Você está na página 1de 8
A Suportdvel Realidade Edgar Morin - Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales (Paris) RESUMO artigo trata da crueldade da realidade ¢ da condigao humana, A incerteza face ao destino ¢ a inevitabilidade da morte fazem o sapiens démens criarestratégias para suportar a crucldade da realida- de. O sofrimento, a alegria, a tristeza, o prazer, a fei- Cidade, a infelicidade, etc., revelam a excitabilidade, a emotividade, a irritabilidade que o torna vulneré- vel a todos os golpes do destino e engendram a con- digo humana. O homem constrdi formas de dislo- gos para suportar a realidade: 0 compromisso new rético, a estética, a cooperacio € 0 controle sio espé- cies de rencativas para ordenar a realidade e confron- tar a crueldade do mundo. E impossivel escapar & dialogica sapiens/démens a partir da qual se tece a condigao humana, Torna-se urgente assumir 0 jogo dialégico entre racionalidade e afetividade, prosa e poesia, enquanto nosso destino. Palavras-chave: Realidade - Condigio humana - Crueldade - Dialégico RESUME, article traite de la cruauté de la réalité et de ion humaine. L'incertitude face au destin névitabilité de la mort font le sapiens démens cexéer des stratégies pour supporter la cruauté de la réalité, La souffrance, la joie, la tristesse, le phasis, le Tradugio por Alipio de Sousa Filho! "A humanidade nao pode suportar muito a realidade’. ES, Elioc "Os homens sempre lutaram, com todas as suas forgas, contra a realidade". Jean Servier bonheur, le malheur, etc. révelent I'excitabilité, 'é motivité, 'iritabilité qui le rend vulnérable & tous les coups du sort et engendrent la condition humai- ne. Llhomme construit des formes de dialogues pour supporter la réalité : le compromis névrotique, Vesthétique, la coopération, le contrile sont des sor- tes de tentatives d'ordonner la réalité et de confron- ter la cruauté du monde. Il est impossible ’échap- per la dialogique sapiens/démens & partir de laquel- Je la condition humaine est tissée. Il est urgent assu- mer le jeu dialogique entre rationalité et affectivité, prose et poésie entant que notre destinée, Mots clés: Réalité - Condition humaine - Cruauté - Dialogique A realidade é cruel para o ser humano. Langado sobre a terra, ignorante de seu destino, submetido & morte, nao podendo escapar aos lutos, penas, servidées, maldades propriamente humanas, ela é tanto mais cruel quanto o ser humano seja ple- namente consciente e plenamente sensivel. Sua 1. Socidlogo, professor do Departamento de Ciéncias Socias da UFRN, Doutor em Sociologia pela Universidade Sorbonne - Paris V. Coordenador do Grupo de Estudos do Imaginério, do Cotidiano e do Atual - UFRN. Tutor do Programa Especial de Ticinamento (PET), do eurso de graduagio em ciéncias sociais da UFRN. Editor da Revista Odisséia, do Centro de “igncias Humanas, Letras ¢ Artes da UFRN, René Descartes - Cronos, Natal-RN, v:2, 9.2, p. 23-30, ju /der. 2001 Edgar Morin 4 extrema emotividade, excitabilidade, irritabilidade © tornam vulneravel a todos os golpes do destino. Sua aptidao ao sofrimento é comparavel & sua apti- dio ao prazer, sua aptidao & tristeza é insepardvel de sua aptidio 2 alegria, ¢ toda perda de felicidade determina sua infelicidad. sem cessar, desejos que se chocam com a realidade. Ele vive cercado de ameagas naturais ¢ humanas. Os deuses, demnios, monstros que personificam seus medos Ihe inspiram um error permanente. Ele € 0 joguete das guerras, das opressbes, € 6 quase continuamente ¢ quase por todas as partes, escravi- zado desde os tempos histéricos. Ele é - 0 que de maneira nenhuma os animais sio - malvado, des- truidor ¢ sua crueldade faz. parte da crueldade do mundo. Um niimero incrivel de softimentos nasce da incompreenséo ¢ do mal-entendido na relagio com 0 outro e sobretudo préximo. A consciéncia da motte - a partir do que cle aprende a faralidade desde a infancia - acompanha-o como consciéncia da destruigio absolura de seu tinico precioso resouro, seu Eu, ¢ no menos terrivel é a morte dos c. O ser humano secreta, seres quetidos que fazem parte de seu ser. Assim, a realidade possui caracteristicas hortiveis, O. ser humano esti entregue & crueldade do mundo. Lembremos TS. Eliot: "a humanidade nao pode suportar muito a realidade". Dai a necessida- de de um compromisso. Este ¢ obtido mobilizan- do-se © mito, para nele encontrar as consolagdes sobrenaturais, mobilizando-se o imaginério, para ai proteger a alma, ¢ mobilizando-se a estética ¢ a pocsia, para se viver plenamente a realidade, a0 mesmo tempo que vencendo 0 seu horror. 1 -O COMPROMISSO "NEUROTICO" ‘Um compromisso com o real ganha um caré- ter neurético no sentido em que uma neurose é um compromisso, entre o espirito e o real, que suscita condutas e ritos atenuantes ou exorcizantes da cruel- dade do real. O ser humano compensa o excesso de crueldade ¢ as insatisfagées no amor nas fancasias € nos mitos. AS fantasias a jam provisoriamente 0 peso ¢ a coagio do real. © mito fortifica o humano mascarando a incompreensibilidade de seu destino e preenchendo 0 vazio da morte. Os mitos religiosos da salvagio abrandam nosso destino real, nossa natu- reza mortal, nossa solidio, nossa perdigio. Assim, segundo Freud, a religiao seria a neurose obsessiva da humanidade. Ela consola o individuo de sua angtis- tia fazendo-Ihe suportar um peso enorme de ritos, priticas, obrigagdes, adoragies ¢ sactificios. Esse compromisso se efetua pela mediagio dos Deuses, que nos exigem obediéncia, devogio e imolagbes, € que glotificamos em agradecimento. O mito, o rito reequilibram o ser humano, tornam possivel afrontar a angtistia ¢ a dor, permitem a comunicagao com 0 mundo inumano. Nesse sentido, mitos e religides podem ser considerados, conforme a ligica darwi- niana, fatores "seletivos” favordveis ao desenvolvi- mento da espécie humana, A fé religiosa - como a fé ‘em uma idéia - é uma forga profunda que permi suportar ¢ combater a crueldade do mundo no que concerne 20 fiel (pois seu fanatismo contribu fre- qiitentemente para fazé-la crescer). Ela fornece segu- ranga, confianga e esperanga ao espirito humano; ela © preenche da certeza de uma Verdade salvadora que afasta a corrosio da duivida. sactificio é sem diivida, © ato simultanea- mente mais neurético € mais migico do homo sapi- ens-demens, Ele permite acalmar a crueldade dos Deuses, vencer a incerteza e libertar da angiistia. O sactificio consagra o grande pacto de vida e de morte entre 0 humano e o divino. Existem dois tipos de sactificio: 0 do culpado o do inocente. O primeiro imola 0 maléfico e liberta a comunidade do mal, 0 segundo oferece a divindade a submissao absoluta. sactificio de massas de adolescentes permitia aos aste- cas cumprirem os grandes ritos césmicos de regene- ragio do cosmo. Por toda parte, na pré-histéria © na histéria, sacrficios humanos ¢ sactificios animais espalharam torrentes de sangue para salvar os huma- nos da escasser de viveres, da seca, das inundagdes, do infortinio, da morte, ¢, longe de ter deperecido, o sactificio se perpetuou sob formas patristicas, poli- ticas ¢ ideoldgicas. O complexo mito-rico-magia- religido alivia, amortece, modera, adormece, cicatri- Cronos, Natal RN, v2, n.2, p. 23-30, jul/dez. 2001 AA Suportivel Realidade za a angisti rangas sobrenaturais. A cultura, que organiza as rela- es entre os humanos ¢o real, inclui, na sua organi- za¢io, 0 compromisso mitolégico ¢ religioso, como se sta missio fosse nao apenas proteger a sociedade das potencialidades da insensatez do ser humano, ‘mas também proteger o ser humano da insuportivel realidade. O compromisso "neurético” ¢ inseparivel de um compromisso "histérico". Do mesmo modo como a histeria fornece uma realidade somética a nossos tormentos psiquicos, assim também nés atri- buimos uma realidade formidavel aos deuses, génios, deménios, que nossos espititos criaram, que nao ces- sam de alimentar € que controlam, de maneira obs- tinada, nossos Destinos. As religides ensinam a se ter menos medo da morte, a se aceitar os golpes da sorte, elas suscitam a resignagao, a quictude. Marx tinha mesmo razio de ver nisso uma consolagio. O budismo, que reconhece que o sofrimento ¢ inerente a toda vida, ensina a serenidade pela via da remincia de si, ¢ prope a libertagao no aniquilamento do Eu, sujei- to de todas as afligées, a fim de escapar ao ciclo infernal dos renascimentos. AAs grandes religides estao longe de desapare- cer, a maior parte conhece uma revitalizagio sur preendente. A proliferagao das seitas exprime mil tentativas de resposta ao grande mal-estar de nossa civilizagao: os ioguismos, meditagies, relaxamen- tos, dietéticas, macrobisticas se esforgam para aju- dar a cada um sair do seu mal-estat. O calor colet vo de uma comunidade alivia os desesperos indivi duais. As comunidades renascem sem trégua, sob miltiplas formas, incluindo-se ai as formas tempo- ririas de tribalismo indicadas por Maffesoli. Instituigdes que tém a seu encargo as neuroses humanas tiram proveito disso. Todo um setor do capitalismo se beneficia dos males da alma humana, Shama ¢ interpela as bem-aventu- % O autor refere-se as reflexdes do socidlogo francés Michel Malfesoli em obras como O tempo das bos: o declinio do indivi ddualismo nas sociedades de massa. Rio de Janciro: Forense- Universitiria, 1987, e Sobre © nomadismo: vagabundagens pés ‘modernas. Rio de Janeiro: Record, 2001 (N.T.) 25 Em um certo sentido, Religiio, Mitologia ¢ Magia podaram enormemente a histéria humana e pesaram enormemente sobre 0 destino dos indivi- duos. Suscitaram uma parte dos inumerdveis exces- sos causados pelo homo demens. Sufocaram, mais que com freqiiéncia, as possibilidades de um pen- samento auténomo. Mas, repitamos, trouxeram grandes Segurangas e grandes Consolagdes, dimi nuindo a forte anguistia existencial do ser humano matizando suas tragédias vividas. Tudo isso nao acalma todas as desesperangas nem inibe todas as revoltas. Mas estabelece mil compromissos neuréticos com a insuportével reali- dade. Se o neurético é patolégico, entio esse pato- légico é normal. 2-O PACTO SURREALISTA Ao mesmo tempo em que existe um compro- isso neurdtico entre o espirito humano e a realida- de, existe uma cooperagio realista entre sapiens € demens no jogo existencial. Assim, a agressividade infantil se encontra espontaneamente orientada em jogos nos quais - do mesmo modo que entre os cachortinhos as mordidelas sio a versio amigivel do abocanhamento - as rixas e batalhas simuladas cule: vam a camaradagem juvenil. No mundo adulto, a agressividade é conduzida e regulada nos esportes de competicio, jogos de carta, espeticulos ¢ filmes de violéncia, Existe uma cooperagio sabedoria/loucura que engloba e ultrapassa uma ¢ outra, aclimata a agressio ¢ torna-a amigivel. E, no préprio seio dos atos de amor, as mordidas, arranhées, simulacto de lutas, as vezes voluptuosas torturas, assumem importante papel. O jogo é um engajamento psiqui- co, uma insergao fisica, uma atividade pritica que nos coloca frente a frente com o mundo real para 0 desafiar ¢ 0 dominar, mas de maneira nao perigosa nem maligna, O jogo nos langa no conflito e na batalha, mas fora das conseqiiéncias cruéis do verda- deito conflito ¢ da verdadeira batalha. © jogador permanece na consciéncia do jogo, no scio do qual, sem 0 jogo, seria ofensa, crueldade e tragédia, Cronos, Natal RN, ¥.2,n.2,p. 23-30, jub/dez. 2001 Edgar Morin 26 Mais profundamente, a poesia vivida e a estética nos fazem viver um grande pacto com 0 real, 0 pacto surrealista, que transfigura o real sem negé-lo. A poesia vivida se situa no surreal. Em seu estado supremo, ela se exalta em éxtase, ato abso- luo de comunhio, de perda e de realizagao defini- tiva do real, de perda e de aperfeigoamento de si. No sentido vivido do termo, a poesia con- clui uma alianga com as poténcias geradoras e rege- neradoras da vida, com as subidas da seiva, as eclo- sbes, as floragées, as expansdes. Seu pacto com o real adquite um carter migico notadamente no amor. O amor surge de uma incrivel forga de vida que transfigura a vida. Ele nos religa a0 outro simultaneamente nos restituindo a nés mesmos. O amor fealiza plenamente nosso ser biolégico € nosso ser psiquico. O amor suscita uma quase- divinizagio exaltada para um ser de carne, sangue ¢ alma. O amor - unidade incandescente da sabe- doria e da loucura - faz-nos suportar 0 destino, faz nos amar a vida. Ele no vence jamais a morte, mas constitui sua réplica mais convincente: o titulo do romance de Guy de Maupassant, que o designa, é apenas excessivo: "forte como a morte” Como jé indicamos, mais nossa civilizagao se tora devotada ao célculo anénimo, ao lucro, & técnica, submetida & burocratizagao € ao parcela- mento do trabalho, mais é acionado um contra- movimento que regenera 0 pacto postico com a vida. Ela comporta também a busca de mil peque- nos prazeres da vida, reunides de amigos ¢ festas, sottisos ¢ risos de conivéncia, mil pequenos praze- res gastrondmicos ¢ noolégicos. A estética nao nos oferece apenas vias de ‘escape em diregio a mundos imagindrios, ela trans- figura o sofrimento ¢ 0 mal, A dor do artista ali- menta a beleza das obras que vao brilhar para seus admiradores, leitores ou espectadores: "o artista deve libertar 0 mundo da dor, mesmo nao se liber- tando de seu préprio sofrimento” (carta de André Suarés a Rouault*). Poesia, teatro, literatura, pin- tura, escultura © miisica (pensemos no segundo movimento do Streichquintett de Schubert) poem a dor em destaque, oferecendo-nos esse dom sublime da arte: a estetizagio da dor, isto é, fazer- nos sentir a dor na sua plenitude, mas, simultanea- mente, desfrutando sua expressio. Acestética nos permite olhar de frente aquilo que nos aterroriza e nos horroriza: permite con- templar a fatalidade, a morte atroz, a morte injus- ta, a morte odiosa, a morte-catistrofe, a morte- perda de si mesmo, a morte-perda dos seres queri- dos. A situagio de telespectador permite contem- plar esteticamente tornados, furacbes, erupgbes vulcanicas (e, no limite, a estetizagao de um terre- moto mobiliza os dois sentimentos trigicos: 0 ter- tor ¢ a piedade, suscitando as vezes também, a0 mesmo tempo, uma estética cinica da caristrofe). Como jé indicamos, 0 espectador da obra cinema- tognifica se nutre de angiistia nos suspenses, nutre- se de mortes nos thrillers, de dores nos sofrimen- tos, tormentos, provagées, suplicios que os herdis atravessam. A situagdo estética torna assim supor- tdvel o insuportivel. Terror e piedade, os d timentos que, segundo Aristérteles, nos invadem no espetéculo da tragédia ateniense, surgem efeti- vamente quando vemos as representagdes das tra- gédias humanas. Mas, agora, podemos olhar de frente, em situagio estética, 0 proprio terror, 0 hor ror da morte, a atrocidade do matador, o infored- niio do drfio, o sofrimento dos traidos, despreza- dos, humilhados. Opera-se assim uma catarse, como pensava Aristételes, isto é, uma "purifica- ao" do mal? Ela nos purifica provisoriamente, permitindo-nos exorcizar 0 mal, 0 softimento € a morte que, como o raio em direcdo ao pira-raios, dirigem-se em direcio a esses personagens ficticios, outros que nds mesmos, mas com quem, de uma. certa maneira, nos identificamos, que fo nossos para-raios imagindrios, ¢ que morrem em nosso lugar. E € assim que podemos consumir a morte € ‘0 destino de maneira pasteurizada, melhor ainda, sentir volipia e gozo no estado estético. + O aor refere-s a0 escritor francés Andeé Suarts (1868-1948), autor de ensaios e narrativas penetradas de misticsmo, e a0 pincor Georges Rouaule (1871-1958), praticante de um expresionismo 20 _mesmo tempo sattico © mistico. (NT. (Cronos, Natal RN, ¥.2, 22, p. 23-30, jubidez 2001 A Suportivel Realidade Assim, a estética nos faz experimentar felici- dade com infelicidade, Ela nos reconduz a condi- io humana simultaneamente nos divertindo, nos fazendo ai mergulhar, mas ao mesmo tempo nos distanciado. Actescentemos que, de maneira efémera, a estética nos torna melhores, mais sensiveis, com- preensiveis. Cessamos de reduzir o gangster, 0 assas- sino, 0 Macbeth a seus tragos criminosos ¢ com- preendemos a complexidade humana. Despertamos em nés o sentimento humano de compaixio, tio ausente na vida cotidiana, incluindo-se af os soft mentos reais to prdximos de nés. Por outro lado, a estética opera uma colaboragio simultinea com pensamento mitoldgico ¢ com o pensamento racio- nal, ultrapassando um ¢ outro no seu surrealismo. ‘Como dissemos antes, a emogio estética - mesmo em sua extrema intensidade - nao anula uma consciéncia racional anterior, que efetivamente con- tinua desperta, enquanto o espirito é ao mesmo tempo, envolvido na emogio, na participagio, no imaginsrio ou no jogo. De fato, os artistas, escritores, poetas sio “inspirados" pelo pensamento analégico- simbélico-mitico simultaneamente fizendo intervir nessa inspiragio as operagGes ¢ os controles de um pensamento racional-técnico, (A palavra arte contém em si a iddia de saber fazer, técnica, habilidade). A estética se situa na confluéncia na qual se entrefecun- dam os dois pensamentos, 0 mitico ¢ o racional, os dois universos, o real ¢ o imaginatio, Mais profundamente, a arte se alimenta ¢ nos alimenta de toda a riqueza do mito, do simbo- lo, da analogia, permitindo simultaneamente extrait, pela consciéncia racional, as-mensagens profundas incluidas no mito. Assim, tudo 0 que é estético ou estetizado nos dé prazer, bem-estar, felicidade ¢ ao mesmo tempo tristeza, Kigrimas ¢ pesar. A estética desper- ta nossa consciéncia. Animando as _poténcias inconscientes de empatia que estao em nés, a este tica nos torna - hélas de maneita proviséria - melhores, compreensivos, compassivos com aque- les que nossa inumanidade ignora ou despreza. Dat sua virtude capital na nossa civilizagio, na qual se » encontra separada da religiao e da magia: nao ape- nas ela nos oferece a possibilidade de ver as belezas da existéncia, nao apenas cria beleza, isto é alegria (uma coisa bela é uma alegria para sempre), ela nos ajuda a suportar o peso insuportivel da realidade e afrontar a crueldade do mundo. 3 - A COOPERAGAO REALISTA Enfim, desde as origens do sapiens, constitu- iu-se uma cooperacio entre a mentalidade racional- légico-empitico-técnica, sob o dominio das necessi- dades objetivas, ¢ a mentalidade analégico-simbéli- co-miolégico-mégica, sob o dominio das necessida- des subjetivas. Em todas as sociedades, as oragies, ceriménias, ritos, crengas sobrenaturais, superstigées cooperaram com os empreendimentos técnicos, priticas e econdmicos. As duas mentalidades se entreacompanham ¢ se entreconfortam nas socieda- des arcaicas, Ritos ¢ invocagdes precedem a cagay a guerra, as colheitas. Ritos de morte-nascimento fazem passar da infincia 4 idade adulta, e os mitos esto presentes em todos os momentos da vida, sem impedir, de modo nenhum, as operagées téenicas, priticas e econémicas. No interior das esferas reli giosas, constituem-se ciéncias como a astronomia, esta no estando separada da astrolo, jungio se far apenas no século XVII na civilizagio ociden- tal, No interior das grandes teologias, existiu sempre tum misto de pensamento mitolégico e pensamento racional. Assim, 0 tomismo medieval incorporou em seu scio 0 racionalismo aristotélico. Os exétcitos romanos conquistaram o Império com a ajuda, antes de cada batalha, dos adivinhos, mas utilizando estratégias sagazes. Magia, adivinha- fo, vidéncia trazem seus antidotos e predigdes para as incertezas. A astrologia, recalcada simultaneamen- te pelo cristianismo e pelo racionalismo, retorna com forca no mundo contemporineo. Ao mesmo tempo, os videntes saem das suas tendas para os apartamen- tos burgueses, os feiticeiros deixam a selva africana pelos bairros urbanos do Ocidente. Uns e outros tra- zem respostas as interrogacées angustiadas que sur- ‘Cronos, Natal-RN, ¥.2, 2.2, p. 23-30, jul/der 2001 Edgar Morin 28 gem de todas as partes, trazem seus socorros as colheitas ¢ is carreiras em risco: politicos, homens de negécio, atores, estrelas, empresérios, especuladores. O socorro da informagio da vidéncia oferece segu- ranga, confianga ¢, por isso, encoraja 0 empreendi- mento no seio de um mundo aleatério. E, a partir do século XIX, 0 retorno dos espititos mortos - rele- gado as civilizagGes arcaicas ou distantes - volta a0 Ocidente, Podemos novamente nos comunicar com 6 especttos de nossos defuntos nas sessdes de espiri tismo, e, assim, nos consolar da morte através dessa ‘maneira bastante antiga. O pensamento analigico-simbélico-mitolé- gico -magico permanece presente nas grandes reli- gides. Estas - malgrado recuos hist6ricos devidos a0 progresso da laicizacao - sio capazes de contra- ofensivas vigorosas como no Ira, Afeganistio ¢ out- ros lugares. Confinadas a vida privada no Ocidente, as religides conservam sua soberania sobre a morte ¢ as dores da alma. A sociedade mais ienuifica, mais técnica, mais materialista - propria mente, a sociedade do triunfo do homo sapiens, faber, economicus - & a0 mesmo tempo a mais reli- giosa de todas as sociedades ocidentais e 0 Livro Mestre continua sendo a Biblia. Por outro lado, a Nagao moderna, como tinha visto Toynbee, secretou uma religiéo prépria. O ser mitico da Nagao é inscpardvel de seu ser politico. A nagio une uma substincia mitolégica maternal (mie patria) ¢ paternal (autoridade do Estado). De fato, a palavra patria comega em mas- culino paternal ¢ termina em feminino maternal. A Nagao se alimenta do sactificio de seus herdis, esté sempre presente afetivamente no seu simbolo, a bandeira, ¢ conserva seu culto nas ceriménias patridticas ¢ nas festas nacionais. Assim, a Nagao constitui, no seio do real, uma forca soberana de amparo, de comunidade e de amor, que protege da crueldade do universo exterior. mito se introduz nas grandes idéias, tor- nando-as vivas, ardentes, potentes. Ele no reintro- duz os deuses ¢ os espiritos, mas espiritualiza € diviniza as idéias a partir do interior destas. Ele no retira necessariamente o sentido racional da idéia parasitada. Inocula uma sobrecarga de sentido que justamente transfigura a idéia em mito. Assim ocorre quando a Ciéncia © a Ravao, clandestina- mente parasitadas pelo mito, tornam-se providen- iais ¢ encarregam-se da salvagio da humanidade. Paradoxalmente, ocorrem simbioses entre mito € antimito no racionalismo e no cientificismo, que trabalham simultaneamente um para 0 outro ¢ um contra 0 outro. Assim, a razio continua a cfetuar suas elucidagses 20 mesmo tempo propagando 0 mito em sua onisciéncia, enquanto 0 mito se poe a servigo da razdo submetendo-aaa ele. Aqui ainda ha cooperagio invisivel ¢ profunda entre a racionali- dade e 0 mito para dar coragem e confianca. © compartimento. mitolégico-magico do espirito coabitou, de maneira quase sempre equil brada, com © compartimento racional-técnico. O pensamento magico nao foi incompativel com des- cobertas técnicas fundamentais, e mesmo acompa- nhou a ciéncia durante séculos, incluindo até Newton, que acreditava na alquimia ¢ na astrologia. Desenvolveram-se duas esferas na cultura, ¢ essas duas esferas podem coabitar no mesmo espirito sem se perturbarem. O espirito religioso nao é incompa- tivel com o espirito cientifico, quando eles estio cada um em seu compartimento (Pasteur, Abdul Salam, Adan). A prépria teoria cientifica e a inven- Gio técnica tém necessidade de imaginagio e de pai- x20, ¢, freqiientemente, idias obsessivas que se tor- naram de fato neomitos, como a idéia do determi nismo universal, estimularam a. pesquisa. Mais amplamente, as sociedades contemporineas. s40 apenas parcialmente controladas pelo pensamento acional, Tivemos a oportunidade de tratar em ‘outro lugar da mitologia propria 4 cultura mididti- ‘a, assim como das novas mitologias ligadas aos objetos téenicos (automéveis, avio). E, na vida cotidiana de cada um, coexistem, sucedem-se, mis- turam-se crengas, superstigdes, racionalidade, tecni- idade, ilusdes, magias. Enfim, a laicizagio da socie- dade levou ao desenvolvimento nao apenas da reli- gio da nagio, como acabamos de indicar, mas tam- bém ao de uma religio do amor, que acompanha 0 desenvolvimento da individualidade moderna. Cronos, Natal RN, 2, .2, p. 23-30, jul/der. 2001 A Suportivel Realdade Assim, se consideramos 0 mito ¢ a religido em sentido amplo - ¢ sem que tenham desaparecido em suas formas tradicionais -, veremos que o comunismo do século XX foi uma religio de salvagio moderna e veremos igualmente uma formidével presenca do mito nas ideologias contemporineas. Tudo isso trou- xe ¢ traz confianga, esperanga e, As veres, seguranca, alegrias e felicidades que conseguem mascarar ¢, as vezes, afastar parcialmente a crueldade da realidade. As complementaridades que acabamos de revelar nj devem mascarar 0 antagonismo pro- fundo dos dois pensamentos, Eles também se opu- seram ¢ se odiaram na Histéria. O desenvolvimen- to sem igual da filosofia e da ciéncia no Ocidente ocorreu malgrado as condenagées muitas vezes mortais da Igreja. Os avangos de uma racionalida- de critica, no século das Luzes, ocorreram em detrimento da religiao. A laicizagio progressiva da sociedade e dos espiritos aconteceu recalcando 0 empreendimento religioso. A diivida e a fé, a razéo ca religito continuam se opondo. Os dois pensamentos sio vitais. A rentincia a0 conhecimento racional-empitico nos mergulha- ria, de maneira fatal, nas alucinagdes ¢ na loucura. A temincia ao mito nao apenas desencantaria mas desencarnaria nosso universo ¢ desintegratia as comunidades. O ser humano necessita de um pen- samento racional. O pensamento racional necessita de seu antagonista complementar. Paradoxalmente, os dois pensamentos se reenviam um ao outro. A extrema corrosio da diivida conduz ao niilismo, que conduz ao desespero, € que suscita, como rea- 40 vital, 0 retorno 3 fé religiosa (no inicio do sécu- lo XX, a conversio de Psichari e Péguy ao eatolicis- mo, ¢, na metade do mesmo século, a conversio de muitos intelectuais 20 comunismo, scm 0 que, como dizia Bluard, "restava apenas abrir 0 gés")*. O aor fala aqui de Jean Psichari (1854-1929), escrtorelingtis- 1a, autor de romances ¢ novelas; de Chatles Péguy (1873-1914), ‘escritor francés, militante da causa Dreyfus, partidirio do socials. ‘mo, mas profundamente mistico, reornandl 3 fécatdica antes de sua morte, de Eugene Grindel Eluard (1895-1952), poeta, surrea- lista, partcipante da Resistencia feancesa contra o dominio alemio na Il Guerra Mundial. (N-T.) » A seiva do mito, na nossa civilizagio, ali menta nossos ideais e nossos valores. Os valores como Liberdade, Igualdade ¢ Fratcrnidade sio, quando aderimos a eles, carregados de fervor, tor- nam-se guias ¢ orientam nossas vidas, A vida humana necesita ligar dialogicamen- te 0s dois pensamentos. Sua complementaridade antagonista constitui um compromisso cooperati- vo vital. Certo, repitamos, tal antagonismo foi também nio menos vital para o desenvolvimento do espitito humano, Mas 0 acompanhamento miituo de um pensamento pelo outro - analdgico- simbélico-mitoldgico-mégico e racional-légico- empirico-técnico - no constitui um defeito da hi t6ria da humanidade, e pode mesmo ser considera- do como um fator seletivo para a espécie humana, Esse faro contribuiu fortemente para tornar supor= tével a insuportavel realidade, sem contudo nos impedir totalmente de enxergé-la 4- AS DUAS VONTADES DE CONTROLE, O espirito de compromisso com a realidade nao foi o bastante para os humanos. Existiu sem- pre € continua a existir a vontade de controlar a realidade para torné-la suportivel, fato que se exprimiu de duas maneiras: uma que se exprimiu através da ciéncia e da técnica, ¢ outra, através da magia. A magia se desenvolve na humanidade arcaica jé quanto a ciéncia ¢ a técnica comegam a reconhecer ¢ manipular as coisas, Caracterizada por alguns como uma pritica do "poder do espiti- to", a magia traduz.a vontade de domesticagio e de controle da natureza ¢ do sobrenatural ‘A magia é uma pritica que comporta ritos, palavras-magicas, formulas, que agem a partir de analogias, simbolos, metamorfoses do universo mitolégico. Em geral, a magia atua a partir de ima- gens e simbolos para influir nos espititos ou nas pes- soas. A magia permite a ubiqilidade, metamorfoses, predigoes, adivinhagdes, curas, maldisGes, as mortes por feitigos. Os xamis sio capazes de transpor os limites do tempo e do espago, de se comunicar com Cronos, Natal-RN, ¥.2, 22, p. 23-30, juL/dee. 2001 Edgar Morin 30 (8 espititos superiores, de curar as doengas. Os feiti- cciros duplicam a si préprios, sendo capazes de colo- car espiritos e génios a servigo deles. Agem sobre 0 simbolo (nome, inscrigio, imagem) para atuarem sobre o ser ou sobre a coisa simbolizada. Usilizam as palavras-mégicas, fSrmulas "cabalisticas” e ritos que permitem comandar as coisas. Enfim, o sacrificio € tum grande ato mégico universal, A magia ¢ como operador "técnico” do pensamento mitolégico. ‘A magia arcaica foi recalcada nas grandes religides, que, entretanto, incorporaram_priticas magicas em seus ritos e cultos. Foi recalcada no mundo laico racionalista, mas continua no mundo rural e também se desenvolve nas cidades, onde proliferam videntes, curandeiros, feiticeiros. Ainda hoje, os bruxos ¢ curandeiros, herdeiros da antiga magia, procedem agindo sobre a duplicata da pes- soa que devem salvar ou destinar 20 infortinio, scja via a imagem (Foto, estatueta), seja via algo que Ihe pertenga (mecha de cabelo, unha). A magia continua dissimulada em mil pequenos atos da vida privada: de fetiches, amuletos, foros, imagens. protetoras, ritos de superstigio, rniimeros e dias fastos ou nefastos, etc. A ciéncia se desenvolveu, a partir dos tempos modernos europeus, como meio para nos fazer "senhores e possuidores da natureza". Ela se aliou a técnica c desenvolveu, nos séculos XIX e XX, for- conservag: midaveis poderes. Obscrvemos aqui que essa von- tade de poténcia trouxe scus limites: de um lado, nos seus préprios poderes, pois a fisica nuclear deu a humanidade a possibilidade de se autodesteuir, de outro, nos efeitos finalmente indefensiveis-do desenvolvimento técnico-cientifico sobre a biosfe- ra, entdo, sobre a propria humanidade. Os poderes da magia eram limitados aos xamias ¢ feiticeiros. Os poderes da cigncia corres- pondem aos dos Estados, economias, industrias, embora a ciéncia se creia ainda com poderes ilimi- tados, mesmo tendo alcangado as barreiras da rea- lidade, A magia controlava ¢ dominava o mundo pelos poderes do espirito, a tecno-ciéncia controla e domina 0 mundo através da sujeigio do mundo fisico, A magia e a cigncia, de maneiras diferentes, Cronos, Natal RN, ¥.2, n.2, p. 23-30, jub/der. 2001 puderam agir sobre o real impondo a este suas von- tades de controle. Ocorre que o real obedeceu ape- nas fragmentariamente 4 magia ¢ comega a revoltar-se contra a tecno-ciéncia. Podemos controlar a realidade apenas local- mente, provisoriamente ¢ imperfeitamente para fazé-la obedecer a nossos desejos, € 0 excesso de controle se volta contra nés. Novamente aqui vol- tamos aos compromissos com o real, sejam com- promissos neuréticos, seja cooperativos, e, entre esses compromissos, os mais ricos e mais belos so estéticos ¢ potticos. 5 - OASIS? A angtistia humana pode ser sublimada na paixio do jogo, nas muiltiplas participagdes, no Amor - "forte como a morte" -, nos mitos, ritos, religides, pode ser ransfigurada ¢ afrontada na pocsia, romances, filmes, mas sem jamais ser ver~ dadeiramente liquidada. Que os seres humanos se consagrem 3 diver- o, a0 consumo, a perdigao, & adoracdo do invisi- vel, & exaltagio, tudo isso pode ser considerado como um gasto improdutivo desprovido de fun- cionalidade social. Mas 0 esbanjamento, 0 consu- mo, o dispéndio constituem expresses da comple- xidade individual e da complexidade social. Expresses que revelam a diferenga irredutivel da sociedade de humanos quando comparada orga- nizagao de uma maquina trivial. E por essa razio que a aplicagaio de modelos econdmico-determin- ista-racionalizadores, para conhecer 0 universo humano, ignora o essencial. Nao podemos escapar & dialégica sapiens/de- ‘mens a partir da qual se tece a condiggo humana. ‘Assumir 0 jogo dialégico racionalidade/afetividade, prosa/poesia é assumir 0 destino humano. Poderemos, salvo excluir, ao menos reduzir a cruel- dade? Poderfamos também desenvolver a bondade e a compreensio? Poderemos desenvolver os oisis de felicidade na insuportavel realidade? Seria isso 0 que verdadeiramente poderia se chamar progresso.

Você também pode gostar