio relativa & possibilidade do vinculo socivafetivo com pai regisrario impedir 0 reconhecimento da paternidade biolégica. 3. Inexiste ofensa a0 art. 535 do CPC, quando o tribunal de ‘origem pronuncia-se de forma clara e pre- cisa sobre a questio posta nos autos. 4. A maternidade/paternidade socioafetiva tem seu reconhecimento juridico decorrente da relagio juridica de afeto, marcadamente nos casos em que, sem nenhum vinculo biol6gico, os pais criam uma crianga por escolha propria, destinando-Ihe todo o amor, ternura e cuidados inerentes a relago pai-filho. 5. A prevaléncia da paternidade/ ‘maternidade socioafetiva frente a biol6gica tem como principal fundamento o interesse do proprio menor, ou seja, visa garantir di- reitos aos filhos face As pretenses negatorias de paternidade, quando é inequivoco (i) 0 conhecimento da verdade biolégica pelos pais que assim o declararam no registro de nascimento e (ii) a existéncia de uma relagio de afeto, cuidado, assistencia moral, patrimonial e respeito, construida ao longo dos anos. 6. Se €0 proprio filho quem busca ‘o reconhecimento do vinculo biolégico com outrem, porque durante toda a sua vida foi induzido aacreditar em uma verdade que lhe foi imposta por aqueles que o registraram, nio ¢ razoavel que se Ihe imponha a preva~ lencia da paternidade socioafetiva, a fim de impedir sua pretensio. 7. 0 reconhecimento do estado de filiagdo constitui direito per- sonalissimo, indisponivel e imprescritivel, que pode ser exercitado, portanto, sem qualquer restrigdo, em face dos pais ou seus herdeiros. 8. Ainda que haja a consequéncia patrimonial advinda do reconhecimento do ‘vinculo juridico de parentesco, ela ndo pode ser invocada como argumento para negat © direito do recorrido 4 sua ancestralidade. ‘Afinal, todo 0 embasamento relativo a pos- sibilidade de investigacdo da paternidade, na haipdtese, esté no valor supremo da dignidade da pessoa humana eno direito do recorridoa sua identidade genética. 9. Recurso especial desprovido” (BRASIL, 2013). ‘Assim, permitir 0 reconhecimento da paternidade socioafetiva e da propria multi- parentalidade é homenagear o livre exercicio da afetividade de acordo com a livre razao dos individuos, sem obrigé-los a chancelar seus in- teresses individuais pela atuagao conformativa do Poder Piblico. £ permitir o desenvolvimento da dignidade, do respeito e da consideracao miituos de forma livre e consciente, ainda quea experiencia pessoal nao se adeque ao até entao propagado como modelo oficial. ‘Todos os julgados acima citados demons- tram como 0 Poder Judiciério, investido da fungio de garantir a ordem e a paz social, tem diligenciado para resguardar direitos e deveres diante da inércia ou indefinigao do Poder Legis- Iativo, que nem sempre consegue acompanhar pari passu as demandas da dinamica da vida social. Em suma, todas essas transformagoes, que mudaram radicalmente a forma de ver e de ‘Ano 52 Nimero 205 jan mar. 2015 sil, atendem a0 qe m familia no Bra ee nsar ¢ ii ado’ ‘Amartya Sen tem denominade °° :nsio de liberdades smo expai aes do desenvolvi- Para Sen (2000), 0 sucesso isndo deve ser medido somente ros como PIBe renda per de aspectos quali- ntivas ‘mento de um pai emaspectos quantitativ capita, mas também a partir tativos como o nivel de liberdades substa que se garantem aos cidadios. ‘Assim, pai desenvolvido seriando sb aquele que apresenta bons indicadores de desenvolvi- mento econ6mico e social, mas também aquele que se esforca para identificar e combater 0s fa tores que sejam fontes de privagio de liberdades individuais (SEN, 2000). ‘Analisando como as mulheres passaram historicamente a se apoderar da condigio de agentes, ou seja, passaram a ser vistas pelos homens e por elas préprias como agentes ati- vos de mudanga, promotoras dinémicas das transformagées sociais, Amartya Sen analisa em “Desenvolvimento como Liberdade” (2000) © impacto desse papel feminino na vida de to- das as pessoas - homens e mulheres, criangas e adultos. Citando o estudo estatistico de Murthi, Guio ¢ Dréze sobre a India, Sen (2000) retrata como a alfabetizagao feminina influenciou de forma determinante a reducéo da mortalidade das criangas de até cinco anos de idade, mais até do que as medidas de alfabetizacao masculina ou redugao geral da pobreza como instrumentos para reduzir a mortalidade infantil. Eoacesso das mulheres & educacao (no s6 mulheres indianas, como também asiéticas e afticanas, conforme estudado por Sen) também. rovocou a reducio das taxas de fecundidade. Isso porque os efeitos adversos de uma elevada taxa de natalidade incluem a negaco de liberda- des substancizis, devido a gestagdes frequentese do trabalho incessante de criar os filhos; logo, di- minuem obem-estar das mulheres (SEN, 2000). Revista de Informagdo Lepislatva portanto, a educagao das mulheres con: puatu para ampliar seus horizontes € dang, aonhecimentos sobre PIANE}AMENIO fa, pois, como Sen (2000) registra, mulheres ing” truidas tendem a gozar de mais liberdade pa, exercer Sua condigao de agente nas decisse, familiares inclusive nas quest6es relacionaga, jfecundidade ea gestacio de filhos. ‘Afinal, como reflete Sen na obra “A idgi, de Justica” (2011), ser mais inteligente pode nos dar a capacidade de pensar de forma mais clara sobre nossas metas, ObjetivOs e valores, além de ajudar na compreensio nio s6 do inte. resse proprio, mas também de como a vida dos outros pode ser fortemente afetada por nossas proprias agdes. ‘Com esse sentir, a repersonalizagao das re. lagées familiares ocorrida no Brasil, agregandg ‘20 conceito a0 tratamento juridico da familia 05 desdobramentos materiais da aplicacio de principios como o da dignidade da pessoa humana, da afetividade e da solidariedade, no contexto cada vez mais amplo de liberdade de agir segundo a propria razao, representa impor. tante aspecto do desenvolvimento da sociedade brasileira, que ndo pode ser desconsiderado, 4. Conclusées A quebra do modelo unico de familia, o reconhecimento dos filhos sem distingdo de origem, o rompimento da chefia conjugal, 2 legalizacao de uniées homoafetivas, a permissio de multiparentalidade sio mudancas essenciais no s6 para a evolucao da sociedade como para a evolucdo da prépria mentalidade humana, estando o Brasil na vanguarda da garantia de muitos direitos fundamentais no ambito da familia. Por todas essas transformacées, tal como trabalhadas no presente texto, ndo ha que se falar hoje em um Direito de Familia resgatando ‘a nogio tradicional de familia como conceito singular, Doutrinadores ‘como Maria Berenice Dias, Cristiano Chaves de Farias e Rolf Madale- no tém preferido denominar este ramo do Direito Civil de Direito das Familias, para fazer jus As conquistas no reconhecimento do conceito plurisubstantivo de familia e despertar sempre aatencio para aexpansio das liberdades individuais no seio da unidade fundamental a sociedade. No presente artigo, buscou-se analisar de que forma 0 conceito de familia foi evoluindo com o tempo € os fatores politicos, sociais e juri- dicos de cada época. Isso porque a familia ¢ fato social, alimentando-se diretamente da dinamica das relagdes privadas, o que no pode ser des- considerado pelos Poderes Piiblicos que Ihe prestam assisténcia. Buscou-se pontuar também 0 que contribuiu para o surgimento do fendmeno da repersonalizagao das relagdes familiares e 0 que isso significou para a transformagio social ¢ juridica da familia brasileira, principalmente apés a promulgagio da Constituigdo Federal de 1988. Essas anilises foram promovidas com 0 escopo de validar a conclusio de, contemporaneamente, nao cogitar mais ao Poder Pablico impedir 0 pleno exercicio da dignidade, do afeto e da liberdade dos cidadaosem con- duzirem suas opcoes de vida e constituigao de familia, seja para impedir o reconhecimento de familias compostas de maneiras nao tradicionais, como as familias homoafetivas e anaparentais, seja para impedir que o conceito de familia permaneca fechado e restritivo, como nos casos de pedido de inclusio de paternidade socioafetiva, mesmo sem a excluséo da paternidade biologica. Portanto, podemos compreender o estagio atual de exercicio cada vvez mais pleno das liberdades individuais dentro das familias brasileiras como um importante fator de ponderacao sobre o bom desenvolvimento do pais, particularmente pela assisténcia positiva que tem sido garantida pelo Poder Judicidrio pela eventuais omissoes legislaivas. ‘Afinal, a velocidade da dinamica social nem sempre ¢ acompanhada dda necesséria velocidade na atividade legiferante, o que tem sido sauda- vyelmente contornado pela atuagéo pontual da Justiga, como nos casos apontados no presente trabalho. Referéncias [ALMEIDA JUNIOR, Jesualdo Eduardo de. As relagdes entre cnjuguese companheros no Novo Cédigo Civil. Rio de Janeiro: Temas 8 Idéias, 2004. BRASIL. Constituigio da Repblica Federativa do Brasil de 1988, Braslia,Senado Federal, 1988. Disponivel em: , Acesso em: 31 out. 2014. ‘Ano 82 Nimero 205 jan mat. 2015 speci nS7606IMG, Rea, poco Epil S7SDIMG. Rl a eda ate 1S Ia 93S recurso especial n.182223/SP. 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