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Vo.ume II Cer Nou CEL! CO OCU RSI) fe UIE RSI) Organizadores A capa deste livro, Geografia & Pesca Artesanal Brasileira, ndo 6 sO uma Colt como (lr) os organizadores, na Apresentacao. Estes dois volumes significam o resultado de uma boa pescaria; daquelas realizadas na maré grande! Ha muito tempo, este pesqueiro vem sendo “cevado", mas so recentemente se teve a coragem de jogar a Rede de Geografias da Pesca, para fazer este “arrastao” de 22 artigos. Foram tantos, que tiveram que ser postos em duas embarcagées, digo, em dois volumes. O conjunto destes artigos permite visualizar situagdes vividas e sofridas, por pescadores e por pescadoras artesanais, nas aguas doces e salgadas desse nosso Brasil. Permite ver, também, que a vida do pescador e da pescadora artesanal nao é s6 “jogar a rede e puxar”, como diz Caymmi. Para fazer este gesto, muita coisa tem que ser realizada, antes e depois... muita coisa, que se concretiza na construgaéo coletiva de um modo de vida e de praticas tradicionais, que representam uma enorme base de conhecimento e fol) saberes, nem Teal oecy icteola at sale loss Parte deste conhecimento e destes saberes passa, obrigatoriamente, por conhecer e por entender os movimentos dos elementos da natureza, suas conjugagées, sua forca e sua dadiva, que nao sé permite, como exige, um respeito e uma intimidade com a natureza, os quais se aprendem nas primeiras ligdes da escola da vida das aguas. Toda a rotina e o ritmo da vida e do trabalho dos pescadores e das pescadoras artesanais sdo construidos, nesta base. Nas licdes desta escola, o exercicio da liberdade e da criatividade é praticado todos os dias. Liberdade para definir suas rotinas de trabalho, seu tempo e seu espaco e, ___ principalmente, liberdade para acessar aos bens da natureza. E é na garantia do acesso aos bens da natureza que os pescadores e as pescadoras artesanais aprendem e ensinam outra ligéo fundamental, que é a da defesa de seus territorios terra- agua, 0 que exige outras formas de organizagéo, de resisténcias e de enfrentamentos, em diferentes escalas. Os artigos deste livro dao eco ao clamor e ao alerta dos pescadores e das pescadoras artesanais, que lutam pela defesa de seus territorios de terra-agua, como garantia da preservagéo da natureza, do seu modo de vida e da reprodugéo do bom pescado. Guiomar Germani GeografAR - UFBA GEOGRAFIA & PESCA ARTESANAL BRASILEIRA UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARA EDITORA DO GRUPO ACADEMICO PRODUCAO DO TERRITORIO E MEIO AMBIENTE NA AMAZONIA - GAPTA Reitor da UFPA: Prof. Dr. Emmanuel Zagury Tourinho Lider do GAPTA: Prof. Dr. Jodo Marcio Palheta Editoragdo: Prof. Dr. Cristiano Quaresma de Paula Revisao Técnica: Profa, MsC. Vicka de Nazaré Magalhaes Marinho Capa: Prof. Dr. Cristiano Quaresma de Paula Imagem de Capa: “Arrastéo" (1959) de Candido Portinari, Direito de reproducéo gentilmente cedido por Jodo Candido Portinari Conselho Editorial GAPTA Prof. Dr. Jodo Marcio Palheta da Silva Prof. Dr. Christian Nunes da Silva Prof. Dr. Adolfo Oliveira Neto Prof. Dr. Jose Sobreiro Filho Prof. Dr. Ricardo Angelo Pereira de Lima Prof. Dr. Ricardo Jose Batista Nogueira Consetho Consultive GAPTA Prof. Dr. Afonso do O - Universidade do Algarve Prof. Dr. Antonio Carlos Freire Sampaio ~ UFU Prof. Dr. Adolfo Oliveira Neto - UFPA Prof. Dr. Clay Anderson Chagas - UFPA Profa, Dra, Cynthia Simmons - Florida University Prof. Dr. Christian Nunes da Silva - UFPA Prof. Dr. David Gibbs McGrath - UFOPA Profa, Dra, Dirce Maria Antunes Suertegaray - UFRGS Prof. Dr. Eduardo Shiavone Cardoso - UFSM Prof. Dr. Eliseu Saverio Sposito - UNESP Prof. Dr. Flavio Rodrigues do Nascimento ~ UFC Prof. Dr. Gilberto Rocha - UFPA Prof. Dr. Jose Sobreiro Filho ~ UFPA Prof. Dr. Joao Marcio Palheta ~ UFPA Prof. Dr. Jovenildo Cardoso Rodrigues -UFPA Profa, Dra, Judite Nascimento - Univ, Cabo Verde/UniCV Profa, Dra, Lisandra Pereira Lamoso - UFGD Profa, Dra, Maria Celia Nunes Coelho - UFR) Prof. Dr. Otavio Jose Lemos Costa ~ UECE Prof. Dr. Raul Vincens — UFF Prof. Dr. Ricardo Angelo Pereira de Lima - UNIFAP Prof. Dr. Ricardo Jose Batista Nogueira ~ UFAM Prof. Dr. Robert Walker - Florida University Prof. Dr. Rui Moreira — UFF Prof. Dr. Wanderley Messias da Costa ~ USP 3 GEOGRAFIA & PESCA ARTESANAL BRASILEIRA Vowume Il Cristiano Quaresma de Paula Christian Nunes da Silva Catia Antonia da Silva Organizadores 2019 1? Edicao - 2019 ISBN: 978-85-63117-51-9 E proibida a reproduco total ou parcial desta obra, sem autorizacdo expressa dos autores ou da editora. A violacao importara nas providéncias judiciais previstas no artigo 102, da Lei n° 9.610/1998, sem prejuizo da responsabilidade criminal. Os textos deste livro sao de responsabilidade de seus autores. Dados Internacionais de Cataloga¢ao-na-Publicagao (CIP) Biblioteca de Pés-Graduagio do IFCH/JUFPA 6345 Geografia & pesca artesanal brasileira / Cristiano ‘Quaresma de Paula, Christian Nunes da Silva, Catia Antonia da Silva, Organizadores. — Belém: GAPTA/UFPA, 2019, 2v.:il.: 22m, Inclui bibliografias ISBN 978-85-63117-50-2 (v. 1). ISBN 978-85-63117-51-9 (v2) 1. Geografia - humana. 2. Pesca artesanal. 3. Pescadores - Condigées sociais, 4. Pescadoras ~ condicées socials. 5. Tertitorialidade humana, 6. Comunidade - Desenvolvimento, 7. Pesca - Brasil, |. Paula, Cristiano Quatesmade, org. Il. Silva, Christian Nunes da, org. II. Silva, Catia Antonia da, org. IV. Titulo CDD 22. ed. - 639.2098 Elaborado por Gisele Helena das Neves Martinez - CRB-2/1029 PREFACIO Antonio Carlos Sant'Ana Diegues Pesquisador do NUPAUB da USP E com satisfagéo que prefacio a coleténea de textos académicos, sobre pesca artesanal, organizada pela Rede de Geografias da Pesca. Nela, os diversos autores desenvolvem trabalhos sobre temas muito relevantes, hoje, como a questdo do territério pesqueiro e da territorialidade, os diferentes tipos de conflito, o papel das reservas extrativistas marinhas, os grandes projetos no litoral, os processos de participacao social e politica, o turismo, a aquicultura, entre outros. © tema da pesca artesanal comecgou a ser pesquisado, mais sistematicamente, na década de 1970, mas ha trabalhos relevantes ja nas décadas de 1940-1950, como o de Camara Cascudo, de 1957, tratando dos jangadeiros do Nordeste; 0 do gedgrafo S. Bernardes, que estudou a pesca artesanal, no litoral do Rio de Janeiro, em 1950; de Brito Soeiro, que publicou Agricultores e portugueses na cidade do Rio de Janeiro, em 1960. Gostaria de mencionar, também, o excelente trabalho de Helio Galvao, médico e pesquisador, que escreveu Novas Cartas da Praia, em 1968, descrevendo aspectos relevantes da vida de pescadores artesanais de Tibau do Sul (RN). Ainda na década de 1940/1950, a antropdloga Gioconda Mussolini estudou os caicaras, pescadores artesanais do litoral Norte de Sao Paulo. Diegues, A.C. S. A década de 1970 foi crucial para a pesca artesanal, responsavel, na época, por mais de 50% do pescado capturado no Brasil, pois sofreu o impacto negativo dos financiamentos governamentais para a pesca industrial. Esta devastou os recursos pesqueiros do Sul-Sudeste e depois migrou para o Norte do Brasil, seguindo a mesma saga de devastacio, com reflexos negativos sobre a atividade dos pescadores artesanais. Isso nao é fato, somente, do passado, pois as traineiras industriais de Santa Catarina continuam capturando os cardumes de tainha que migram da Lagoa dos Patos para o Norte e que, tradicionalmente, sao capturados pelos pescadores artesanais do litoral do Sudeste. Em muitos casos, retiram as ovas das tainhas, que sdo exportadas diretamente para a Europa, afetando muito o modo de vida dos pescadores artesanais. No inicio dos anos 1970, alguns antropdlogos estadunidenses publicam suas pesquisas, feitas junto a comunidades pesqueiras do Nordeste. Os mais importantes, a meu ver, foram Forman, com o trabalho The raft fishermen (1970), que estudou a mudanca social e a tradicéo pesqueira artesanal, na vila de Coqueiral, em Alagoas; Kottak, também antropdlogo estadunidense, que pesquisou, durante uma década, os pescadores artesanais de Arambepe, na Bahia, cujo primeiro livro, publicado em 1966, com o titulo The structure of equality in a Brazilian fishing community e 0 seguinte, Assault on Paradise, publicado em 1982, analisam, principalmente, os reflexos da implantacao da industria quimica Tilbras, no litoral de Arambepe, impactando negativamente o modo de vida dos pescadores artesanais locais; e John Cordell, que, em diversas publicagées, em particular, em Lunar fishing cycle in Northeastern Brazil, de 1974, e em Marginalidade social e apropriacao territorial na Bahia, de 1989, analisa a questdo da territorialidade pesqueira em comunidades pesqueiras da regiéo de Valenca na Bahia de forma inovadora. A ideia basica de Cordell é a da apropriacao social do espaco de pesca, através do conhecimento e das praticas tradicionais, que configuram o territério pesqueiro. Ainda na década de 1970, 0 socidlogo, e meu orientador, Fernando Mourao escreveu sua tese Os pescadores do litoral Sul de Sao Paulo, e eu defendi minha dissertagdo de mestrado, Pesca e marginalizagéo no litoral paulista, em 1971. Em 1983, lancei a coletanea de ensaios Pescadores, Camponeses e Trabalhadores do Mar, aprofundando 6 De Paula, C. Q,; Silva, C. N.; & Silva, C. A. (orgs.) Prefacio conceitos sobre pesca artesanal e sobre sua relagéo com a pesca industrial. Ainda nessa década, de 1970, a antropdloga Ana Maria Beck publicou, em 1979, seu trabalho de mestrado, intitulado Lavradores e pescadores: um estudo sobre o trabalho familiar e o trabalho acessério, sobre as transformagées da pesca artesanal, em Santa Catarina; Kant de Lima, antropdlogo, defendeu sua tese de mestrado Pescadores de Itaipu - a pescaria da tainha e a produgao ritual da identidade social, em 1979. Também em 1979, apareceu a tese de Luis Fernando Duarte, antropdlogo As redes do Suor, tratando dos pescadores de sardinha, no litoral do Rio de Janeiro. A década de 80 foi marcada pelo fim da ditadura militar e pelos trabalhos da Assembleia Constituinte, através da participagdo organizada dos pescadores e de suas associagdes, apoiados pelo Conselho Pastoral da Pesca, da Igreja Catdlica. A presenca de pescadores no espaco da Constituinte da Pesca tornou suas demandas sociais mais visiveis, principalmente no que toca a seus direitos, como o da aposentadoria, nomeadamente. Nessa década, sobressaem os trabalhos realizados nas regides Norte e Nordeste. Na primeira, destacam-se os trabalhos de Alex Fiuza de Mello A pesca sob o capital: a tecnologia a servigo da dominagao, de 1985, no qual o autor analisa o impacto das frotas do Sul que se instalam no Para sobre a pesca artesanal. Na mesma linha vai o trabalho de Violeta Loureiro, Os parceiros do mar: natureza e conflitos sociais na pesca da Amazénia, de 1985, e dos antropdlogos do Museu Emilio Goeldi, em particular, o de Lourdes Furtado, A dialética da atividade pesqueira no Nordeste Amaz6nico, de 1980. No Nordeste, sobressai a contribuigao de Simone Maldonado, antropdloga da Universidade Federal da Paraiba, com a publicacao, entre outras, de Pescadores do Mar, em 1986, analisando a questao dos saberes e das praticas pesqueiras dos mestres de pesca. Ja no litoral de Santa Catarina, destaca-se o trabalho da antropdloga Lucia Helena Cunha, em Tempo natural e tempo mercantil na pesca artesanal, de 1987. Em 1986, ocorreu em Brasilia, o Primeiro Encontro de Ciéncias Socais e 0 Mar, reunindo varios pesquisadores, de diversas areas do Geografia & Pesca Artesanal Brasileira Volumell 7 Diegues, A.C. S. conhecimento e regides brasileiras, para discutir os problemas e a contribuicéo dos pescadores artesanais, na producao de alimentos. No segundo e no terceiro encontros, na USP, em 1988 e em 1989, o Nupaub (NUcleo de Pesquisa de Populagées e Areas Umidas Brasileiras, da USP) conseguiu reunir um numero bem maior de pesquisadores, e foram apresentados inumeros trabalhos, com uma_ visao_ interdisciplinar. Finalmente, realizou-se, no Museu Goeldi, na Amazénia, em colaboracao com o Nupaub, o IV Encontro de Ciéncias Sociais e o Mar. Na década de 1990, um numero crescente de pesquisadores trabalhou com temas emergentes, como a conservacdo dos recursos pesqueiros, pelo conhecimento e pelas praticas tradicionais, o impacto do turismo sobre as comunidades de pescadores, as consequéncias negativas de politicas ptiblicas, como a das areas protegidas, sobre o modo de vida dos pescadores artesanais, o papel das pescadoras, entre outros. No tema historia e a pesca, sobressai o trabalho do historiador Luis Geraldo da Silva, que analisa o papel dos escravos libertos na atividade pesqueira, em A faina, a festa e o rito: gentes do mar e a escraviddo no Brasil. Sobressairam, também, os trabalhos ligados ao tema de etnoconhecimento das culturas de pescadores artesanais e aqueles ligados ao tema da socioantropologia maritima. Muitos desses trabalhos se encontram na antologia A imagem das Aguas, que organizei e que foi publicada, no ano 2000. Muitos outros trabalhos, sobre o tema de pesca artesanal, podem ser encontrados no portal do Nupaub: usp.br/nupaub A partir dos anos 2000, varios trabalhos foram realizados, sobre as reservas extrativistas marinhas e sobre as reservas de desenvolvimento sustentavel, sobretudo no Nordeste e no Norte do Brasil. Infelizmente, nao é possivel enumerar todos os trabalhos que foram realizados pelas universidades e pelos institutos de pesquisa espalhados pelo Brasil, sobretudo pelas Universidades e Institutos Federais, espalhados por todo olitoral, pelos rios e pelos lagos do Brasil. A partir de 2000 até o presente, o aparecimento de movimentos sociais na pesca, como o Movimento de Pescadores e Pescadoras Artesanais - MPP, e intimeros movimentos regionais, deu origem a trabalhos relativos aos direitos dos pescadores artesanais brasileiros, na defesa de seus territorios e de seus modos de vida. Esses trabalhos sdo ainda mais importantes, hoje, quando esses direitos sao negados, pelos atuais dirigentes do pais. 8 De Paula, C. Q,; Silva, C. N.; & Silva, C. A. (orgs.) Prefacio Nesse sentido, a presente antologia da Rede de Geografias da Pesca é, sem duivida, mais uma contribuicgdo importante ao entendimento do papel dos pescadores e das pescadoras e na defesa dessas comunidades, que tanto contribuem para a producao de alimentos, no Brasil, na atualidade. Os trabalhos nela contidos continuam, a meu ver, a tradicao dos estudos das geografias da pesca, iniciados no principio do século XX, na Franca. Antonio Carlos Diegues, antropdlogo Geografia & Pesca Artesanal Brasileira Volumell 9 SuMARIO Prefacio Antonio Carlos Sant'Ana Diegues Apresentacgao Cristiano Quaresma de Paula, Christian Nunes da Silva e Catia Antonia da Silva VoLuMe 1 Geografia e Pesca Artesanal Brasileira: didlogos Ppossiveis Cristiano Quaresma de Paula Entre Conceitos e Metodologias para Compreender o Saber-Fazer-Ser dos(as) Pescadores(as) Artesanais Taise dos Santos Alves Mulheres Pescadoras: trabalho, modo de vida e manejo dos recursos naturais no litoral Sul Sergipano, Nordeste, Brasil Eline Almeida Santos; Miria Cassia Oliveira Aragéo; Rosemeri Melo e Souza le Pesqueira na Amazé6nia Paraense: 0 caso do de Sao Caetano de Odivelas - Para Gracilene de Castro Ferreira, Gleice de Castro Pereira A Caracterizacao da Territorialidade da Pesca Artesanal no Distrito de Itaipava (municipio de Itapemirim/ES) Eduardo Rodrigues Gomes, Tatiana Campos Béa, Luiz Henrique Miranda Matos 15 23 57 83 107 127 175 191 215 243 269 Diversificagao de Renda em Familias de Pescadores Artesani luriatividade e multifuncionalidade na Ilha dos Marinheiros, Rio Grande/RS Aline Bastos Mendes; Cesar Augusto Avila Martins Reflexdes Geograficas e Sociolégicas, sobre Trajetérias de Extensao e de Pesquisa, na Luta pela Garantia dos Direitos de Pescadores Artesanais Catia Antonia da Silva; Karla da Silva Sampaio; Pedro Benicio de Almeida Pinto Presencga e Auséncia das Reservas Extrativistas Baianas: © processo de vivéncia e luta dos territérios de conservacgao Soraia Monteiro Afonso, Catherine Prost Dilemas da es efeitos do ecologismo institucional nas comunidades tradicionais de Guaraquecaba-PR Leticia Ayumi Duarte; Marcelo Cunha Varella Escalada do Conflito da Proibigaéo da Pesca do Bagre no Delta do Jacui e Norte da Laguna dos Patos, no Rio Grande do Sul, Brasil Diogo Camargo Pires, Gabriela Coelho-de-Souza Comunidades Tradicionais e seus Embates com o Estado: um olhar especial para os pescadores costeiros artesanais Raquel de Carvalho Dumith VoLUME 2 Conhecimento, Politica e Territério na Pesca Artesanal Brasileira Eduardo Schiavone Cardoso Territorialidades da Pesca Bra: ‘a: organizacao, pescadores e apetrechos na definicgao espacial Christian Nunes da Silva A Pesca e a Comercializagao do Peixe Liso na Calha do Rio Solimées/Amazonas-Brasil Manuel de Jesus Masulo da Cruz, Luciana Lima de Matos Entre Terras e Territérios: as principais disputas e conflitos territoriais vivenciados pelas comunidades tradicionais pesqueiras da Ilha de Maré - BA Kassia Aguiar Norberto Rios Conflitos e (Re)Existéncias no Mar e na Terra: o(s) territério(s) dos(as) pescadores(as) artesanais de Ubatuba/SP Larissa Tavares Moreno A Expanséo do Turismo no Litoral do Maranhao: conflitos e contradig6es da valorizagao do espacgo no litoral setentrional do Brasil Carlos Rerisson Rocha da Costa Producao do Espaco Urbano na Baia de Se a (RJ): a condicaéo da realizagao do capital e a reificagao das relacgées sociais dos pescadores artesanais Antonio Lopes Ferreira Vinhas 289 313 351 379 407 437 467 487 509 525 553 Territérios em Disputa: pescadores versus hidrelétricas no rio Araguari - AP Vicka de Nazaré Magalhaes Marinho Ensaio sobre Pesca Artesanal e Territorialidades Tradicionais no Rio Araguari- AP Lais Melo Lima © Consenso da Aquicultura Industrial no Brasil e o contra as Comunidades Pesqueiras Tradicionais Suana Medeiros Silva; José Ignacio Vega Fernandez Piscicultt como estratégia de desenvolvimento local no muni: pio de Ferreira Gomes — AP Juliana Barros da Mota; Ricardo Angelo Pereira de Lima 15 APRESENTACAO Cristiano Quaresma de Paula Pds-Doutorando do PPGeo da UFPA Christian Nunes da Silva Docente do NUMA e PPGeo da UFPA Catia Antonia da Silva Professora Titular do Departamento de Geografia da FFP da UERJ E expressivo partir a apresentacdo desta obra da imagem de sua capa. A pintura Arrastéo (1959)', de Candido Portinari, tem grande significéncia, quando refletimos sobre a pesca artesanal brasileira. Na tela, esta expressa a coletividade dos pescadores, na relacdo que estabelecem com a natureza, que Ihes permite a subsisténcia e que integra a producéo de cultura. Por outro lado, o esforgo de puxar a rede pode ser compreendido como uma metafora ao prdprio livro, isto é, como o empenho de um grupo de pesquisadores, que, atualmente, se dedica 4 construgaéo da Rede de Geografias da Pesca. Esperamos que outros se sintam estimulados por estes textos e que nos ajudem, nessa empreitada De Paula, C. Q,; Silva, C. N.; Silva, C. A. Em 2016, a Rede de Geografias da Pesca publicou o livro Brasil e Mogambique: didlogos geograficos sobre a pesca artesanal. Buscamos, na presente obra, avancar na representatividade de contextos e de instituigées de pesquisa. Para tanto, participam deste livro trinta e quatro pesquisadores e pesquisadoras, oriundos, na sua maioria, da Geografia, de dezoito Instituicées de Ensino Superior, de treze estados e de quatro regides brasileiras. Esta obra integra vinte e dois capitulos, divididos em dois volumes. O primeiro volume apresenta o modo de vida e as praticas tradicionais de manejo dos recursos pesqueiros e a presenca e a auséncia do Estado, na pesca artesanal brasileira. O segundo volume apresenta discuss6es sobre a resisténcia das comunidades, frente aos processos de modernizagaéo do territério, destacando 0 embate com a pesca comercial, com a urbanizacdo, com o turismo, com os portos, com as industrias petroquimicas, com as hidrelétricas e com a aquicultura. Destaca-se que tal divisdo foi estabelecida estritamente para conduzir a uma leitura coesa da obra, sem negar as conexées entre os diversos capitulos e a predominancia de uma discusso territorial, na maioria dos trabalhos. Votume I No primeiro volume, Cristiano de Paula, introduzindo a obra, apresenta 0 capitulo Geografia e Pesca Artesanal Brasileira: diélogos possiveis, no qual expde um breve panorama da pesquisa sobre a pesca artesanal, no ambito da Geografia. Na sequéncia, propde a relacdo entre territrio e ambiente e, em didlogo com os movimentos sociais da pesca, apresenta as faces da modernizacao. Por fim, discute as geografias da pesca, ressignificando conceitos fundamentais 4 compreensdo da pesca artesanal e de seus territorios e territorialidades, bem como problematiza sobre as geografias das auséncias e as geografias das emergéncias. Para discutir 0 modo de vida e as praticas tradicionais de manejo dos recursos pesqueiros, trazemos cinco capitulos. Partimos de Taise Alves, que, com o capitulo Entre conceitos e metodologias para compreender o saber-fazer-ser dos(as) pescadores(as) artesanais, apresenta uma revisdo bibliografica, na qual elucida a ontologia dos 16 De Paula, C. Q,; Silva, C. N.; & Silva, C. A. (orgs.) Apresentacdo sujeitos sociais, a partir dos pescadores e das pescadoras, os quais sio apresentados como sujeitos de multiplas identidades, sendo exatamente essas especificidades que d4o contetido as suas existéncias, no espaco. Destacamos, também, o capitulo de Eline Santos, de Miria Aragao e de Rosemeri Souza, Mulheres pescadoras: trabalho, modo de vida e manejo dos recursos naturais no litoral Sul sergipano, Nordeste, Brasil, no qual as autoras introduzem uma relevante discussdo sobre género na pesca, enfatizando 0, até entao, invisibilizado trabalho feminino. Para ilustrar a discussdo, sao ressaltadas as mulheres pescadoras, com destaque para as marisqueiras, das ilhas de Mem de Sa-Itaporanga d’Ajuda e de Indiaroba, no litoral Sul sergipano, apresentando seus espagos de trabalho e seus modo de vida e de manejo dos recursos pesqueiros. Na sequéncia, séo oferecidos dois textos, que caracterizam comunidades pesqueiras, em contextos distintos. Gracilene Ferreira oferece 0 capitulo Atividade pesqueira na Amazénia paraense: 0 caso do municipio de Séo Caetano de Odivelas — Para, no qual expée o papel socioecondémico da pesca, na ocupacaéo de mao de obra, na geracdo de renda e na oferta de alimentos para a populacdo, especialmente para as pequenas comunidades do meio rural, 0 que permite elaborar compreensées sobre a cadeia produtiva da pesca, no Nordeste paraense. Ja Eduardo Gomes, Tatiana Béa e Luiz Henrique Matos, no capitulo A caracterizagéo da territorialidade da pesca artesanal no distrito de Itaipava (municipio de Itapemirim/ES), enfatizam a identidade territorial dos pescadores artesanais, nas comunidades de Itaipava e de Piuma. Ainda, Aline Bastos e César Martins contribuem, com o capitulo Diversificagao de renda em familias de pescadores artesanais: pluriatividade e multifuncionalidade, na Ilha dos Marinheiros, Rio Grande/RS, através do qual abordam a relacgdo da pesca artesanal com outras atividades econémicas, necessarias 4 subsisténcia das familias de pescadores, e a reestruturacdéo da unidade econémica de base familiar, destacando a composicao por género e por idade. Na sequéncia, séo apresentados cinco textos que tratam da presenga e da auséncia do Estado, na pesca artesanal brasileira. Pensando no Estado, a partir da propria universidade, iniciamos com 0 capitulo de Catia Antonia da Silva, de Karla Sampaio e Pedro Pinto, com o capitulo Reflexdes geograficas e sociolégicas, sobre trajetorias de extensao e de pesquisa, na luta pela garantia dos direitos de pescadores Geografia & Pesca Artesanal Brasileira Volumell 17 De Paula, C. Q,; Silva, C. N.; Silva, C. A. artesanais, no qual enfatizam resultados de atividades de extensdo, promovidas junto as comunidades tradicionais, com destaque aos pescadores da Baia de Sepetiba. Em dialogo com a socidloga Ana Clara Torres Ribeiro, o texto reflete sobre os sentidos da sociabilidade, sobre o gesto e sobre as formas de socializac4o, os quais esbarram nas normas e nas referéncias societarias. Discutindo a presenca do Estado na pesca, também é fundamental observar a influéncia das unidades de conservacdo, que integram as discuss6es dos préximos dois capitulos. Soraia Afonso e Catherine Prost apresentam o capitulo Presenga e auséncia das reservas extrativistas baianas: o processo de vivéncia e de luta, nos territérios de conservagao, no qual discutem os contextos em que estao inseridas as areas protegidas, no Brasil e no estado da Bahia, e enaltecem o papel do Estado Brasileiro, em suas estratégias de agdo para a criagao de Unidades de Conservacao. Entre tais Unidades, sublinham as reservas extrativistas marinhas e seu papel para a conservacdo e para as comunidades, e as politicas ambientais que as caracterizam. Ja Leticia Duarte e Marcelo Varella oferecem o capitulo Dilemas da participagao social: os efeitos do ecologismo institucional nas comunidades tradicionais de Guaraquegaba-PR, no qual problematizam sobre a efetividade da participagéo das comunidades, em contextos de unidades de conservacao, destacam os limites dessa participagéo, em processos de construgéo e na execucéo de planos de manejo e a cooptacao dos processos participativos, pelos atores hegemdnicos, bem como os processos de dominacéo a que estéo submetidas as comunidades tradicionais de Guaraquecaba-PR. Além do contexto das unidades de conservacdo, mas ainda tratando de gestdo, Diogo Pires e Gabriela Coelho-de-Souza apresentam 0 capitulo Escalada do conflito da proibigéo da pesca do bagre no Delta do Jacui e no Norte da Laguna dos Patos, no Rio Grande do Sul, Brasil, no qual fazem um resgate histdrico da pesca artesanal, no Delta do Jacui, destacando suas diversas influéncias. Na atualidade, enaltecem o forum de pescadores e sua reacdo a proibicéo da pesca tradicional do bagre e dialogam com o referido forum, corroborando parte dos seus argumentos com informacées bioldgicas, além de fazerem a caracterizacao das artes de pesca utilizadas no Delta do Jacui e na porcéo Norte da Laguna dos Patos. 18 De Paula, C. Q,; Silva, C. N.; & Silva, C. A. (orgs.) Apresentacdo Para finalizar o primeiro volume, Raquel Dumith apresenta uma interessante sintese do tratamento que o Estado brasileiro oferece 4 pesca artesanal, em Comunidades tradicionais e seus embates com o Estado: um olhar especial para os pescadores costeiros artesanais, no qual a autora aborda politicas, que vém sendo estabelecidas desde os anos 1970, que sistematicamente desprestigiam a pesca artesanal, em favor de outras atividades econémicas. Neste capitulo, é enfatizada a pesca costeira artesanal, destacando seu historico, nas esferas politica, juridica e cultural brasileira. Votume IT No segundo volume, a discussdo esta concentrada na resisténcia das comunidades, frente aos processos de modernizagao do territorio. Para tanto, so apresentados onze capitulos, que tratam de compreensées territoriais, assim como de conflitos estabelecidos com a pesca comercial, com a urbanizagdo, com os portos, com a industria petroquimica, com o turismo, com as hidrelétricas e com a aquicultura. No capitulo Conhecimento, politica e territério na pesca artesanal brasileira, Eduardo Cardoso revisita sua célebre tese de doutorado, de 2001, e ajuda a compreender os demais capitulo do volume. Em seu texto, o autor enaltece as organizagdes sociais, como meios de interlocucgdo entre pescadores e Estado, e, ainda, apresenta reflexes que contribuem para compreender os territorios pesqueiros, no Brasil. Na mesma perspectiva, encontra-se o capitulo Territorialidades da pesca brasileira: organizagéo, pescadores e apetrechos na definigao espacial, de Christian da Silva, no qual o autor apresenta importantes ponderagées acerca da pesca artesanal brasileira e da presenca das colénias de pescadores. Concentra a sua analise nos territorios e territorialidades dos pescadores, no que tange aos pesqueiros tradicionais. Da mesma forma, também compée um quadro dos conflitos pelos pesqueiros e por seus recursos, os quais acontecem, muitas vezes, entre os proprios pescadores. Na sequéncia, Manuel da Cruz e Luciana Matos oferecem o capitulo A pesca e a comercializagéo do peixe Liso, na calha do rio Solimées/Amazonas-Brasil, no qual caracterizam a pesca tradicional de bagres, no rio Solimées, e os impactos da pesca comercial, sob influéncia Geografia & Pesca Artesanal Brasileira Volumell 19 De Paula, C. Q,; Silva, C. N.; Silva, C. A. de frigorificos. Igualmente, ressaltam a importancia das territorialidades para a manutencdo dos pescadores, enquanto camponeses, e descrevem suas estratégias. Os autores também decifram a complexa rede de comercializagao de bagres. Kassia Rios amplia a discusséo para além dos pesqueiros, no capitulo Entre terras e territorios: as principais disputas e os conflitos territoriais vivenciados pelas comunidades tradicionais pesqueiras, da ha de Maré — BA. Em dialogo com os movimentos sociais, a autora defende a articulagéo, entre terras ocupadas pelas comunidades e pesqueiros tradicionais, contextualiza o estabelecimento de conflitos, destacando os relacionados a industria petrolifera, na Ilha de Maré, Bahia, e, também, realca o processo de luta e de defesa dos territérios das comunidades tradicionais de pescadores, estabelecido pelo MPP. Nesta mesma perspectiva, considerando terra e agua, Larissa Moreno apresenta o capitulo Conflitos e (re)existéncias no mar e na terra: o(s) territorio(s) dos(as) pescadores(as) artesanais de Ubatuba/SP, no qual exibe a pesca e os pescadores artesanais de Ubatuba, destacando seus territérios. Nesse capitulo, o relevo é dado aos conflitos e as resisténcias das comunidades, frente a diversas atividades econdmicas e ao estabelecimento de unidades de conservacao, as quais avancgam sobre os seus territérios. Na sequéncia, Carlos da Costa oferece 0 capitulo A expansdo do turismo no litoral do Maranhao: conflitos e contradigées da valorizagao do espago, no litoral setentrional do Brasil, em que o autor aborda o processo de apropriacao do litoral, por empreendimentos turisticos, com énfase no litoral setentrional brasileiro e no estado do Maranhao, diagnosticando, contudo, contradigées e conflitos estabelecidos entre esses empreendimentos e as comunidades locais. Considerando questées com empreendimentos portuarios, Anténio Vinhas apresenta 0 capitulo Produgéo do espago urbano na Baia de Sepetiba (RJ): a condigao da realizagao do capital e a reificagéo das relagdes sociais dos pescadores artesanais, no qual analisa o embate entre ordem proxima, das comunidades pesqueiras, e ordem distante, dos grandes empreendimentos, avaliando, ainda, a repercusséo desse processo nas representacées e nos significados da pesca. 20 De Paula, C. Q,; Silva, C. N.; & Silva, C. A. (orgs.) Apresentacdo Na sequéncia, séo apresentados dois contextos, nos quais 0 choque se da entre pesca artesanal e instalagao de hidrelétricas, no Amapa. Vicka Marinho apresenta 0 capitulo Territérios em disputa: pescadores versus hidrelétricas no rio Araguari - AP, no qual busca compreender a pesca artesanal e as territorialidades a ela associadas, no médio Araguari, e, também, marca a relacao entre territorialidades e artes de pesca, apresentando apetrechos empregados na Amazénia, além de descrever os impactos e os conflitos decorrentes da instalagéo das hidrelétricas Ferreira Gomes e Cachoeira Caldeirao. Lais Melo, no capitulo Ensaio sobre pesca artesanal e territorialidades tradicionais no Rio Araguari — AP, apresenta caracterizaces da pesca e os impactos de outras atividades econémicas na pesca artesanal, em Porto Grande. Para essa discussao, a autora retoma os conceitos de territério e de territorialidade e ensaia uma caracterizacao das mesmas, a partir da regiéo amaz6nica Por fim, de formas divergentes, sio apresentados dois capitulos, que abordam a aquicultura. No primeiro, O consenso da aquicultura industrial no Brasil e 0 processo de espoliagéo contra as comunidades pesqueiras tradicionais, Suana Silva e José Ignacio Fernandez criticam a politica aquicola intensiva, no Brasil, a qual compreendem que é decorrente da consolidagao do neoliberalismo no pais, e que se expande, no periodo neodesenvolvimentista. Os autores frisam a priorizagdo destes empreendimentos, no setor pesqueiro nacional, e seus impactos sobre a pesca artesanal. Sob outro ponto de vista, no capitulo Piscicultura como estratégia de desenvolvimento local, no municipio de Ferreira Gomes — AP, Juliana Mota e Ricardo Angelo de Lima apresentam a piscicultura como alternativa para comunidades locais, no entanto os pesquisadores apontam para a necessidade de assisténcia técnica e de investimentos. Boa leitura! Organizadores Geografia & Pesca Artesanal Brasileira Volumell 21 De Paula, C. Q,; Silva, C. N.; Silva, C. A. Nota 1. O direito de reprodugao da tela “Arrastéo" de Candido Portinari foi gentilmente cedido por Joao Candido Portinari. Titulo: Arrastao Data: 1959 FCO: 1404 CR: 4491 Técnica: Pintura a dleo / tela DimensGes: 38 x 46 cm 22 De Paula, C. Q,; Silva, C. N.; & Silva, C. A. (orgs.) 289 CONHECIMENTO, POLITICA E TERRITORIO NA PEsScA ARTESANAL BRASILEIRA Eduardo Schiavone Cardoso Professor Titular do Departamento de Geociéncias da UFSM INTRODUCAO As reflexdes a seguir foram inicialmente formuladas como parte do trabalho de doutoramento realizado no ambito do Programa de Pés- graduagdéo em Geografia Fisica do Departamento de Geografia da Universidade de Sao Paulo, entre 1997 e 2001. Na ocasiao foram apontados alguns principios que poderiam nortear o estabelecimento de politicas pesqueiras, incorporando enfoques até entéo pouco usuais. Tais principios se resumiam em considerar o conhecimento dos pescadores na gesto pesqueira, 0 uso da categoria territdrio no processo de gestdo e a ampliagaéo dos mecanismos de decisao para a participagao dos pescadores e suas organizacoes. No presente trabalho tais questées séo retomadas com o intuito de contribuir para a conexdo entre os trés grandes eixos norteadores da obra agora apresentada, estabelecendo uma trajetéria que parte do conhecimento que os pescadores operam na sua pratica pesqueira, as politicas voltadas ao setor e a questo dos territorios da pesca artesanal. Busca, na medida do possivel, atualizar as questées inicialmente discutidas no trabalho de doutorado, verificando a pertinéncia e contemporaneidade de tais questées. Cardoso, E. S. CONHECIMENTO E APROPRIAGAO DA NATUREZA. No fazer pesqueiro, pescadores se apropriam de distintos elementos naturais até atingirem seu objeto de trabalho: o pescado — tratado aqui em sua acepcado mais ampla, comportando peixes, crustaceos e moluscos, além de algas e demais organismos vivos que possam vir a ser extraidos das aguas. Cabe salientar que o pescado capturado de forma extrativa distingue o setor da pesca do setor da aquicultura - que também produz 0 pescado, porém a partir dos processos de cultivo de peixes, crustaceos, moluscos, algas e demais animais que tem nas aguas seu principal meio de vida. Pescado, nesse sentido, refere-se mais ao produto dos processos de pesca e aquicultura do que a um tipo de organismo especifico. No caso da pesca extrativa cada tipo de pescado pressupée um aparato técnico de captura, diferenciados em termos de emprego de tecnologia e capital. Pode-se falar desde a coleta de mariscos realizada com a mao, até grandes redes de arrasto operadas por parelhas de barcos produzindo o pescado. Figura 1: Crustéceos, peixes e moluscos ~ o pescado extrativo saido das 4guas e compondo os circuitos de comercializacao Separam o pescador do pescado elementos de ordem natural e social. Alguns elementos de ordem natural estabelecem ritmos para as pescarias e definem o que pescar, como pescar e o estabelecimento de medidas de administracéo pesqueira, dentre as quais os periodos de defeso, tamanhos minimos de captura, interdigdo de areas de pesca e outras. Dentre os elementos naturais podem também ser citados aqueles considerados abidticos. Por exemplo: as aguas em seus fluxos marinhos, lacustres ou fluviais; as marés; 0 ciclo de cheias e vazantes dos rios; 0 290 De Paula, C. Q; Silva, C. N.; & Silva, C. A. (orgs.) Conhecimento, Politica e Territorio na Pesca Artesanal Brasileira tempo atmosférico que permite momentos de atividade pesqueira mais ou menos intensa; a geomorfologia fluvial, lacustre ou marinha interferindo na configuragéo dos ambientes aquaticos, nos tipos de substratos, na dinamica das aguas e na conformacao das areas ribeirinhas ou costeiras. A estes é acrescentada a dinamica de reproducdo, migrac3o e crescimento das espécies bidticas, do proprio pescado, seja peixe, molusco, crustaceo. Se o pescador é separado do pescado por uma série de fatores de ordem natural, os fatores de ordem social, técnica e econdmica contribuem para dirimir esta separacao. Tais fatores compreendem a posse ou nao de embarcagées e apetrechos de captura, a organizagao social dos grupos de pescadores e as estruturas de producdo mais ou menos capitalizadas. O pescador embarcado se diferencia de um grande conjunto de produtores que nao utilizam estes meios de produgao e que praticam a pesca desembarcada ou a coleta de mariscos e crustaceos. Dentre as embarcagées, a canoa e a jangada podem ser consideradas as mais antigas, presentes no litoral brasileiro, com distribuigéo desigual a ponto de serem estabelecidas duas areas culturais distintas de acordo com Alceu Maynard de Aratijo (1964) - a da pesca de jangada no nordeste e a da pesca de uba no sudeste-sul (Figura 2). Figura 2: A jangada do nordeste e a canoa do sudeste/sul na espera da saida ao mar Fonte: Fotos do autor A estas embarcagdes acresce-se uma grande diversidade de modelos de barcos de pequeno, médio e grande porte, motorizados ou nao, que denotam estruturas produtivas classificadas de artesanais ou Geografia & Pesca Artesanal Brasileira Volume ll 291 Cardoso, E. S. industriais. De acordo com o relatorio da Fundacao das Nacdes Unidas para a Agricultura e Alimentagao (FAO) do ano de 2009 e considerando toda a dificuldade do levantamento de informacées, estima-se que 90% das embarcagdes motorizadas mundiais medem menos de 12 metros e sao predominantes na pesca de pequena escala, ao passo que as embarcacées de maior porte com mais de 24 metros sao consideradas industriais. No caso brasileiro as embarcagdes de pequeno porte que se caracterizam como da pesca artesanal sido aquelas com capacidade de arqueacao bruta de até 20 AB (FAO, 2009; BRASIL, 2009) Os apetrechos de captura possuem uma diversidade imensa, fruto de herancas culturais variadas e que possibilitam a intensificagdo da capacidade de pesca. Podemos distinguir anzois, redes e armadilhas como algumas das grandes “familias” de apetrechos que se diversificam em inuimeras “espécies”, de acordo com cada localidade e grupo social. Nas figuras 3, 4 e 5 observam-se alguns destes apetrechos, tais como linhadas com isca artificial, armadilhas fixas e méveis e redes de espera e de cerco. Engenho, arte e técnica compéem a confeccéo e o emprego dos apetrechos de pesca, elaborados com a perspectiva de selecionar o pescado a ser capturado, ou realizar capturas indiscriminadas, culminando com a maior ou menor predacao dos recursos pesqueiros. Neste aspecto algumas técnicas se coadunam com a perspectiva de preservacéo dos estoques de pescado. A seletividade das técnicas empregadas é conhecida pelos pescadores, que em suas agdes podem rechacar ou corroborar 0 emprego de tal ou qual apetrecho de pesca na perspectiva de capturas menos predatorias. O uso dos apetrechos de pesca também deve observar uma perspectiva espacial e temporal - ou seja, os locais e épocas que podem ser utilizados, para que possam atender aos preceitos de maior seletividade de capturas. A organizacao da producio e as distintas estruturas produtivas caracterizam as pescarias e estabelecem ritmos e escalas para a pesca Uma diferenciacaéo classica entre as formas de producao da atividade pesqueira é apresentada por Diegues (1983) que estabelece trés grandes tipos de organizacao pesqueira: a pesca de auto-subsisténcia, a pequena produgdo mercantil e a pesca capitalista, sendo que a pequena producao mercantil se subdivide na producao dos pescadores-lavradores e na dos pescadores artesanais, enquanto que a pesca capitalista se subdivide na produgdo dos armadores de pesca e na producdo das empresas de pesca. 292 De Paula, C. Q,; Silva, C. N.; & Silva, C. A. (orgs.) Conhecimento, Politica e Territorio na Pesca Artesanal Brasileira Figura 3: Linhadas de mao com iscas artifi industrializadas e artesanais (lambreta) empregadas por ilhéus paulistas free Fonte: Fotos do autor Figura 4: Armadilhas fixa (cerco fixo do litoral sudeste) e mével (manzuas do nordeste) Fontes: Fotos do autor Figura 5: Redes de cerco de praia e de espera no sul do pais Fonte: Fotos do autor Geografia & Pesca Artesanal Brasileira Volumell 293 Cardoso, E. S. Cada tipo e subtipo proposto sao caracterizados a partir de um conjunto de 25 varidveis que envolvem o objetivo da producao, as relagdes sociais de producao, a alocacao dos fatores de producao, a remuneracdo da forca de trabalho, a caracteristica da unidade produtiva, a propriedade dos instrumentos de producao, a capacidade de predacao, os espacos de captura, o tipo de propulséo das embarcacées, o tipo de conservacgéo do pescado, a autonomia das embarcagdes, a forma de identificacéo dos cardumes, entre outras caracteristicas técnicas, sociais e econdmicas (DIEGUES, 1983). A diferenciagéo entre as estruturas produtivas na pesca, em parte, esta contemplada na legislacdo pesqueira que serA tratada na proxima seco do presente texto. Por hora, cabe salientar que as formas de organizacéo da producao e as estruturas produtivas contribuem para superar a distancia entre o pescador e seu objeto de trabalho. Tal distancia que envolve elementos da natureza e elementos técnicos, sociais e econémicas, parece ser inerente a atividade da pesca extrativa e os pescadores, ao produzirem sua existéncia, operam um corpo de conhecimentos sobre tal realidade. Trata-se de uma construcao social, muitas vezes iniciada ja no processo de socializacao das criancas, filhas de pescadores e que pode ser caracterizada como uma cultura de oficio, uma cultura pesqueira. Este saber e saber-fazer, construido através de observagdes continuas do comportamento de elementos naturais e dos aspectos sociais relativos as pescarias, no dizer de Allut (2000), “constitui um corpo de conhecimento que transcende ao que geralmente entendemos por conhecimento vulgar ou leigo." Trata-se, portanto, de uma maneira de olhar e entender a realidade pesqueira dotada de métodos e procedimentos tedricos e empiricos. Nesse sentido, apresenta-se a necessidade de incorporar o conhecimento dos pescadores no estabelecimento das medidas de gestdo, criando didlogos entre as distintas maneiras de olhar sobre o mesmo objeto. Retomando as palavras de Allut (2000) “esta auséncia de didlogos entre ambos os tipos de conhecimento, provavelmente, propiciada pela escassa valorizagaéo do conhecimento dos pescadores, favoreceu, em parte, que alguns modelos de gestéo pesqueira tenham fracassados", 294 De Paula, C. Q.; Silva, C. N.; & Silva, C. A. (orgs.) Conhecimento, Politica e Territorio na Pesca Artesanal Brasileira Estabelece-se assim uma primeira possibilidade de abordagem para 0 estudo geografico das pescarias. Verificar como os pescadores se apropriam da natureza no fazer pesqueiro, discutindo as relagdes entre sociedade e natureza, permeada pelas praticas desenvolvidas pelos pescadores em seu trabalho, lembrando que o campo do conhecimento das comunidades tradicionais e 0 "“etnoconhecimento" estao sendo reconhecidos como aporte para alguns instrumentos de gestao, tais como os Acordos de Pesca, para o estabelecimento dos Termos de Autorizacao de Uso Sustentavel de areas da Unido e para a elaboracao dos planos de uso das Reservas Extrativista e Reservas de Desenvolvimento Sustentavel. PoLitica E INTERLOCUCAO DOS PESCADORES COM 0 EsTADO Ao estabelecer um recorte temporal para a tese de doutorado, visando observar o movimento social dos pescadores artesanais, foi contemplado o periodo apés o regime militar de 1964 a 1985. Tomou-se como marco inicial o movimento da Constituinte da Pesca que na segunda metade dos anos de 1980, apoiado pelo Conselho Pastoral dos Pescadores (CPP), logrou alcancar a autonomia das Colénias de Pescadores frente ao Estado, equiparando-as no artigo 8° da nova constitui¢ao aos sindicatos, livres da intervencao dos governos. A partir do término do movimento da Constituinte da Pesca, em fins da década de 1980, foi criado o Movimento Nacional dos Pescadores (MONAPE) cujo objetivo, entre outros, consistia em fomentar a conquista das Coldnias pelos pescadores para defender os interesses dos préprios pescadores, contribuindo para explicitar o conflito entre movimento e organizacao, no sentido de que a organizacdo (Colénia) foi muitas vezes de encontro aos anseios dos pescadores em suas lutas ao longo da historia desta instituicdo (Figura 6). Na ocasiao da pesquisa de doutorado também foram identificadas algumas das instancias de atuacdo dos pescadores e seus movimentos, que envolviam o espago politico, econémico, ambiental e social, levantando experiéncias, projetos e iniciativas que buscavam enfrentar problemas concretos que afligiam as comunidades pesqueiras. Do ponto de vista governamental as politicas voltadas a atividade pesqueira em nivel federal estavam a cargo do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renovaveis (IBAMA), vinculado ao Ministério do Meio Geografia & Pesca Artesanal Brasileira Volume ll 295, Cardoso, E. S. Ambiente e do Departamento de Pesca e Aquicultura (DPA), vinculado ao Ministério da Agricultura, Pecuaria e Abastecimento, dividindo as competéncias da gestao em fins dos anos de 1990. Figura 6: Logomarca do Movimento Nacional dos Pescadores no inicio da década de 1990 ‘MOVIMENTO NACIONAL, DE PESCADORES Fonte: MONAPE, 1991 Passados quase vinte anos da defesa da tese de doutorado pode-se constatar que algumas transformagdes ocorreram no campo dos instrumentos juridicos de legislagdo pesqueira, no campo da interlocugao do Estado com o setor pesqueiro e no campo do movimento social dos pescadores. Algumas delas serao reportadas a seguir. No ambito do Governo Federal foi criada no ano de 2003 a Secretaria Especial de Aquicultura e Pesca (SEAP), vinculada diretamente a Presidéncia da Republica. Em 2009 foi criado o Ministério de Pesca e Aquicultura (MPA) que perdurou até 2015, quando é extinto. Suas atribuicGes foram transferidas para uma Secretaria vinculada ao Ministério da Agricultura, depois transferida para o Ministério da Industria, Comércio Exterior e Servigos e em 2019 retorna ao Ministério da Agricultura Pecuaria e Abastecimento, sob o nome de Secretaria de Aquicultura e Pesca (SAP). As mudangas em torno dos érgdos executores das politicas pesqueiras, conforme sucintamente apresentado, somadas as reformulagées internas de cada instituicéo, as atribuig6es de outras instituigdes federais tais como as ligadas 4 regulamentacao do transporte, a vigilancia sanitaria, a previdéncia, entre outras, além das instituigdes de ambito estadual, municipal e interministerial presentes nas diretrizes relacionadas 4 produgao do pescado configuram a rede intrincada e, por vezes, conflitante de instrumentos normativos atuantes no setor com a qual os pescadores se embatem. 296 De Paula, C. Q,; Silva, C. N.; & Silva, C. A. (orgs.) Conhecimento, Politica e Territorio na Pesca Artesanal Brasileira No ano de 2009 foi sancionada a Lei 11.959 que dispée sobre a Politica Nacional de Desenvolvimento Sustentavel da Aquicultura e da Pesca e que revoga o Decreto Lei 221/67, 0 antigo Codigo de Pesca. A nova lei estabelece dois tipos e cinco subtipos de pesca. Os tipos sao definidos a partir do destino da produgao: comercial e nao comercial e em cada um deles se diferenciam modalidades de producao. No caso da pesca comercial séo estabelecidas as caracteristicas da pesca artesanal e da pesca industrial, incorporando uma definicao juridica no corpo normativo da pesca — fato ausente das legislagdes anteriores. A pesca artesanal, praticada por pescadores profissionais, de forma auténoma ou em regime de economia familiar, deve ser praticada com meios de producdo prdprios ou mediante contrato de parceria, desembarcada ou empregando embarcacées de pequeno porte. A pesca industrial é praticada por pessoa fisica ou juridica, envolvendo pescadores profissionais empregados ou em regime de parceria por cotas parte, utilizando embarcagdes de pequeno, médio e grande porte, definidas de acordo com a arqueacdo bruta. A pesca nao comercial é diferenciada em pesca cientifica, amadora e de subsisténcia. Com relacgéo aos espacos de producéo do pescado estdo incorporadas as categorias previstas na Convencao das Nacées Unidas sobre os Direitos do Mar (CONVEMAR) de 1982 e ratificada pelo Estado Brasileiro. Sao elas: “Aguas continentais, interiores, o mar territorial, a plataforma continental, a zona econémica exclusiva, o alto mar e outras Areas de pesca, conforme acordos e tratados internacionais firmados pelo Brasil” (BRASIL, 2009). Os expedientes de concessio, permissdo, autorizacdo, licenca e cessao, estdo previstos na lei como instrumentos reguladores do acesso aos recursos e espacos pesqueiros e aquicolas, bem como a necessidade de inscrigéo no Registro Geral da Pesca (RGP), instrumento de cadastro do conjunto de trabalhadores da pesca. Previsto em legislacGes anteriores, o RGP passou por atualizacdes a partir da implantacao das novas acées institucionais para o setor. Inicia-se um processo de recadastramento dos trabalhadores e empresas do setor, visando sua regularizacdo, a emissdo de carteiras e permissdo de pesca para as seguintes categorias de trabalhadores e agentes produtivos ligados 4 producao do pescado: Pescador profissional na pesca artesanal; Geografia & Pesca Artesanal Brasileira Volume ll 297 Cardoso, E. S. Pescador profissional na pesca industrial; Aprendiz de pesca; Armador de pesca; Embarcacaéo pesqueira; Industria pesqueira; Aquicultor; e Empresa que comercializa organismos aquaticos vivos. Tal registro que comportava cerca de 1 milhéo de pescadores artesanais cadastrados em fins da década de 2010 também subsidia a concessao do Seguro Defeso, conforme ocorra a proibicao de captura das distintas espécies de pescado. Este expediente que alia a preservacao das espécies e 0 reconhecimento do produtor pesqueiro foi ampliado ao longo dos Ultimos vinte anos, apesar de ter sido alvo de inumeras investigages por beneficiar falsos pescadores. Em 2008 ocorreu a regulamentacdo do artigo 8° da Constitui¢do de 1988, em seu paragrafo Unico, referente as Colénias, Federacées e Confederacao Nacional dos Pescadores. Apesar de contemplar elementos fundamentais de caracterizacéo destas entidades como um sistema de representac¢ao laboral dos pescadores do setor artesanal, o fato do artigo 8° ser regulamentado apenas vinte anos apds a promulgacdéo da Constituigéo Federal, encontra uma realidade que caminhou para diversas diregdes. Os pescadores, em especial os chamados pescadores artesanais, conviveram com um sistema representativo que, muitas vezes, nao os representava. A perda da prerrogativa das Coldnias de representa-los, em fungao do principio da livre associago, em algumas localidades muda a interlocugdo dos pescadores com o poder publico, para fins de emissdo de documentacao, endosso para fins previdencidrio ou de seguro desemprego, entre outras funcdes. Em alguns casos a representacdo dos trabalhadores da pesca se fragmenta ou se duplica, com Colénias, Sindicatos, Cooperativas ou Associacdes de finalidades diversas, atuando como representantes de grupos distintos de pescadores. A nova regulamentacao faculta ainda as Colénias de Pescadores, a implantagaéo de bens e servicos para o desenvolvimento profissional, social e econdmico das comunidades pesqueiras, explicitando na lei a possibilidade de criagdéo de mecanismos de comercializacéo, fomento produtivo e cooperacéo. Amplia desta maneira o leque de acdes que podem ser realizadas pelas Colénias (BRASIL, 2008). Outra mudanga nas politicas pesqueiras diz respeito as estratégias de acéo da SEAP, criada em 2003. Esta secretaria implementou dois instrumentos de interlocucao entre os segmentos envolvidos na produgao 298 De Paula, C. Q,; Silva, C. N.; & Silva, C. A. (orgs.) Conhecimento, P itica e Territério na Pesca Artesanal Brasileira do pescado e o Governo Federal. Um deles foi o Conselho Nacional de Aquicultura e Pesca (CONAPE), cuja representagéo dos pescadores se fazia, até a gestéo de 2008 por membros de entidades como a Confederagéo Nacional dos Pescadores e Aquicultores, MONAPE e Articulagéo Nacional das Pescadoras (ANP). Além destas, 0 Conselho Pastoral dos Pescadores, 0 Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), entre outras, compunham o quadro de entidades da sociedade civil presentes no CONAPE. O segundo instrumento criado pela SEAP foram as Conferéncias Nacionais para discusséo das propostas voltadas aos setores da pesca e da aquicultura. Foram organizadas trés conferéncias entre 2003 e 2009. Por ocasiao da Ill Conferéncia Nacional de Aquicultura e Pesca, promovida ja pelo Ministério da Pesca e Aquicultura em 2009, organizagdes de pescadores e entidades de apoio, algumas delas com assento no CONAPE, organizaram a I Conferéncia Nacional da Pesca Artesanal como uma forma de questionar as politicas para o setor pesqueiro e a falta de prioridades para a pesca artesanal. No material de divulgacdo deste encontro constava 0 seguinte: A I Conferéncia Nacional da Pesca Artesanal demonstra ainda a descrenga com a Ill Conferéncia Nacional de Aquicultura e Pesca, organizada pelo recém criado Ministério da Pesca e Aquicultura (MPA) (..) E organizada por associagées, coldnias, sindicatos e federacées de pescadores; Movimento dos Pescadores e Pescadoras Artesanais; Articulagdo Nacional das Pescadoras (ANP), Movimento Nacional dos Pescadores (Monape); Confederacdo dos Sindicatos dos Pescadores Artesanais (Confespa) e Movimentos estaduais de pescadores. (CIMI, 2009). Nesse encontro, que antecedeu o encontro oficial, as entidades participantes fizeram um ato simbdlico de filiagéo na Via Campesina Brasil. Na composigéo do CONAPE de 2010-2011, a ANP, o CPP e o MAB, entidades que apoiaram a Conferéncia da Pesca Artesanal, nao estavam mais presentes, visualizando 0 rompimento com as propostas emanadas pelo MPA. Também o MONAPE passou a ser questionado em sua representatividade e em suas acées, deixando de ser um interlocutor dos grupos de pescadores artesanais mais organizados (FOX, 2010). O que se depreende destes fatos, é que as politicas publicas presentes na gestao do setor pesqueiro, por vezes, contemporizam ou tensionam os segmentos distintos e antagénicos que compéem o setor. Geografia & Pesca Artesanal Brasileira Volume ll 299 Cardoso, E. S. No caso da pesca artesanal, apesar de avancos em algumas questées, permanecem velhas demandas que atravessam a propria formacao da sociedade brasileira e 0 acirramento dos conflitos decorrentes da opcdo “modernizante” das pescarias. No caso do setor aquicola, as distintas escalas e modalidades de producdo também apresentam conflitos. Os reflexos desta dinamica na atividade pesqueira sdo diversos. Observa-se o engajamento de pescadores nas questdes de preservacao e uso nao predatério dos recursos naturais, experiéncias de cooperacdo no plano da producao, distribuigaéo e venda do pescado, iniciativas de conquistar e gerir as Colénias de Pescadores pelos préprios pescadores, experiéncias de ordenamento dos servicos publicos e dos espacos de moradia dos pescadores e suas familias, a questao da mulher pescadora ganhando visibilidade. Pode-se falar em uma politizagao dos pescadores. Politizagao em seu sentido amplo, como o de tornar-se um sujeito politico e participar das diversas esferas da existéncia, de sua profissdo, de sua familia, de sua vizinhanga, de sua categoria. Tal sujeito politico se articula historicamente e tem suas proprias dinamicas, sendo que a partir de 2010 tais demandas passaram a ser capitaneadas, em parte, pelo Movimento dos Pescadores e Pescadoras Artesanais (MPP), atuando em areas costeiras, ribeirinhas, cidades e povoados, além da presenca de entidades de apoio histdricas, como 0 Conselho Pastoral dos Pescadores que completou 50 anos de atividades em 2018 (Figuras 7 e 8). Figura 7: Logomarca do Movimento dos Pescadores ¢ Pescadoras Artesanais Fonte: MPP, 2019 300 De Paula, C. Q; Silva, C. N.; & Silva, C. A. (orgs.) Conhecimento, P itica e Territério na Pesca Artesanal Brasileira Figura 8: Logomarca do Congreso dos 50 anos do Conselho Pastoral dos Pescadores CCongresso dos 50 anos do CPP Fonte: CPP, 2019 TERRITORIOS PESQUEIROS Outra proposicéo trabalhada na tese de doutorado consistiu em considerar a categoria territério como um instrumento para a andlise das pescarias. O territorio pode ser definido como uma porcgao do Espaco Geografico na qual se estabelece relagdes de poder. Tal conceituagao pode se referir 4 escala de um Estado Nacional, com seu territério terrestre, seu Mar Territorial, seu Espaco Aéreo, até escalas locais, onde uma determinada parcela da sociedade estabelece suas formas de apropriacéo, maneiras de gerir e suas normas de uso de seus territérios (MORAES, 1984; RAFFESTIN, 1993; RATZEL,1990) O territério consiste assim em uma categoria de andlise geografica que engloba as questées de apropriacao, uso, gestéo e dominio de uma parcela do espaco geografico por agentes de escalas de atuacdo diferenciados, englobando os diversos niveis de poder presentes na sociedade, tais como o Estado Nacional, os agentes transnacionais e os agentes locais. Para Haesbaert (1997) as abordagens conceituais sobre 0 territério apresentam trés vertentes basicas: a juridico-politica, a cultural e a econdmica. No caso da atividade pesqueira, os pescadores articulam os dominios da agua (nao apenas na perspectiva horizontal, mas também em profundidade), da terra e dos fendmenos atmosféricos em sua faina. Pescadores devem saber interpretar 0 tempo atmosférico, buscando conhecer e prever os riscos de sua lida. O espaco da terra é 0 espaco da morada, da realizagéo do pescado enquanto mercadoria e alimento. As Geografia & Pesca Artesanal Brasileira Volume! 301 Cardoso, E. S. Aguas s4o os espacos da producao. Dessa maneira os territérios da pesca articulam terra-agua-ar. No caso da porcao aquatica, tratados aqui como os territérios de producao pesqueira e construidos pelos pescadores a partir do trabalho e da apropriagaéo da natureza, podem ser delimitados mesmo na fluidez das Aguas. Sobre estes territorios os pescadores exercem algum tipo de dominio e séo objetos de disputas e conflitos, em especial quando se defrontam com estruturas de producao diferenciadas atuando sobre os mesmos recursos. Tais territrios apresentam escalas distintas, desde aqueles ligados ao ponto de pesca individual, até vastas areas consideradas pesqueiros tradicionais de uma ou outra localidade de pescadores. No sentido de reconhecimento formal dos territorios das sociedades de pescadores, esto presentes propostas em varios documentos de encontros realizados pelos pescadores artesanais e suas organizacées. Em paises como o Chile, 0 territorio da pesca artesanal é delimitado formalmente. As diferentes escalas da questao territorial da producao pesqueira podem ser definidas, para o caso brasileiro, em uma sistematizagdo presente no Quadro 1. No nivel formal e local, observa-se que algumas armadilhas de captura representam uma apropriacao territorial das aguas, tais como os cercos - fixo e flutuante (Figura 9), os currais de pesca, os avidezinhos, entre outras que déo ao pescador que instalou a armadilha o usufruto daquele territorio, mesmo que pontual, tendo em vista a necessidade de regularizacao frente aos érgaos publicos. De maneira informal, mas ainda no ambito local, algumas praticas de pesca se territorializam. O ponto de pesca de fulano ou sicrano, 0 pesqueiro, as cercadas, as marambaias, os lancos fluviais, os recifes artificiais, sao praticas que expressam a apropriacao de territorios aquaticos e as normas, ainda que geradas no interior dos grupos pesqueiros, para seu uso. 302 De Paula, C. Q,; Silva, C. N.; & Silva, C. A. (orgs.) Conhecimento, Politica e Territério na Pesca Artesanal Brasileira Quadro 1: Territérios da produg3o pesqueira no Brasil - uma sistematizagao Situagao Tipo Instrumentos Normatizadores Pontos de Pesca, Cevas Langos, Direito a Ver Revezamento de Areas Acordos Interns as Cercadas, Caigaras ‘Comunidades Marambaias, Outras “Rrmadiihas Fixas de Captura Cerco Fixo, Cerco Flutuante Licengas de ins ‘Avidezinhos, Curras de Pesca outras. Empreendimentos Aquicolas icengas de instalagao Areas aquicolas Parques Aquicolas Ucengas de Instalago Reservas Extrativstas Sistema Nacional de Reservas Desenvolvimento Unidades de Conservacdo Sustentavel Acordes intitucionais Acordos de Pesca Mar Territorial Legislago Nacional Nacional Formal Zona Econémica Exclusiva ‘CONVEMAR ‘Tratados Internacionais Fonte: Elaboragao do autor Figura 9: Despesca do cerco flutuante no sul do Brasil Fonte: Fotos do autor As Reservas Extrativistas e Reservas de Desenvolvimento Sustentavel, onde os pescadores estabelecem seus instrumentos de gestao e podem atuar como agentes de fiscalizagdo, sao exemplos que apresentam os aspectos territoriais das pescarias. A Reserva Extrativista Geografia & Pesca Artesanal Brasileira Volumell 303 Cardoso, E. S. teve origem na luta de seringueiros amazénicos e se expandiu para as areas marinhas, representando uma possibilidade de uso e preservacao dos recursos naturais, diferentemente de outras categorias de Unidades de Conservagao mais restritivas. Os Acordos de Pesca também representam um modelo de gestao que comporta os territérios de produgdo pesqueiros e vem sendo implantado a partir das experiéncias dos ribeirinhos amaz6nicos desde os anos de 1980, sendo reconhecidos institucionalmente. Todo o desenvolvimento da aquicultura apresenta uma problematica territorial, uma vez que os cultivos aquaticos podem ser estabelecidos em areas tradicionais de pesca, gerando conflitos territoriais. Dentre estes a polémica da carcinicultura em areas de manguezais é a que apresenta maior visibilidade. A aquicultura estabelece marcas no territdrio aquatico, conforme pode ser observado nas figuras a seguir (Figura 10). Figura 10: Estruturas de cultivo de moluscos no sudeste do Brasil Fonte: Fotos do autor Na escala do Estado Nacional, as fronteiras do Mar Territorial de 12 milhas e a questéo das Zonas Econémicas Exclusivas embutem questdes territoriais, uma vez que a gestaéo dos recursos presentes nesta nova fronteira do territdrio brasileiro envolve normativas e acordos entre agentes distintos. Acrescenta-se aos exemplos sistematizados no Quadro 1, a pesca em aguas internacionais, cuja problematica se coloca entre o livre acesso e as restrigdes de captura regulada de determinadas espécies, como atuns, baleias e outras. Em cada nivel elencado podemos constatar que sao inimeros os conflitos territoriais presentes no interior da atividade pesqueira. Conflitos 304 De Paula, C. Q,; Silva, C. N.; & Silva, C. A. (orgs.) Conhecimento, Politica e Territorio na Pesca Artesanal Brasileira que se dao quando estruturas pesqueiras diferenciadas quanto a tecnologia e poder de captura, exploram os mesmos espacos aquaticos. No inicio da década de 1980 o estudo de Diegues (1983), ja citado, faz uma analogia entre a expansdo da producao capitalista no setor pesqueiro e em outros setores da producao social, confirmando as caracteristicas desta expansao, qual seja, esgota as duas fontes de onde jorra a riqueza: o mar e os trabalhadores. Predacéo dos recursos pesqueiros e a expropriacdo dos trabalhadores da pesca, levando alguns segmentos de pescadores a proletarizacdo, s4o alguns dos processos apontados pelo autor decorrentes deste processo. No caso brasileiro, o Estado, através das politicas implementadas pela Superintendéncia de Desenvolvimento da Pesca (SUDEPE), alavanca e acelera a formacdo de um segmento capitalista e industrializado na pesca, durante as décadas de 1960, 1970 e 1980. A sobrepesca de algumas espécies, a pesca predatdria de outras tantas e a destruicao de ecossistemas de alta produtividade séo algumas das consequéncias que acompanharam o desenrolar do projeto de modernizagaéo do setor pesqueiro, contribuindo para a reducéo do pescado situado junto a costa. Ainda junto a costa, nas areas de atuacdo da pesca artesanal, verificou-se um aumento da disputa pelo pescado (LOUREIRO, 1985). Parte da frota industrial, atuando com técnicas predatorias, acarretou a diminuicéo da oferta de pescado para os pescadores artesanais, cujos meios de producao nao lhes possibilitam um deslocamento mais amplo, acirrando disputas pela apropriagéo destes espacos e do pescado neles encontrado. Paralelo a estes eventos relacionados a territorialidade da atividade pesqueira em sua porcao aquatica, observam-se processos que afetam a territorialidade da atividade pesqueira em terra, tais como a urbanizacao e industrializagdo, se manifestando nas zonas costeiras com implantacao de polos industriais petroquimicos e mineiro-metaluirgicos, a formaco de zonas metropolitanas costeiras, a expansdo do turismo litoraneo em modalidades de segunda residéncia ou formacao de polos turisticos. Nas areas ribeirinhas a construgdo de grandes empreendimentos hidrelétricos, a expansao das atividades agropecuarias e 0 aumento da carga de emiss6es de poluentes nos corpos d’agua, sdo alguns dos aspectos que afetam a producao e reproducao dos pescadores artesanais. Geografia & Pesca Artesanal Brasileira Volume ll 305 Cardoso, E. S. Mais de trinta anos decorridos da concluséo de Diegues, a expansdo da producao capitalista na pesca e em outros setores da produgao social, se transforma, porém mantém suas caracteristicas destrutivas: permanece esgotando os recursos naturais e os trabalhadores. Antunes (1999) discorre que as respostas da crise experimentada pelo capitalismo nas Ultimas décadas rebatem em profundas mutagdes no mundo do trabalho, com um enorme desemprego estrutural, precarizacao do trabalho e degradacao da relacao metabdlica entre homem e natureza. Como exemplo do rol de conflitos socioambientais que afligem as comunidades pesqueiras, o CPP organizou em seu sitio na internet um banco de dados que comporta inumeros embates entre os pescadores e demais usos do territério, tais como barragens, privatizagdo de areas publicas, especulacao imobiliaria, industria petrolifera, entre outros, além de agdes de violéncia 4 pessoa como ameacas de morte e homicidios. Além do banco de dados, o CPP publicou em 2016 um dossié sobre os conflitos socioambientais em comunidades de pescadores artesanais (CPP, 2016; 2019). A analise de documentos de encontros internacionais de pescadores nos anos 2000 apresenta estas preocupacgées e problemas que os pescadores e suas organizacdes enfrentam. Embates territoriais, acesso aos recursos, direitos ancestrais, revelam a disputa por um territorio politico, produtivo e vivido, diante de um modelo de producao econémica e social concentrador e destrutivo. Reivindicados por segmentos representantes dos pescadores de pequena escala, apontam para a importancia desta modalidade como produtora de trabalho, renda e alimento, entre dezenas de milhdes de pescadores e aquicultores do mundo (SAMUDRA, 2008; 2009). No ambito local, especificamente no caso dos ilhéus moradores de Vitoria e Monte de Trigo — no litoral paulista, também s4o identificados conflitos presentes nos meios onde a producdo e reproducdo dos ilhéus se realiza: nas aguas ( producéo do pescado, construcdo de dutos submarinos, atividades de caca submarina, pesca desportiva, pesca industrial, atividades turisticas) e nas terras (questao fundiaria, restricdes da legislagéo ambiental, equipamentos ptblicos, acesso a agua, acessibilidade as ilhas, comercializagéo do pescado). Alguns destes embates se arrastam por décadas enquanto outros alcangam alguma solucao (CARDOSO; THOMAZ JR., 2013). 306 De Paula, C. Q,; Silva, C. N.; & Silva, C. A. (orgs.) Conhecimento, Politica e Territorio na Pesca Artesanal Brasileira Seja em escala internacional, nacional ou local, os embates e estratégias de luta dos pescadores se atualizam, por vezes se radicalizam, mas persistem como agdes que dizem respeito a sua reproducdo enquanto sujeitos e trabalhadores que articulam terra-agua-ar. Dentro desta perspectiva foi langada em 2012 a Campanha Nacional Pela Regularizacéo do Territério das Comunidades Tradicionais Pesqueiras, encabecada pelo MPP com o objetivo de angariar a assinatura de 1% do eleitorado brasileiro para o estabelecimento de lei de iniciativa popular, propondo a regularizacdo do territorio das comunidades tradicionais pesqueiras (MPP, 2019). Ao eleger o territério como objetivo da campanha, o movimento social dos pescadores aporta para a dimensao pratica que o territdrio assume no contexto das lutas populares (HAESBAERT, 2014). Sintetizando a concepc¢ao de territorio definida no espaco de luta dos pescadores, encontra-se a seguinte afirmacao: Na verdade o territério pesqueiro é 0 espaco fundamental para que as comunidades tradicionais pesqueiras possam continuar a existir enquanto grupo social diferenciado, para que as futuras geragdes possam exercer a pesca e continuar a transmitir seus conhecimentos tradicionais sobre as marés, 0s rios, os astros, os diversos pescados, enfim sobre a vida dos pescadores. Para que os conhecimentos tradicionais dos pescadores e pescadoras sejam preservados. O territdrio envolve as areas de pesca e coleta, as dreas de moradias, os locais de embarque e os trajetos com seus barcos, os locais sagrados e as Areas necessarias & reproducio fisica e cultural do grupo (MPP, sem/data). Articulando os distintos meios, operacionalizando a questo territorial em suas lutas, atualizando seus embates e estratégias, os pescadores vivenciam os aspectos naturais, juridicos, normativos, politicos e culturais que conformam seus territérios e suas territorialidades. Em terra as marcas da atividade pesqueira estao presentes na paisagem com os atracadouros, entrepostos, moradias, ranchos de pesca. Dentre tais marcas, os monumentos ao pescador artesanal sao recorrentes nas cidades e configuram-se como imagens de um sujeito social altivo, contrastando com a pouca visibilidade alcancada nos designios das aces dos governantes (Figuras 11 € 12). Geografia & Pesca Artesanal Brasileira Volume ll 307 Cardoso, E. S. Figura 11: Monumentos em Natal, Touros e Rio do Fogo no litoral potiguar Fonte: Fotos do autor Figura 12: Monumentos em Caraguatatuba, Ilhabela e Ubatuba no litoral paulista Fonte: Fotos do autor CONSIDERAGOES FINAIS Foram delineadas trés possibilidades de abordagem geografica da questao pesqueira, envolvendo: a) a necessidade de intercambio entre as diversas formas de construcao do saber sobre a pesca; b) a participagao dos pescadores nos processos decisdrios e na vida de seu trabalho e de suas localidades e; c) a considera¢éo da questo territorial na analise das pescarias. Tais abordagens foram tratadas como uma atualizacéo das reflexées elaboradas no contexto do doutoramento, quase duas décadas depois de defendida a tese. Consideram-se validas as proposicdes elencadas 4 época, porém acrescidas de seus aspectos mais atuais, tais 308 De Paula, C. Q; Silva, C. N.; & Silva, C. A. (orgs.) Conhecimento, Politica e Territorio na Pesca Artesanal Brasileira como, a presenca mais incisiva da questao territorial como forma de luta dos pescadores, as novas configuracdes dos movimentos de pescadores, as mudancas das politicas voltadas ao setor pesqueiro e os desdobramentos que se vislumbram. Atenta-se que outras abordagens e possibilidades de entendimento da questao pesqueira podem ser esbocadas, tendo em vista a dinamica da producéo do conhecimento e a dinamica da realidade do setor. Considera-se assim que a teméatica da pesca, que tem sido trabalhada ao longo da historia do pensamento geografico, traz desafios € perguntas para as quais a Geografia deve se ater, especialmente frente as novas e velhas questdes que emanam do mundo contemporaneo. Faz- se assim um duplo movimento: a Geografia afina seus instrumentos para entender a realidade pesqueira, a pesca demanda da Geografia novos instrumentos analiticos. REFERENCIAS ALLUT, A. G. 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Nao obstante, pesquisas recentes vém corroborando com o acréscimo na explotacao pesqueira em nivel mundial (BERKES et al., 2006), processo impulsionado pela extragdo indiscriminada dos recursos naturais, tanto os florestais no caso continental, quanto os pesqueiros em ambientes fluviais e maritimos. Como reflexo da necessidade de gerir e utilizar os recursos naturais, os grupos humanos se agregam em organizagdes capazes de mobilizar contingentes populacionais em pro! de seus objetivos. Além da mobilizagéo de instituigdes, novas geotecnologias - tecnologias computacionais que auxiliam na espacializagdo de objetos e fendmenos que ocorrem na superficie da Terra, vem se destacando como subsidio no manejo e ordenamento dos recursos naturais, entre estes os pesqueiros. Desse modo, no decorrer dos anos novas técnicas foram surgindo e “modernizando” as que ja existiam, otimizando também a extracdo dos recursos explorados pelos seres humanos. Nesse momento, os individuos comecaram a utilizar novos equipamentos, adequando-os aos seus modos de vida e aumentando a produtividade do que ja era extraido, ameacando Silva, C. N. a capacidade de suporte dos recursos naturais procurados, sejam eles pesqueiros, madeireiros etc. O aparecimento de conflitos nesses casos é inevitavel, uma vez que, para o aumento da producao das atividades extrativas, na maioria das vezes, onde nao existem tecnologias apropriadas, os territorios de atuacéo também devem ser expandidos, gerando novas territorialidades e o aparecimento de novas formas de empoderamento, antes nao existentes. A questao da territorialidade € comprovada nos estudos que buscam analisar como se da a atuacdo da sociedade no espaco geografico, pois o homem necesita e define seus espacos de moradia e convivéncia, formando territorios individuais, coletivos ou publicos. Assim, 0 territério é produto e reflexo da atuacao dos individuos no espaco e no uso dos recursos naturais. Na andalise das atividades realizadas pelos pescadores dos rios da Amazénia paraense, verifica-se que diversos mecanismos e/ou processos fazem parte do ordenamento espacial e das territorialidades que ocorrem nestes espacos’. Assim, entendemos que a producao do territdrio se da a partir do espaco, por meio do uso que a sociedade faz de seus potenciais sociais e ecoldgicos. No territorio, os atores sociais ao realizarem suas acdes politico-econémico-sociais territorializam praticas sociais para suas permanéncias nele. Mas nem sempre as praticas territoriais revelam-se como desejadas por todos os atores sociais no espaco geografico, muitas vezes, dependem de um conjunto de fatores de negociacao e conflitos que envolvem quase sempre mais de um interesse no territorio (SILVA, 2008). Os conflitos, mais comuns nas fronteiras de cada territorio pesqueiro, podem ocorrer de varias formas, de pescador com pescador, de pescador com comunidades ribeirinhas, de pesca artesanal com a pesca comercial, com turistas e outros (SILVA, 2008), pela agao do Estado ou causada pela sobreposicdo de apetrechos de pesca. Isso demonstra que a territorialidade pode ser comprovada em qualquer estudo que se busque analisar como a apropriagéo de um determinado recurso natural se desenvolve no espaco geografico. Como alternativa para minimizacao de conflitos o Estado brasileiro procura mecanismos para melhor gerenciamento da atividade. Com isso, as politicas territoriais de pesca e aquicultura so propostas apresentadas pelo Governo para tentar conter o uso predatdério dos recursos 314 De Paula, C. Q,; Silva, C. N.; & Silva, C. A. (orgs.)

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