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Dirce Maria Antunes Suertegaray

(Re)Ligar a Geografia
Natureza e Sociedade

Porto Alegre
2017
ISBN: 978­85­65886­05­5
1ª Edição ­ 2017

É proibida a reprodução total ou parcial desta obra, sem autorização expressa dos autores
ou da editora. A violação importará nas providências judiciais previstas no artigo 102, da Lei
nº 9.610/1998, sem prejuízo da responsabilidade criminal. Os textos deste livro são de
responsabilidade de seus autores.

Editores Conselho Editorial


Cristiano Quaresma de Paula Álvaro Heidrich
Dirce Maria Antunes Suertegaray Carlos Henrique Aigner
Cláudia Luíza Zeferino Pires
Revisão Dakir Larara Machado da Silva
Tiago Goulart Collares Dilermando Cattaneo da Silveira
Dirce Maria Antunes Suertegaray
Capa Helena Copetti Callai
Cristiano Quaresma de Paula Jaeme Luiz Callai
Design by www.canva.com João Osvaldo Rodrigues Nunes
Foto: Maíra Suertegaray Rossato Laurindo Antonio Guasselli
Maíra Suertegaray Rossato
Editora Compasso Lugar­Cultura Nelson Rego
Responsável André Suertegaray Rossato Roberto Verdum
Porto Alegre ­ RS ­ Brasil Rosa Maria Vieira Medeiros
Telefones (51) 984269928 e (51)33113695 Sinthia Batista
compassolugarcultura@gmail.com
www.compassolugarcultura.com

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

S945r Suertegaray, Dirce Maria Antunes


(Re) Ligar a Geografia: Natureza e Sociedade/
Dirce Maria Antunes Suertegaray. ­­ Porto Alegre:
Compasso Lugar­Cultura, 2017.
180p. il.

ISBN 978­85­65886­05­5

1. Geografia. 2.Geografia Física. 3. Geomorfologia. 4. Epistemologia da


Geografia. I. Título.
CDU 91
911.2

Bibliotecária Responsável: Maria da Graça Artioli – CRB10/793


Para a gurizada daqui de casa que cresceu

Maíra, André e Rafael

Para a gurizada que cresce... cresce...

Dandara e Anahí
Prefácio

Compreendendo o impacto que “Geografia Física e


Geomorfologia: uma releitura” causou nas minhas compreensões de
Geografia, diversas vezes motivei a professora Dirce Suertegaray
a fazer uma nova edição, quem sabe ampliada. A professora tem
como característica responder prontamente à nossa “comunidade
da Geografia” e passou, então, a trabalhar no presente Livro
“(Re) Ligar a Geografia: Natureza e Sociedade”. A ideia inicial é que
ele corresponderia a uma fase posterior ao livro anteriormente
citado, logo, são falas e reflexões elaboradas a partir do ano 2001.
Como editor tive a oportunidade de ler os textos e, como
orientado, pude estabelecer algumas discussões no sentido de
instigar a autora para pensar a obra. Na organização dos textos a
opção adotada pela autora parte do entendimento de que os
estudos da natureza e da sociedade correspondem a
possibilidades de interpretação da Geografia. Assim, os primeiros
textos situam os estudos da natureza e problematizam o que se

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(Re)Ligar a Geografia: Natureza e Sociedade

entende como Geografia Física e o papel da pesquisa em


Geomorfologia na Geografia. Na sequência, vão sendo
confrontados tempos e ritmos da natureza e da sociedade. Os
últimos textos expõem hibridizações teóricas para pensar a
Geografia, sem desconsiderar a natureza na análise. Como
híbridos conceituais, se destacam “ambiente” e “território”, os
quais trazem em seu cerne, de forma distinta, a relação
sociedade/natureza.
Propor um caminho para religar a Geografia é uma tarefa
árdua e, em tempos de fragmentação, assumida por poucos.
Primeiro, porque religar pressupõe que a Geografia já foi
“ligada”. Neste sentido, compõem os argumentos da autora que
desde sua origem, a nossa ciência estabelece a ligação entre
estudos da natureza e da sociedade, inclusive numa
contracorrente do que se explicitava no período de constituição
das ciências modernas. Segundo, porque propõe pensar a
Geografia em sua amplitude, na atualidade em que os estudos
particularizados, que provocam reflexões muito específicas,
prevalecem. Assim, essa iniciativa da autora, que provavelmente
não se esgota nessa obra, provoca a pensar os rumos que vem
tomando a Geografia brasileira e internacional.
Outra característica da professora Dirce Suertegaray, que
se coloca nesta obra, é que está muito mais empenhada em fazer
boas perguntas do que dar rápidas respostas. Desta forma, sugiro
que o leitor não espere encontrar nas páginas que seguem uma
“receita pronta” do ponto de vista metodológico e/ou teórico. O
caminho que está em evidência foi trilhado pela pesquisadora em
um constante diálogo e enfático debate com os seus pares (na
Geografia Brasileira). Esse caminho não pode ser simplesmente
adotado por todos, mas os passos dados nos trazem algumas
lições valiosas, das quais vou destacar algumas:

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Prefácio

Primeira Lição: “Simplicidade”. A maioria dos textos, aqui


apresentados, partem de falas proferidas pela autora em eventos
científicos. Do ponto de vista da linguagem se observa uma fala
simples com lógica de argumentação bem definida. Contudo, os
conteúdos colocados são extremamente complexos e
“polêmicos”, no sentido de que trazem para discussão
abordagens teóricas e metodológicas, as quais costumeiramente
são tratadas por outros de forma esterilizada (quero dizer sem
relação) para evitar confrontos acadêmicos. Observa-se que a
trajetória da autora, no que chamamos de estudos da natureza,
também se evidencia na forma como as discussões são
apresentadas, pois expõe com simplicidade (não com
simplificação) conceitos que exigem uma ampla capacidade de
abstração e articulação.
Segunda Lição “Rigor”. Evidentemente há um acúmulo de
compreensões que subsidiam muitas discussões, contudo, diante
da problemática que orienta a sua pesquisa a autora
rigorosamente se dedica ao estudo e trabalho. O estudo perpassa
os clássicos da Geografia nacional e internacional, bem como as
obras mais recentes que expõem possíveis formas de
interpretação e tendências. Também, dedica-se a estudar textos
de autores de outras ciências, sobretudo das Ciências Sociais e
Filosofia, para colocá-los em diálogo com a Geografia. No
trabalho, cabe destacar no mínimo dois pontos. O primeiro se
refere ao trabalho de orientação, onde nas discussões com os
orientados ocorre o processo de co-produção do conhecimento e
o contato com maior diversidade de abordagens. Segundo,
quando a pesquisa exige, a autora se dedica ao trabalho árduo de
produção de dados primários, como exaustivas análises de anais
de eventos científicos e periódicos, que estão apresentadas em

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(Re)Ligar a Geografia: Natureza e Sociedade

alguns capítulos. Logo, a rigorosidade no que faz mantém seu


processo de pesquisa sempre em movimento e aberto ao novo
que se põe como problemática a ser devidamente pesquisada.
Terceira Lição “Compromisso”. A proposta do livro de
“(Re)Ligar a Geografia” corresponde a uma compromisso que
vai se evidenciando capítulo a capítulo. Isso se expressa na
análise constante do que a Geografia brasileira faz e quais os
rumos vem adotando. Por isso, nos textos presentes nesse livro
está proposto um diálogo com os Geógrafos, para que ampliem
os debates, provoquem críticas e para que o movimento de
pensar a Geografia ganhe fôlego. Além disso, os textos propõem,
também, um diálogo para fora. E nesse sentido parece
corresponder a o que Milton Santos propõe no prefácio de “A
Natureza do Espaço”, ou seja, potencialize o diálogo
epistemológico para que a Geografia tenha condições de dialogar
com as outras ciências e não se restrinja ao tratamento de teorias
como metáforas. Por consequência, a pesquisa em Geografia tem
maior possibilidade de repercutir na sociedade e contribuir com
os sujeitos.
Simplicidade, rigor e compromisso se expressam na obra
“(Re) Ligar a Geografia: Natureza e Sociedade”.

Boa leitura,
Cristiano Quaresma de Paula

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Sumário

Apresentação ............................................................................. 11

Geografia Física: de onde viemos para onde vamos? ......... 21

A Geografia Física no início dos anos 1990 .........................33

Um antigo (e ainda atual) debate: a divisão e a unidade


da Geografia .............................................................................. 43

Geografia, Geografia Física e/ou Geomorfologia? ............ 57

Geografia Física: ciência básica, ciência aplicável? .............. 79

Geografia e Geomorfologia, Implicações, Quais? .............. 93

Tempo Geomorfológico Interfaces Geomorfológicas .....107

Que natureza? Qual Espaço Geográfico? ...........................119

Ritmos e subordinação da natureza: tempos longos ...


tempos curtos ..........................................................................127

Naturezas: epistemes inscritas nos conflitos sociais ..........141

Geografia e Ambiente: desafios ou novos olhares .............151

Pesquisa de Campo em Geografia ........................................167


Apresentação

Os tempos e os espaços se interpenetram

Passados alguns anos da publicação do livro Geografia


Física e Geomorfologia, uma (Re) Leitura, fui estimulada a elaborar
uma reedição de textos/artigos publicados desde então, mais
precisamente após os anos 2000. Este livro é, portanto, o
resultado deste resgate. Diferentemente daquele, não dispusemos
os textos de forma cronológica. Optou-se por fazer uma
ordenação que permitisse ao leitor compreender a proposição
feita a partir do que em cada texto, e na sua sequência, está
enunciado.
Para compor este livro foram selecionados 12 textos,
alguns já anteriormente publicados em revistas nacionais, outros
escritos para dar suporte a alguma mesa ou palestra em que fui
convidada a falar sobre o tema. Talvez cause estranheza uma
publicação de textos já publicados, a justificativa neste caso diz
respeito ao fato de que: artigos divulgados em diferentes revistas,
sob temas diversos, são a característica atual e mais “valorizada”

11
(Re)Ligar a Geografia: Natureza e Sociedade

sob a perspectiva de uma avaliação acadêmica. Entretanto,


considero que no espaço de um texto em formato de artigo o
autor não tem possibilidade de aprofundar seus argumentos ou
mesmo suas análises e interpretações. O livro favorece a
ampliação das ideias e ao mesmo tempo exige uma leitura mais
lenta, portanto, mais reflexiva. Os autores perguntarão se, nesse
caso, este livro que constitui a reunião de artigos responderia
sobre essa ideia de aprofundamento de argumentos. Talvez sim,
talvez não. Entretanto, ao construí-lo, organizamos uma
sequência de temas que permitem ao leitor e a leitora (assim
imagino) uma melhor compreensão da “evolução” do
pensamento de quem escreve, ou como escreve Nelson Rego no
prefácio do livro Geografia Física e Geomorfologia, uma (Re) Leitura:
Os tempos se interpenetram. Onde está mesmo o início? E o fim?

As inquietações geradas pelo que veio antes arremessam para


adiante um projeto. Em busca desse projeto, continua a se
desenvolver o percurso. O percurso faz, desfaz, refaz projetos. Em
busca desses projetos o percurso...

Procuro neste momento, mais uma vez, refazer o projeto,


para isto andei, retrocedi, me reorientei, transitei do presente ao
passado (retomando alguns clássicos), retornei ao presente,
refleti, escrevi.
Mas é preciso dizer que neste percurso de reflexão sobre
Geografia, Geografia Física, Geomorfologia, não andei sozinha e
se avancei nesses questionamentos foi graças ao diálogo realizado
em diferentes momentos, em diferentes eventos, onde fui
escutada, questionada, aprovada ou reprovada em minhas
posições. Estes me auxiliaram sobremaneira, me instigaram e me
permitiram um diálogo. Semelhante ao que Nelson escreveu no
prefácio anteriormente citado:

12
Apresentação

Cada novo momento, que depois será revisto como um antes,


arremessa-se para adiante em busca do esclarecimento de si mesmo,
através de um novo projeto que nunca será alcançado. Nunca será
alcançado por obra e graça de sua própria fecundidade, porque,
lançado para adiante, o projeto puxou na sua direção o percurso da
vida e a vida, ao pôr-se em percurso, ao viver, reviu o seu antes e
ressignificando o seu antes mais uma vez desfez/refez o seu projeto,
que outra vez lançado para adiante, puxará em sua direção o...

Por entender as palavras do Nelson e reconhecer essa


dialética, é que devo agradecer pelos percursos que fiz, a convite
de inúmeros colegas, em território brasileiro, para conversar
sobre Geografia. Esses textos aqui compilados não teriam sido
escritos sem o fecundo diálogo nesses momentos todos que vivi.
Onde termina o trabalho cotidiano e múltiplo e começa um livro?
Onde termina o animado diálogo da sala de aula (ou em eventos
geográficos) e começa a silenciosa reflexão da pessoa recolhida em
si mesma? Ou vice-versa?

Trata-se a pergunta acima de, novamente, Nelson Rego


interrogando. É certo, e respondo agora neste momento que o
que aqui apresento é produto, talvez, de uma reflexão silenciosa
da pessoa recolhida em si mesma, e carrega o trabalho cotidiano
e múltiplo de lugares e ideias por onde andou.
O que consta deste livro. Inicio com o texto Geografia
Física: de onde viemos, para onde vamos? – produto do SBGFA,
realizado em Vitória - ES, 2013. Considerando a cronologia dos
textos este deveria ser um dos últimos, mas na lógica
estabelecida neste livro é o primeiro, ele nos situa em relação as
nossas origens geográficas e em particular em relação à
Geografia Física.
O segundo texto – O que expressavam os estudos de Geografia
Física no início dos anos 1990? – é resultado de um levantamento
sobre a produção em Geografia Física registrada nos anais do IV
SBGFA realizado em Porto Alegre em 1992, apresentado em
13
(Re)Ligar a Geografia: Natureza e Sociedade

mesa redonda, no SBGFA em 2011, ocorrido em Dourados-MS.


Trata-se de um texto que expressa um levantamento das
informações e ao final levanta questões sobre a produção
geográfica neste subcampo da Geografia. Aqui estão esboçadas
algumas questões que em outros momentos serão discutidas de
forma mais ampliada.
O terceiro, denominado Um antigo (e ainda atual) debate: a
divisão e a unidade da Geografia, foi publicado no Boletim Paulista,
São Paulo, 2006. Resgata a discussão entre natureza e sociedade e
procura demonstrar que essa articulação, hoje, ultrapassa o
objeto geográfico e se torna uma condição para entendimento do
mundo contemporâneo.
Na continuidade tem-se o texto Geografia, Geografia Física
e/ou Geomorfologia? – aqui se apresentam temas para debate e o
objetivo é tencionar a relação entre Geografia Física e
Geomorfologia. Foi publicado na Revista da ANPEGE em 2009.
O texto Geografia Física: ciência básica, ciência aplicável? Foi
apresentado no SBGFA, realizado em Santa Maria (2008). Pelo
que se evidenciou no Simpósio, o subcampo Geografia Física
estava consolidado e a questão em debate consistia em refletir
sobre Geografia Física - Ciência Aplicada. Nesse texto trato de
ciência aplicada ou ciência aplicável, considerando, por sua vez,
que a aplicabilidade do conhecimento tem vínculo com a política.
Dela depende a possibilidade e, mais, o objetivo (a
intencionalidade) dessa aplicação.
O texto seguinte – Geografia e Geomorfologia, Implicações,
Quais? – foi escrito para publicação pela AGB – Curitiba (?).
Nesse, derivo a discussão para a Geomorfologia em suas
diferentes concepções e encaminhamentos, e sua relação com a
Geografia. Expresso também uma avaliação sobre a presença da
Geomorfologia no currículo/grades dos cursos de Geografia.
14
Apresentação
Na continuidade, no texto Tempo Geomorfológico, Interfaces
Geomorfológicas coloco a discussão relativa ao tempo já divulgada
em outro momento, acrescentando pequenos complementos ao
texto original. Trata-se de uma reprodução de capítulo publicado
no livro Geografia Física e Geomorfologia, uma (Re) Leitura (2002).
Sua reprodução decorre do pedido feito por alguns leitores do
livro anterior.
Os quatro últimos capítulos são dedicados à reflexão
sobre a natureza. Que natureza? Qual Espaço Geográfico? Apresenta
uma reflexão sobre concepções de natureza no contexto
geográfico além de expressar argumentos que indicam a
necessidade de refletir sobre o conceito de ambiente. É produto
de uma sistematização de ideias dispersas em diferentes textos ou
expostas em diferentes momentos agrupadas neste, como um
ensaio reflexivo.
O capítulo Ritmos e subordinação da natureza: tempos longos ...
tempos curtos foi reformulado a partir de versões anteriores, sendo
que alguns segmentos foram extraídos, enquanto outros foram
acrescentados. Ele se constitui uma recopilação um tanto mais
ampliada. O texto trata dos ritmos da natureza, associando-os
aos tempos longos e curtos e relacionando-os aos processos de
subordinacao da natureza derivados da organização social e de
sua forma de produção.
Naturezas: epistemes inscritas nos conflitos sociais foi
originariamente apresentado no Encontro Nacional de Geografia
(ENG), que ocorreu em Belo Horizonte no ano de 2012. O
objetivo é trazer à discussão as diferentes concepções de
natureza, que dão suporte à política, à economia e à cultura,
contemporaneamente.
Geografia e Ambiente: desafios ou novos olhares constitui um
pequeno ensaio sobre o conceito de ambiente no contexto
geográfico. São palavras introdutórias sobre: sociedade x cultura
ou, mais explicitamente, cultura e modo de produção. 15
(Re)Ligar a Geografia: Natureza e Sociedade

Pesquisa de Campo em Geografia é o texto que fecha o livro,


apresenta uma reflexão sobre a atividade de campo e sua relação
com os métodos de análise em Geografia.
Me permito após indicar este ordenamento textual,
colocar alguns excertos de uma de minhas falas, no ENG em
Vitória – ES, 2014, em mesa cujo título foi: O espaço da (na)
natureza e a natureza do (no) espaço.
De onde falo. A busca de compreensão e a análise
geográfica que aqui expresso é proveniente de uma posição na
Geografia que busca, na compreensão do espaço geográfico, a
articulação natureza-sociedade. Tento compreender Geografia a
partir da concepção de totalidade (dialética). Expresso uma
posição intelectual que percebe que a necessidade de conjunção
do conhecimento, na sociedade contemporânea, ultrapassa a
Geografia. Compartilho de referências que compreendem que, a
Geografia, sobretudo, pela sua história, tem muito que contribuir
na discussão sobre a mediação sociedade e natureza. Apresento a
seguir, a partir destas considerações iniciais, algumas afirmações
para a formulação do Projeto.
A Geografia e a concepção de natureza, enquanto
externa ao homem. A natureza, enquanto instância externa ao
homem ou à sociedade, nos leva a refletir sobre a concepção de
natureza que adotamos no campo geográfico. Historicamente
como algo externo, contemporaneamente, para alguns geógrafos,
como natureza artificial, cibernética (SANTOS,1997), derivada
ou derivações da natureza (MONTEIRO, 2000, 2003) ou
transfigurada (conceito presente em RECLUS 1905-1908, em L'
homme et la Terre) e utilizada por mim, desde 2000.
A naturalização do homem ou a socialização da
natureza. Ao pensar a natureza como externa, tem-se a
separação entre homem e natureza - herança do pensamento

16
Apresentação

ocidental e suporte da economia neoclássica. Ao pensar no


campo da dialética, compreende-se o homem enquanto espécie -
como natureza que, ao se socializar, gradativamente socializa a
natureza. Então, não se trata de naturalizar o homem; é a
natureza, inclusive a do homem, que se socializa. Muito embora
socializar-se não signifique humanizar-se.
O conceito de metabolismo como expressão da
relação homem e natureza e da questão ambiental. Na lógica
dialética de Marx, agora, segundo Foster (2010), a base para um
possível entendimento da questão ambiental corresponde ao
conceito de metabolismo entendido como o processo pelo qual o
homem, através de suas ações, medeia, regula e controla o metabolismo entre
ele mesmo e a natureza. (p.201).
A falha metabólica com ruptura, ou seja, como
decorrente do processo de socialização da natureza pelo
homem, via trabalho. O rompimento desta relação orgânica,
Marx denominou de falha metabólica. Falha metabólica constitui
a essência da compreensão da separação do homem da natureza
e a sua progressiva alienação. Portanto, o metabolismo, como
conceito unificador do homem com a natureza, ao mesmo
tempo, se constitui pelo seu rompimento; o processo que separa
o homem da natureza, gradativamente, no decorrer da história.
Este movimento nos parece ainda visível, certamente, na
sociedade contemporânea, manifesto na valoração da natureza,
enquanto valor de uso (em sociedades indígenas e/ou
comunitárias, por exemplo) e valor de troca (sociedades
capitalistas, individualistas e consumistas como a nossa),
tencionados, esses diferentes valores, pelas formas atuais de
apropriação de territórios e recursos, capital e trabalho,
acumulação/consumismo e sobrevivência.
Devemos nos perguntar, então, o que entendemos
por natureza. A natureza enquanto concepção é (no meu
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(Re)Ligar a Geografia: Natureza e Sociedade

entendimento) tudo aquilo que é produzido, organizado,


reorganizado e transformado sem a intencionalidade humana,
inclusive no próprio homem (sua dimensão biológica). São as
coisas que compõem a superfície da Terra e seu invólucro
próximo e mesmo distante. É a interação dessas coisas no
espaço-tempo. Se diferencia dos objetos, posto que estes, são
construídos com intencionalidade (SANTOS,1997), através de
projetos, de difusão de ideias, ideologias. Entretanto, a natureza
é, enquanto percebida, concebida, representada como um
conceito. Sendo um conceito, nos remete a uma construção
social/cultural.
O espaço da natureza. Devemos entendê-lo como
espaço fundante de vida biológica e social do homem. O espaço
na natureza se revela pelas relações dos fenômenos físicos e/ou
naturais.
A natureza, no espaço geográfico, se revela pela sua
condição constituinte/fundante da vida e das sociedades
humanas. Sem natureza não haveria os homens/mulheres
/sociedades. Sem homens/mulheres, não haveria natureza
(enquanto concepção conceitual, portanto, cultural; mas também
econômica e política). No campo materialista, a natureza é
objetiva e antecede ao homem, entretanto, é reconhecida de
diferentes formas conceituais, de acordo com a
sociedade/cultura.
A natureza do espaço (geográfico). Esse, enquanto
espaço produzido, inclui as instâncias do natural e do social. No
espaço geográfico, a natureza é um de seus constituintes. Nesse,
a natureza, objetivamente, se transforma de natureza natural em
natureza produzida socialmente - a segunda natureza de Marx, a
natureza artificializada (de Santos), a natureza transfigurada,
conforme Suertegaray, pelo trabalho humano. A natureza
18
Apresentação

transfigurada revela, como uma de suas dimensões, a questão


ambiental, podendo esta (agora ambiente) apresentar-se
degradada para a manutenção da vida. A questão ambiental é por
isso uma expressão da sociedade contemporânea em tenso
debate.
Os estudos da natureza na Geografia. Na Geografia,
os estudos relativos à natureza se expressam de diferentes formas
e revelam a concepção de natureza e de mundo de quem a
analisa. Sendo assim, tem-se:
• Estudos específicos que revelam a origem e a dinâmica
da natureza em si. São expressões de uma separação da sociedade
da natureza. Estão no campo da Geomorfologia, Hidrologia,
Pedologia, Biogeografia, etc. São estudos específicos dessas
áreas, entretanto, são denominados Geografia Física. São
necessários, sim! Mas, não suficientes para compor uma análise
geográfica.
• Estudos de articulação natureza e sociedade, que sob a
ótica do ambiente buscam compreender a relação natureza x
sociedade a partir dos impactos do homem. Concebendo o
sujeito (homem) como abstrato, genérico e revelam, na sua
maioria, os impactos negativos dessa ação sobre a natureza.
Estes estudos identificam degradações na natureza e propõe
formas de mitigar, conservar, preservar, através do planejamento
ambiental. É uma forma de gerir e controlar.
São necessários, sim, mas na medida em que se revelam
preocupados com os impactos na natureza e não com os
homens/mulheres socialmente posicionados, não são suficientes
para compor uma análise geográfica.
Há também estudos que buscam compreender, de outra
forma, a relação homem x natureza. Centram essa relação no

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(Re)Ligar a Geografia: Natureza e Sociedade

campo social. Buscam compreender a totalidade, compreendem a


posição dos homens e mulheres a partir de classes (por exemplo,
trabalhadores, camponeses) ou modos de vida (por exemplo,
ribeirinhos, quilombolas...) e mais, invertem a questão. Não se
perguntam sobre os impactos da sociedade na natureza, mas
buscam analisar os impactos da natureza transfigurada,
degradada na vida humana.
Sobre à natureza do espaço. Para além da concepção de
espaço como suporte, receptáculo, hoje, concebemos espaço
como relação entre coisas e/ou objetos. Essas podem ser
relações físicas, de distância ou mediações/ações humanas.
Sendo espaço entendido como relação entre coisas e/ou objetos,
podemos aceitar que existe um espaço natural, quando nos
referimos às coisas e abstraímos o homem e a sociedade -
conforme atuam as ciências naturais.
Podemos admitir que há um espaço social e espaço das
relações entre os homens. É o espaço das ciências sociais.
Podemos admitir que há um espaço geográfico, o espaço das
relações entre as coisas, os objetos e as ações/mediações
humanas/sociais. É o espaço da Geografia, uma ciência
humana/social.
Estes fragmentos esboçam, quiçá, o projeto.
As inquietações geradas pelo que veio antes arremessam para
adiante um projeto. Em busca desse projeto, continua a se desenvolver o
percurso. O percurso faz, desfaz, refaz projetos. Em busca desses projetos o
percurso... Nelson Rego (SUERTEGARAY, 2002).

Dirce Suertegaray
Porto Alegre, verão escaldante de 2017.

20
Geografia Física:
de onde viemos para onde vamos?*

Penso que esta questão, embora pertinente, coloca-nos


numa cilada, qual seja, responder para onde vamos? De onde
viemos temos ideia, agora para onde vamos constitui um
exercício de projeção que poderá ser delineado com base no que
fazemos na atualidade, muito embora, o futuro seja sempre um
conjunto de possibilidades.
Para tentar responder esta questão, retomo alguns
clássicos, iniciando por Kant, que claramente aborda o sentido

* SUERTEGARAY, D. M. A. Geografia Física: de onde viemos para


onde vamos? In: Simpósio Brasileiro de Geografia Física Aplicada,
2013, Vitória. São Paulo: SBGFA, 2013. v. 1. p. 1-8.
21
(Re)Ligar a Geografia: Natureza e Sociedade

da Geografia e, nela, o de Geografia Física. De Kant passamos a


Humboldt. A partir dele, comentamos outros geógrafos, como
De Martonne e Birot, já no século XX. Todos eles, preocupados
em definir o campo da Geografia Física.
Para tentar responder para onde vamos, me detenho
numa breve análise das mudanças na concepção de tempo e
espaço na contemporaneidade. A partir daí, faço uma análise
indicando, quem sabe? Possibilidades futuras, em aberto.
Ao mesmo tempo, introduzo, na discussão, a formação
dos geógrafos expressa nas grades curriculares dos cursos de
Geografia. Penso que esta conexão é fundamental, pois explica,
em parte, nossa formação de origem e nos permite pensar sobre
as consequências dessa tradição frente ao mundo
contemporâneo.

A Geografia Física
Ao referir-se à forma de organização do conhecimento,
Kant indica a necessidade de organizá-los no tempo ou no
espaço, sejam estes conhecimentos empíricos ou na forma de
conceitos.
A classificação dos conhecimentos segundo os conceitos é a
classificação lógica; aquela segundo o tempo e o espaço é a divisão
fisica”. Por meio dos primeiros nós obtemos um sistema da natureza
[Systema naturae], como, por exemplo, o de Lineu; por meio da
segunda obtemos, ao contrário, uma descrição geográfica da
Natureza. (KANT, 2007, p.124).

Acrescentando, na continuidade:
Entretanto, poderíamos denominar os sistemas da natureza até
agora compostos, bem mais corretamente, de agregados da natureza,
pois um sistema pressupõe já a ideia de um todo, da qual a
multiplicidade das coisas será derivada. Na realidade nós não temos
ainda nenhum Systema nature. Nos assim chamados sistemas do
tipo existentes, as coisas estão apenas reunidas e ordenadas umas
após as outras (KANT, 2007, p.125).
22
Geografia Física: de onde viemos para onde vamos?

Para Kant, tempo e espaço constituem categorias


fundamentais do conhecimento do mundo. Diante disto,
considera que este conhecimento se produz como narrativa
[Erzahlung] ou como descrição [Beschreibung] A primeira é uma
história [Geschichte], a outra uma geografia [Geographie].
História e Geografia são, ambas, uma descrição; a História, uma
descrição no tempo [Zeit] e a Geografia, uma descrição no
espaço [Raume].
A geografia física [physische Geographie] é, portanto, um esboço
geral da natureza [allgemeiner AbriB der Natur], e não somente
porque ela é o fundamento da história, mas também porque constitui
todas as demais geografias possíveis restantes. (KANT, 2007,
p.128).

As geografias restantes, a que se refere Kant são: a


geografia matemática (dimensões e movimentos da terra, relação
Terra-Sol); a geografia moral (que tratará dos diferentes
costumes e caráter dos homens nas diferentes regiões); a
geografia política (relação com o território e suas leis na sua
relação com a natureza); a geografia mercantil (relações
comerciais entre países) e a geografia teológica (diferenças
religiosas).
Estes breves excertos nos permitem refletir sobre o
sentido dado à Geografia Física em Kant. Sem dúvida, sua ênfase
é no entendimento de uma Geografia Física centrada no estudo
da natureza/superfície da Terra. Entretanto, a distingue das
ciências classificatórias, a exemplo da Biologia (em especial, na
época), na medida em que a Geografia e, por extensão, a
Geografia Física, deveria estudar como os fenômenos se
relacionam ao lugar (na forma de um sistema). A produção desse
conhecimento deveria partir do todo, caso contrário, constituiria
um agregado, como as classificações lógicas, de acordo com sua
expressão. Nossas heranças também se revelam em Humboldt.
23
(Re)Ligar a Geografia: Natureza e Sociedade

Ao referir-se à natureza, assim afirmava:


A Natureza, considerada por meio da razão, quer dizer, submetida
em seu conjunto à ação do pensamento, é a unidade na diversidade
dos fenômenos, a harmonia entre as coisas criadas que diferem por
sua forma, por sua constituição e pelas forças que as animam; é o
Todo animado por um sopro de vida. (HUMBOLDT. 1982.
p.160).

Para ele, o estudo dos fenômenos físicos deveria resultar


no conhecimento das conexões existentes entre as forças da
natureza e o sentimento íntimo (racional) de mútua dependência
(HUMBOLDT, 1982, p. 160).
Considerava também que a paisagem, na sua configuração
concreta, promovia, em quem a observasse, diferentes formas de
prazer, “porque as impressões desse gênero são mais vivas,
melhor definidas, mais de acordo com certos estados de ânimo”
(HUMBOLDT, 1982, p.161).
Para Humboldt, a análise da natureza, mesmo através da
contemplação/observação da paisagem, deveria buscar o
encadeamento entre os fenômenos. Sobre isto, assim se referia:
Esta necessidade das coisas, este encadeamento oculto, mas
permanente, esta renovação periódica no desenvolvimento progressivo
das formas, dos fenômenos e dos acontecimentos, constituem a
Natureza, que obedece a um impulso primário determinado. A
Física, como seu próprio nome indica, se limita a explicar os
fenômenos do mundo material por meio das propriedades da
matéria... A Física do Mundo que tento expor não pretende elevar-
se às perigosas abstrações de uma ciência puramente racional da
Natureza; é uma Geografia Física unida à descrição dos espaços
celestes e dos corpos que se encontram nesses espaços. Alheio às
preocupações da Filosofia puramente especulativa (HUMBOLDT.
1982. P.163).

Humboldt também vai se referir à Geografia Física,


concebida como estudo da natureza. Vincula esse estudo à
descrição raciocinada, portanto, lógica, e conectada com espaços

24
Geografia Física: de onde viemos para onde vamos?

mais amplos, os espaços celestes como se referia. Sob esta


perspectiva, se referia à natureza como sendo animada por um
sopro de vida, ou seja, concebia a dinâmica da superfície da Terra
emanada das leis gerais. No entanto, diferenciava a Física da
Física do Mundo ou Geografia Física. Esta seria uma descrição
da superfície da Terra nas suas diferenciações paisagísticas,
porém, não como únicas, mas como resultado de processos
gerais.
Semelhante a Kant, Humboldt valorizava a diferenciação
dos espaços na superfície da terra, mas compreendidos a partir
de leis gerais (ordenação cósmica). Kant se referia ao todo como
determinante das partes, Humboldt se referia as leis, a relação
cósmica como propulsora das diferenças entre fenômenos ou
paisagens.
Ao chegar o século XX, em 1909, De Martonne (1968),
em seu livro Tratado de Geografia Física, escreve que a
Geografia - e nela a Geografia Física - assume dimensões
enciclopédicas, e isto obriga a especialização exagerada que pode
esconder a essência da Geografia. No prólogo da primeira edição
desta obra, lê-se:
o desenvolvimento da Geografia Moderna parece conduzir uma
especialização cada vez mais evidente. Chega a ser quase impossível
realizar ao mesmo tempo investigações pessoais sobre morfologia,
hidrografia, clima, biogeografia e Geografia Humana... Ao geógrafo
especializado, portanto, é necessário ter à mão um livro que lhe
permita orientar-se rapidamente nas questões de Geografia Física
que, não são objetos próprios de seus estudos (DE MARTONNE,
1968, p. 15).

O que significa, no entendimento de De Martonne, que é


necessário que o aprendizado das relações entre esses diferentes
campos se coloque claramente e que a unidade da Geografia se
mostre ao principiante (ao estudante de Geografia) e que seja

25
(Re)Ligar a Geografia: Natureza e Sociedade

lembrado aos estudantes de que a especialização é uma ordem


particular de investigação. Embora essas colocações, o autor
considera que sua obra é um tratado de Geografia Física e sua
estrutura expressa uma visão dos diferentes ramos (sic) da
Geografia.
Em meados do século XX, Birot, em seu clássico Précis
de Geographie Physique Générele (1959) conceitua Geografia
Física como, “o estudo da epiderme de um ser único: a Terra”.
Propõe, que a epiderme da terra seja estudada a partir do
conceito de paisagem natural, tal como aparece ao observador,
percorrendo o globo, primeiramente à intervenção humana. Faz
referência aos estudos de paisagens como combinações
complexas, que ocorrem sob um plano histórico e numa escala
cronológica completamente diferente da escala humana.
Birot fazia uma distinção entre Geografia Física Geral e
uma Geografia Física Regional. A primeira, tem como objeto
estudar os princípios gerais que permitem a explicação da
epiderme da Terra. A segunda, diz respeito à análise das grandes
unidades de paisagens, cujos contornos são função tanto do
relevo, como do clima. A estrutura da obra de Birot,
diferentemente da obra de De Martonne, estuda os constituintes
da natureza individualmente, mas, tem também como proposição
o estudo das paisagens através do que denominou Sistemas de
Erosão, como assim denominava Choley, 1950.
No contexto dessa discussão cabe fazer referência a
Thornbury (1960). Este, ao se referir à Geomorfologia, dizia que:
a Geomorfologia é, sobretudo, Geologia, embora se ensine
Geomorfologia, tanto na Europa como nos Estados Unidos da
América, como parte da Geografia Física. Considerava que as
tendências da Geomorfologia, pelo menos nos EUA, fossem

26
Geografia Física: de onde viemos para onde vamos?

mais geológicas do que geográficas. Geomorfologia então, para


este autor, não seria uma parte da Geografia Física e sua
aproximação seria maior com a Geologia.
Este breve resgate de alguns clássicos nos permite
compreender que a Geografia Física, enquanto estudo da
natureza, se expressou como se expressa atualmente, ou seja, de
diferentes formas. Sintetizando, podemos dizer que ela se
constituiu como:
• Diferenciação de elementos naturais e/ou paisagens e
articulação com as “determinações gerais”...leis gerais;
• Paisagem natural, enquanto forma, funcionalidade e
transformação;
• Relação de causa e efeito entre formas e processos;
• Conjunção de elementos físicos: funcionalidade e
sistemismo (já indicado em Kant).

Na atualidade
Contemporaneamente, não se percebe grandes variações
nessas dimensões analíticas. O mais expressivo, em meu modo de
ver, na discussão contemporânea, diz respeito à concepção de
natureza e de tempo. Em nossos dias, verifica-se uma mudança
analítica em relação aos estudos da natureza. Trata-se da
substituição das análises, objetivando a explicação da origem e
transformação da paisagem na sua forma clássica (Humboldt,
Choley, Birot, Tricart e Cailleux, Ab´Saber, entre tantos), pela
explicação da funcionalidade, pela análise da interação dos
processos, ou seja, da transformação das formas naturais por
processos de tempo curto. Um sistemismo do e no presente.
A concepção dos estudos da natureza que privilegia o

27
(Re)Ligar a Geografia: Natureza e Sociedade

tempo longo ou o tempo que escoa nos permitiu enfatizar os


estudos relativos à gênese da paisagem, por exemplo. Os estudos
atuais privilegiam o tempo curto, o tempo dos ritmos, ou o
tempo que faz, no dizer de Michel Serres (1991). A natureza
transfigurada/tecnificada de nossos dias, decorrente das formas
organizativas da sociedade atual promove, em especial na
sociedade capitalista, a intensificação do uso da natureza e sua
consequente subordinação
...num duplo sentido, de um lado a subordinação que degrada e
aniquila de outro a subordinação que recria e reinventa a natureza.
Em ambos os casos, o híbrido se manifesta como objeto densamente
tecnificado no contexto produtivo e cultural da sociedade, no presente
(SUERTEGARAY, 2006, p.96).

Diante disto, muda a perspectiva dos estudos da natureza


e valoriza-se os estudos da forma, da dinâmica/funcionalidade
com vistas a decifrar os problemas decorrentes de seu
uso/subordinação. Por essa razão, são comuns em nosso meio os
trabalhos cujos objetivos e intenções são o reconhecimento da
funcionalidade mediante condições de risco, objetivando
intervenções que, por sua vez, transfiguram/densificam
tecnicamente a natureza. Estes estudos são objetivados, na
linguagem ambiental, tão comum entre os geógrafos físicos na
atualidade, através dos diagnósticos, dos monitoramentos e das
medidas mitigadoras. Monitoramento pressupõe controle e
medidas mitigadoras, soluções técnicas de restauração da
natureza, portanto, natureza tecnificada, natureza artificializada
na expressão de Milton Santos.
As perspectivas analíticas adotadas na atualidade e
visualizadas em grande parte dos trabalhos deste evento
(Simpósio de Geografia Física Aplicada 2013) diz respeito a:
• Análises dos diferentes elementos constituintes da

28
Geografia Física: de onde viemos para onde vamos?

natureza como Geografia Física;


• Análise integrada dos elementos físicos como Geografia
Física, em separado da sociedade;
• Articulação dos estudos da natureza e da sociedade.
O Método Sistêmico, na atualidade, constitui o método
hegemônico. Entretanto, o sistemismo, no âmbito da Geografia,
não fugiu à compartimentação, não suplantou a dificuldade maior
a articulação Natureza/Sociedade - Geografia Física/Geografia
Humana. As controvérsias em relação ao conceito de
Geossistema, ora compreendido como sistema natural (Sotchava
1977, Christofoletti 1979 e 1999), ora concebido como sistema
que integra natureza e sociedade (Bertrand 1968/1972, Monteiro
2000) bem demonstram essas divergências.

A Geografia Física na Formação Geográfica


Para falar sobre a formação de geógrafos e geógrafas
cabe, para finalizar, resgatar a lógica expressa em muitos de
nossos currículos. Em geral, as grades curriculares iniciam com
as disciplinas que constituiriam o fundamento da Geografia à
maneira de Kant, ou seja, Geografia Física. Entretanto, essa
Geografia Física se apresenta sob a visão de diferentes campos
científicos, Geologia, Geomorfologia, Climatologia, Hidrografia,
Biogeografia, cujos conhecimentos são ministrados em diferentes
disciplinas. Na sequência, teremos o mesmo esquema para a
Geografia Humana. Após as Geografias Físicas e Humanas, ditas
Gerais ou subáreas da Geografia, tem-se as Geografias Regionais:
Geografia Regional do Brasil, Geografia dos Continentes,
Geografia da América Latina, Geografia do Rio Grande do Sul
(no caso do curso da UFRGS) ou mesmo Organização do

29
(Re)Ligar a Geografia: Natureza e Sociedade

Espaço Mundial (um nome mais moderno). O que se espera


nessas disciplinas é a articulação dos conteúdos
compartimentados dos anos anteriores, que podem ou não
acontecer. Finalmente, o TCC (Trabalho de Conclusão de Curso),
onde é dito que: é no TCC que o aluno deve fazer as conexões!
Ou na sala de aula (estágio), espaço onde o aluno deve ensinar
Geografia por inteiro.
Diante disto, retorno ao questionamento inicial. Para
onde vamos?
Nossas heranças são visíveis, sejam elas na nossa
formação acadêmica, sejam elas na produção científica.
Desejamos coisas diferentes. Desejamos estabelecer conexões,
desejamos ser especialistas, desejamos estudar especificamente a
natureza, desejamos estudar especificamente o espaço social. O
mundo mudou - e está mudando -, da mesma forma a ciência. O
que temos na atualidade é um conjunto de possibilidades e de
muitas incertezas. O importante é caminhar!

Referências
BERTRAND, G. Paisagem e Geografia Física Global: um esboço
metodológico. Cadernos de Ciências da Terra, São Paulo, IG/USP, nº
13, 1972.

BIROT, P. Précis de Géographie Phisique Générele. Librairie Armand


Colin. Paris, 1959. p.403

CHRISTOFOLETTI, A. Análise de sistemas em Geografia. São Paulo:


Hucitec/Edusp: 1979.

CHRISTOFOLETTI, A. Modelagem de sistemas ambientais. São


Paulo: Edgar Blücher, 1999.

30
Geografia Física: de onde viemos para onde vamos?

DE MARTONNE, E. Tratado de Geografia Física. 2ª Edição. Editorial


Juventud, S. A. Barcelona, Espanha. 1964. p.520.

HUMBOLDT, Alexander Von (1845- 1862): Cosmos. Ensaio de uma


descrição física do mundo. In MENDOZA, J. G.; JIMÉNEZ, J. M. y
CANTERO. N. O. (orgs). El Pensamiento Geografico. Madrid, Alianza,
1982, p.159-167.

KANT, I. Introdução a Geografia Física'[Einleitung fur die physische


Erdbeschreibung]. Revista GEOgraphia - Ano IX - No 17. UFF.
Niterói. 2007. p.129

MONTEIRO, C. A. F. Geossistemas a história de uma procura. São


Paulo: Editora Contexto, 2000. p.127.

SERRES M. O Contrato Natural. Nova Fronteira. Rio de Janeiro, 1991.


p.142
SOTCHAVA, V.B. O Estudo de Geossistemas. Métodos em Questão nº
16. São Paulo Instituto de Geografia, USP, 1977.p.51.

SUERTEGARAY, D. M. A.Questão Ambiental: produção e subordinação


da natureza. In José Borsachielo da Silva, Cruz Lima e Eustógio W.
Correia Dantas (org). Panorama da Geografia Brasileira. 1ª edição. São
Paulo. D. Anablume, 2006. Vol 2. p.91-100.

THORNBURY, W.D. Princípios de Geomorfologia. Editorial Kapelusz.


Buenos Aires.1960. p. 627.

31
A Geografia Física no início dos anos 1990

O texto anterior faz uma leitura da origem da Geografia


Física a partir dos seus conceitos fundantes, definidos pelos
clássicos, desde a Filosofia (o caso de Kant) à Geografia do início
até meados do século XX. Na continuidade, apresentaremos uma
síntese construída a partir de uma análise do Simpósio de Geografia
Física, realizado em Porto Alegre, no ano de 1992. Ao analisar a
produção nesse momento, fica evidente o que caracterizava os
estudos nesse subcampo da Geografia, como é reconhecido pela
maioria dos geógrafos. Observa-se uma mudança: novos temas,
novas perspectivas, novas tecnologias como instrumental
analítico. Ao mesmo tempo, observa-se uma preocupação
epistemológica muito incipiente e que absorve novas proposições
- como a análise sistêmica, sem, contudo, expressar uma
compreensão e análise reflexiva mais substancial.
33
(Re)Ligar a Geografia: Natureza e Sociedade

Para explicitar a produção em Geografia Física ao longo


da história dos Simpósios de Geografia Física, foi-me solicitado
que este resgate fosse apresentado, em mesa redonda, no
SBGFA, em 2011, ocorrido em Dourados-MS. Portanto, este
texto baseia-se na análise específica dos anais do IV Simpósio de
Geografia Física, realizado em Porto Alegre/RS, entre os dias 10 e
14 de novembro de 1991. O objetivo é realizar uma leitura da
produção registrada nesse documento, em relação ao que se
institucionalizou como subcampo da Geografia: os estudos de
Geografia Física.
Naquele momento, a discussão ambiental era um aspecto
emergente e, nesse simpósio, muitos estudos revelam essa
tendência. Para construir esta análise - para além dos dados
numéricos - será feito uma abordagem dos temas dominantes, o
que poderá indicar tendências que virão a se consolidar como
discussão nessa (1990) e nas próximas décadas.
A disposição dos textos do referido documento foi
organizada a partir da classificação temática dos trabalhos
encaminhados, sendo dispostos, portanto, em três sessões: A
Geografia Física e a Questão Ambiental, Tendências e Perspectivas da
Geografia Física, Geografia Física: uso e gerenciamento do Espaço e nas
Comunicações.
Na primeira sessão, A Geografia Física e a Questão
Ambiental, foram incluídos 25 trabalhos; na segunda, Tendências e
Perspectivas da Geografia Física, classificou-se 15 trabalhos; na
terceira, Geografia Física: uso e gerenciamento do Espaço 22 trabalhos e
nas Comunicações tem-se 18 trabalhos. No total foram
apresentados nesse evento 76 trabalhos.

34
A Geografia Física no início dos anos 1990

Seção 1. A Geografia Física e a Questão


Ambiental
Tomando como base os títulos dos trabalhos e a leitura
dos textos, em relação aos objetivos, podemos reclassificá-los da
seguinte maneira: trabalhos relativos aos estudos em Geologia
(1), Geomorfologia (8), Pedologia (3) e Climatologia (1); todos
inseridos nesse eixo, na medida em que compõe estudos de
interface e demonstram preocupação ambiental; introduzindo
dinâmicas sociais na análise e/ou preocupações com o uso do
solo e planejamento, totalizaram doze (12).
Um olhar mais apurado sobre esses trabalhos revela
alguns detalhes instigantes: dos doze (12) trabalhos, cinco (5)
são de interface Geomorfologia/ambiente, um (1) de perspectiva
ecológica, dois (2) de clima e ambiente e, quatro (4) no âmbito da
análise relativa aos impactos de uso do solo ou exploração dos
recursos naturais.
Sobre as perspectivas analíticas, observamos, neste
conjunto de trabalhos, as seguintes abordagens: em
geomorfologia, o predomínio dos estudos da morfodinâmica.
Dos treze (13) trabalhos, são classificados no campo da
Geomorfologia oito (8) e no campo da Geomorfologia e
Ambientes cinco (5). Do total, doze (12) referem-se a estudos da
morfodinâmica e dinâmica do relevo, ou seja, indicam uma
ênfase no estudo de processos.

Seção 2. Tendências e Perspectivas da


Geografia
A seção 2, com base no mesmo procedimento de análise,
apresenta em seu conjunto quinze (15) trabalhos, assim

35
(Re)Ligar a Geografia: Natureza e Sociedade

distribuídos: trabalhos que se vinculam ao tema, tratando de


procedimentos técnicos aplicados às análises feitas, totalizaram
nove (9); trabalhos relativos a método um (1), e trabalhos
vinculados à análises de temas específicos, cinco (5).
Em relação aos trabalhos vinculados a procedimentos
técnicos, visualiza-se um conjunto de apresentações que
encaminham diferentes formas de coleta e análise dos dados: a
exemplo das técnicas experimentais de medição de processos
dois (2), formas de representação do relevo (diagramas, perfis,
croquis) três (3), uso de técnicas estatísticas e SIG dois (2) e
análises com base em fotografias aéreas (1), além de um (1)
trabalho relativo ao método de ensino de climatologia. Os
trabalhos de caráter metodológico praticamente inexistem.
Registra-se a presença de apenas um (1) trabalho, que embora
tenha sido classificado como vinculado às técnicas estatísticas,
indica uma associação desta à análise sistêmica e uma proposta
de método para o ensino da Climatologia. Os demais trabalhos
dessa seção vinculam-se aos estudos geomorfológicos, climáticos
e na ótica do ambiente, totalizando cinco (5).
Os principais temas dessa seção dizem respeito aos
estudos relativos à Geomorfologia (relevo cárstico, vertentes,
evolução de voçorocas, solo e erosão, morfologia do solo e a
climatologia (estudos de radiação solar, classificações climáticas,
clima urbano, ensino) além dos estudos relativos ao uso da terra
e áreas de proteção ambiental.
Nesta seção, visualiza-se o predomínio de trabalhos que
enfatizam o uso de determinadas técnicas nos estudos,
especificamente, de Geomorfologia e Climatologia. Trata-se de
trabalhos experimentais que tem como objetivo medir processos
de erosão linear ou areolar em vertentes, ou ainda trabalhos de

36
A Geografia Física no início dos anos 1990

mapeamento através de fotos aéreas. Na mesma seção, estão


registrados apenas dois (2) trabalhos no campo da análise
computacional: um (1) é relativo ao uso de SIG e outro de
elaboração de perfis de relevo tridimensionais. Isto permite
evidenciar que no início dos anos 1990 ainda era reduzido o uso
da computação na análise geográfica. Revela-se nesse evento,
como técnica bastante presente, os trabalhos associados a
medições de processos em campo.
É notável a falta de discussão teórico-conceitual na
Geografia Física à época. É dominante neste momento as
análises empíricas de cunho descritivo ou a delimitação de
formas como de relevo, como de clima e de solo. Algumas
interfaces são visíveis como: clima e solo, clima e relevo, clima e
cidade, clima e ensino e uso do solo e erosão. Os trabalhos de
Geomorfologia apresentados nessa seção buscam a interpretação
do relevo em si, demonstrando, neste momento, pouca interface
desta com outras áreas.

Seção 3. Geografia Física: uso e


gerenciamento do espaço
O total de trabalhos registrados nessa seção é de vinte e
dois (22). Parte destes trabalhos associam-se à temática
ambiental, na relação com o planejamento, o gerenciamento ou
gestão dos espaços. Do total, abordam essa temática dez (10)
artigos. Os demais artigos, em um total de doze (12),
classificados nessa seção, abordam temas variados na
Geomorfologia (mapeamento geomorfológico através de
imagens de satélite, macrozoneamentos com base no relevo);
estudos relativos à Climatologia (clima e neve), estudos
associados à cidade (crescimento urbano e impacto ambiental),

37
(Re)Ligar a Geografia: Natureza e Sociedade

estudos relativos à cobertura vegetal (evolução e classificação da


cobertura vegetal), erosão e áreas de proteção ambiental.
A quase totalidade destes trabalhos apresenta vínculo
com a questão ambiental, destacando-se apenas um (1) com uma
análise específica, sem vínculo com a problemática ambiental.
Nesta seção observa-se uma diversidade maior de campos
do conhecimento em associação, visando os estudos dos
impactos humanos sobre os constituintes da natureza. Observa-
se, em alguns casos, a busca de métodos mais “totalizantes”,
como a análise sistêmica; bem como o uso de novas tecnologias
computacionais para realização de mapeamentos. Trabalhos que
introduzem uma discussão mais ampliada, incluindo em suas
análises as dinâmicas sociais. A produção e uso do espaço
aparecem em pequeno número, mas são reveladoras de caminhos
analíticos diferenciados quanto à leitura da problemática
ambiental na Geografia.

Comunicações
Este Simpósio, além das três seções técnicas, registra
também trabalhos sob a forma de comunicações. Totalizaram,
nesta modalidade, dezoito (18) trabalhos. Neste recorte
predominaram os estudos referentes à Geomorfologia e os temas
abordados são relativos à compartimentação do relevo e aos
estudos da morfodinâmica (nesta categoria foram classificados
um conjunto de dez (10) trabalhos publicados). Na sequência,
têm-se os trabalhos com temática ambiental cinco (5), do total.
Os demais correspondem a um (1) trabalho de Hidrologia, um
(1) de Biogeografia e um (1) de Climatologia.

38
A Geografia Física no início dos anos 1990

Considerações para discussão


A análise descritiva deste evento revela, em seu conjunto,
que foi dominante entre os trabalhos publicados os relativos à
análise ambiental (trabalhos de interface), seguido dos trabalhos
de Geomorfologia, Planejamento Ambiental e procedimentos
técnicos com vista à análise de elementos da natureza.
Os demais campos científicos que compõe o que se
denomina de Geografia Física, tais como Climatologia,
Hidrologia e Biogeografia, Pedologia ou Geologia estão
presentes em número muito reduzido. Apresenta–se, neste
conjunto, como maior número, os estudos de solos.
Diante deste levantamento, tomam-se como elementos
observáveis - a partir da análise dos anais – o registro da
produção da Geografia Física nesse momento e que podem
promover discussão, os seguintes tópicos:
• Presença de uma Geografia Física compartimentada em
diferentes campos analíticos;
• Predomínio dos estudos geomorfológicos sobre os
demais campos;
• Expansão dos estudos de interface e vínculo com
questões ambientais;
• Significativo número de trabalhos com vinculo ao
planejamento e relativos ao uso dos recursos naturais;
• Praticamente, inexistência de estudos relativos às
questões vinculadas a Biogeografia e a Hidrologia. Indicando
ausência da discussão sobre a temática relativa à água e a
cobertura vegetal. Dois campos, que de algum tempo, são pouco
explorados pela Geografia. Mais recentemente a água emerge

39
(Re)Ligar a Geografia: Natureza e Sociedade

como tema de grande interesse. Nessa perspectiva


diferentemente do início dos anos 1990 a água e o estudo de
bacias hidrográficas e seu gerenciamento se ampliam
significativamente, no contexto geográfico.
• Uma preocupação com o domínio das técnicas ou de
procedimentos experimentais relativos ao levantamento de dados
em campo;
• Predominância de estudos empíricos sem vínculo com
um referencial que permita uma análise vinculada ao campo
teórico;
• Uma ausência de discussão teórica-metodológica seja no
campo da Geografia Física, seja nos diferentes campos que a
compõe;
• Um início de utilização das tecnologias computacionais,
a exemplo dos SIGs;hoje sobremaneira ampliado.
• O tripé Clima x Relevo x Solo como o centro da análise
dos estudos da natureza em Geografia;
• A predominância de estudos relativos aos processos e
sua funcionalidade, obscurecendo os estudos relativos à gênese
dos fenômenos em análise.

Com base nestas considerações, é possível resgatar


alguns elementos que considero importantes na discussão
da Geografia e que caberia aos geógrafos físicos discutirem:
O que é ou o que estuda a Geografia Física na atualidade?
Quais os referenciais teóricos e metodológicos que dão
suporte as análises em Geografia Física?
Qual a concepção de natureza com a qual trabalham os
Geógrafos Físicos?
40
A Geografia Física no início dos anos 1990

Qual a concepção de ambiente que está presente nos


estudos deste subcampo da Geografia?
De qual planejamento falam os geógrafos físicos? Como
se inserem nesta esfera de poder?
Como compreendem a questão temporal em suas
análises?
Como avaliam a questão da escala de análise em suas
pesquisas?
Para finalizar, retomo parte de um texto apresentado
durante o Simpósio Brasileiro de Geografia Física de São Paulo (2005).
Desde que esse texto foi escrito, treze anos se passaram e entre
as tendências evidenciadas nesta análise, no início dos anos 1990,
algumas parecem, mais atualmente, consolidadas. Em 2005, foi
escrito:
Os dados levantados me permitem dizer que, na atualidade, existe
uma forte tendência aos estudos ambientais e, conseqüentemente, um
deslocamento dos estudos compreendidos como Geografia Física para
esta área. Esta formulação com certeza poderá ser mal interpretada
neste Simpósio de Geografia Física, no entanto, cabe registrar mais
uma vez que não se trata de dizer que a Geografia abandonou os
estudos da natureza, trata-se de observar o deslocamento e,
conseqüentemente, a mudança de ótica analítica. Estas são para
mim evidentes. Continuamos e devemos continuar incorporando a
natureza na análise geográfica, continuamos tendo e devemos ter nos
currículos disciplinas que nos ensinem a análise da natureza. Agora,
devemos refletir sobre os conceitos e as denominações ainda
atribuídas a essas novas formas de compreender o mundo.
(SUERTEGARAY, 2005, p.41).

O Simpósio brasileiro de Geografia Física Aplicada


realizado em Porto Alegre em 1992, demonstrava uma tendência
que vai a cada década se consolidando, de um lado a ampliação
dos estudos ambientais a partir da "Geografia Física" de outro a
continuidade e o aprofundamento dos estudos específicos
realizados em cada campo que compõe os estudos da natureza.

41
(Re)Ligar a Geografia: Natureza e Sociedade

Referências
SUERTEGARAY, D. M. A. o atual e as tendências do ensino e da
pesquisa em Geografia no Brasil. Revista do Departamento de
Geografia, 16 (2005) São Paulo. p.38 a 45.

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO


SUL/PROREXT/IG/DEP GEOGRAFIA. IV Simpósio de Geografia
Física Aplicada. Anais. Vol. 1 Sessões Técnicas. Porto Alegre 10 a 14 de
novembro de 1991. p.639.

42
Um antigo (e ainda atual) debate:
a divisão e a unidade da Geografia*

O tema que nos solicitaram abordar, em caráter de ensaio,


é tão antigo quanto à própria Geografia - e tão atual quanto a sua
necessidade de reflexão. Trata-se de refletir sobre os fenômenos
geográficos, de forma a contribuir para sua visão não
compartimentada entre as duas dimensões presentes na
construção destes mesmos fenômenos: a natureza e a sociedade.
Muito já se escreveu para informar que a ciência e a
filosofia, desde o Renascimento, acalentaram um debate cuja
intenção dizia respeito à necessidade da época, qual seja

*SUERTEGARAY, D. M. A. Um antigo debate (a divisão e a unidade


da geografia) ainda atual? Boletim Paulista de Geografia, v. 85, p. 29-
38, 2006.
43
(Re)Ligar a Geografia: Natureza e Sociedade

desconstruir a visão orgânica de mundo, predominante nesse


momento. Esta, apresentava, na sua cosmovisão, uma construção
onde espaço e tempo eram indissociáveis. Os ritmos da natureza
se articulavam aos ritmos da produção da vida. Esta visão,
gradativamente, deixa de interessar, considerando-se que um
mundo em transformação exigia que a natureza fosse pensada em
separado da natureza humana e onde o homem fosse pensado
como um ser central, catalizador dos benefícios provenientes
daquela.
Desta necessidade material, na perspectiva de ampliar o
processo de produção e descoberta de novos mundos, emerge
uma construção; aquela que fundamenta a produção científica
desde então, ou seja, a separação da natureza do homem e do
próprio homem em corpo/natureza, alma/divindade, desde
Descartes.
Tratava-se do ponto de vista filosófico e científico de
dividir para dominar. Dividir, analisar para explicar fenômenos
e/ou processos e, na continuidade, intervir, explorar ou
manipular.
Não é preciso dizer que esta construção alicerçou nossa
forma de pensar o mundo e de construir conhecimento, e
resultou num outro momento, quando do advento da Revolução
Industrial (séc. XVIII), numa construção científica que efetiva
esta forma de pensar. Estamos nos referindo, aqui, ao
positivismo. Este contribuiu com a compartimentação do
conhecimento desde o momento em que propôs uma
classificação científica e indicou a necessidade de cada ciência
definir seu objeto de estudo ou o fenômeno natural ou social de
seu interesse.

44
Um antigo (e ainda atual) debate: a divisão e a unidade da Geografia

Diante desta realidade, desde o século XVIII/XIX, pelo


menos, deparam-se os geógrafos com questões aparentemente
banais, mas com certeza relevantes, em particular, nesse
momento histórico. Uma dessas questões, diz respeito à
compreensão geográfica ou ao entendimento de seu campo de
estudo.
Contrariando, em meu modo de ver, a doutrina científica
que gradativamente tornava-se hegemônica. A Geografia coloca-
se, desde sua origem, e em particular no momento de sua
autonomia (séc. XIX), como uma ciência de interação entre
natureza e sociedade.
Observa-se que quando da autonomia da Geografia, duas
ciências se colocaram para o conjunto científico, como ciências
de conexão. A Geografia, historicamente, postulante desta
perspectiva e a nascente Ecologia. Nenhuma delas teve seu
espaço plenamente assegurado nesse momento.
Para Dollfus (1982) a ecologia, particularmente na
França, só ganha espaço nos anos 1960/1970 do século XX. De
acordo com este autor o conceito de ecologia formulado por
Haeckel, em 1866, permanece o mesmo. Ao considerar-se a
ciência do estudo das relações entre os seres vivos e o meio, a
ecologia se pensa unitária e global. Entretanto, indica esse autor,
que esta ao não dispor de uma teoria e de um forte paradigma,
torna-se um conhecimento eclético. Acrescentando que a
utilização da teoria dos sistemas parece fornecer à ecologia os
instrumentos conceituais necessários.
A Geografia manteve-se a partir de sua própria divisão.
Na prática, ela se construiu a partir daí dividida em Geografia
Física e Geografia Humana; esta divisão não teria sido para
dominar? Aparentemente, teria sido para permanecer no
contexto.
45
(Re)Ligar a Geografia: Natureza e Sociedade

Na segunda metade do século XX aproxima-se, em


particular a Geografia Física, da lógica globalizante a partir da
construção do conceito de Geossistema. Conceito,
originariamente, construído pelos russos, Sotchava (1977) e, na
França por Bertrand (1972). Embora tenha sistematizado esse
conceito e proposto uma Geografia Física unitária - o próprio
Bertrand (1982) afirma “a geografia física não existe enquanto
corpo científico constituído” -, reforça, na continuidade de sua
análise, que a Geografia Física não constitui um todo e também
não é parte de um todo. Sua indicação encaminha a discussão
sobre a possibilidade do uso do conceito de Geossistema como
passível de articulação dos elementos da natureza, ao mesmo
tempo em que aborda os limites deste conceito no campo da
análise social. No Brasil, temos em Monteiro (2000) a expressão
máxima da Geografia brasileira na constituição de uma
perspectiva Geossistêmica diferenciada de Bertrand e
articuladora dos constituintes naturais e sociais no tempo e
espaço.
As dificuldades de percurso vivenciadas pela Ecologia,
que não se fortaleceu no quadro científico, desde meados do
século XIX até a segunda metade do século XX, e da Geografia,
que se mantém a partir da divisão em dois campos (Geografia
Humana e Geografia Física) ao longo deste mesmo século,
paradoxalmente, expressam uma posição contrária ao caráter da
ciência dominante. Esta, buscou, ao longo da modernidade,
conforme Latour (1984), purificar seu objeto. Geografia e
Ecologia se colocaram como ciência das conexões. A Geografia,
como ciência das conexões entre natureza e sociedade e a
Ecologia como ciência das conexões entre os organismos vivos e
seu meio. Nesse sentido, pode se dizer que estes dois campos do
conhecimento não conseguiram uma afirmação no conjunto das
ciências puras durante o século XX.
46
Um antigo (e ainda atual) debate: a divisão e a unidade da Geografia

São, entretanto, essas duas ciências que mais


recentemente são resgatadas para veicular uma compreensão
mais totalizante dos fenômenos contemporâneos. De um lado, a
Ecologia, respondendo em parte pela demanda atual da
sociedade: a questão ambiental. Nesse particular, cabe ressaltar
um novo campo da Ecologia - a denominada Ecologia de
Paisagem (ZIMMERER, 1984). Esta, tem na sua origem, a
construção do conceito de clássicos da Geografia à exemplo do
conceito de paisagem com base em Troll (1982). Ao resgatar o
conceito de paisagem, a Ecologia se propõe a incorporar
dimensões não tratadas em suas abordagens clássicas, entre elas,
as que dizem respeito à espacialidade e as intervenções humanas.
Paradoxalmente, a Geografia, na intenção de construir
um conhecimento articulador, baseou-se no conceito de sistema.
Este, por sua vez proveniente da Biologia. Entretanto, a
Geografia como ciência de valorização do espaço e das conexões
entre os fenômenos, respondendo pela emergência da variável
espacial na identificação dos problemas sociais e ambientais, tem
na sua análise um diferencial em relação ao ecológico seja na sua
perspectiva clássica, seja na sua perspectiva mais recente.
Independentemente desta configuração ou da
necessidade premente, no caso da Geografia, de um retorno à
sua origem, a realidade científica ainda se coloca
compartimentada. Em que pese toda a discussão contemporânea
sobre a necessidade de valorização do espaço, de resgate das
conexões e da articulação sociedade – natureza – cultura, a
Geografia ainda se expressa dicotomizada. O esforço pela
unificação, portanto, está tão atual como sempre esteve no
debate geográfico. As conexões são possíveis, são tangíveis,
como o exemplo, trazemos um tema derivado de nossa
experiência de pesquisa: em Geomorfologia Urbana.
47
(Re)Ligar a Geografia: Natureza e Sociedade

Sítio e produção da cidade


O sítio urbano constitui um conceito clássico da
Geografia Urbana. Entende-se, na sua construção original, como
o receptáculo, o local onde se assenta a cidade. Por longo tempo,
estudamos, através deste conceito, os elementos naturais sobre o
qual uma cidade era produzida. Hoje, poderíamos dizer que este
conceito é pouco valorizado, entretanto, ele pode ser
resignificado e ser compreendido como o espaço fisicamente
produzido, as formas criadas - e ser interpretado através dos
processos envolvidos na produção da cidade.
As formas criadas a que nos referimos decorrem de
processos de ordem natural e econômico - sociais. Os processos
naturais são relativos à dinâmica da natureza modificada ou
intensificada, nas cidades, pela materialidade construída. A
dinâmica econômico-social é relativa aos processos que
possibilitam a origem de novas formas de interface com a
dinâmica da natureza, alterando-a.
A produção da cidade envolve, por sua vez, diferentes
agentes: o setor público, o setor privado, em especial, os agentes
imobiliários e a população representada pelas diferentes classes
sociais - destacando-se os pobres e os excluídos como agentes de
apropriação e construção do espaço urbano, em grande parcela,
sem agenciamento público ou privado.
A produção do espaço urbano, portanto, não é
harmônica - é contraditória e resulta de demandas específicas em
conflito. Essas demandas, de forma generalizada podem ser
indicadas como: o setor público, a quem cabe o planejamento da
cidade sob os aspectos de infraestrutura e serviços, entre outros.
Os agentes imobiliários, a quem cabe a produção dos espaços de

48
Um antigo (e ainda atual) debate: a divisão e a unidade da Geografia

moradia (aos segmentos com poder aquisitivo alto e médio, e os


realizam de acordo com suas demandas), comércio, produção
industrial, cultural, etc., no âmbito da apropriação e acumulação
de capital. A população pobre, de baixa renda e de excluídos, a
quem cabe produzir o espaço de moradia, por iniciativa própria e
de acordo com suas condições.
Estas demandas e conflitos geram espaços de produção
urbana diferenciados e recriam o sítio com a produção da cidade.
Os exemplos, expressos na literatura e em particular nos estudos
geográficos, são muitos. Apenas para citar alguns, lembramos: a
construção de aterros, a construção de túneis, os desvios de
arroios e/ou rios, a canalização/retilinização de arroios e rios, as
modificações em orlas lacustres ou marinhas, o “engordamento”
de praias, o aplainamento de áreas de dunas, entre outras.
Neste caso, são formas criadas a partir da relação entre
poder público e setor privado e estão associadas a interesses
relativos à melhoria da infraestrutura urbana e/ou produção de
espaços de residência, consumo e circulação, entre outros, para
classes altas e médias. Ao mesmo tempo em que esses espaços se
produzem também ocorrem ocupações “irregulares”,
geralmente, em áreas de planície de inundação e/ou áreas de
morros, as chamadas áreas de risco.
Disto resulta um novo sítio urbano, constituído de
túneis, expansão de áreas planas por aterramento ou
aplainamento, mudança na forma dos canais fluviais,
soterramentos de cabeceiras fluviais, constituição de novas
formas de relevo, como os morros (morrotes) derivados da
acumulação de lixo (a exemplo do Aterro da Zona Norte/ Porto
Alegre, feição geomorfológica elevada, construída no interior da
planície do rio Gravataí).

49
(Re)Ligar a Geografia: Natureza e Sociedade

Hoje, estas formas vêm sendo denominadas de


tecnogênicas. São formas e/ou depósitos resultantes da interação
da dinâmica da natureza com a dinâmica social. Estas formas,
ainda são pouco estudadas no campo das Geociências. Mas, cada
vez mais, são observáveis e cada vez mais exercem rugosidades na
produção do espaço. Constituem, ao que se referiu Santos (1997),
como próteses ou artificialidades.
Associados a estas formas e as alterações daí decorrentes
aos processos naturais, temos impactos ambientais significativos
como: ilhas de calor, diminuição da insolação nas residências,
poluição do ar, revestimento/impermeabilização de superfícies
(asfaltamento) e, em consequência, alagamentos e/ou, sob outras
intervenções, os desmoronamentos, deslizamentos ou quedas de
blocos e etc.
Esta realidade exige estudos, compreensão/explicação e
gestão. Portanto, cabe fazer referência ao significado de gestão.
Gestão pode ser entendida como uma dimensão do planejamento,
que deriva da desconstrução da ideia de planejamento
centralizado, onde a estrutura de poder se estrutura de forma
mais ampliada (relações de poder). Nesse contexto, a gestão se
utiliza de estratégias técnico-científicas. Trata-se de novas formas
de promover a organização do território. Estas, poderão se
constituir em formas de planejamento democrático ou poderão
ser a expressão das políticas de continuidade do poder instituído.
Por desconstrução do planejamento centralizado, entende-
se a busca de uma forma de planejar ampliada, e mais
representativa, em relação aos diferentes agentes sociais, que
poderá atingir um consenso em termos políticos, a partir de uma
construção mais alargada das relações de poder.
Essa forma de gestão demanda conhecimento prévio do
problema, sustentado em diagnósticos técnico-científicos. Diz
50
Um antigo (e ainda atual) debate: a divisão e a unidade da Geografia

respeito à valorização do conhecimento técnico- científico como


mediador das políticas de ordenação territorial. Aqui, tem-se a
possibilidade do trabalho do profissional da Geografia, a exemplo
de suas atuações nos EIAs/RIMAS, Diagnósticos Ambientais,
Pareceres Ambientais e Laudos Periciais Ambientais. Estes
instrumentos constituem, hoje, fundamentos da gestão territorial,
posto que constituem documentos com vistas a subsidiar,
tecnicamente, à discussão política.
Propõe tomada de decisão partilhada entre os diferentes
segmentos sociais participantes dos comitês de gestão e/ou
orçamentos participativos.
Implica em considerar os impactos ambientais e suas
conseqüências à população envolvida. Indica a necessidade de
permitir o acesso, por exemplo, à cidade, à propriedade, à
infraestrutura, aos serviços, à qualidade ambiental e ao bem-estar
social, considerando as demandas das populações envolvidas.
Este caminho, o da participação, é o mais controvertido e
na maioria dos casos, não temos necessariamente a população
envolvida nas diferentes fases de implantação de um
empreendimento. Os instrumentos técnicos são, na grande
maioria das vezes, os balizadores, por exemplo, de remoção de
pessoas de uma para outra área, das desapropriações de terrenos,
das revitalizações e etc.
O exemplo das transformações do sítio não quer dizer que
o único caminho de entendimento da cidade, na busca de
articulação, seja este. Este exemplo, diz respeito ao campo
ambiental e expressa uma das formas em que fica evidente a
busca de articulação de diferentes constituintes do espaço
geográfico. Este é também um indicativo da demanda
contemporânea em pesquisa, daí acreditarmos na necessidade de
(re) ligação da Geografia.
51
(Re)Ligar a Geografia: Natureza e Sociedade

Ao atentarmos para nossas práticas veremos que grande parte do


conhecimento da natureza feita hoje se articula com a dinâmica social
na busca da explicação dos impactos ambientais. Refletindo sobre
nossa atividade, tenho compreendido e neste sentido acompanho as
idéias de Milton Santos. Em meu entendimento, sob qualquer
perspectiva, hoje, tratamos de natureza artificializada. Sob qualquer
perspectiva, desde os diagnósticos, passando pelos monitoramentos e
indicação de medidas mitigadoras, quando das análises ambientais
estamos trabalhando a partir de uma artificialização. Esta é
expressão do nosso tempo. Resulta, portanto, necessário assumirmos
esta discussão (SUERTEGARAY, 2005, p.15/16).

Por que é necessário unir?


Tentando responder esta pergunta resgata-se algumas
reflexões para o conjunto da construção do conhecimento,
portanto, é necessário unir porque vivemos um momento
histórico:
- em que o Modo de Produção Capitalista e, por extensão,
a cultura ocidental, ao separar o homem/sociedade da natureza e
buscar purificar os objetos científicos contribuiu para a
verticalização do conhecimento mas, ao mesmo tempo,
promoveu a cegueira no âmbito das conexões;
- em que o descolamento da concepção de tempo em
relação ao espaço promoveu a subordinação da natureza à lógica
da reprodução do capital, além da crença no desenvolvimento
técnico – científico como possibilidade de recriação da natureza.
- em que a reinvenção técnica da natureza, que se
manifesta nas sucessivas próteses construídas pelo mundo, os
chamados objetos artificiais (a exemplo dos sítios urbanos) ou a
segunda natureza que, apresentando-se sob as mais variadas
escalas, indicam a necessidade de discussão sobre a relação
natureza–sociedade, ou melhor dizendo, sobre a produção social
da “natureza”.

52
Um antigo (e ainda atual) debate: a divisão e a unidade da Geografia

E ainda, considerando-se que a separação entre homem e


natureza constitui fundamento filosófico da filosofia judaico-
cristã, que sustenta o pensar e o agir do mundo ocidental, não
constitui esta a única forma de reflexão e ação do homem em
seu viver com a natureza. Esta evidência vem sendo resignificada
sob a perspectiva de valorização das diferenças culturais,
aceitando-se um pensar que relacione natureza e cultura.
No contexto atual, este debate diz respeito à
epistemologia científica. Inúmeros são os intelectuais e cientistas
que indicam a necessidade dessa conjunção. A Geografia, pela
sua história e construção, deve estar presente nesse debate. Mas
não só ao debate lhe cabe uma parcela. Sua tarefa maior é, sem
dúvida, reunir seus fragmentos e construir-se unitária -
objetivando desvendar as articulações não reveladas entre a
natureza e a sociedade.

O caminho da unificação
A reunião dos fragmentos, do ponto de vista científico,
vem sendo proposta em termos operacionais através de
conceitos como interdisciplinaridade e transdisciplinaridade. A
experiência interdisciplinar é algo complexo de realizar e,
internamente, na Geografia, não é diferente. A
transdisciplinaridade, em meu entendimento, seria um caminho
possível, desde que entendida de forma diferente da forma
concebida mais normalmente, ou seja, como transcendência.
A transdisciplinaridade a que me refiro significa mais do
que o horizonte para além das disciplinas ou a construção do
objeto único ou os múltiplos olhares sobre um mesmo objeto. A
transdisciplinaridade que acredito ser possível trilhar, na

53
(Re)Ligar a Geografia: Natureza e Sociedade

perspectiva de busca de articulação, é por mim entendida como


capacidade de trânsito, como possibilidade de cada um colocar-se
no lugar do outro, na busca da compreensão ampliada de sua
disciplina. Neste sentido, a capacidade de transitar pelos
diferentes campos é algo a ser buscado. É condição para a
construção do diálogo entre disciplinas e, mais particularmente,
entre os fragmentos geográficos.
Costumo dizer que ao investigador, nesse momento
histórico, lhe cabe uma posição diferente daquela da
modernidade, qual seja o centro de seu campo específico. As
exigências de nosso mundo demandam uma posição diferente,
ou seja, mais próxima da fronteira, posto que é na fronteira do
conhecimento que os fenômenos se tornam híbridos.
Sob uma perspectiva conceitual, internamente à
Geografia, como o exemplo dado pelo conceito de sítio urbano,
temos capacitação para realizar algumas conexões, promover a
análise complexa, enquanto uma tessitura de constituintes
naturais e humanos.
Entretanto, não nos libertamos, embora a busca de
articulação, da filosofia norteadora de nossa cultura, aquela que
pensa a natureza como externalidade. O fato de buscarmos a
articulação não nos isenta de, ao propor restaurações,
reconstituições e/ou recuperações almejarmos o domínio da
natureza. Esta é, portanto, em nosso entendimento, a questão
central, como já afirmou Leff (2001), a crise ambiental e uma
crise do pensamento. Ele propõe recriar um saber ambiental que
responda pelas necessidades atuais. Não é por outra razão que os
geógrafos devem ser estimulados à reflexão.

54
Um antigo (e ainda atual) debate: a divisão e a unidade da Geografia

O saber ambiental, no âmbito geográfico, nos permite,


sob uma determinada perspectiva, promover as conexões. A
experiência de construção ambiental tem demonstrado a
possibilidade de pensarmos o espaço geográfico através do
conceito de ambiente. Este constitui um conceito capaz de
desvendar articulações, mas não é o único, dado que o espaço
geográfico pode se manifestar pela ótica de outros conceitos,
como paisagem, região, território, lugar entre outros.
Pensar o ambiente em Geografia é considerar a relação
natureza/sociedade, uma conjunção complexa e conflituosa, que
resulta do longo processo de socialização da natureza pelo homem.
Processo este que, ao mesmo tempo em que transforma a natureza,
transforma, também, a natureza humana. Ou seja, pensar o
ambiente na Geografia e pensá-lo enquanto um processo de
complexas mediações com significativas implicações na vida das
pessoas em relação a suas condições fundamentais de existência
(SUERTEGARAY, 2006, p.97).

Pensar o ambiente hoje é ir além do domínio técnico de


intervenção, para sem negá-lo, repensá-lo no âmbito de novas
lógicas que se estruturam e dão suporte a uma visão de resgate
do entendimento de espaço geográfico, na sua unidade e nas suas
diferentes variantes conceituais, na sua multiplicidade.

Referências
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metodológico. Cadernos de Ciências da Terra, São Paulo, IG/USP, nº
13, 1972.

BERTRAND, G. Construire la geographie physique. Hérodote.


Écologies/ Gégraphie.Paris, france. 3º trimestre de 1982,91/116.

DESCARTES, R. Discurso Sobre o Método. São Paulo: Hermus


Editora Ltda, s/ data. p.136

55
(Re)Ligar a Geografia: Natureza e Sociedade

DOLLFUS, O. L´´ecologie est morte, vive Lécologie. Hérodote.


Écologies/ Gégraphie.Paris, france. 3º trimestre de 1982, nº 26.p.23/39

LATOUR, B. Jamais Fomos Modernos. Rio de janeiro: Editora


34, 1994. p.149

LEFF, H. Epistemologia Ambiental. São Paulo: Cortez Editora,


2001. p.240

MONTEIRO, C. A. F. Geossistemas a história de uma procura.


São Paulo: Editora Contexto, 2000. p.127

SANTOS, M. A Natureza do Espaço. Técnica e Tempo. Razão


e Emoção. 2º Edição. São Paulo: Editora Hucitec, l996. p.308

SOTCHAVA, V.B. O Estudo de Geossistemas. Métodos em


Questão nº 16. São Paulo Instituto de Geografia, USP, 1977.p.51.

SUERTEGARAY, D. M. Questão ambiental: produção e


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TROLL, C. El paisage geográfico y su investigación. In:


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Editorial, 1982.

ZIMMERER, K. S. Human Geography and the “New Ecology”:


the prospect and promise of integration. Annals of Association of
American Geographer, vol. 84, n° 1, march of 1984.

56
G e og r a f i a , G e og r a f i a F í s i c a e / o u
G e o m o r f o l og i a ? *

Introdução
O presente texto apresenta um conjunto de dez
afirmações. Estas visam sintetizar a reflexão que faço, desde
alguns anos, sobre a temática da natureza no âmbito da
Geografia. O texto está constituído de uma argumentação
baseada em fragmentos de outros textos já escritos. Aqui, foi
feita uma sistematização dessas ideias objetivando uma
exposição, quem sabe, mais didática das proposições então
enunciadas sobre o tema. Centra-se a discussão no âmbito da

*SUERTEGARAY, D. M. A. Geografia Física e Geomorfologia:


temas para debate. Revista da ANPEGE, v. 5, p. 22-35, 2009
57
(Re)Ligar a Geografia: Natureza e Sociedade

Geomorfologia e da Geografia Física, embora a tese que permeia


o conjunto das afirmativas, aqui expostas, remeta a uma
argumentação a favor da unidade analítica na Geografia.

Temas para debate


1. Há, na constituição da Geografia Física, uma
ênfase no método e uma deficiência em teorias explicativas
da natureza conjuntamente.
Ao longo da construção da Geografia, muitos geógrafos
se dispuseram a teorizar sobre a natureza da Geografia Física.
Em seus trabalhos pode ser observada uma concepção, por
vezes, não explícita da concepção de natureza. Retomamos como
argumento desta tese o que já foi exposto no primeiro capítulo
deste livro, quando fiz referência à origem da Geografia Física.
Recordamos na apresentação da clássica obra de De Martonne
(1968) que, como todas as ciências, a Geografia - e nela a
Geografia Física - assume dimensões enciclopédicas e isto obriga
a especialização exagerada que pode esconder a essência da
Geografia.
O que se expressa nessa obra, constituída de dois Tomos
– I. “Clima e Hidrografia” e II. “O relevo do solo” - é uma
exposição dos conteúdos, conceitos e metodologias de análise de
diferentes elementos componentes da natureza. Ainda na
introdução, é dito que a obra contém conteúdos e metodologias
que não são objetos próprios de sua investigação (do autor), mas
que revelam uma visão de conjunto da moderna Geografia Física,
de suas diferentes vias de investigação, além dos métodos
próprios de cada um dos ramos da Geografia Física.

58
Geografia, Geografia Física e / ou Geomorfologia?

Tanto na apresentação da obra quanto no prefácio, o


autor releva a tendência da época, ou seja, a especialização, que
se amplia desde as primeiras décadas do século XX, ou seja, uma
fragmentação da clássica Geografia Física.
Retoma-se, também o texto clássico Precis de Géographie
Physique Génerale de Birot (1959, p.1). Este autor assim define a
Geografia Física: A geografia física é o estudo da epiderme de um ser
único: a Terra. Embora concebendo como o estudo da epiderme
da terra, propõe que esta seja estudada a partir do conceito de
paisagem natural, tal como aparece ao observador percorrendo o
globo, anteriormente a toda a intervenção humana. O livro de
Birot (1959) revela uma proposta mais conjuntiva; sua estrutura
inicia tratando de clima, seguido das paisagens. Em um primeiro
momento revela o conteúdo dos diferentes elementos que a
constituem e na seqüência as classifica e as analisa sob a lógica
do Sistema de Erosão as Grandes Zonas Climáticas.
Expressa esse autor uma tendência diferenciada da De
Martonne (1968), embasado numa escola que busca as conexões
da Geografia Física utilizando o conceito de paisagem. Esta
tendência constituiu escola no âmbito da Geomorfologia
francesa e brasileira, sendo considerada Geografia Física na
medida em que o relevo e, por consequência, a Geomorfologia é
um ramo da Geografia.
Um terceiro clássico Thornbury (1960), também já
comentado anteriormente (primeiro capítulo) ao se referir ao
campo da Geomorfologia, coloca a questão de outra forma.
Defende a ideia que a Geomorfologia é, sobretudo, Geologia,
embora se ensine Geomorfologia tanto na Europa como nos
Estados Unidos da América - como parte da Geografia Física, a
concepção e o vínculo são diferenciados. Na continuidade de seu
texto, ao se referir as tendências da Geomorfologia, considera
59
(Re)Ligar a Geografia: Natureza e Sociedade

que pelo menos nos EUA a tendência é que esta seja mais
geológica do que geográfica. Seu argumento centrava-se, na
época, nos usos de técnicas mais próximas da Geologia, no
menor interesse pela Geomorfologia, por parte dos geógrafos,
no reconhecimento crescente da aplicação prática dessa temática
por engenheiros, hidrólogos e pedólogos, além do avanço das
análises quantitativas. Sobre este particular, o autor tece
considerações sugerindo ponderação no uso da matemática.
Dos três exemplos, é na obra de Birot (1959) que se
esboça uma perspectiva teórica centrada na análise, com base no
conceito de paisagem natural - de forma conjuntiva a partir da
constituição do conceito de Sistema de Erosão. Conceito, este,
presente na obra de Cholley (1950) desde a metade do século
XX. Trata-se, na história da Geomorfologia, de uma teoria
geomorfológica que para alguns analistas vincula-se à Geografia
Física, na medida em que esta é entendida como subcampo da
Geografia Física.
Nas outras duas obras temos a expressão da
compartimentação da natureza, em De Martonne (1968) sob o
rótulo de Geografia Física e a dissociação da Geomorfologia da
Geografia Física na construção de Thornbury (1960).
Estes exemplos expressam a dificuldade que se tem hoje
de visualizar uma Geografia Física solidamente construída, sob o
ponto de vista teórico e de construção de uma teoria, que
responda pela interpretação conjuntiva da natureza.
A exceção de Birot (1959) - que interpreta a epiderme da
Terra através do conceito de paisagens e sistemas de erosão,
concepção essa mais difundida enquanto análise geomorfológica
- os outros dois exemplos defendem a especialização e a
compartimentação da natureza.

60
Geografia, Geografia Física e / ou Geomorfologia?

Pergunta-se, então, que teorias forjadas no âmbito da


Geografia Física dão conta da explicação da gênese e da
dinâmica da epiderme da Terra em seu conjunto na atualidade.
Em várias ocasiões, quando em debate, alguns exemplos eram
sugeridos, tais como: a Hipótese Gaia, a Tectônica de Placas,
entre outras. A resposta remete a seguinte reflexão: essas teorias
surgiram em campos específicos, Biologia e Geologia.
Dialogamos com elas, certamente, mas não a construímos.
Registra-se, também, a teoria dos Refúgios, que nasce no âmbito
da Biologia e que se amplia com a colaboração de Ab’Ssaber
(2007), pouco difundida entre os Geógrafos Físicos. Para
Ab’Saber sua contribuição a essa teoria se individualiza no que
denominou teoria dos Redutos cuja ênfase foram os estudos da
paisagem, através de indicadores como linhas de pedra
correlacionados, com indicadores de solo e vegetação
promovendo enclaves paisagísticos, redutos.
Mais do que construções explicativas, a Geografia Física
centra-se na busca de novos métodos, procedimentos e temas de
qualquer sorte, em seus campos específicos.

2. Há uma distinção entre o que seja o objeto da


Geomorfologia e suas referências conceituais e teóricas em
relação ao que se entende por Geografia Física.
Alguns elementos considerados como constituintes da
natureza, como o relevo, são estudados pela Geomorfologia e
tem um corpo referencial específico, são exemplos: a teoria do
Ciclo de Erosão, de Pedimentação e Pediplanação, a Teoria do
Equilíbrio Dinâmico, entre outras. Estas teorias
buscavam/buscam a explicação do relevo e tratam de uma fração
da natureza. No caso, visam explicar a gênese e/ou a dinâmica

61
(Re)Ligar a Geografia: Natureza e Sociedade

do relevo, mas não da natureza em seu conjunto. Esta


fragmentação é resultado da compartimentação científica da
modernidade, e, nesta, do paradoxo geográfico, ciência da
unidade (entre natureza e sociedade) ou ciência da fragmentação
da natureza (em Geomorfologia, Climatologia, Hidrologia ou
Biogeografia).
É possível fazer uma distinção, por exemplo, entre
Geomorfologia (como um campo do conhecimento) e Geografia
(como outro campo). Para alguns, a Geomorfologia é uma
subárea da Geografia. Penso que interessa à Geografia o estudo
do relevo e para tanto, para fazer Geografia necessita-se do
conhecimento da Geomorfologia; assim como se necessita do
conhecimento de um conjunto de ciências humanas, e não
dizemos serem estas, Geografia Humana. (SUERTEGARAY,
2007).
Dentre os autores que buscamos como exemplo, em
particular De Martonne, concebia a Geografia Física como uma
divisão, especialização da Geografia. Já Thornbury defendia a
ideia de que Geomorfologia é, sobretudo, derivada da Geologia.

3. Há uma perspectiva metodológica que tende a


propor uma análise integrada dos elementos físicos, como
Geografia Física em separado da sociedade. Há também
uma tendência de articulação dos estudos da natureza e da
sociedade.
Muitos geógrafos viram no método sistêmico uma das
possibilidades de entender a natureza de forma integrada e
atribuíram à natureza uma dimensão sistêmica. Para estes, a
natureza é sistêmica. Enquanto o argumento, aqui adotado, é de
que a natureza não é sistêmica, ela pode ser analisada

62
Geografia, Geografia Física e / ou Geomorfologia?

sistemicamente. O sistemismo não é uma teoria interpretativa da


natureza, constitui um caminho analítico – um método.
Monteiro (2000) em seu livro onde faz referência ao
sistêmico, fala em história de uma procura. Deixa evidente que,
ao longo de sua produção em Geografia, procurou um método,
estudou e construiu suas análises sob um caminho (o método
sistêmico). Diferentemente da análise sistêmica funcionalista
(tradicional) incorpora o tempo e seus ritmos na análise. Sua
teoria do Clima Urbano sustenta-se na análise sistêmica. Tantas
outras teorias se fundamentam na análise sistêmica.
O sistemismo, no âmbito da Geografia, não fugiu a
compartimentação. As controvérsias em relação ao conceito de
Geossistema, ora compreendido como sistema natural
(SOTCHAVA 1977, CHRISTOFOLLETI 1995) ora concebido
como sistema integrativo da natureza com a sociedade
(BERTRAND 1968, MONTEIRO 2000) bem demonstram essas
divergências.

4. Há que se distinguir Geografia Física de natureza,


embora conceba-se que a Geografia Física não se sustente
teoricamente; considera-se relevantes os estudos sobre a
natureza em Geografia.
Natureza é um conceito muito próximo da Geografia,
embora pouco discutido. A Geografia, por longa data e até o
presente, não se preocupou muito em entender o significado
dado à natureza em suas análises. Consideraram-na, como de
resto em outros campos do conhecimento, como algo dado,
objetivo e externo.
Mais recentemente, esta discussão chega à Geografia e

63
(Re)Ligar a Geografia: Natureza e Sociedade

somos levados a pensar sobre nossas construções. Esta discussão


encontra-se em debate, amplamente, no âmbito da Epistemologia
da Ciência. Em particular, entre aqueles que - sob diferentes
perspectivas - encaminham a discussão da forma como se
construiu o saber científico na Modernidade.
Nesse sentido, a compreensão fragmentada da realidade
que caracterizou a Modernidade, apresentada em Latour (1994,
p.43) como purificação do conhecimento, favoreceu a separação
total dos humanos e dos não – humanos e, por simultaneamente anular esta
separação, a Constituição tornou os modernos invencíveis. É esta
invencibilidade, segundo o autor, que permitiu que os modernos
introduzissem milhares de objetos naturais no corpo social, dotando-o da
solidez das coisas naturais.
É fruto da constituição da Modernidade a ideia de
natureza enquanto externalidade ao humano; é este o sentido
cultural, político e econômico dado à natureza nesta construção.
Portanto, a leitura de nossa base filosófica - científica se inscreve
na necessidade atual de decifrar um mundo extremamente
complexo, onde sob muitos aspectos a natureza não é natural.
(SUERTEGARAY, 2006).

5. Há necessidade de repensar o conceito de natureza


adotado pela Geografia e avaliar sua pertinência em relação
aos problemas e/ou aos objetos atuais.
Milton Santos (1997) qualifica a natureza denominando-a de
natureza artificial ou tecnificada ou, ainda, natureza instrumental. Isto
porque a técnica no seu estágio atual permite a intervenção, não só nas
formas, como nos processos naturais (SUERTEGARAY, 2005).

64
Geografia, Geografia Física e / ou Geomorfologia?

Para Latour,1994 p.38, “natureza e sociedade não são dois polos


distintos, mas antes uma mesma produção de sociedades – naturezas, de
coletivos".
Há um tempo não nos permitíamos imaginar uma
intervenção no ciclo cicardiano de maneira generalizada como hoje
observamos, seja entre os homens, onde a necessidade do relógio na vida
diária constitui um exemplo expressivo, seja entre os animais e vegetais
através da aceleração nos processos de produção e reprodução destes para o
consumo humano. (SUERTEGARAY, 2005).
Como também, não nos permitíamos observar e pensar
sobre o significado dos clones e/ou transgênicos ou mesmo, o
efeito estufa, a rarefação da camada de ozônio, a contaminação
das águas, a formação de depósitos e feições tecnogênicas. Da
mesma forma, não nos chamaria atenção a transformação do
corpo (que seria no contexto da filosofia judaico-cristã o natural
no homem) em figuras construídas a base de próteses e
intervenções cirúrgicas para celebrar a beleza e a longevidade.
Esses e tantos outros exemplos nos permitem hoje, dados
sua objetivação, pensar e, para muitos, afirmar que a natureza
não é mais natural. Não temos ainda conceitos que expressem ou
deem significado às mudanças. Por isso, qualificamos a natureza
denominando-a de artificial, cibernética, com Milton Santos ou
como transmutação/ transfiguração (termos de minha
preferência).
“O termo transfiguração, aqui adotado, é entendido
conforme apresenta Maffesoli (1995) transfiguração é a passagem de
uma figura para a outra. Além disso, ela é de uma certa maneira, mesmo
que mínima, próxima da possessão. Assim, uma natureza possuída
pelo homem transfigura-se, adquire uma outra dimensão
(SUERTEGARAY, 2000). Cabe registrar que o uso do termo

65
(Re)Ligar a Geografia: Natureza e Sociedade

transfiguração já tinha sido adotado por RECLUS, para se referir


a dominação da natureza pelo homem, na sua obra L' homme et la
Terre comentada por Béatrice Giblin. (1998).
A construção do conceito de natureza tem, portanto, uma
dimensão que se expressa pelo poder. Há um tempo, o poder de
separá-la e dividi-la - para apropriar-se. Na atualidade, o poder de
uni-la e subordiná-la na constituição de novas formas/objetos.
Este poder não é absoluto, dirão alguns. Sim, não é absoluto, mas
o que desejo expressar é o sentido dado à natureza em nossa
sociedade/cultura; trata-se de algo a ser subjugado, transfigurado.
Este processo resulta em questões de ordem ambiental, embora
não somente.

6. Considera-se que cada vez mais vivemos processos


de subordinação e criação da natureza, através da
densificação técnica da natureza (monitoramentos, medidas
mitigadoras...)
A natureza transfigurada, ao qual foi feito referência
anteriormente, nos remete a reflexão sobre a densificação técnica
da natureza como possibilidade de exploração e/ou de
reconstituição. São, sob essa perspectiva, que os estudos da
natureza (vinculados, em parte, a questão ambiental) se
desenrolam. Ou seja, as pesquisas e o reconhecimento da
natureza
...estão cada vez mais carregados de objetivos, intenções técnicas que
promovem uma densificação (técnica) da natureza. O que quero dizer
é que os estudos da natureza, por conta da sua degeneração, por conta
da necessidade de generação, estão analiticamente associados aos
estudos vinculados à funcionalidade, ao sistemismo, com vistas ao
reconhecimento, cada vez mais preciso das derivações naturais, dos
impactos. Estes estudos são objetivados, na linguagem ambiental,
através dos diagnósticos, dos monitoramentos e das medidas

66
Geografia, Geografia Física e / ou Geomorfologia?

mitigadoras. Devemos ter presente que monitoramento pressupõe


controle e medidas mitigadoras, soluções técnicas de restauração da
natureza, portanto, natureza tecnificada, natureza artificializada na
expressão de Milton Santos (1997) (SUERTEGARAY, 2006,
p.96).

Esta intensificação de uso na contemporaneidade expressa


a concepção que nos foi dada de natureza, algo externo a nós e,
ao mesmo tempo, subordinada as nossas ações.
“A intensificação do uso da natureza promove sua
subordinação, num duplo sentido, de um lado a subordinação que degrada
e aniquila, de outro a subordinação que recria e reinventa a natureza. Em
ambos os casos, o híbrido se manifesta como objeto densamente tecnificado -
no contexto produtivo e cultural da sociedade, no presente
(SUERTEGARAY, 2005, p.96).

7. Considera-se que essas mudanças na relação do


homem com a natureza derivam de suas práticas sociais,
nesse sentido cabe avaliar objetivamente o que ocorre ao
largo do mundo e refletir sobre as construções conceituais
que temos no presente e, se estas respondem pelas
necessidades atuais.
As transformações objetivas no mundo promovem
mudanças de significado, de sentido, nas visões de mundo
(cosmovisões). Transformam-se a sociedade e, consequentemente
a ciência. Daí vivenciarmos hoje uma mudança significativa de
rumos nos estudos da natureza (Geografia Física) e, nela, os da
Geomorfologia.
Visualizam-se algumas tendências:
a. No campo da Geografia Física: busca de visão
conjuntiva elaborada através de uma proposta sistêmica,
desenvolvida desde os anos 1960 do século XX, através da

67
(Re)Ligar a Geografia: Natureza e Sociedade

difusão do conceito de Geossistema. Observa-se que a visão


integrada já se fazia presente na Geomorfologia, com o uso do
conceito de Paisagem em Passarge (1926/Mendoça et al 1982) ou
em Cholley (1950) e Birot (1959) com a proposta analítica
concebida como sistemas de erosão, entre outros.
b. A substituição dos conceitos de domínio natural ou
morfo-climáticos, paisagens naturais, regiões naturais - utilizadas
como referências clássicas no recorte da natureza - para a
utilização de bacias hidrográficas concebida como a expressão
espacial, que permite a integração dos elementos físicos.
c. A descrição fragmentada dos elementos constituintes
da natureza e a busca de integração feita através do uso de novas
tecnologias (SIG), superposições e/ou cruzamentos.
d. A centralização dos trabalhos na elaboração de
diagnósticos com vistas às demandas da gestão ambiental.
Por consequência, os temas mais comuns são as análises
de risco, os zoneamentos ambientais, as análises de
potencialidades, susceptibilidades e vulnerabilidades ambientais.
Diante deste enfoque, uma mudança analítica significativa
se expressa na análise geomorfológica. Trata-se da substituição
das análises objetivando a explicação morfogenética da paisagem
ou do relevo, pela explicação morfodinâmica, ou seja, pela análise
da funcionalidade dos processos; ou seja, no estudo dos
processos de transformação das formas em tempos curtos.
Dados levantados relativos à Pós-Graduação em
Geografia Suertegaray (2003-05) indicaram uma tendência
analítica no que se refere aos estudos da Natureza. Observou-se,
enquanto tendência que: os temas abordados no conjunto da
produção brasileira, no contexto ambiental, estão associados a
estudos de impactos ambientais, diagnósticos, zoneamentos,
68
Geografia, Geografia Física e / ou Geomorfologia?

monitoramentos, além dos estudos de risco ambiental. Em geral,


esses estudos estão direcionados ao espaço urbano, as bacias
hidrográficas, parques e reservas nacionais.
Nessa pesquisa, os estudos de Geografia Física (ou da
natureza) foram agrupados, de acordo com o volume da
produção, em três grupos. O primeiro grupo diz respeito a temas
como a morfodinâmica, movimentos de massa e processos
erosivos, solos, redes e canais, meio físico, compartimentação e
morfogênese do relevo e dinâmica do clima.
Um segundo grupo diz respeito aos estudos relativos às
formas costeiras, à fauna e à flora e à dinâmica de sedimentos e
perda de solo por erosão. O terceiro grupo está representado
pelos estudos do relevo cársico, a geoecologia e ao
aproveitamento energético (SUERTEGARAY, 2005).
Esta análise permitiu observar um deslocamento da
análise da natureza para o ambiental. Este deslocamento é uma
expressão das necessidades atuais; já não interessa tanto produzir
conhecimento sobre fatos na perspectiva da explicação de suas
origens. A sociedade atual está mais preocupada em saber como
funcionam do que responder por que funcionam dessa maneira.
A questão ambiental, como vem sendo demandada, é
disto um exemplo. Aqui o que é valorizado é o diagnóstico que
explica a funcionalidade do objeto em análise. O desejo é de
intervir nessa funcionalidade para usufruir como recurso ou
preservar...

8. Ocorre uma mudança na concepção de tempo na


abordagem geomorfológica. Sendo o tempo profundo ou o
tempo que flui substituído pelo tempo curto - o tempo que
faz.
69
(Re)Ligar a Geografia: Natureza e Sociedade

A consolidação da ideia de tempo profundo permitiu


definição dos limites do tempo geológico e do tempo
geomorfológico. O primeiro abrange a origem da Terra, segundo
sua gênese e constituição; o segundo, as formas existentes na
superfície, resultantes de processos endógenos e exógenos.
Desta forma, fica claro que o tempo geomorfológico se
insere em apenas uma parcela do tempo geológico: o
Quaternário. Enquanto para os geólogos, a compreensão da
evolução da história da Terra se dá num período de tempo mais
extenso, os geomorfólogos, por vezes, se restringem ao
Quaternário e aos eventos que marcaram a evolução do relevo
terrestre: as glaciações. Tradicionalmente, o estudo do
Quaternário não leva em consideração a atuação antrópica, não
obstante, o estudo da superfície da Terra registre a sua influência.
(BERTÊ, A. M. A. et al, 2000).
Com o intuito de compreender a magnitude da
interferência humana no planeta, surge na Geologia e na
Geomorfologia, concepções mais atuais que consideram o
homem como agente de transformação geológico-
geomorfológica.
A força antropogênica toma tais proporções que
extrapola as dimensões planetárias, atingindo, até mesmo, as
extra-planetárias. Desta forma, a atuação humana configura-se
como elemento diferencial introduzido na compreensão do
tempo geológico. A representação e sistematização da evolução
do planeta, constituída pela escala geológica, ganha à discussão
um novo período: o Quinário ou Tecnógeno. Mais
recentemente a discussão avança e já há uma proposição de
denominação do período de intervenção humana no planeta de
Antropoceno.

70
Geografia, Geografia Física e / ou Geomorfologia?

Este novo conceito, introduzido em 1922 por PAVLOV,


objetiva romper com o Quaternário clássico, no sentido de
valorizar o advento da atividade humana como processo de transformação
do planeta em sua totalidade (SUERTEGARAY, 1997). Esta ruptura
se faz, porque, conforme Rohde (1996), o Quaternário seria o
período do aparecimento do homem e o Quinário, o homem sobrepondo-se
ativamente em relação à natureza. Esta sobreposição se explica pelo
fato de que atividade humana passa a ser qualitativamente diferenciada
da atividade biológica na modelagem da Biosfera, desencadeando processos
(tecnogênicos) cujas intensidades superam em muito os processos naturais
(OLIVEIRA 1994 apud PELOGGIA, 1998).
Este período teve origem há 10.000 anos, no início do
Holoceno e testemunhou relevantes situações indicadoras do
advento da atividade técnica do homem como força relevante na
intervenção, apropriação e reconstrução da natureza: a
Revolução Neolítica, Revolução Agrícola e Revolução Industrial.
A partir de então, o homem passou a contribuir diretamente na
evolução geológica do planeta através da transformação deste.
Entre estas transformações têm-se, no âmbito da
Geomorfologia, as feições denominadas de depósitos
tecnogênicos (ROSSATO e SUERTEGARAY, 2000).
Embora essa discussão não esteja oficializada, há
continuidade na discussão. Fala-se, então, de uma nova época a
ser acrescentada na escala geológica. Recentemente, recebemos a
seguinte notícia:
“O impacto provocado pelo homem no planeta tem sido tão extenso
que teria iniciado uma nova época geológica, já chamada de Antropoceno. A
ideia, lançada em 2000 por um vencedor do Nobel, ganhou força neste ano
com a publicação de dois artigos científicos que pedem o reconhecimento da
mudança” (O Estado de São Paulo 7/02/2008).

71
(Re)Ligar a Geografia: Natureza e Sociedade

A concepção geomorfológica que privilegia o tempo


longo nos permitiu enfatizar os estudos relativos à morfogênese
do relevo. Na compreensão da morfogênese, os geomorfólogos
enfatizam a interpretação genética, ou seja, buscam compreender
a origem das formas, estudando com mais detalhe o tempo que
escoa (time), do que o tempo que faz (wheathering). Segundo Serres
(1991), o tempo que escoa consiste no tempo linear, sucessão
reconhecida pelo valor médio. Já o tempo que faz é o tempo da
probabilidade, dos ritmos, das oscilações. (SUERTEGARAY,
2000, 2002).
A perspectiva analítica, concebida filosoficamente como
a compreensão do tempo que escoa, vem sendo gradativamente
substituída pela Geomorfologia que se preocupa com tempo que
faz. O tempo que faz não é mais o tempo das regularidades, da
uniformidade dos processos. O tempo que faz é o tempo das
irregularidades, dos episódios catastróficos, dos eventos
esporádicos, dos ritmos e das variabilidades. É também um
tempo que introduz no que fazer da natureza a dimensão
antropogênica, não levada em conta quando nos detemos a
refletir na ótica do tempo que escoa. O tempo que faz é
percebido como um período curto, incapaz de gerar
transformações da ordem daquelas analisadas quando se trabalha
com a concepção de tempo profundo (SUERTEGARAY e
NUNES, 2001).

9. Há uma articulação do conhecimento da natureza


e da sociedade pelo viés da discussão ambiental, além de
uma visualização mais objetiva da aproximação da
Geografia Física e da Geomorfologia da análise social
através da ideia de gestão territorial.

72
Geografia, Geografia Física e / ou Geomorfologia?

Na medida em que o conceito de gestão indica a


necessidade de gerir o território, de forma um tanto mais
descentralizado, na medida em que propõe em algumas instâncias
a constituição de comitês representativos dos diferentes
segmentos sociais em que as decisões são mediadas pelo
conhecimento técnico, observa-se uma necessidade de ampliação
da visão ambiental. Trata-se agora de pensar o território e muito
das discussões atuais; no contexto ambiental tem defendido a
ideia de que as questões ambientais são, antes, questões
territoriais.
Se anteriormente a pesquisa geomorfológica regional
apresentava uma característica de cunho mais descritivo e
genético, pois precisava conhecer os grandes domínios
morfológicos (morfogênese), atualmente as pesquisas
geomorfológicas têm tido uma preocupação maior com as
questões ambientais de cunho local (morfodinâmica).
Todavia, em muitos casos, não existe nesses estudos uma
preocupação em discutir a forma de socialização do uso dos
recursos naturais que vêm sendo transformados e modificados
temporal e espacialmente. Esta reflexão leva-nos a pensar que os
diferentes tempos (histórico e geológico), com o acelerado
desenvolvimento científico, balizado pela intensificação de
capital tecnológico são suplantados no momento atual pela
sobreposição de vários tempos. Estes, ao se sobreporem, acabam
deixando marcas nas paisagens/territórios. Essas marcas na
leitura ambiental podem ser decifradas como densificação
técnica da natureza, transfiguração da natureza, natureza
artificializada, enfim, uma natureza socializada.
(SUERTEGARAY e NUNES, 2001).

73
(Re)Ligar a Geografia: Natureza e Sociedade

Decifrar e mesmo redimensionar essas marcas exigem o


reconhecimento de que muito dos problemas ambientais, como
nos ensina Alier (2007), são conflitos ecológicos distributivos ou,
na expressão geográfica, conflitos territoriais.

10. A tendência contemporânea de compreender os


fenômenos conjuntivamente favorece a Geografia e dificulta
a consolidação de uma construção teórica especificamente
no campo da nossa antiga Geografia Física.
Diante do exposto, considero que a sociedade
contemporânea - diante de suas necessidades - ultrapassou a
dimensão do conhecimento nas suas especializações/
purificações.
Isto nos faz pensar sobre o eixo central da discussão
proposta aqui. Observa-se, na construção aqui abordada, que a
Geografia é palco de um longo conflito. Este se revela ora nas
propostas de especialização ora nas propostas de conjunção.
Teoricamente a Geografia foi sempre conjuntiva. Para alguns
também o foi na prática científica, a exemplo de AB´Saber,
Manuel Correia de Andrade, Orlando Valverde, Milton Santos,
Carlos Augusto de Figueiredo Monteiro, no caso brasileiro, entre
outros.
Portanto, não vislumbro sustentação teórica para a
Geografia Física. Se permanecermos insistindo nela como estudo
da natureza (em seu conjunto ou em seus fragmentos) em
separado da sociedade, teremos respostas parciais para
problemas complexos. Se dialogarmos com outros campos, em
particular as humanidades, para desvendar questões relativas ao
uso e a transformação da natureza, não seremos mais puramente
naturais – seres geográficos é o que seremos.

74
Geografia, Geografia Física e / ou Geomorfologia?

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77
G e og r a f i a F í s i c a : c i ê n c i a b á s i c a , c i ê n c i a
aplicável?

Durante o SBGFA, realizado em Santa Maria (2008), uma


outra análise foi sugerida no contexto da reflexão sobre a
Geografia Física. Pelo que se evidenciou no Simpósio, o
subcampo Geografia Física estava consolidado e a questão em
debate consistia em refletir sobre Geografia Física - Ciência
Aplicada.
Como participante, sugeri uma discussão no campo da
Epistemologia da Geografia Física, sob três dimensões: na
primeira, apresenta-se uma análise comparativa entre dois
eventos - um relativo à América Latina e outro, ao Brasil. Trata-
se apenas de um exemplo - a intenção, neste momento, é de
indicar uma aproximação nas perspectivas de análise em
Geografia, em especial, entre a produção em âmbito do
79
(Re)Ligar a Geografia: Natureza e Sociedade

continente e no Brasil. Na segunda parte, analisa-se a produção


da Geografia brasileira com base em dados já difundidos
(SUERTEGARAY, 2005), em que é possível perceber a
tendência, pós-2000, dos produtos dos cursos de Pós-Graduação
no Brasil. Na terceira parte, o objetivo é discutir o significado de
ciência básica e aplicada, ou melhormente, aplicável,
considerando os exemplos já indicados e associando-os à
experiência de pesquisa sobre arenização no Sudoeste do Rio
Grande do Sul, tema de minha pesquisa.

Geografia Física: ciência básica / ciência


aplicada
Entende-se por ciência básica a construção científica que
se vincula à produção do conhecimento de maneira ampla.
Importa para a ciência básica analisar os fenômenos da realidade
e construir interpretações identificadas como teorias ou
explicações gerais. Vincula-se ao desejo de conhecer e
interpretar, no caso da Geografia Física, a natureza nas suas
diferentes configurações. Assim, considera-se que, sob esta
perspectiva, interessaria à Geografia Física:
• O estudo da natureza, na sua gênese, dinâmica e
transformação;
• A busca de explicações aos fenômenos em análise,
construção e contribuição à formulação de teorias sobre os
fenômenos estudados;
• A reflexão sobre o conhecimento produzido.
Em relação à Ciência Aplicada, entende-se como sendo a
conexão do conhecimento científico e a técnica, ou seja, o
conhecimento científico oferecendo suporte a uma projeção

80
Geografia Física: ciência básica, ciência aplicável?

técnica, em tempo mais rápido do que a absorção social de uma


ciência básica. É importante não desconhecer que toda a ciência
básica ou aplicada tem um sentido, a aplicabilidade social. No
que se denomina ciência aplicável, importa à Geografia Física:
• A resolução de problemas demandados pela dinâmica
social;
• Os diagnósticos e análises de áreas para intervenção;
• O encaminhamento de propostas de soluções aos
problemas.
Para uma análise destas duas perspectivas, trazemos
dados da produção da Geografia no âmbito de dois eventos: o 8º
EGAL (Encontro de Geógrafos da América Latina) e XII ENG
(Encontro Nacional de Geógrafos). Estes exemplos indicam uma
perspectiva científica que revelam tendências diferenciadas de
um passado recente.
A figura 1 apresenta os dados de produção em
“Geografia Física”? Utiliza-se aspas em “Geografia Física” neste
texto e uma interrogação no gráfico, pois considera-se que a
Geografia Física, de forma conjuntiva, não se evidencia,
comumente, nos trabalhos elaborados pelos geógrafos. Diante
disto, o que se observa é uma produção especializada em
diferentes campos, desde a Geomorfologia aos recursos hídricos
e uma significativa produção na temática ambiental.
A semelhança da produção nesses dois eventos é bem
evidente. Este deslocamento para a análise ambiental responde
por uma demanda social pós anos 1970 e se associam, em grande
parte, ao que aqui está sendo denominado de ciência aplicável.
Considera-se mais relevante utilizar o termo ciência aplicável e
não ciência aplicada, pois, no âmbito das demandas relativas aos

81
(Re)Ligar a Geografia: Natureza e Sociedade

trabalhos ambientais – associados, em grande escala, à gestão


territorial ou avaliação de locais para futuros empreendimentos -
a aplicação desse conhecimento é de cunho, seguramente, mais
político do que propriamente técnico-científico.

Fig. 1. Produção em “Geografia Física” no XII EGAL e 8º


ENG Brasil. Fonte: SUERTEGARAY, 2002.

Ao observar a figura 2, gráfico que apresenta a questão


ambiental abordada sob diferentes temas, é possível verificar que,
em ambos os eventos, a concentração de trabalhos sobre
impactos ambientais é expressiva. Seguem em importância os
diagnósticos ambientais e trabalhos com vínculo ao
planejamento. Destacam, esses trabalhos, seu vínculo com o que
denominamos ciência aplicável, demonstrando uma demanda
atual que desloca os estudos de “Geografia Física” do campo da
ciência básica para o campo aplicado. Do ponto de vista
epistemológico, quando deslocamos o olhar no sentido da
ciência aplicável, direcionamos nosso alhar para outras questões.

82
Geografia Física: ciência básica, ciência aplicável?

Fig. 2 Produção de Geografia por Temas, na Perspectiva


Ambiental XII EGAL e 8º ENG-Brasil.Fonte: SUERTEGARAY, 2002.

Diante disto, o que se observa são trabalhos que


promovem uma análise centrada na pergunta: como funcionam
os fenômenos? Ao responder esta questão, interessa apreender a
dinâmica funcional do objeto em análise. Redimensionar a
funcionalidade é o que se deseja, seja para restaurar ou explorar.
Neste contexto, a questão central elaborada pela ciência básica, o
porquê, fica secundarizada nas análises.

Fig. 3. “Geografia Física” no Brasil. Fonte: SUERTEGARAY,


2005. 83
(Re)Ligar a Geografia: Natureza e Sociedade

No Brasil, a partir dos dados levantados entre 2000 e


2003, evidencia-se uma concentração dos estudos de “Geografia
Física” nas duas universidades pioneiras na Pós-Graduação
brasileira, a Universidade de São Paulo (USP) e a Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), seguidas da Universidade
Federal de Uberlândia (UFU) e da Universidade Federal de Santa
Catarina (UFSC). A USP tem no programa de Pós-Graduação
em Geografia Física sua maior contribuição, o que efetivamente
deveria ocorrer, pois, trata-se do único curso com área de
concentração, especificamente, em Geografia Física.
Entretanto, se observarmos o gráfico da figura 4, é
possível verificar uma expansão da temática ambiental no âmbito
dos programas de Pós-Graduação em Geografia no Brasil. Esta
temática é significativa em universidades como a USP e a UFRJ,
mas também é relevante na produção do conjunto dos
programas de Pós-Graduação do país. Isto permite deduzir que
mais do que em “Geografia Física”, a produção recente se faz no
âmbito da questão ambiental.
Os dados apresentados permitem aceitar um
deslocamento, do campo da “Geografia Física” para a temática
ambiental. Questões ambientais, no nosso entendimento,
ultrapassam a dimensão clássica do que se concebe como
Geografia Física. Surge daí, no entendimento desta autora, a
necessidade de reflexão epistemológica no campo da Geografia
Física e algumas das questões seriam: a Geografia Física se
constitui um campo com especificidade própria? Os trabalhos
atualmente elaborados poderiam ser interpretados como estudos
ambientais em Geografia, portanto, ultrapassando a concepção
de Geografia Física? Neste contexto, caberia a discussão sobre o
conceito de natureza, ou mesmo, o conceito de ambiente
veiculados pela Geografia?

84
Geografia Física: ciência básica, ciência aplicável?

Fig. 4. Produção da Geografia Brasileira no contexto


ambiental. Fonte: SUERTEGARAY, 2005.

Cabe, na continuidade, indicar quais os temas


especificamente trabalhados na “Geografia Física”, através das
teses e dissertações do período analisado (2000-03). Os produtos
foram agrupados em três classes, sendo a primeira aquela em que
há uma maior concentração de trabalhos. Os trabalhos
levantados incluem-se nos seguintes temas:
• Morfodinâmica, movimentos de massa e processos
erosivos, solos, redes e canais, meio físico, compartimentação e
morfogênese do relevo e dinâmica do clima;
• Formas costeiras, dinâmica de sedimentos e perda de
solo por erosão/ Fauna e flora;
• Relevo cársico, geoecologia e aproveitamento
energético.
No âmbito da temática ambiental, os temas são
semelhantes aos já indicados como tendência nos eventos
analisados. Desta forma, agrupam-se em:

85
(Re)Ligar a Geografia: Natureza e Sociedade

• Estudos de impactos ambientais, diagnósticos,


zoneamentos e monitoramentos em bacias hidrográficas;
• Estudos de risco ambiental (esses estudos abordam em
geral o espaço urbano);
• Estudos de impactos em áreas de reservas nacionais
e/ou estaduais;
• Estudos de clima urbano e mudanças climáticas.
Aqui também se torna visível a derivação da análise dos
estudos básicos para os estudos aplicáveis. Nestes, os mais
expressivos dizem respeito aos impactos ambientais,
diagnósticos, zoneamentos e monitoramentos. Estes são feitos
dominantemente, em unidades de análise, como bacias
hidrográficas. A bacia hidrográfica - como unidade de
planejamento territorial-ambiental - indica, sobremaneira, o
sentido do que se deseja expressar como conhecimento aplicável.
Os estudos relativos aos zoneamentos ambientais em
bacias hidrográficas são exemplos articulados com a gestão
territorial, mediada pelo conhecimento técnico-científico. A
gestão territorial de uma bacia prevê, do ponto de vista da
regulação do Estado, a constituição de Comitês de Bacias (órgão
constituído por membros do estado, iniciativa privada/usuários e
sociedade civil organizada/ONGs - Organizações não
governamentais), Sindicatos e Movimentos Sociais) com vista ao
seu gerenciamento.
Em que pese à discussão possível de ser feita relativa à
forma como se constituem esses comitês, o que se deseja aqui é
indicar que esses estudos são passíveis de serem aplicados.
Entretanto, tudo depende das políticas e dos interesses
hegemônicos representados em diferentes escalas de poder
envolvidos, desde o local ao global.

86
Geografia Física: ciência básica, ciência aplicável?

Arenização no Sudoeste do Rio Grande do


Sul: conhecimento básico e aplicável
Nesta última parte deste texto o objetivo é explicitar, a
partir da prática vivenciada com a pesquisa sobre amenização, a
articulação ciência básica e aplicável. O tema dos areais (ou
dinâmica da arenização) constitui atividade de pesquisa que
realizo desde 1983. Ao longo destes 25 anos e, particularmente,
na fase inicial a questão básica que norteou a investigação foi:
Qual é a origem dos areais (Figura 5)?
Desde a tese, o desejo foi construir uma interpretação
sobre a gênese dos areais. Neste contexto, chegou-se a uma
compreensão de que os areais têm sua dinâmica associada a uma
paisagem frágil, de constituição recente em termos de maior
umidade e cobertura vegetal. Estes, apresentam solos arenosos
altamente susceptíveis à erosão, na medida em que são
originários de depósitos arenosos recentes e pouco consolidados
apresentando, na sua composição, baixos teores de matéria
orgânica e demais nutrientes (SUERTEGARAY, 1988, 1998,
2001).

Fig.5. Imagem de um Areal- município de São Francisco e


Assis RS-Brasil 2002. Fonte: arquivo da autora.
87
(Re)Ligar a Geografia: Natureza e Sociedade

Muito embora o uso do solo seja historicamente


vinculado à atividade pastoril, atribui-se, a partir de dados
históricos e arqueológicos que, esses areais são de origem
natural. Em algumas áreas, onde houve expansão da cultura de
soja entre os anos 1970/1980, essa atividade intensificou o
surgimento dessas feições (areais).
Do ponto de vista da dinâmica natural, a interpretação
sobre a origem dos areais permite concluir que os areais se
associam às seguintes fases:
• Formação de degraus de abatimento, ou seja,
abatimento da superfície, especialmente em setores de cabeceiras
fluviais, decorrentes de processos de infiltração e transporte de
material em subsuperfície. Estas formas de escoamento podem
estar associadas, como indicam estudos mais recentes, a
lineamentos estruturais e reativação de drenagem;
• Formação de ravinas e voçorocas decorrentes da
evolução da feição de abatimento, através de fluxos d’água
concentrados superficial e subsuperficialmente;
• Transporte de material pelos fluxos de água e formação
de leques a jusante, com concomitante erosão lateral e
remontante de ravinas e voçorocas, promovendo a coalescência
de depósitos arenosos;
• Formação de areais, a partir da coalescência dos leques e
das vertentes laterais de ravinas e voçorocas erodidas
lateralmente;
• Ampliação das feições – areais- mediante a continuidade
de processos eólicos e hídricos sobre a nova superfície de areias
expostas.

88
Geografia Física: ciência básica, ciência aplicável?

Paralelamente a esses estudos, inicia-se a discussão de


como recuperar essas áreas consideradas “degradadas”, em
particular, na discussão dos anos 1970, pela expansão da cultura
de soja. Desde então, o que se verifica é um desejo de não
necessariamente entender e/ou difundir a explicação da gênese
dos areais. O desejo é explicar como funciona e em que consiste
sua dinâmica para promover processos de intervenção.
O debate que tenho vivenciado indica o desejo de não
discutir o conhecimento básico, mas promover propostas de
recuperação a partir da ideia de que essas áreas estão em
expansão. Nesse sentido, a proposta de “recuperação” dessas
áreas que se constitui desde os anos 1970 do século XX, vincula-
se à silvicultura.
A participação nessa discussão como pesquisadora do
tema, por um lado, contribuiu com o conhecimento básico para a
construção do instrumento de regulação da silvicultura no estado
do Rio Grande do Sul – o Zoneamento Ambiental (FEPAM,
2007). Ou seja, o conhecimento básico torna-se aplicável. O
zoneamento constitui um instrumento técnico que visa à
regulação do uso do território. Na sua construção, foi
considerado o conhecimento científico - além da legislação
federal e estadual, que normatiza o uso do território no que se
refere à questão ambiental.
A aplicabilidade desse conhecimento e de todos os
demais conhecimentos que compõem a Zoneamento Ambiental
do estado do Rio Grande do Sul sofreu percalços. No momento
em que o Zoneamento é parcialmente aprovado pelas Câmaras
responsáveis, na medida em que a proposta apresentada não
responde pelo interesse do governo estadual, em comunhão com
os silvicultores, a dimensão política, da gestão territorial, se

89
(Re)Ligar a Geografia: Natureza e Sociedade

revela conflituosa. A discordância de fundo e a não aceitação


desta proposição regulatória entre representantes do governo do
estado, empresas, ONGs ambientalistas e técnicos do órgão
ambiental é principalmente:
• A definição de percentuais das Unidades de Paisagem
Natural (divisões do território gaúcho para fins do zoneamento,
no mapa) que poderão ser ocupadas com os plantios de pinus e
eucalipto;
• Tamanho máximo dos maciços de pinus e eucalipto
(formações compactas de árvores plantadas) em cada região;
• A distância permitida entre os maciços.
O grande debate que se instala de maneira mais ampla na
sociedade gaúcha diz respeito à viabilidade ou não da silvicultura.
Considera-se relevante considerar os impactos desta prática em
áreas de bioma campestre, como na questão da Água - consumo
excessivo e contaminação; em relação a fauna e flora -
diminuição da biodiversidade; para o solo - contaminação e
erosão superficial em sulcos, ravinas e voçorocas associados as
chuvas torrenciais. Além de que, no caso de solos arenosos, estes
são os mais suscetíveis à erosão. Promove ainda, este tipo de uso
da terra (monocultura arbórea), a extinção de parcelas ainda
existentes de campo nativo.
Para tanto, o Zoneamento Ambiental para Atividades
Silvicultoras (Secretaria Estadual do Meio Ambiente e Fundação
Zoobotânica, 2007) foi um instrumento técnico-científico que
poderia permitir a regulação desta atividade, não fosse ao fato de
que, conforme Santos (1996) todo o objeto, toda a técnica é
mediada pela política. E, neste caso a política não favoreceu a sua
aprovação e possibilidade de aplicabilidade.

90
Geografia Física: ciência básica, ciência aplicável?

Para concluir
O que se deseja com este texto é indicar a expansão, no
contexto da “Geografia Física”, de um encaminhamento
metodológico que se direciona para responder as demandas
emergentes e urgentes da sociedade atual. Portanto, um
deslocamento da análise em “Geografia Física” para a análise no
campo ambiental. Em consequência, uma preocupação em
produzir mais conhecimento aplicável do que conhecimento
básico.
Diante disto, considero relevante, no âmbito
epistemológico, uma discussão sobre o conceito de natureza
abordado na análise ambiental. Esta natureza, como a
concebemos, não é mais natural (natureza originária).
Por outro lado, sente–se necessidade de discutir o
conceito de Geografia Física. Este, não responde pelas realidades
estudadas (os objetos construídos na análise). Como já se referiu
Latour (1994), a realidade que se busca conhecer é constituída de
objetos híbridos.
Em particular, o objeto ambiental é híbrido, é natureza
transformada é natureza transfigurada. Natureza transfigurada
não é uma concepção nova, remonta aos clássicos - em particular
Reclus (1998). Adota-se esta concepção, na medida em que se
compreende que o processo de apropriação e exploração da
natureza a transfigura, ou seja, a modifica, muito embora
permaneça no modificado. Trata-se da natureza derivada a qual
se refere Monteiro (2000); é a natureza artificial para Santos
(1996).
Enfim, sendo a natureza na análise geográfica híbrida,
cabe à Geografia refletir, também, em relação ao conceito de
ambiente com o qual trabalha. Este, geralmente, derivado da
biologia e restritivo para a análise geográfica.
91
(Re)Ligar a Geografia: Natureza e Sociedade

Referências
LATOUR, B. Jamais fomos modernos. Tradução de Carlos Irineu da
Costa Editora 34, Rio de Janeiro, 1994. p.150

RECLUS, E. L' homme et la Terre / introduction et chiox des textes


Béatrice Giblin. Reéd - Paris: La Dé couverte, (La Découvert / Puche; 48.
Sciences humaines et Sociotes. 1998.

MONTEIRO, C. A. F. Geossistemas a história de uma procura. São


Paulo: Editora Contexto, 2000. p.127.

SANTOS, M. A Natureza do Espaço: Técnica e Tempo Razão e


Emoção. Ed. Hucitec, São Paulo, 1996. p. 308

SECRETARIA ESTADUAL DO MEIO AMBIENTE, FUNDAÇÃO


ESTADUAL DE PROTAÇÃO AO MEIO AMBIENTE E
FUNDAÇÃO ZOOBOTÃNICA. Zoneamento Ambiental para
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SUERTEGARAY, D. M. A. Deserto Grande do Sul: Controvérsias. 2.


ed. PORTO ALEGRE/RS: UFRGS, 1998. p.109.

92
G e o g r a f i a e G e o m o r f o l o g i a , I m p l i c a ç õ e s,
Quais?

Introdução

O tema que é abordado neste texto diz respeito a


Geografia e a Geomorfologia. Muitas são as possibilidades de
abordá-lo. Para tanto, o caminho escolhido foi pensar possíveis
questões que estariam por trás dessa proposição - Geografia e
Geomorfologia. As questões imaginadas são: Geografia e
Geomorfologia são ciências independentes ou a Geomorfologia
constitui-se num subcampo da Geografia? Qual é a abordagem
dos estudos de Geomorfologia na Geografia? Como os estudos
referentes a Geomorfologia se expressam nos currículos e grades
dos cursos de formação de Geógrafos?

93
(Re)Ligar a Geografia: Natureza e Sociedade

Nosso objetivo é, então, neste texto, trazer algumas


ideias sobre a proposta, considerando as questões anteriormente
elaboradas. Visa uma enunciação que se coloca ao debate, seja no
âmbito da construção científica de cada campo que será
abordado seja como se expressa esse conhecimento no contexto
da formação geográfica.
Geografia e Geomorfologia são ciências
independentes ou a Geomorfologia constitui-se num
subcampo da Geografia?
De maneira ampla veicula-se entre os geógrafos e, em
especial, no contexto de sua formação, que Geomorfologia é um
subcampo da Geografia, por sua vez, inserida na Geografia
Física. Sob esta perspectiva também constituem subcampos a
Climatologia e a Biogeografia. Porém, quando nos referimos a
Geologia ou a Hidrologia percebe-se estas duas, não
necessariamente, como subcampo, mas sim, como ciências
autônomas.
Esta breve análise, no entanto, será referida a
Geomorfologia, na relação com a Geografia.
Para atentarmos para a diferenciação que desejamos
apontar, cabe iniciar fazendo referência à preocupação analítica
da Geografia, ou seja, seu objetivo é decifrar o espaço
geográfico. Este assumiu diferentes perspectivas no contexto do
pensamento geográfico, entretanto, a questão fundante, na
discussão do espaço geográfico, centra-se na busca de
compreensão da relação natureza - sociedade.
A concepção de natureza mais presente na Geografia é
representada pelo mundo material, externo e anterior ao homem,
ou seja, natureza externalizada, natureza enquanto algo externo a

94
Geografia e Geomorfologia, Implicações, Quais?

sociedade, objeto de uso, apropriação e valoração social.


Natureza, então, é representada na Geografia pelo relevo ou
superfície da terra nas suas manifestações de composição
(matéria, forma, processo), pela água, pelos solos, pela vida
animal e vegetal, além do ar. Seja nesta concepção ou outras mais
contemporaneamente discutidas, compreender/estudar a
natureza é fundamental à Geografia.
Por outro lado, dado a compartimentação científica
contemporânea, a natureza nos estudos geográficos se esfacela
em diferentes objetivos analíticos: os estudos do relevo
(Geomorfologia), o estudo da água (Hidrologia), o estudo do ar,
enquanto condições de tempo e clima (Climatologia), os estudos
do solo (Pedologia), os estudos da estrutura e dinâmica da Terra
(Geologia) e o estudo dos animais e plantas, enfocados no
âmbito da distribuição (Biogeografia).
É então, a partir deste ponto, que buscamos uma
possibilidade de resposta à pergunta inicialmente feita. Como
geógrafos (as) entendemos que a preocupação analítica em nosso
campo de atuação é o espaço geográfico. Este é concebido como
constituído da dimensão natural e social e, no âmbito natural, o
relevo compõe uma de suas dimensões. Para compreendermos o
relevo, na sua constituição material, de forma e de processos,
recorremos a um outro campo do conhecimento, a
Geomorfologia. É ela que nos oferece as ferramentas teórico-
conceituais e metodológicas para explicitar em uma análise do
espaço geográfico e a dimensão do relevo.
Embora isto, é distinto fazer uma análise geográfica e
uma análise geomorfológica. Considera-se mais complexa a
análise geográfica, comparativamente, à Geomorfologia, pois,
enquanto a primeira exige a decifração de um conjunto complexo

95
(Re)Ligar a Geografia: Natureza e Sociedade

de dimensões, que envolvem desde processos naturais aos


processos sociais, a Geomorfologia se atém a decifração do
relevo, uma das dimensões na construção do espaço geográfico,
como já foi referido.
Trata-se, então, de dois campos de conhecimento
distintos, com histórias distintas, embora com aproximações.
Apresentam referenciais teóricos e metodológicos diferenciados,
portanto, Geomorfologia não se constitui em subcampo da
Geografia. Se fizermos uma breve passagem pela história da
construção científica verifica-se que, por vezes, a Geomorfologia
se originou a partir da Geologia, e esta, da antiga História
Natural, campo amplo que vigorou até o século XIX e início do
século XX, enquanto a Geografia não se colocava nesse
contexto.
Retomando os clássicos, já citados em textos anteriores,
neste mesmo livro, cabe fazer referência a De Martonne, em seu
livro intitulado: Tratado de Geografia Física (1909), edição de
1964. Esse autor ao se referir à Geografia considerava que
Geografia, e nela a Geografia Física, assumia dimensões
enciclopédicas e isto obriga a especialização exagerada que
poderia esconder a essência da Geografia. No prólogo da
primeira edição desta obra, lê-se:
O desenvolvimento da Geografia Moderna parece conduzir uma
especialização cada vez mais evidente. Chega ser quase impossível
realizar ao mesmo tempo investigações pessoais sobre morfologia,
hidrografia, clima, biogeografia e Geografia Humana. Ao geógrafo
especializado, portanto, é necessário ter à mão um livro que lhe
permita orientar-se rapidamente nas questões de Geografia Física
que, não são objetos próprios de seus estudos (DE MARTONNE,
1964, p. 15).

DE MARTONNE, como já nos referimos, é um dos


geógrafos que alertava para a especialização já no início do
século XX, mas, ao mesmo tempo considerava que o
96
Geografia e Geomorfologia, Implicações, Quais?

conhecimento relativo à natureza já fazia parte de vários campos


específicos. Embora tendo essa compreensão, reunia esses
conhecimentos no domínio de Geografia Física.
Não se tem aqui, como objetivo, discutir a propriedade
dessa designação para um conjunto de ciências que já se
apresentavam relativamente consolidadas nesse início de século
XX. Até por que, a própria Geografia Física que constituía uma
esfera na composição analítica em Humboldt, aqui sofre,
também de um processo de separação, de individualização em
relação à Geografia. Ao mesmo tempo em que De Martonne
individualizou a Geografia Física aglutinando neste campo os
diferentes conhecimentos sobre natureza, aqui, incluindo a
Geomorfologia, afirmava:
... é necessário que o aprendizado das relações entre esses diferentes
campos se coloque claramente e que a unidade da Geografia se
mostre ao principiante (ao estudante de geografia) e que seja
lembrado aos estudantes de que a especialização é uma ordem
particular de investigação (DE MARTONNE, 1968, p. 16).

Em síntese, o que estava posto, já naquela época, e que ao


longo do século XX se ampliou, foi a atomização científica; por
isso considera-se que hoje Geomorfologia é uma ciência
individualizada, que possui seu objeto próprio, suas teorias e seus
métodos diferentes da Geografia. Muito embora, não seja, a
Geomorfologia uma ciência institucionalizada, hoje, dado sua
expansão e devido à necessidade social deste conhecimento, se
amplia sua presença na pesquisa e no ensino em diferentes
formações como Arquitetura, Engenharia Civil, para não falar
em Geologia, de onde em certa medida derivou.
No contraponto da concepção de Geomorfologia como
subcampo da Geografia tem-se a compreensão de
THORNBURY (1960). Para este autor, a Geomorfologia é mais
vinculada às ciências geológicas:
97
(Re)Ligar a Geografia: Natureza e Sociedade

... a Geomorfologia é, sobretudo, Geologia, embora se ensine


Geomorfologia tanto na Europa como nos Estados Unidos da
América como parte da Geografia Física. Na maioria dos cursos da
Geografia, as formas de relevo são tratadas acidentalmente, como
uma parte da descrição do ambiente físico do homem...
(THORNBURY, 1960, p.1).

Além disso, considerando as tendências da


Geomorfologia, nos anos de 1950-60, afirmava; a Geomorfologia,
pelo menos nos EUA, é mais geológica do que geográfica como resultado.
(THORNBURY, 1960, p.13).
Independentemente da eterna polêmica, o que parece ser
significativo é o fato de que a Geomorfologia é um campo do
conhecimento fundamental na formação do geógrafo, devendo
estar presente nos cursos de formação em Geografia, pois é
também a partir da Geografia e da especialização em
Geomorfologia que podemos mencionar significativas
contribuições à geomorfologia brasileira.

Qual é a abordagem dos estudos de


Geomorfologia na Geografia?
Para tentarmos uma resposta, retomamos novamente aos
clássicos. Birot (1959), meados do século XX, assim define a
Geografia Física: “A geografia física é o estudo da epiderme de um ser
único: a Terra” (BIROT, 1959, p.1). Propõe que a epiderme da
terra seja estudada a partir do conceito de paisagem natural, tal
como aparece ao observador, percorrendo a globo, ante toda a
intervenção humana. Faz referência aos estudos de paisagem
como combinações complexas que ocorrem sob um plano
histórico e numa escala cronológica completamente diferente da
escala humana.

98
Geografia e Geomorfologia, Implicações, Quais?

Birot (1959) fazia distinção entre Geografia Física Geral e


Regional. Geografia Física Geral tinha como objeto estudar os
princípios gerais que permitem a explicação da epiderme da
Terra. A Geografia Física Regional seria aquela que trataria da
análise das grandes unidades de paisagens cujos contornos
seriam função, tanto do relevo, quanto do clima. A estrutura
dessa obra, diferentemente da obra de De Martonne (1964)
apresenta os constituintes da natureza individualmente, mas, tem
também como proposição, o estudo das paisagens através do que
denominou de Sistemas de Erosão, como assim denominava
originalmente Cholley (1950). Da mesma forma, Derruau (1955)
e Tricard e Cailleux (1955) se utilizaram dessa ideia, muito
embora, estes últimos preferiram utilizar o conceito de sistemas
morfoclimáticos ao de sistema de erosão.
Este exemplo nos permite fazer uma distinção entre os
estudos de Geomorfologia no âmbito da Geografia,
particularmente a brasileira, e os estudos de Geomorfologia no
contexto geológico. De um lado, e aqui me refiro às antigas
gerações de geomorfólogos de formação geográfica, o
conhecimento geomorfológico se fazia em contexto mais amplo,
que o estudo do relevo propriamente dito. Falava-se em sistema
de erosão associado ao clima, domínios morfogenéticos,
domínios morfológicos, paisagens naturais. Estas diferentes
formas de conceber os estudos geomorfológicos apresentavam
algo em comum, a análise do relevo em conexão com os demais
constituintes da natureza. Essa herança, que tem sua origem na
Geomorfologia alemã e, também, enfatizada na França (século
XX), chega ao Brasil através da escola francesa, cuja influência
foi significativa entre os geógrafos brasileiros.

99
(Re)Ligar a Geografia: Natureza e Sociedade

No caso da Geomorfologia ensinada nas escolas de


Geologia a influência mais dominante é a perspectiva anglo-
saxônica, ou seja, uma Geomorfologia que vai se preocupar com
a decifração da forma do relevo, em que os estudos centram-se
na tríade material, forma e processos. Por outro lado, por algum
tempo, a Geomorfologia nos estudos geológicos era visualizada
como uma ferramenta de análise - na medida em que através das
formas da superfície da terra, sua configuração e delimitação
poderia se interpretar a estrutura geológica e vice-versa. Essa
visão, reconhecida como Geomorfologia Estrutural, foi por
longos anos o interesse maior dos geólogos.
Ao comparar as duas perspectivas é possível visualizar as
diferenças entre uma e outra escola geomorfológica e perceber a
abordagem mais presente, no que se refere ao estudo do relevo,
no âmbito da Geografia. Aqui, o relevo é um componente da
natureza que se manifesta a partir de um conjunto de conexões
que permitem decifrar o relevo e sua origem, na e com a
paisagem.
É esse significado diferenciado que permite assumir uma
posição de que: os estudos do relevo em Geografia são
fundamentais e se constituem em formas diferenciadas de análise
seja em relação à Geomorfologia mais comumente construída
pelos geólogos seja pelo fato de que o relevo, na análise
geográfica, não só compõe a esfera natural, a qual já nos
referimos, o relevo é um constituinte do espaço geográfico.
Tomemos um exemplo, a Geomorfologia proposta pelo
prof. Aziz Ab`Saber (1968), geógrafo que dedicou sua vida
acadêmica aos estudos geomorfológicos. Para exemplificar,
sintetizamos sua proposição metodológica expressa no texto
intitulado, Um conceito de Geomorfologia a serviço das pesquisas sobre o
Quaternário, publicado pelo Instituto de Geografia/USP, 1968.
100
Geografia e Geomorfologia, Implicações, Quais?

Neste texto, o autor expõe o caminho que considera


relevante para uma análise geomorfológica. A partir da
articulação de três conceitos, ele indica como proceder à análise
em Geomorfologia. Esses conceitos são: compartimentação de
relevo/paisagem, estrutura superficial da paisagem e a fisiologia
da paisagem.
Seu método marcou a geomorfologia brasileira e Uspiana.
Para além da Geomorfologia, preocupou-se com o estudo das
paisagens, dos domínios morfoclimáticos, com a biodiversidade e
a diversidade cultural e econômica dos brasileiros e brasileiras.
A Geomorfologia e com ela, o estudo do relevo, foi seu
ponto de partida. Sua obra é plena de interpretações sobre a
gênese das formas em território brasileiro, mas, com base no
método adotado, Aziz Ab’Saber vai além da Geomorfologia e se
preocupa com a biodiversidade, a diversidade cultural e
econômica dos brasileiros. Estabelece o nexo do relevo, com a
paisagem na perspectiva de sua gênese e transformação
(dinâmica atual) e estabelece também, o nexo entre paisagens,
biodiversidade e sociedade.
A Geomorfologia de Ab’Saber tinha vínculos com a
Geomorfologia alemã e francesa em que a natureza é analisada
de forma conjuntiva, a partir do conceito de Paisagem. Seu
método enfatizava a Geomorfologia dinâmica e climática sem,
contudo, deixar de analisar materiais e estrutura. Além disto,
buscou a interpretação pálio ambiental das paisagens e,
colaborou na elaboração da Teoria do Refúgio com a teoria dos
Redutos, como ele denominava sua colaboração.
Sua trajetória enquanto pesquisador é um exemplo da
possibilidade de diferentes caminhos ou de abordagens em
Geomorfologia na Geografia. Hoje, a Geomorfologia na medida

101
(Re)Ligar a Geografia: Natureza e Sociedade

em que recebe diferentes influências - dado a facilidade de acesso


à informação - vem se transformando e, sua diversidade analítica
é significativa. O espectro abrange desde estudos do relevo de
forma individualizada, como estudos do relevo no contexto das
paisagens ou inserido no Sistema Natural (conceito mais atual)
ou no âmbito da Ecogeografia. Metodologicamente, amplia-se a
cartografia geomorfológica, em parte associada aos denominados
riscos ambientais. Também se observa preocupação com a
modelagem e a construção de cenários, com base na utilização de
programas computacionais.
Enfim, ao mesmo tempo em que se amplia e se diversifica
se desloca de sua preocupação original, que seria a busca de
gênese das formas para enfatizar a dinâmica ou os processos que
atuam no presente, a exemplo dos estudos vinculados a riscos
ambientais.
Aqui, fazemos um parêntese. A sociedade atual demanda
essas questões e ao mesmo tempo, considera como questões
complexas. A individualização científica vigorante no século XX
passa, gradativamente, a dar lugar a interdisciplinaridade ou
mesmo a transdisciplinaridade, e, no limite, o que é denominado
sombreamento disciplinar. Ou seja, espaço onde profissionais de
diferentes campos do conhecimento atuam sobre os mesmos
problemas; inúmeros são os exemplos: mapeamentos, análise de
riscos ambientais, estudos relativos a dinâmica de bacias
hidrográficas, entre tantos outros temas.
De outra parte a análise geomorfológica mais específica,
vem cada vez mais derivando da Geografia para a Geologia,
ciência que na contemporaneidade amplia seu espectro analítico
e busca, também, como a Geografia, entender os processos que
promovem a dinâmica e a transformação da superfície da Terra,
mais especificamente, o relevo.
102
Geografia e Geomorfologia, Implicações, Quais?

Como os estudos referentes à Geomorfologia


se expressam nos currículos e grades dos cursos de
formação de Geógrafos?
Uma terceira reflexão que consideramos relevante diz
respeito a formação do geógrafo e aos estudos de
Geomorfologia no currículo e grade dos cursos de Geografia.
Início, em certa medida com uma provocação ao debate.
Hoje, o que se observa, é uma ampliação do interesse pelos
estudos relativos ao relevo no âmbito das Engenharias civil e a
de Minas, por exemplo. Da mesma forma, no contexto da
Arquitetura seja em relação aos projetos arquitetônicos seja no
urbanismo, além de outras dimensões do conhecimento
aplicável, como em relação à questão ambiental, a gestão
territorial, a preservação do patrimônio natural. Isto faz com que
a disciplina Geomorfologia tenda a ser oferecida em diferentes
currículos/grades nas universidades.
A Geografia tem, na sua história curricular, um conjunto
de disciplinas que buscam decifrar a natureza, entre elas a
Geomorfologia, enquanto estudo do relevo. Se há um tempo, um
número significativo de especialistas – geomorfólogos – tinham
sua formação no contexto dos cursos de Geografia, hoje essa
tendência passa a ser menor.
Para entender essa questão podemos arrolar um conjunto
significativo de fatores que vão desde a discussão teórico
conceitual da Geografia após os anos 1950, até as mudanças
curriculares promovidas nos cursos universitários, pelo
conhecido acordo MEC-USAID, implantadas pela reforma
universitária ocorrida entre 1968 a 1971.

103
(Re)Ligar a Geografia: Natureza e Sociedade

A reforma promovida nesse período inclui, entre outros


aspectos, o sistema de créditos e a semestralidade e, de maneira
ampla, o objetivo dessa reforma era implantar uma formação
baseada na ciência instrumental e voltada para o mercado. Nesse
processo, voltando ao tema, modificaram-se os cursos de
formação, diversificaram-se as disciplinas, fragmentaram-se e
foram reduzidas, suas cargas horárias. Para elucidar tomamos,
como exemplo, um currículo anterior a 1968 (licenciatura em
Geografia). Nesse currículo a Geomorfologia era oferecida
durante os quatro anos do curso, com carga horária de 75 horas a
cada semestre letivo (cinco créditos), o que equivale em termos
de horas anuais, modalidade da época, a 150 horas anuais ou 10
créditos atuais. Perfazendo ao final do curso 600 horas, ou seja,
40 créditos aproximadamente.
A instrumentalização para o trabalho como política
acadêmica promoveu não só com a Geomorfologia, mas com o
conjunto de disciplinas do curso uma fragmentação e
consequentemente redução de carga horária. Hoje, os cursos
oferecem - em média - duas disciplinas de Geomorfologia, o que
equivale a dois semestres letivos, com carga horária de 60 horas
ou 75 horas/semestre (quatro ou cinco créditos
respectivamente), o que corresponde a uma carga horária de 120
ou 150 horas de estudos geomorfológicos na grade de formação
dos geógrafos, ou seja, 8 ou 12 créditos, dependendo do
currículo do curso. Além da diminuição da carga horária outros
temas se agregam a Geomorfologia, a exemplo das questões
ambientais. Entretanto, no campo científico os estudos
geomorfológicos se verticalizam e se tornam cada vez mais
exigentes em relação as inovações tecnológicas permitindo
maiores detalhamentos e ou aprofundamento analítico.

104
Geografia e Geomorfologia, Implicações, Quais?

Nesse contexto, considera-se relevante, também sob este


aspecto, pensar a relação Geografia – Geomorfologia. E, para
tanto, retomamos o já dito, a Geomorfologia não é um
subcampo da Geografia. Como ciência autônoma ela é
constituída de um arcabouço teórico-metodológico significativo.
Associa-se a este fato a instrumentalização contemporânea para
construir conhecimento, no campo das ciências naturais, o que
exige do estudante, uma verticalização do conhecimento, que se
perdeu na dispersão e na fragmentação disciplinar.
Que implicações poderá ter essa formação? Entre outras,
uma formação pulverizada em tão variados temas, que dificulta,
ao acadêmico, estabelecer nexos entre os diferentes
conhecimentos aprendidos, pois, a superficialidade é a regra. E,
por outro lado, uma diminuição de sua potencialidade analítica
nesse campo específico, capaz de lhe permitir uma participação
profissional, efetivada pelo conhecimento geomorfológico, sem
ter, contudo, galgado outros degraus acadêmicos como mestrado
e doutorado.

Finalização
Em síntese, nosso propósito neste breve texto foi trazer à
discussão algumas questões referentes à Geografia e à
Geomorfologia. Ao procurar demonstrar que a Geomorfologia
não é um subcampo da Geografia, considerando sua origem
enquanto derivada da História Natural e da Geologia procurou-
se, também, indicar que entre os geógrafos ela também se
construiu, embora de forma diferente daquela de perspectiva
geológica. Hoje a Geomorfologia, embora não tenha um espaço
institucionalizado na academia como área de formação
profissional, vem se expandindo, enquanto conhecimento

105
(Re)Ligar a Geografia: Natureza e Sociedade

necessário socialmente e, ao mesmo tempo, vem se encolhendo


nos currículos e grades dos cursos de formação em Geografia.
Tal processo pela peculiaridade dos problemas atuais faz com
que a Geomorfologia seja, gradativamente, acolhida em outras
formações acadêmicas e se expanda em termos teóricos e
metodológicos, trilhando caminhos mais específicos, de maior
detalhe e incorporando a modelagem com concepção
interpretativa entre outras perspectivas.

Referências
AB´SABER, A. N. Um conceito de Geomorfologia a serviço do das
pesquisas sobre o Quaternário. Geomorfologia 18. Instituto de
Geografia/Universidade de São Paulo. 1969. p 23

BIROT, P. Précis de Géographie Phisique Générale. Paris/France.


Librairie Armand Colin. 1959. p.403.

DE MARTONNE. E. Tratado de Geografia Física. Barcelona/


España. Editorial Juventud, 1964. p.520

DERRUAU, M. Précis de Géomorphologie. Paris Masson, 1956. p. 393.

THORNBURY, W. D. Princípios de Geomorfologia. Buenos Aires.


Editorial Kapelusz, 1960.p. 627

TRICART, J e CAILLEUX, A. Introdución à la Gèomorfologie


Climatique. Paris. C.D.U., 1955. p. 228 .

106
Tempo Geomorfológico Interfaces
Geomorfológicas*

A história da Geomorfologia expressa uma estreita


vinculação com a Geografia. Os geógrafos, em número
expressivo, consideram o relevo um constituinte da paisagem
geográfica. Neste sentido, podemos afirmar que, enquanto
constituinte da paisagem geográfica, constitui o relevo, um
parâmetro a ser analisado.

* SUERTEGARAY, D. M. A. Tempo Geomorfológico, Interfaces


geomorfológicas. In. SUERTEGARAY, D. M. A. Geografia Física e
Geomorfologia Uma (Re) Leitura. Ijuí, Editora UNIJUI.2002.
SUERTEGARAY, D. M. A.. Tempo Geomorfológico Interfaces
Geomorfológicas. Geosul (UFSC), Florianópolis, 1997.
107
(Re)Ligar a Geografia: Natureza e Sociedade

Entretanto, se atentarmos para a evolução científica da


Geomorfologia observamos que esta se define, tanto em relação
ao seu objeto, quanto em relação a sua construção teórico-
metodológica, como um campo específico de conhecimento. Na
estruturação desse campo, a Geomorfologia, em seu início,
apresentou uma forte conexão com a Geologia.
Davis (1904) afirmava: el tratamiento racional y moderno de los
problemas geográficos exige que las formas, lo mismo que las formas
orgánicas, sean estudiadas desde el punto de vista de su evolución y que,
hasta donde este método de estudio lo requiera, el geógrafo sea geólogo.
(DAVIS, 1982, p. 183).
Passados alguns anos, De Martonne (1913) expressava:
Los progresos de la Geomorfología siempre han estado ligados a los
de la Geología: los primeros geomorfólogos, como RICHTHOFEN,
HEIM, GILBERT y LAPPARENT, eran geólogos.
Ao fazer esta referência DE MARTONNE induzia à
época um questionamento, afirmando que é fácil reconhecer a
estreita relação que existe entre o relevo e o estudo da estrutura
geológica, admitindo, entretanto, que a Geologia não
proporciona a totalidade da explicação e que “cuando más viaja,
más se convence el geógrafo de que el clima es un fator decisivo da
Geomorfologia” (DE MARTONNE, 1982 p. 366).
Estas duas referências são indicativas, de um lado da
origem da Geomorfologia, de outro de suas derivações, por parte
do fazer geomorfológico de caráter geográfico.
O objetivo desta intervenção tenta expressar nossa leitura
da Geomorfologia e suas interfaces. Uma das possibilidades
propostas à discussão nesta mesa.

108
Tempo Geomorfológico Interfaces Geomorfológicas

A partir do exposto anteriormente e analisando a


construção geomorfológica neste século, percebe-se sempre um
ruído, no sentido de admitir que, há uma Geomorfologia
construída por geógrafos que se diferencia da Geomorfologia
feita pelos geólogos.
A explicação desta questão vem ao encontro da relação da
Geomorfologia com a Geografia e/ou com a Geologia. Estas
interfaces clássicas da Geomorfologia conduzem os geógrafos a
construir uma Geomorfologia com referenciais teóricos distintos
da Geologia.
Para o geógrafo, a Geomorfologia (especialmente a
clássica) constituiu uma área de investigação que exige a
compreensão do relevo em termos de processos e formas,
analisadas através de uma perspectiva histórica, evolutiva. A
Geomorfologia Clássica sempre privilegiou a explicação da
gênese, o que implica discutir a noção de tempo.
Para os geólogos, pelo menos no que conheço de minha
experiência, a Geomorfologia é valorizada enquanto instrumento
para a análise geológica. Sua importância se expressa na
possibilidade de compartimentação do relevo. Constitui,
portanto, a Geomorfologia, um instrumento de análise geológica.
Estes, ao enfatizarem a compartimentação do relevo, podem
delimitar melhor a espacialidade das rochas, bem como
diferenciar estruturas geológicas. Na atualidade esta leitura vem
se transformando, a Geologia contemporânea ao se preocupar,
também com questões ambientais, por exemplo, assume os
processos de modelagem da superfície da Terra como tema a ser
investigado.

109
(Re)Ligar a Geografia: Natureza e Sociedade

Pode-se dizer, genericamente, que a Geomorfologia de


cunho geográfico privilegiou os estudos morfogenéticos - a
busca da gênese das formas. A Geomorfologia de cunho
geológico privilegiou a configuração espacial na sua relação com
a disposição interna das rochas. Nesse sentido, ela enfatizou a
classificação com base na estrutura geológica. A interface entre
Geomorfologia e Geografia reflete métodos e uso de conceitos,
por vezes semelhantes, por vezes diferentes daqueles.
Para melhor explicarmos, tomamos como exemplo a
concepção de tempo. Gould (1991), ao discutir a concepção de
tempo em Geologia salienta que os geólogos conceberam o
tempo através da metáfora - seta ou ciclo. O tempo ora foi
concebido como seta, ou seja, evolutivo, sequência irreversível de
eventos que não se repetem, ora como ciclo - temporalidade estável, os estados
fundamentais são imanentes no tempo sempre presente e jamais modificados.
Estas duas concepções são expressas também na Geomorfologia,
ainda que na sua origem Davisiana, a concepção seja cíclica.
O tempo, enquanto tempo cíclico-evolutivo, constituiu
marca/referência, tanto para a Geologia quanto para a
Geografia/Geomorfologia. Mas neste particular, visualizamos
uma distinção. Enquanto geógrafos/geomorfólogos aprendemos
que em Geomorfologia devemos valorizar o tempo, na busca da
compreensão do presente. Para nós, a história reconstituída
(passado) permite a compreensão das formas atuais. Para a
Geologia, o princípio do atualismo tem sido a regra, o presente
explica o passado. Este princípio aparece reafirmado em
Labourian (1994) como fundamental ainda hoje, embora Rodhe
(1996) questione a validade deste, na atualidade.

110
Tempo Geomorfológico Interfaces Geomorfológicas

Ao referir-se ao uniformitarismo (atualismo), Rodhe


(1996) resgatando Gould (1991) e Albritton Jr. (1989) apresenta
quatro significados distintos. Este pode ser concebido como a
uniformidade das leis (leis constantes no espaço e no tempo),
uniformidade dos processos (explica o passado pelos processos
atuantes no presente), a uniformidade de grau (aceita as
“catástrofes” como locais e de mudanças lentas, constantes e
graduais) e a uniformidade estado (aceita a ideia de que a Terra
não segue qualquer vetor de “progresso” em alguma direção).
Na continuidade, o mesmo autor (RODHE; 1996) afirma
que “o uniformitarismo (atualismo) não pode ser
contemporaneamente mantido, devido “às evidências empíricas
da existência, importância e contingência das catástrofes, à
existência da mudança global de origem antropogênica”.
O tempo ou a dimensão temporal em ambas as
disciplinas se expressa em periodizações diferentes. No caso da
Geologia, a periodização do tempo é feita através do que se
denominou escala geológica. A temporalidade em análise
associa-se à necessidade de compreensão da origem da Terra. Os
geomorfólogos construíram a Geomorfologia trabalhando uma
periodização do tempo também a partir da escala geológica. Não
obstante, a temporalidade geomorfológica restringiu-se, em
decorrência de seu objeto (relevo), a Era Cenozóica,
privilegiando o período Quaternário e os eventos característicos
deste período (particularmente as glaciações) como
fundamentais na explicação genética do relevo.
Na atualidade, tanto a Geomorfologia, como a Geologia
reelaboraram suas análises. O paradigma científico que se
avizinha promove a crítica, a disjunção científica e alerta para a
necessidade de conjunção. Este alerta advém, em parte, do

111
(Re)Ligar a Geografia: Natureza e Sociedade

advento da discussão ambiental, do reconhecimento de que o


“progresso” econômico-social ao longo da história humana se
deu em “prejuízo” da natureza. Esta conjunção indica para uma
nova compreensão da relação homem-natureza, tão cara à
Geografia desde sua origem. Alheia à Geomorfologia até mais ou
menos a metade deste século.
Esta conjuntividade proposta no contexto da discussão
epistemológica se expressa nas novas formas de
encaminhamento disciplinar, nos métodos de investigação, da
Geomorfologia e da Geologia. Textos hoje clássicos, como os de
Bertrand (1968,1972) e de Tricard (1979), passam a inserir a
Geomorfologia no contexto da Geografia Física. No caso de
Bertrand, há um resgate do conceito de paisagem, e, neste
contexto, a compreensão do relevo na interação com outros
elementos físicos, biológicos e antrópicos. Tricard chama à
atenção para necessidade de compreensão integrada do meio
ambiente.
A Geologia, por sua vez, (RODHE, 1996), expressa essa
conjunção quando afirma: “Esta última fase de influência ativa
do homem sobre os processos geológicos pode ser identificada
em momento da história na qual há a destruição antropogênica
dos fenômenos geológicos naturais, algo que não ocorria
anteriormente e que tende a cada vez mais ocorrer no futuro”.
Estas considerações assentam-se em colocações anteriores já
expressas em Bullow (1972) e Alligre (1994), conforme
demonstra o referido autor.
A dimensão antropogênica, hoje mais bem aceita no
contexto geológico e geomorfológico, nos remete à reflexão
sobre a questão anteriormente referida - a concepção de tempo
em nossas análises e as novas interfaces possíveis à
Geomorfologia.
112
Tempo Geomorfológico Interfaces Geomorfológicas

Ao conceber a possibilidade de conjunção, a


Geomorfologia que se constrói a partir dos anos 1970 passa a
admitir a interferência antropogênica em suas análises. O olhar
da Geomorfologia que inclui as derivações/transfigurações
ocorridas na natureza, como resultado da forma como os
homens, ao longo de sua história se organizaram social,
econômica e politicamente exige desta “disciplina” um repensar
da categoria tempo.
Em trabalho realizado (SUERTEGARAY, 1987), ao
dimensionar a atuação do homem sobre o relevo e a paisagem,
elaborou-se uma periodização que se refere a uma temporalidade
natural, cuja periodização assentou-se na escala geológica e à
uma temporalidade humana, cuja periodização assentou-se no
que denominamos escala histórica ou escala histórico-geográfica.
Esta temporalidade humana, no contexto da
Geomorfologia, recebe também contribuições conceituais da
Geologia. Nesta área, a discussão presente se expressa em
citações como:
A partir do Holoceno, a atividade humana aumentou e tornou-se
mais e mais intensiva, como um resultado da transição da coleta
alimentar para a produção alimentar. Ela deve ser separada do
grupo comum ‘atividade de organismos’ e considerada como um
agente geológico independente cada vez mais afetando o curso de
muitos processos exógenos e alguns endógenos [...]. Isto torna possível
afirmar a transição do Quaternário ou do Pleistoceno para o
Quinário ou Tecnógeno, que iniciou no Holoceno e se desenvolverá
durante o próximo milênio (TER STEPANIAN G. 1998, p.
133 em RODHE; 1996)

Resulta desta compreensão uma nova compreensão


geológica dos processos/agentes geológicos. Passa a Geologia,
através do trabalho de alguns geólogos, a admitir a “espécie
humana como agente geológico de mais significação” (RODHE,
1996).

113
(Re)Ligar a Geografia: Natureza e Sociedade

Da mesma forma se refizeram a Geomorfologia e os


geomorfólogos em suas construções. Aqui, a partir das últimas
duas décadas, se intensifica e se difunde a compreensão do
homem como processo geomorfológico ou como agente na
produção/intensificação de processos geomorfológicos.
A compreensão geomorfológica, nesta nova
temporalidade, acrescenta conceitos novos, conforme já se referiu
Suertegary (1997), abre-se a novos estudos genéticos - a exemplo
dos estudos sobre depósitos tecnogênicos e, em decorrência
disto, recria suas interfaces.
Ao referir-se às interfaces, não se pretende esgotar aqui
todas as possibilidades e as já amplamente praticadas, quando da
análise geomorfológica. Pretende-se, apenas, exemplificar a partir
daquelas que advém da nossa experiência.
Dois temas constituem preocupação na nossa construção
atual em Geomorfologia: a arenização no Sudoeste do Rio
Grande do Sul e a caracterização de depósitos tecnogênicos na
cidade de Porto Alegre/RS. Ao trabalhar estes dois temas,
frisando novamente, não vamos referir às interfaces clássicas da
Geomorfologia, mas exemplificá-las através da aproximação com
as humanidades.
No âmbito da interpretação da origem dos areais,
necessitamos trabalhar significativamente com a história. Foi a
partir do resgate histórico e do relato de viajantes que
visualizamos a existência de areais como uma forma também e,
originariamente, decorrente da dinâmica natural da paisagem. As
constantes discussões feitas a esta interpretação nos levaram a
prosseguir com esta preocupação. Na continuidade, os processos
de investigação articulados com profissionais das ciências
humanas estão hoje abrindo uma nova possibilidade de análise.

114
Tempo Geomorfológico Interfaces Geomorfológicas

Neste caso, através de uma articulação com a arqueologia. Isto se


deve ao fato de termos, na equipe de trabalho, profissionais que,
com o olhar de arqueólogos, identificaram junto aos areais a
presença de sítios indígenas. O resultado desta investigação
demonstrou a coexistência de povos originários, dos pampeanos
ao guarani com os areais. Reforçando estes estudos a origem
natural dos areais.
No que se refere à temática dos depósitos tecnogênicos,
necessariamente, abre-se a possibilidade de novas interfaces.
Neste caso, trata-se da estreita relação com a Geografia Urbana,
com o Urbanismo e o Planejamento (Gestão Urbana) e, em certa
medida, com a Arqueologia Urbana. Há necessidade de resgatar,
quando da caracterização desses depósitos, o processo de
urbanização em escala global e local, as consequências em
termos de falta de infraestrutura e as condições de vida das
populações envolvidas. Há necessidade também de avaliar, a
partir deste processo, as transformações na dinâmica natural
objetivando a explicação desejada: a gênese dos depósitos
tecnogênicos, sua extensão, sua provável datação. Tratar-se-ia
então, de um possível estudo de arqueologia urbana objetivando
recuperar o futuro pela Gestão Urbana/a Gestão participativa
Urbana.
Antes de finalizar, gostaria de deixar registrado que essa
nova temporalidade, que permite a conjunção do natural e do
social, promove, em nosso entendimento, novas possibilidades
de estudo à Geomorfologia. Para além disso, exige uma
reavaliação da sua concepção de tempo e de espaço. Nunca é
demais registrar que a periodização geomorfológica recente
prioriza a escala histórico-geográfica, bem como amplia a sua
dimensão espacial. O fenômeno geomorfológico, antes analisado
como local, ou regional em termos de formas e especialmente de
processos, exige hoje uma nova orientação.
115
(Re)Ligar a Geografia: Natureza e Sociedade

Esta nova orientação também se visualiza no contexto da


epistemologia científica contemporânea e aparece expressa em
Morin (1996) quando se refere ao princípio da complexidade: “é
certo que ele se baseia na necessidade de distinguir e de analisar,
como o precedente, mas, além disso, procura estabelecer a
comunicação entre aquilo que é distinguido: o objeto e o
ambiente, a coisa observada e seu observador.
Os dois exemplos apresentados parecem simples, mas
indicam um pouco do que expressa MORIN (1996), e, em ambos
os casos, foi possível distinguir novas interfaces. Estas interfaces
se ampliam pelas novas formas de articulação dos sujeitos com
seus objetos.
A Geomorfologia se recria, teórico e metodologicamente,
saindo do centro e baseando na sua “fronteira” a possibilidade de
estudar novas interfaces, novas interpretações.

Referências
ALBRILTON Jr., C. C. Catastrophie episodes in earth history.
London, Chapman and hall, 1989.

ALLEGRE, C. A Espuma da Terra. Tradução de Jorge Branco. Lisboa,


1988.

BERTRAND, G. La ciência del paisaje uma ciência diagonal. In:


MENDOZA, G.; JIMÉNEZ, J. M. & CANTERO, N. O. El pensamiento
geográfico. Estudio interpretativo y antologia de textos (de Humboldt a
las tendencias radicales). Alianza Editorial SA., Madrid, 1982.

BERTRAND, G. Paisagem e Geografia Física global In: MENDOZA, G.;


JIMÉNEZ, J. M. & CANTERO, N. O. El pensamiento geográfico.
Estudio interpretativo y antologia de textos (de Humboldt a las tendencias
radicales). Alianza Editorial SA., Madrid, 1982.

116
Tempo Geomorfológico Interfaces Geomorfológicas

D. W. M. Complicaciones de ciclo geográfico. In: MENDOZA, G.;


JIMÉNEZ, J. M. & CANTERO, N. O. El pensamiento geográfico.
Estudio interpretativo y antologia de textos (de Humboldt a las tendencias
radicales). Alianza Editorial SA., Madrid, 1982.

GOULD, S. J. Seta do tempo, ciclo do tempo: mito e metáfora na


descoberta do tempo geológico. Tradução de MAFERRARI, C. A., São
Paulo, Companhia das letras, 1991.

LABOURIAN, M. L. História Ecológica da Terra. Ed. Edgard Blücher


Ltda, São Paulo, 1994.

MARTONE, E. de, El clima fator del relive. In: MENDOZA, G.;


JIMÉNEZ, J. M. & CANTERO, N. O. El pensamiento geográfico.
Estudio interpretativo y antologia de textos (de Humboldt a las tendencias
radicales). Alianza Editorial SA., Madrid, 1982.

MORIN, E. Ciência com consciência. Tradução Alexandre, M. D. e


Dória, M. A. S. Bertrand Brasil, Rio de Janeiro, 1996.

RODHE, G. M. Epistemologia Ambiental. Uma abordagem filosófico-


científica sobre a efetuação humana alopoiética. Coleção Filosofia 37,
EDPUCRS, Porto Alegre, 1996.

SUERTEGARAY, D. M. A. Geomorfologia: novos conceitos e


abordagens. Anais do VII Simpósio Brasileiro de Geografia Física
Aplicada. I Fórum Latino-americano de Geografia Física Aplicada.
Curitiba, outubro de 1997.

117
Que natureza? Qual Espaço Geográfico?

O conceito de espaço geográfico e a


abordagem da natureza
A Geografia, ao longo de sua história, definiu-se como
ciência da compreensão da relação do homem com o meio
(entendido, este, como entorno natural), diferenciando-se, assim,
das demais ciências, que em decorrência de seus objetos e das
classificações, foram individualizadas em Ciências Naturais e
Sociais.
Ao longo da história da Geografia, o espaço geográfico
foi concebido de diferentes maneiras, Milton Santos (1997, p.51)
assim o define:

119
(Re)Ligar a Geografia: Natureza e Sociedade

...o espaço geográfico “é formado por um conjunto indissociável,


solidário e também contraditório, de sistemas de objetos e sistemas de
ações, não considerados isoladamente, mas como um quadro único na
qual a história se dá. No começo era a natureza selvagem, formada
por objetos naturais, que ao longo da história vão sendo substituídos
por objetos fabricados, objetos técnicos, mecanizados e, depois,
cibernéticos fazendo com que a natureza artificial tenda a funcionar
como uma máquina”.

Uma análise mais atenta permite perceber que no


conceito de espaço geográfico de MILTON SANTOS está
presente a categoria natureza.
Retomando a compreensão de natureza, tem-se que:
Desde sua autonomia enquanto ciência, a concepção de natureza
veiculada pelos geógrafos constitui-se como algo externo ao homem.
Natureza são os elementos ou o conjunto dos elementos formadores
do planeta Terra, ou seja, ar, água, solos, relevo, fauna e flora. Esta
separação constitui herança, como de resto nas demais ciências, das
ideias de Descartes de separação entre natureza e homem,
dessacralização da natureza, transformando-a em objeto e o homem
em sujeito conhecedor/dominador desta. Não obstante, a Geografia,
mesmo pensada, por vezes, como estudo da natureza enquanto
paisagem natural, portanto algo independente do homem, ao se
tornar autônoma propõe uma concepção conjuntiva. Os fundadores
da Geografia, a exemplo de RITTER, RATZEL e LA
BLACHE, entre outros, propõem ainda que sob formas diferentes,
um objeto para a Geografia centrado na relação homem-meio
(natureza). Sob esta perspectiva, resgata a Geografia outra categoria
analítica, a sociedade. Nesta articulação em seus primeiros
momentos, a Geografia trabalhou mais com o conceito de comunidade
do que propriamente com o conceito de sociedade, esta, aqui entendida
como expressão da vida humana através das relações sociais
temporalmente estabelecidas. (SUERTEGARAY, 2000, p.15 e
16).

Assim, a Geografia passa a entender o espaço geográfico


como resultado da maneira como os homens organizam sua vida
e suas formas de produção. Nesta perspectiva, a Geografia
concebe a relação natureza-sociedade sob a ótica da
apropriação/exploração, concebendo a natureza como recurso à
produção. Vincula espaço geográfico a uma concepção de

120
Que Natureza? Qual Espaço Geográfico?

tempo-espaço indissociáveis. Entende espaço geográfico


enquanto resultado da coexistência de formas herdadas (de uma
outra funcionalidade) reconstruídas sob uma nova organização,
com formas novas em construção, ou seja, é a coexistência do
passado e do presente ou de um passado reconstituído no
presente.
Novas concepções de espaço geográfico implicam em
novas concepções de Natureza. A compreensão sobre a categoria
natureza na abordagem geográfica, em nosso meio, se amplia
com o advento da Geografia Crítica. A crítica à Geografia
Clássica, balizada pelos anos 1970 do século XX questionou
teórico-metodologicamente a concepção de natureza nos estudos
geográficos.
Nesse contexto admitiu-se que
... em síntese, fazer e ensinar Geografia é de certa maneira,
considerar como forma determinante da organização/produção do
espaço, não somente relações homem-natureza, mas principalmente as
relações entre os homens, relações estas que já nos referimos (relações
sociais de produção). Isto permite desvendar, além da qualidade das
relações entre os homens numa dada sociedade, como os homens
produzem e como no processo de produção se apropriam da natureza
(SUERTEGARAY, 1985, p. 87).

Este questionamento e a (s) nova (s) forma (s) de


construção da Geografia implicaram, desde então, num debate
sobre a necessidade do conhecimento da natureza nos diferentes
níveis de ensino. O que verificamos transcorrido esse tempo?
Quais as implicações dessa crítica? De maneira geral, pode-se
dizer que a institucionalização da Geografia Crítica introduziu
um debate e uma compreensão de espaço geográfico no qual a
natureza foi concebida como recurso ao processo produtivo;
nesta perspectiva, a natureza faz parte da Geografia como meio e
objeto de produção. A Terra dá suporte, fornece recursos e é

121
(Re)Ligar a Geografia: Natureza e Sociedade

instrumento de produção, portanto, interessava à Geografia


compreendê-la nesta perspectiva, ou seja, natureza socializada,
transformada, e não mais natureza em si. Podemos observar esta
lógica no texto de Moraes e Costa (1982, p. 124) referindo-se aos
fundamentos de uma Geografia Marxista e da constituição do
território:
A natureza aqui, além de meio e objeto de trabalho, transubstancia-se
em meio de produção e objeto de produção (matérias – primas), já
claramente delineada como segunda natureza, isto é, natureza já
transformada pelo trabalho anterior.

Ou na leitura de Moreira (1982, p. 35), o arranjo do espaço


geográfico exprime o modo de socialização da natureza. Tal o modo de
produção, tal será o espaço geográfico.
Esta lógica exerceu duplo papel, de um lado favoreceu o
debate sobre a relação natureza e sociedade, epistemologicamente,
fundamental à Geografia; de outro considerou desnecessário o
reconhecimento da dinâmica da natureza nos estudos geográficos.
Observa-se que é nesta mesma época de surgimento da Geografia
Crítica que emerge a questão ambiental. A emergência da questão
ambiental tem no seu centro a discussão sobre o processo
produtivo, o uso dos recursos, a possibilidade de escassez, que
derivou da crise do petróleo (anos 1970) associada à deterioração
já evidenciada de outras fontes e, de maneira ampla, da forma de
viver.
Pode-se dizer, então, que a questão ambiental se coloca
como uma temática contemporânea e a degradação da natureza
como questão, também, central, não somente, devido às
implicações na qualidade de vida, como também, no âmbito do
processo produtivo.

122
Que Natureza? Qual Espaço Geográfico?

Essas novas formas de compreender o espaço geográfico


e, a natureza em seu contexto, promoveu uma mudança de
abordagem da concepção de natureza.

Análise das diferentes concepções de natureza


no entendimento do espaço geográfico
As proposições relativas às concepções de natureza, que
se iniciava a discutir no âmbito da Geografia Crítica, são trazidas
à público de forma mais elaborada no texto de Seabra (1984). O
autor apresenta dois sentidos para a concepção de natureza. Para
indicar esses dois sentidos, retomamos Seabra (1984, p. 12):
1. Natureza é o mundo material que nos circunda, o universo que
está em constante movimento, mudança e transformação. A sociedade
humana representa uma parte específica da natureza subordinada às
suas próprias leis. Se entendermos natureza nesse sentido, então a
sociedade humana pode ser considerada parte do conceito de
‘natureza’, mas seria algo errado dizer que as leis da natureza agem
na sociedade, ou que as leis da sociedade agem na natureza. As leis
da natureza agem sobre o homem como um indivíduo biológico, mas
não agem sobre a sociedade humana, ou sobre as categorias sociais.

2. Natureza num sentido mais restrito é o mundo inorgânico e


orgânico estudado em ciência natural. A sociedade humana não é
parte deste conceito estreito de natureza. A natureza cria e forma o
ambiente geográfico da sociedade e é a base material da existência da
sociedade (...). O fato de que a natureza age sobre a sociedade e a
sociedade muda a natureza não afeta o caráter das leis que agem
dentro da natureza e da sociedade.

Estas duas concepções estão presentes nas análises


geográficas sem, necessariamente, serem explicitadas, ou melhor,
apresentadas à discussão. De certa maneira, observa-se no fazer
geográfico, da pesquisa ao ensino, a presença das duas ou mais
formas de conceber natureza, ainda que esteja mais presente a
concepção de natureza num sentido mais restrito (mundo
inorgânico e orgânico).

123
(Re)Ligar a Geografia: Natureza e Sociedade

Evolui também, e esta é uma concepção presente na


Geografia, uma análise geográfica fundamentada no conceito de
segunda natureza (natureza transformada pelo trabalho humano).
Esta transformação, de maneira geral, está implicada com a
questão ambiental e, também, em conteúdos presentes em
diferentes textos geográficos em que os autores reconstituem o
processo de apropriação e uso, visando indicar o que significa
natureza (recurso) e como se transforma pelo trabalho humano
no contexto da exploração capitalista.
Desde então, penso que poderíamos avançar, na medida
em que muitos conteúdos já revelam a transformação ocorrida e
as derivações decorrentes dos usos e apropriação da natureza ao
longo da história; já revelam a capacidade da ciência e da
tecnologia de reproduzir a natureza. Portanto, já existem as
condições objetivas, pois estes fatos se constituem vivências, de
uma reflexão sobre natureza ou naturezas. Conforme Latour
(1994), naturezas culturas, dado que a dimensão cultural e a
multiplicidade de organizações sociais que caracterizam a
constituição do mundo, a exemplo das sociedades indígenas e
comunidades quilombolas, para quem a cultura ou melhor a
cosmovisão, se faz diferenciada e, por consequência a concepção
de natureza.

A leitura do espaço geográfico e a abordagem


da natureza
A Geografia, com a qual trabalhamos, propõe
compreender a lógica de formação da natureza em conexão com
a formação social.
.

124
Que Natureza? Qual Espaço Geográfico?

Entretanto, uma análise mais detalhada do conteúdo


relativo à natureza nas análises geográficas, sobretudo nos
estudos identificados como Geografia Física, observa-se:
- Textos que propõem a articulação entre natureza e
sociedade, mas permanecem com o conteúdo dicotomizado;
- Textos que propõem e, em parte, resolvem a articulação
natureza e sociedade, mas deixam de abordar a dinâmica da
natureza, ou abordam superficialmente;
- Textos que buscam promover a articulação
natureza–sociedade a partir das formas de apropriação social
desta natureza, sem, contudo, desconhecer e/ou promover o
entendimento da dinâmica ou dos processos naturais.

A abordagem da natureza e os conceitos


vinculados
A natureza, enquanto categoria analítica, é concebida
como fundamental na análise geográfica, por grande parte dos
geógrafos, como constituinte do espaço geográfico. Conforme já
nos referimos, sua abordagem apresenta-se diferenciada.
Para a análise da natureza, de forma mais conjuntiva, os
conceitos utilizados com relativa frequência são os de paisagem e
ambiente. Paisagem constitui um conceito articulador de
elementos. Estes podem ser de ordem física ou humana. A
utilização desse conceito permite, mais facilmente, compreender
uma das dimensões do espaço geográfico, ou seja, a expressão
material. Tem sido dessa forma, ou seja, é a partir dessa
compreensão que o conceito de paisagem é utilizado no âmbito
da Geografia Física.
Sob outra perspectiva, a natureza é também pensada na
construção do conceito de ambiente. Neste caso, a natureza não
é, necessariamente, abordada de forma conjuntiva, como no
125
(Re)Ligar a Geografia: Natureza e Sociedade

conceito de paisagem. Por vezes, pode ser assim, mas, em geral,


quando se trata de problemas ambientais a discussão torna-se
mais específica, a exemplo do desmatamento, da contaminação
da água, do ar ou do solo. Para além dessa especificação, a análise
ambiental é também referida como impacto ambiental ou
degradação da natureza.
Em muitas das vezes não é feita a reflexão sobre as
consequências desta degradação para as populações envolvidas.
Na Geografia, o conceito de ambiente não deve ser construído
parcialmente. Nesse sentido pensar o ambiente, como já se
referiu Gonçalves (1989) por inteiro, ou seja, revelador da tensão
entre organização social x uso da natureza seria um caminho
mais abrangente. Por outro lado, é preciso distinguir natureza de
ambiente.

Referências
SANTOS, M. A Natureza do Espaço: Técnica e Tempo, Razão e
Emoção. 2ª edição. São Paulo: HUCITEC, 1997. p.308

MOREIRA, R. Repensando a geografia. In: SANTOS, M. (org.). Novos


Rumos da Geografia Brasileira. São Paulo: Editora HUCITEC, 1982. p
35-49.

ROSSATO-SUERTEGARAY, D. M. A Geografia que se faz é a que se


ensina. Orientação, São Paulo, Instituto de Geografia, USP, novembro
1985. p. 85-88.

SEABRA, M. Geografia (s). Revista Orientação, São Paulo, Instituto de


Geografia, USP, outubro 1984. p. 9-18.

SUERTEGARAY, D. Espaço Geográfico Uno Múltiplo. In


SUERTEGARAY. D. M. A.; BASSO, L. A., VERDUM, R. (org.)
Ambiente e Lugar no Urbano. A Grande Porto Alegre. Editora da
Universidade SUFRG, Porto Alegre, 2000.

126
Ritmos e subordinação da natureza: tempos
longos...tempos curtos*

A proposta neste momento é propor uma discussão


sobre os novos ritmos da natureza. A pergunta é, portanto: a
natureza apresenta-se como sempre foi, ou está mudando de
ritmo? Para tentar discutir esta questão estou trazendo uma
argumentação que não é nova, inclusive, já está, de outra forma,
publicada e trata sobre aceleração e subordinação da natureza.

*Este texto é resultado, inicialmente, de um outro que serviu de


referência a minha fala na mesa em que participei durante o II
Encontro Estadual de Geografia (Colatina/ Espirito Santo 2001,
publicado na revista Geografares, 2002), das ideias apresentadas na
Mesa Redonda Mudanças Ambientais de Ciclo Curto: ações e efeitos
antropogênicos no X EGAL – realizado em São Paulo 2005,
posteriormente resgatadas e ampliadas para debate no VI
ENANPEGE – Fortaleza, 2005. 127
(Re)Ligar a Geografia: Natureza e Sociedade

Num segundo momento, amplia-se a discussão, tentando


demonstrar que, nesse momento histórico, é possível promover a
produção de natureza, ou seja, hoje, através de novas tecnologias
genéticas, existe domínio sobre o processo de
produção/reprodução da natureza.
Para tentar responder sobre novos ritmos... Falemos de
tempos longos e tempos curtos. A ideia de tempo, assim como a
de espaço, está presente no campo científico e assume diferentes
matizes. Entre os intelectuais que abordam o tema espaço-tempo
tem-se: Virílio (1982), Santos, B (1989), Atlan (1991, 2000),
Serres (1990), Morin (1990), Gould (1991) Latour (1993),
Maturana e Varela (1993), Harvey (1994), Prigogine (1996)
Santos, M (1997) Varela (2000). Estes pensadores, das mais
diferentes áreas do conhecimento, auxiliaram esta reflexão.
Desde as ciências humanas às ciências biológicas, pensar espaço-
tempo impõe-se como necessidade reflexiva. Considera-se este
um tema relevante no campo da Geografia e no entendimento da
produção do espaço geográfico.

Do território da natureza a natureza do


território: o híbrido como possibilidade
De muito já aprendemos que a filosofia/cosmologia que
deu sustentação à Modernidade invocou a necessidade de
transformar a concepção de natureza como algo externo ao
homem. Esta externalidade diz respeito aos interesses de
dominação da natureza associados a uma perspectiva, também
filosófica, sustentada no conhecimento vigente, a da sua
imutabilidade, portanto, com possibilidade inesgotável de uso.
O advento da questão ambiental trás, entre outras
questões, a discussão da esgotabilidade e, consequentemente, a

128
Ritmos e subordinação da natureza: tempos longos ... tempos curtos

escassez, mas vai registrar também uma preocupação unilateral.


Uma preocupação com ela (a Natureza) e não vai se preocupar
muito com eles e elas (homens e mulheres coabitantes da
natureza) a não ser enquanto seres biológicos ao se referir a
possibilidade de extinção da espécie. Vai construir a ideia de
defesa da natureza (sempre externalizada e do homem como ser
biológico, portanto, natureza). Vai falar de impactos e vai
enfatizar aqueles que ocorrem com a natureza e contra a
natureza, mais uma vez como externalidade. Vai acreditar, de
maneira um tanto hegemônica, na possibilidade de reversão do
desgaste e da escassez pelo caminho do desenvolvimento técnico
e seu progresso com o tempo.
Esta fé no progresso, herança da construção da
Modernidade, dá sustentação à fé na possibilidade de reversão da
questão ambiental, assim como dá sustentação à possibilidade de
produção/reprodução da natureza no interior da lógica da
acumulação. Esta dupla questão relativa à natureza nos permite
perceber um duplo movimento: aquele da preservação da
natureza (externalizada), traduzido em diferentes variantes, e
aquele da sua reprodução via ciência (biotecnologia). Deste
duplo movimento emerge uma questão significativamente atual: a
da permanência ou a da mutação criativa, ou, manutenção da
criatividade não intencional, ou a aceleração da criatividade
intencional.
Em outras palavras, vivemos um momento da história
onde a natureza e sua degradação é apropriada como forma, cada
vez mais ampliada, de produção/acumulação. Agora, essa
acelerada apropriação que permite, de qualquer sorte, uma
discussão filosófica sobre a possibilidade de morte do planeta
gera uma necessidade de pensar o conhecer, pois, hoje, é

129
(Re)Ligar a Geografia: Natureza e Sociedade

amplamente difundido que os pressupostos de construção dessa


configuração do mundo exigem novas reflexões. Dessas novas
reflexões surge a ideia de híbrido, conceito que constitui a
expressão do resgate da unicidade. Todos os fenômenos
ambientais, sejam formas ou processos, são hoje identificados
como híbridos. Segundo Latour (1994, p.53)
quando surgiram apenas algumas bombas de vácuo, ainda era
possível classificá-las em dois arquivos, o das leis naturais e o das
representações políticas, mas quando nos vemos invadidos por
embriões congelados, sistemas especialistas, máquinas digitais, robôs
munidos de sensores, milho híbrido, bancos de dados, psicotrópicos
liberados de forma controlada, baleias equipadas com rádio – sondas
sintetizadoras de genes, analisadores de audiências, etc; quando
nossos jornais diários desdobram todos esses monstros ao longo de
páginas e páginas e nenhuma dessas quimeras sentem-se a vontade
nem do lado dos objetos, nem do lado dos sujeitos, nem no meio,
então é preciso fazer algo.

O autor prossegue, para concluir, dizendo que é preciso


um novo desenho das duas constituições (natural e política) para
que possamos acolher os híbridos e encontrar um lugar para eles, um
nome, uma casa uma filosofia, uma ontologia e, espero, uma nova
constituição. Assim, se o território da natureza, na origem, foi
natural a natureza do território, na origem, foi híbrido e é deste
amálgama que resultam novas formas, novos processos a serem
desvendados.
Estas formas, estes objetos me remetem a uma outra
questão. Esta diz respeito à instância que ainda reconhecemos
como natureza.

130
Ritmos e subordinação da natureza: tempos longos ... tempos curtos

Aceleração do tempo e subordinação da


natureza
Nas últimas décadas do século XX, entre outras
transformações significativas, destacamos as mudanças no
desenvolvimento científico e tecnológico e a reestruturação do
modo de viver. Estas implicam, na visão de intelectuais
contemporâneos (VIRÍLIO, 1982; HARVEY, 1993 e SANTOS,
1997), mudanças na concepção de espaço-tempo. Enquanto para
a Modernidade o tempo constituiu a base de toda a perspectiva
de progresso, desenvolvimento social e era pensado como tempo
longo, após os anos 1970 é a velocidade que o caracteriza. Isto
faz com que ocorra uma aceleração dos processos e, por
consequência, uma mudança na forma de conceber o tempo.
Esta aceleração traz significativas implicações no caráter prático
das atividades, como na produção do conhecimento. O tempo,
ao se intensificar, aniquila o espaço (VIRÍLIO, 1982); outros
dizem o contrário, o espaço é que permanece. Tempo e espaço
são indissociáveis, mudanças em um implicam mudanças de
concepção no outro. (SANTOS, 1997).
Conforme já escrevemos em outros momentos, o
presente é, também, um tempo de subordinação. A natureza
subordinada pelo desenvolvimento técnico-científico engendrou,
através de novas tecnologias, novos tempos e promoveu uma
transformação, não só das formas, como dos processos naturais.
Essa transformação implica a necessidade de repensar a
concepção de natureza. E nessa reflexão retomamos o já dito e o
já citado mais de uma vez.
A natureza concebida filosoficamente como externalidade promoveu
sua fecunda subordinação /transfiguração, ao ponto que hoje é
difícil avaliar as mediações entre uma (a natureza) e outra (a
sociedade). Os problemas colocados como ambientais, efeito estufa,

131
(Re)Ligar a Geografia: Natureza e Sociedade

camada de ozônio, transgenias, formas de relevo tecnogênicas, chuva


ácida, entre tantos outros, indicam que a leitura em separado da
natureza e da sociedade não é mais factível. Assim, novos conceitos e
novos métodos se fazem necessários. Tanto os conceitos quanto os
métodos necessitam expressar a materialidade do mundo atual. Para
tal, não há como fugir da ideia de híbridos, não há como fugir da
busca de novos métodos que promovam a articulação dos elementos e
processos naturais e sociais (SUERTEGARAY, 2006, p.30).

Retorno com esta referência pois considero relevante


para, a partir de exemplos tão presentes na Geografia
compreendermos quão frágil é o limite entre natureza e
sociedade.
Para tal não há como fugir da ideia de híbridos, não há
como fugir da busca de novos métodos que promovam a
articulação dos elementos e processos naturais e sociais. A
análise destas questões é, hoje, pensada sobre o princípio da
complexidade de Morin (1990) e da compreensão do dinamismo
na ótica da recursividade, em substituição à causalidade da
ciência clássica. Neste caminho metodológico, valoriza-se, não
necessariamente, a harmonia entre os processos, mas sim a
observação e o registro dos episódios catastróficos, das
mudanças de ritmos dos eventos singulares e episódicos, as
bifurcações.
Na atualidade esse amálgama exultante de naturezas
produzidas não nos permite decifrar objetos atuais, se não
atentarmos para o fato de que; se anteriormente nos referíamos a
relação natureza - sociedade, hoje vamos tomando consciência
que a sociedade/cultura cria natureza, ainda que essas novas
“naturezas” criadas sejam produzidas pelo trabalho ampliado
que, pela mediação, promove transfiguração. Produz uma
materialidade em que, sociedade e natureza se tornam condição
para deciframento de questões/objetos contemporâneos.

132
Ritmos e subordinação da natureza: tempos longos ... tempos curtos

Valoriza-se contemporaneamente a análise dos processos


no tempo que faz muito mais do que no tempo que escoa,
conforme denominações de Serres (1990). O interesse nessa
dimensão estaria associado à necessidade, sempre presente, de
conhecer a funcionalidade, agora a nova funcionalidade,
decorrente da crise do ambiente e suas implicações no processo
produtivo.
A razão técnica vai pensar na necessidade de
conhecimento dos processos no presente, e utiliza-se de
tecnologias que capacitam os científicos a essa compreensão. A
razão técnica exige produção de informação imediata, rápida e
espacializada, daí o desenvolvimento de programas como o SIG
(Sistema de Informações Geográficas) e da produção de
imagens. Estas novas tecnologias permitem produção de
informação de forma rápida, favorecendo, portanto, a tomada
imediata de decisões. A vinculação da ciência à técnica e à
progressiva busca de subordinação da natureza, na fase atual de
produção, é evidenciada num duplo sentido: de um lado, a
subordinação que degrada e aniquila; de outro, a subordinação
que recria e reinventa a natureza. Em ambos os casos, o híbrido
se manifesta como objeto densamente tecnificado no contexto
cultural da sociedade atual. É por essa razão que Drouin (1991,
p.169), ao se referir à Ecologia diz:
[...] por isso continua a ser - pese a imprecisão do vocábulo - uma
ciência da natureza, mas uma natureza repensada, rica de belas
regularidades e de fenômenos imprevisíveis, uma natureza a gerir e
controlar (o grifo é meu), mas, também a contemplar e a proteger.
As colocações do autor acima citado representam o
sentido dado à natureza e, em particular, à ecologia. Trata-se de
investir no seu conhecimento, não mais na perspectiva de sua
compreensão no tempo longo, ou seja, o tempo de sua formação.

133
(Re)Ligar a Geografia: Natureza e Sociedade

Cabe, agora, compreender a funcionalidade da natureza, suas


derivações no tempo curto. Importa, no estágio atual da ciência e
de sua relação com a tecnologia e a produção, conceber sua
dinâmica para efetivamente gerir e controlar.

Novos Ritmos da Natureza


A partir da proposição encaminhada, a intenção neste
texto é reverter a discussão, no sentido de perguntar se esses
novos ritmos são naturais, se fazem parte da natureza enquanto
dinâmica em seu processo de auto-organização. Maturana e
Varela (1993), assim como Morin (1990) concebem a natureza
como um sistema auto - eco - re - organizacional. Os ritmos, ou
ao menos parte desses ritmos não se relacionam com práticas
sociais? De minha parte penso que a natureza pensada como
externalidade ainda pode ser lida em seu tempo longo, em seus
ritmos mais ou menos rápidos e mais ou menos longos.
Agora, sob outra perspectiva, neste momento histórico
podemos perceber a intensificação de seus ritmos. Esta
intensificação está associada à intensificação tecnológica e, com
ela, à aceleração implicada em uma nova concepção de tempo. É
essa aceleração que nos permite visualizar e interpretar os
processos naturais como novos ritmos.
Quero lembrar, aqui, a perspectiva colocada no início dos
anos 1970 (1973) de esgotamento do petróleo - base energética
de sustentação do processo produtivo (a mola do mundo). A
perspectiva de esgotamento desse recurso constituiu um dos
elementos (não o único) que favoreceu o questionamento sobre a
finitude dos recursos.

134
Ritmos e subordinação da natureza: tempos longos ... tempos curtos

A questão ambiental que se consolida a partir deste


contexto, aliada ao processo de desenvolvimento científico em
articulação com a produção de novas tecnologias, vai promover
uma discussão sobre a clássica concepção de recursos:
renováveis e não renováveis. Esta classificação é construída a
partir de uma escala de tempo, compatível com a temporalidade
da natureza (1ª), na sua relação com a temporalidade humana.
Introduz a ideia de finitude, próxima ou longínqua, dos recursos.
Por exemplo, considerando a escala humana, recursos renováveis
são finitos em um curto prazo (escala humana), os não
renováveis têm finitude para além da temporalidade humana (ex:
petróleo), ou seja, têm duração mais longa de tempo na sua
renovação.
A ideia de finitude remete ao sentido dado à abundância,
frente à escassez de um determinado recurso; remete ao
entendimento do processo de exploração compatível com a
demanda e sua acessibilidade frente à produção, à circulação e ao
consumo. Neste sentido, temos a ideia de riqueza/abundância
construída a partir do valor dado aos recursos, frente à
necessidade e/ou escassez em relação ao mercado produtor
/consumidor.
O questionamento sobre o limite dos recursos e a
escassez associa-se, na atualidade, a uma lógica característica do
momento que é, a discussão da conservação do patrimônio
natural, de um lado e, de outro, a busca do conhecimento
genético na constituição dos recursos renováveis
(Biodiversidade) para, através desta detenção, promover a
continuidade de sua renovação.

135
(Re)Ligar a Geografia: Natureza e Sociedade

Nesse contexto, podemos visualizar novos ritmos, aqui,


no nosso entendimento, não mais da natureza, mas da natureza
artificializada, produzida. Hoje, convivemos com a aceleração no
ciclo de produção de grãos, de hortaliças, de frutas, de carne -
seja de gado, frango ou suína. Sob novas tecnologias, o ciclo de
produção/reprodução da vida é alterado num duplo sentido:
aceleração no tempo de produção e desaceleração no tempo de
duração, na circulação. Nosso cotidiano permite observar que, de
um lado, há a engorda do gado, a produção de carne, ovos,
madeira e tantos outros bens em tempos curtos. Agora, também
permite observar que, objetivando maior circulação e consumo,
transformações no processo produtivo, bem como no sistema de
transporte e armazenamento, favorecem a maior durabilidade
dos produtos, promovendo sua deterioração em tempo mais
longo. A beleza das frutas nos mercados é um exemplo desses
novos ritmos, dado que são produzidas para terem longa vida.
São os híbridos, aos quais se refere Latour (1994).
Assim, se de um lado podemos observar/avaliar a
natureza no tempo que escoa (o tempo longo), dos ritmos lentos;
de outro, podemos subordiná-la cada vez mais e reproduzi-la no
tempo que faz, ou seja, em tempo curto, com ritmo rápido ou
lento, dependendo da demanda da sociedade.
Particularmente na Geografia, podemos pensar na análise
da paisagem, por exemplo, tanto em tempo longo quanto em
tempo curto. Em ambos os casos, seleciona-se, pois, uma
paisagem como um objeto composto, um híbrido, que aparece
com constituição integrada de elementos. Aqui não importa se
esses elementos são naturais, ou naturais e sociais. Importa
perceber que, na conjunção, esses elementos revelam
simultaneidade de tempos. A paisagem (materialidade do espaço

136
Ritmos e subordinação da natureza: tempos longos ... tempos curtos

geográfico), como nos ensina Milton Santos (1997), é


acumulação desigual de tempo. Apresenta-se, portanto, dinâmica
e é o resultado da sucessão e simultaneidade de tempos longos e
tempos curtos. Ritmos em simultaneidade...

Para finalizar
Estamos diante de significativas transformações na
construção do conhecimento na medida em que amplas estão
sendo as mudanças no mundo (vivido). A natureza em seus
estudos encontra-se como os demais temas contemporâneos em
processo de reavaliação de conceitos e métodos. Aqui desejou-se
demonstrar alguns aspectos das mudanças, para tanto centramos
na concepção de tempo. Ao indicar as transformações, achamos
importante enfatizar a concepção de natureza ainda vigente e
indicar, a partir das novas formas de dominação/recriação da
natureza a necessidade de pensar novos conceitos que expressem
concepções mais conjuntivas. Daí tomarmos de empréstimo o
termo híbrido, ele poderá nos abrir um caminho de debate na
busca de novas construções. Conforme Maturana (2000), o que
se observa depende do observador.

Referências

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GAIA. Uma Teoria do Conhecimento. Tradução de Silvio Cerqueira Leite.
São Paulo: GAIA, 2000. p.103-122.

ATLAN, H. Tudo, Não, Talvez. Educação e Verdade. Tradução Fátima


Gaspar e Carlos Gaspar. Lisboa: Instituto Piaget, 1991. p.231.
137
(Re)Ligar a Geografia: Natureza e Sociedade

DROUIN, J - M. Reinventar a Natureza. A Ecologia e sua História.


Lisboa: Instituto Piaget, 1991. p. 179.

GOULD, S. J. Seta do tempo, ciclo do tempo: mito e metáfora na


descoberta do tempo geológico. Tradução de MAFERRARI, C. A. São
Paulo: Companhia das letras, 1991.

HARVEY, D. Condição Pós-moderna. São Paulo: Edições Loyola, 1993.


p.349.

LATOUR, B. Jamais Fomos Modernos. Ensaio de Antropologia


Simétrica Tradução de Carlos Irineu da Costa. Rio de Janeiro: Editora 34,
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MATURANA, H. R. y VARELA, F. G. El árbol del conocimiento. Las


bases biológicas del entendimiento humano. Santiago de Chile: Editorial
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MATURANA, H. R. Emociones y Lenguaje en Educación y Política.


7ª edición. Santiago de Chile: Hachette/Comunicación, 1993. p. 98

MATURANA, H. R. O que se observa depende do Observador. In:


THOMPSON, W. I. (org.). GAIA. Uma Teoria do Conhecimento.
Tradução de Silvio Cerqueira Leite. São Paulo: GAIA, 2000. p.61-76.

MORIN, E. Introdução ao Pensamento Complexo. São Paulo:


Instituto Piaget, 1990. p.177

138
Ritmos e subordinação da natureza: tempos longos ... tempos curtos

MORIN, E. O problema epistemológico da complexidade. 2ª edição.


Lisboa: Publicações Europa-América Ltda, s/data.

PRIGOGINE, I. O fim das certezas. Tempo, Caos e as leis da


Natureza. Tradução Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Editora da
Universidade Estadual Paulista, 1996.p199
SANTOS, B. S. Introdução a uma Ciência Pós-moderna. Rio de
Janeiro: Editora Graal, 1989.

SANTOS, M. A Natureza do Espaço: Técnica e Tempo, Razão e


Emoção. 2ª edição. São Paulo: HUCITEC, 1997.p.308.

SERRES, M. O contrato Natural. Rio de Janeiro. Editora Nova


Fronteira. 1991.

SERRES, M. Atlas. Colección Teorema. Traducción Alicia Martrell.


Madri, 1995. p.267

SUERTEGARAY, D. M. A. Questão Ambiental: produção e subordinação


da natureza. In: JOSÉ BORSACCHIELO DA SILVA; LUIZ CRUZ
LIMA E EUSTÓGIO W. CORREIA DANTAS. (Org.). Panorama da
Geografia Brasileira. 2 ed. São Paulo: Anablume, 2006, v. 2, p. 91-100.

VARELA, F. G. O caminhar faz a Trilha. In: THOMPSON, W. I. (org.).


GAIA. Uma Teoria do Conhecimento. Tradução de Silvio Cerqueira Leite.
São Paulo: GAIA, 2000. p.45-60.

VIRILIO, P. Guerra Pura. São Paulo: Editora Brasiliense, 1982. p.157.

139
Naturezas: epistemes inscritas nos conflitos
sociais*

Este texto foi originalmente escrito para balizar a minha


fala, na mesa com o mesmo título, durante o Encontro Nacional
de Geografia (ENG), que ocorreu em Belo Horizonte no ano de
2012. Ampliado, desde lá, o objetivo é trazer à discussão
diferentes concepções de natureza, que dão suporte à política, à
economia e à cultura, contemporaneamente.
O debate atual, em diferentes campos do conhecimento e,
incluindo a Geografia, aborda e valora a dimensão cultural.

*Este texto publicado originalmente em SUERTEGARAY, D. M. A.


Naturezas: epistemes inscritas nos conflitos sociais. Terra Livre, v. 41,
p. 17-30, 2013, foi nesta edição sintetizado. Uma secção do original foi
excluída mantendo-se a lógica de exposição da autora.
141
(Re)Ligar a Geografia: Natureza e Sociedade

A cultura segundo Abbagnano (1962) é produto de uma


determinada sociedade, produto das formas de organização em
diferentes sociedades, ao longo do tempo. O homem coletivo
está sempre produzindo cultura. A cultura, é então entendida,
como o conjunto dos modos de vida criados, apreendidos e
transmitidos de uma geração para outra, entre os membros de
uma determinada sociedade. É uma formação coletiva, nesse
sentido, podemos conceber cultura enquanto expressão de uma
sociedade (por exemplo, cultura ocidental); podemos, ainda,
concebê-la como um modo de vida particularizado na diversidade
social (por exemplo, o modo de vida dos ribeirinhos da
Amazônia).
O conhecer e o agir do homem são, portanto, indissociavelmente,
psíquicos e social-históricos...Tudo aquilo que encontramos de social
em um indivíduo, e mesmo a ideia de um indivíduo, é socialmente
fabricado ou criado em correspondência com as instituições da
sociedade considerada. (CASTORIADES, 1992, p.92).

Portanto, cultura pode ser entendida como produções


sociais-históricas, portanto, culturas. Estas se revelam na
presença de diferentes sociedades e mesmo nos diferentes
modos de vida em uma mesma sociedade. Embora possam ser
distintas no tempo e no espaço, modificam-se e coexistem. O
espaço Geográfico é também uma manifestação dessas culturas,
dado que é simultaneidade de tempos, conforme definido por
Milton Santos (1997) ou, expressão da coetaneidade, na
construção de Massey (2008).
As sociedades-culturas (LATOUR, 1994) revelam
concepções, epistemes, representações, formas de ser e de fazer.
O foco deste ensaio é o conceito de natureza. No meu
entendimento, natureza é tudo aquilo que é
produzido/organizado/ reorganizado sem a intencionalidade

142
Natureza: epistemes inscritas nos conflitos sociais

humana, inclusive no próprio homem (sua dimensão biológica).


São as coisas que compõe a superfície da terra e seu invólucro
próximo - e mesmo o distante. É a interação dessas coisas no
espaço-tempo. Se diferencia dos objetos, posto que estes, são
construídos com intencionalidade (SANTOS,1997), através de
projetos, de difusão de ideias e ideologias. Entretanto, a natureza
é, enquanto, percebida, concebida como conceito. Sendo um
conceito, nos remete a uma construção social/cultural.
Então, se a cultura é diversa no tempo-espaço, a natureza
também o é. O conceito, tão difundido hoje em dia, de
biodiversidade expressa essa diferenciação; em geral, consiste na
diferenciação espacial da natureza em relação a sua forma e
funcionalidade. Também aqui podemos conceber temporalidades,
ou seja, a natureza expressa nas suas diferentes configurações é
também, simultaneidade de tempos.
Da mesma forma, o conceito de diversidade cultural é a
expressão da diferenciação humana do ponto de vista de sua etnia
e seus modos de ser e fazer; seus habitus e também seus habitats.
Especificamente, habitus aqui é tomado conforme
Bourdieu um sistema de esquemas de percepção, de apreciação e de ação,
quer dizer um conjunto de conhecimentos práticos adquiridos ao longo dos
tempos que nos permite perceber, agir e evoluir com naturalidade num
universo social dado. (BOURDIER, in LOYOLA, 2002, p.68).
Para alguns, a biodiversidade é condicionante da
diferenciação cultural. Para outros, a biodiversidade é também
produto da coexistência com os humanos, portanto, vinculada à
diferenciação cultural. Outros mais, destacam que as concepções,
os interesses por compreender e, mesmo apropriar-se da natureza,
desta ou daquela forma, se expressa pelas suas trajetórias de vida
(coletiva) na relação com seu entorno, suas práticas, seus fazeres
seus habitus.
143
(Re)Ligar a Geografia: Natureza e Sociedade

É assim que Reclus (2010), por exemplo, no final do


século XIX, narrava as diferenças entre ingleses, alemães,
espanhóis e portugueses, demonstrando que a herança viking
estava presente no desejo de escalar, de fortificar o corpo, de
dominar a natureza em seus obstáculos - por exemplo, as
montanhas, pelos ingleses; os alemães viam a natureza como um
todo, refletida nas paisagens e na sua dimensão estética e os
franceses só viam o belo nos baixos campos cultivados,
organizados culturalmente. Os espanhóis e os portugueses,
embora grandes estrategistas, não conseguiram perceber o
sentido do belo nas terras do além-mar – percebiam, apenas, as
riquezas provindas das minas e do subsolo.
Reclus, em sua obra expressa que os "camponeses ou
exploradores burgueses do solo não poderiam imaginar a beleza dos campos
sob outro ponto de vista senão aquele da utilidade”(RECLUS, 2010,
p.65).
Há, entretanto, necessidade de distinção, enquanto esse
sentimento possa ser lido como um valor de uso em relação aos
camponeses, os exploradores, aos quais se refere Reclus,
concebem à natureza como valor de troca, recursos, mercadoria,
até mesmo quando pensam na sua condição estética. Essa
concepção se faz presente na atualidade, por exemplo, quando a
estética da natureza se incorpora ao valor de troca na ótica do
mercado.
O que isto quer nos dizer? Que a construção do conceito
de natureza é social, portanto, cultural. Sendo assim, diferenciado
no tempo-espaço, como são as sociedades-culturas. Esta
compreensão nos remete ao tema título deste ensaio quando nos
instiga a pensar sobre outras apropriações da natureza. Que
outras apropriações seriam essas? O que essas apropriações
revelam?

144
Natureza: epistemes inscritas nos conflitos sociais

Tentando responder e introduzir o debate, diria:


Na atualidade, para alguns (Ecologia Profunda) toda a
apropriação é uma intervenção que desorganiza, desequilibra e
deteriora a natureza. Não considerando, no caso, essas
apropriações, ou melhor, os apropriadores que, a natureza tem
um valor intrínseco (valorado por quem?). No contexto atual,
duas outras visões estão também presentes: a Economia Ambiental,
por exemplo, em que a natureza é pensada como externalidade a
ser inserida no cálculo econômico e a Economia Ecológica, ou seja,
aquela que trata das relações entre os conflitos ecológicos
distributivos e os diversos discursos de valoração” (ALIER, 2007,
p.45), incluindo aqui a natureza.
Ainda na atualidade, para outros, a apropriação enquanto
recursos (economia neoclássica, sociedade de consumo) é a forma
fundante de seu pensar, pois, o valor da natureza é externo, ou
seja, seu valor é o de mercadoria, o que justifica seu uso de forma
intensiva, muito embora não seja internalizada nos custos
econômicos. Esta constitui a visão hegemônica, mais
recentemente em embate com a Ecologia Profunda, a Economia
Ambiental e a Economia Ecológica.
Ainda há aqueles que concebem a natureza como tendo
um valor de uso, que vivem em alguns lugares amalgamados com
ela e, dela, retiram não mais que suas necessidades básicas sejam
elas alimentares, de moradia e vestuário.
Mas há ainda, para citar apenas alguns, aqueles que
concebem a natureza como tendo valor de uso, mas, como os
habitats e os habitus são diversos, tem suas necessidades ampliadas
por demandas externas. O termo habitat, é clássico na Geografia,
comportaria - em nosso entendimento - o habitus, uma vez que
habitar pressupõe relações humanas (e estas com a natureza),
portanto, relações sociais.
145
(Re)Ligar a Geografia: Natureza e Sociedade

Esses diferentes conceitos de natureza, aqui expressos,


revelam variados campos de compreensão e ação (habitus/habitat)
que apresentam estratégias diferenciadas no espaço, gerando
conflitos. Também aqui, campo é compreendido conforme
Bourdier (2002):
... onde o campo pode ser econômico, político, cultural, científico e
jornalístico, etc - ou seja, um sistema estruturado de forças objetivas,
uma configuração relacional que a maneira de um campo magnético é
dotado de uma gravidade específica capaz de impor sua lógica a todos
os agentes que nele penetram (BOURDIER, 2002 p.67).

Afirma, ainda Bourdier (2002), que um campo é também


um espaço de conflitos em que os concorrentes lutam para
estabelecer o monopólio, a hegemonia sobre o que é a
especificidade do campo. Muito embora o que pode ser
valorizado num campo não é necessariamente no outro.
O que essas apropriações nos revelam? O que os campos
em conflito revelam?
Diferentes formas de conceber a natureza, epistemes,
ideologias, modos de fazer que se revelam no ser (social).
Estas diferentes concepções estão presentes e compõe o
espaço geográfico, se articulam, se integram, se negam e,
portanto, se tornam conflituosas. Esses conflitos são sociais,
políticos e econômicos que, por sua vez, são também conflitos na
forma de conceber a natureza, portanto, também epistêmicos.
Enquanto conflitos sociais, se expressam - em muitos
casos - sob a forma concebida por Alier “Conflitos ecológicos
distributivos”. Estes, por sua vez, expressam conflitos de
apropriação de espaços/naturezas que buscam novas formas de
apropriação e contrariam populações originariamente ocupantes
do local/lugar.

146
Natureza: epistemes inscritas nos conflitos sociais

Diferentes estratégias de apropriação de espaços, recursos


e epistemes estão presentes na contemporaneidade. Hoje, um
discurso relativo à natureza, pensado pelo outro, por exemplo, as
concepções de natureza que balizaram os movimentos sociais e
ambientais na sua origem, vem sendo apropriadas e
transformadas. Essa metamorfose permite observar a constante
valoração da natureza, enquanto valor de troca, pela classe
dominante. Numa clara demonstração de sua ideologia, fundada
em uma concepção/conceituação/episteme de natureza
diferenciada daquela de outras classes ou grupos sociais.
Não é por outra razão que para Moscovici (2007), um dos
fundadores do movimento ecológico na França, em debate com o
antropólogo Robert Jaulin, afirma: toda a destruição da natureza é
acompanhada por uma destruição da cultura, todo o ecocídio é por certos
aspectos, um etnocídio.
Contraditoriamente, conforme a expressão de Moscovici,
a mesma cultura que produziu a concepção de natureza
externalizada do Homem (no caso ocidental) não vê a
humanidade em seu conjunto da mesma forma. Ao promover o
etnocídio concebe, no seu ideário, o homem de outras culturas
naturalizado, podendo assim, via o poder - que hoje em dia deriva
da economia em grande escala - expropriá-los ou mesmo
exterminá-los.

Sobre Geografia e Natureza


Isto posto cabe uma reflexão: Geografia e Natureza ou
Geografia e Naturezas? A Geografia aprendida, ensinada e
praticada parte de um conceito de natureza único, o conceito
hegemônico e fundante da cultura ocidental - a natureza como
outro, externo a sociedade. O debate atual sobre essa visão

147
(Re)Ligar a Geografia: Natureza e Sociedade

externalizada está tencionando, epistemologicamente, o


conhecimento geográfico. De que natureza falam os geógrafos. É
preciso pensar? A fala revela a intencionalidade, a fala e o fazer
revelam o método. Não há um único método; estes constituem
também indicações de cada um no mundo, eu no mundo, nós no
mundo.
É por isso que Ariovaldo U. de Oliveira, na ocasião do
debate em Belo Horizonte, sugeriu que retomasse o texto
articulando essas ideias com os métodos da Geografia. Farei uma
tentativa, ainda que breve.
Pelo exposto podemos conceber que na diversidade
cultural do mundo, diante das diferentes formas de viver
habitat/habitus tem-se uma diversidade de conceitos relativos à
natureza. Essas concepções hoje estão presentes nas formas e,
como a sociedade, constitui-se, usa ou explora a natureza gerando
conflitos, sejam epistêmicos sejam territoriais. Nos dois casos
verifica-se disputa, campo de força, portanto, poder sobre... para,
poder usar, para, poder explorar.
Os métodos revelam tensões. Assim, na Geografia temos
métodos que reconhecem a natureza como externalidade e, nesta
visão a natureza como recurso. Neste processo metodológico não
só natureza é externalidade, o objeto de investigação também é
concebido como externo ao pesquisador, trata-se da leitura
positivista ou neopositivista.
Sob outra perspectiva metodológica concebe-se o homem
(espécie) como natureza, portanto, um de seus constituintes, no
entanto, visualiza nos homens - vivendo socialmente - uma
continua transformação da natureza conjuntamente com e pela
sociedade. No caso do Marxismo, o modo de produção capitalista
rompe o metabolismo do homem na e com a natureza (FOSTER,

148
Natureza: epistemes inscritas nos conflitos sociais

2010) e, ao promover essa ruptura, degenera a vida - posto que


promove a alienação seja do homem seja do homem em relação a
natureza.
No campo da cultura (Geografia Cultural) se reconhece a
possibilidade e diversidade do conceito de natureza. Muito
embora o multiculturalismo nos permita avaliar os etnocídios dos
quais nos falam os diferentes movimentos sociais: pela Terra, pela
Água, pela Floresta. Entretanto, só compreenderemos a essência
do ecocídio se considerarmos que o espaço geográfico se forja
pelo imbricado conflito das instâncias sociais, econômicas,
políticas/ideológicas e culturais que se manifestam no espaço
como acumulação desigual de tempo, como já se referiu Santos,
mediadas pelo poder hegemônico de um dado período histórico.

Referências
ABBAGNANO, N. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Mestre Ju, 1962.
p.97

ALIER, J. M. O Ecologismo dos Pobres. Conflitos Ambientais e


linguagens de valoração. São Paulo: Editor Contexto, 2007. p.379.

BOURDIEU, P. Pierre Bourdieu entrevistado por Maria Andréia


Loyola. Rio de janeiro: EDUERG e Pensamento Contemporâneo, 2002. p
98.

FOSTER, J.B. A ecologia em MARX materialismo e natureza.2ª edição.


Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010, p 418.

LATOUR, B. Jamais fomos modernos. Tradução de Carlos Irineu da


Costa. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994. p.149.

MASSEY, D. Pelo espaço: uma nova política da espacialidade. Rio de


Janeiro: Bertrand Brasil, 2008. p. 312.

149
(Re)Ligar a Geografia: Natureza e Sociedade

MOSCOVICI, S. Natureza para Pensar a Ecologia. Rio de Janeiro:


Mauad X e Instituto Gaia, 207. p. 254.

RECLUS, E. Do Sentimento da Natureza Nas Sociedades Modernas.


São Paulo: Expressão e Arte Editora e Editora Imaginário, 2010. p.95

SANTOS, M. A Natureza do Espaço: Técnica e Tempo Razão e


Emoção. São Paulo: Ed. Hucitec, 1997. 2ª Edição. p.308.

150
Geografia e Ambiente: desafios ou novos
olhares*

Este texto constitui um pequeno ensaio sobre o tema


ambiente no contexto geográfico. São palavras introdutórias
como contribuição ao debate contemporâneo sobre: sociedade x
cultura ou, mais explicitamente, cultura e modo de produção.
Partiu-se do pressuposto de que, para trabalharmos com a
dimensão ambiental, é necessário que, enquanto geógrafos,
situemos nossa análise de forma diferenciada em relação à
Ecologia.

*SUERTEGARAY, D. M.A. Geografia e Ambiente: desafios e novos


olhares. Revista Mato-Grossense de Geografia - Cuiabá - v. 17, n. 1 -
p. 3 - 14 - jan/jun 2014
151
(Re)Ligar a Geografia: Natureza e Sociedade

Geografia e Ecologia são ciências que se tornaram


autônomas, mais ou menos, em torno de 1870, e que
expressaram seus objetos de estudo de maneira similar, ou seja,
ambas buscam as conexões. Assim, ambas se colocam como
ciência de relação: a Ecologia como ciência da relação dos
organismos com o meio, neste caso sua concepção é naturalista,
o homem socialmente posicionado não fazia parte desta análise,
concebida como Ecologia Natural, posteriormente.
A Geografia, por sua vez, surge como ciência de
interação entre o homem (ou a sociedade) e o meio, este último
inicialmente concebido como entorno natural, daí a confusão
conceitual até hoje presente, na medida em que o termo meio
(proveniente da Física e posteriormente da Biologia) aporta à
Geografia com este significado.
Embora possa parecer diferente, o conceito de meio é
correspondente ao conceito de ambiente em termos de
significação, ou seja, evoca a relação do ser individual ou coletivo
com seu entorno, hoje totalmente artificializado. Talvez
persistam algumas exceções em escala planetária.
Ambiente constitui, em nosso entendimento, um
conceito no qual estão implicadas múltiplas instâncias. Vamos
aqui tratar de quatro dessas instâncias: cultura, natureza,
economia e política.
A cultura é produto das formas de organização dos
homens em diferentes sociedades ao longo do tempo. O homem
coletivo está sempre produzindo cultura. Ela é aqui entendida
como o conjunto dos modos de vida criados, apreendidos e transmitidos de
uma geração para outra, entre os membros de uma determinada sociedade
(ABBAGNANO, 1962, p. 212). A cultura é, portanto,
melhormente expressa no plural: culturas. Sociedades-culturas

152
Geografia e Ambiente: desafios ou novos olhares

(LATOUR, 1994). Então, se a cultura é diversa no tempo-espaço,


a natureza também o é.
A natureza enquanto concepção é (no nosso entendimento)
tudo aquilo que é produzido/organizado/reorganizado sem a
intencionalidade humana, inclusive no próprio homem (sua
dimensão biológica). São as coisas que compõem a superfície da
terra e seu invólucro próximo e mesmo o distante. É a interação
dessas coisas no espaço–tempo e se diferencia dos objetos, posto
que estes são construídos com intencionalidade (SANTOS,
1997), através de projetos, de difusão de ideias, ideologias.
Entretanto, a natureza é, enquanto percebida, concebida como
um conceito. Sendo um conceito, remete-nos a uma construção
social/cultural1.
Tem-se, então, uma articulação fundante entre sociedade,
cultura e natureza. Sociedades produzem culturas, as
representam, as praticam. O conceito de natureza, por exemplo,
na sociedade ocidental, da qual fazemos parte, é entendido como
externo ao homem. Paradoxalmente, fazemos parte dessa
natureza, que é concebida como constituída do mundo abiótico e
biótico, por vezes excluindo o homem, por vezes incluindo-o
como ser biológico.
Neste contexto sociocultural, evidencia-se uma valoração
da natureza. A esse respeito Alier nos diz:
Procuro evidenciar que, nos conflitos socioecológicos, diversos atores
esgrimem diferentes discursos de valoração. Há os que insistem no
predomínio do crescimento econômico, na necessidade de aliviar a
pobreza não mediante a redistribuição, mas com o crescimento a todo
custo. (ALIER, 2007, p. 45).

1. O conceito de natureza explicitado mais de uma vez neste livro e em


outros artigos publicados se repete. Essa repetição deseja resgatar o dito
como forma de conceber a natureza.
153
(Re)Ligar a Geografia: Natureza e Sociedade

Essa valoração refere-se a uma concepção que perpassa a


economia e a política e é defendida pela Economia Neoclássica.
Desta forma, a sociedade torna-se cada vez mais desigual e a
natureza, enquanto externa ao processo produtivo, se transfigura
ou degrada-se. Emerge, assim, a questão ambiental, a questão
ecológica como paradigmática na sociedade atual.
Mas para o mesmo autor “existem aqueles que, mais
moderados, demandam uma valoração crematística das
externalidades negativas, aludindo às análises de custo-benefício”
(ALIER, 2007, p. 45).
Trata-se, neste caso, tendências econômicas
contemporâneas, que incorporam a discussão sobre o ambiente e
que são reconhecidas no âmbito da produção como Economia
Ambiental, um campo emergente na sociedade capitalista, ou
seja, a reconhecida economia verde, uma das faces do
capitalismo verde. Nesta visão econômica, a natureza é
internalizada ao cálculo econômico, torna-se mercadoria.
Concebe-se que o crescimento econômico e o desenvolvimento
técnico têm condições de reverter os processos de degradação da
natureza. Para tanto, propõe-se a internalização da natureza via
valoração dos recursos no âmbito da produção ou do consumo,
como a água por exemplo. Neste contexto mais recursos naturais
tornam-se mercadoria.
Ademais, temos aqueles que, sendo pobres e dispondo de pouco poder
político, apelam, contrariamente às outras linguagens, ao discurso dos
direitos humanos, ao valor da natureza para a sobrevivência
humana, aos direitos territoriais indígenas e à sacralidade de alguns
espaços de vida (ALIER, 2007, p. 45).

Trata-se, para este autor, da Ecologia dos Pobres. Esta


Ecologia, por sua vez, vincula-se à Economia Ecológica, e, na
discussão proposta por Alier (2007), o entendimento da

154
Geografia e Ambiente: desafios ou novos olhares

problemática ambiental, nessa perspectiva, implica o


reconhecimento de que os problemas ambientais, na grande
maioria dos casos, consistem no que denomina de conflitos
ecológicos distributivos.
Aqui é possível verificar que, no que concerne aos
conflitos ecológicos distributivos, tem-se uma relação intrínseca
estabelecida entre as noções de território/territorialidades e
ambiente. Cabe então explicitar o nosso entendimento sobre
estes conceitos. Quando a referência é o território trata-se do
Estado-nação ou, de uma Formação Econômica e Social (FES)
específica. Quando a referência é territorialidades, concebe-se
como expressão de modos de vida que, ao mesmo tempo que
podem ser individualizados, compõe uma sociedade, objetivada
num território (Formação Econômica e Social) . Esta conexão
se evidencia quando problematizamos a gestão ambiental. Logo,
pensar o território e muitas das discussões atuais no contexto
ambiental pressupõe conceber que: as questões ambientais são,
antes de tudo, questões territoriais.
Desse modo, os conflitos ambientais–territoriais são
sobretudo conflitos políticos. O conceito de gestão, comumente
usado no âmbito das políticas de reordenação territorial, indica a
necessidade de gerir o território, de forma um tanto mais
descentralizado. Propõe em algumas instâncias a constituição de
comitês representativos dos diferentes segmentos sociais. Nestes
casos as proposições e ou decisões na desconstrução de conflitos
são, cada vez mais, mediadas pelo conhecimento técnico. A
ciência colabora nesse sentido e, no caso específico da
Geografia, os diagnósticos, os monitoramentos, os zoneamentos
são exemplos de conhecimento técnico a serviço da política, em
relação ao ambiente.

155
(Re)Ligar a Geografia: Natureza e Sociedade

É por essa razão que se faz necessária a ampliação da


visão ambiental.
Trata-se agora de pensar o território (enquanto FES) e,
por isso, muitas das discussões atuais no contexto ambiental têm
defendido a ideia de que estas são antes questões territoriais, na
medida em que ao território, como espaço de apropriação
política, se vinculam os recursos e a sociedade em todas as suas
manifestações.
Como natureza, sociedade e suas manifestações no
território não são homogêneas, é no território que objetivamente
se manifesta o conflito. Esses conflitos, mesmo quando falamos
de ambiente, estão presentes. São, em geral, nos países pobres
que se manifestam mais intensamente. Assim, podemos dizer que
temos disputas de uso dos recursos relacionadas às formas de
valoração da natureza que, por sua vez revelam a concepção que
cada sociedade atribui a esses recursos podendo ser estes valores
de uso ou de troca.
Moscovici (2007), conforme já escrito em texto anterior,
quando em debate com o antropólogo Robert Jaulin reconheceu
que ao se destruir a natureza estamos destruindo culturas, aqui
reconhecidas como as culturas oriundas das sociedades
indígenas. A partir desse debate, passa a entender que ecocídio é
também um etnocídio. Essas culturas em diferentes países da
América Latina e, por exemplo, no Brasil coabitam o mesmo
território-nação muito embora tenham “garantido”
institucionalmente seus próprios territórios.
Portanto, vivemos em uma sociedade - cultura que
externaliza a natureza e, paradoxalmente considera algumas
sociedades como natureza selvagem e, em sendo selvagem
promove oetnocidio. São exemplos os povos originários e ou

156
Geografia e Ambiente: desafios ou novos olhares

comunidades tradicionais. Esta luta por espaço se revela pelo


valor atribuído aos recursos, expressamente contraditórios entre
as forças de apropriação econômico políticas e os habitantes
locais.

O conceito de ambiente como possibilidade


analítica na Geografia
A partir das referências iniciais deste texto, somos
levados a considerar que trabalhar com a questão ambiental em
Geografia, ou, dito de outra forma, trabalhar a partir do conceito
de ambiente é distinto da forma de conceber ambiente
ecologicamente, da forma mais comumente produzida por este
campo de conhecimento.
Para ilustrar a questão, trazemos um exemplo de pesquisa
do trabalho de De Paula (2013) sobre a problemática ambiental
da Pesca no Delta do Jacuí/ Porto Alegre-RS.
Na leitura da mencionada pesquisa, o que fica evidente é
a mudança no questionamento, uma vez que o autor não se
pergunta quais os impactos dos usos da terra em relação à
natureza. Assim, ao construir seu objeto de pesquisa relativo à
pesca, em particular no lago Guaíba/Porto Alegre-RS, De Paula
(2013) se pergunta sobre: que impactos os problemas ambientais,
de longa data, presentes e reconhecidos neste lago promovem
aos pescadores artesanais em relação a seus espaços de pesca
enquanto atividade de manutenção de suas vidas?
Disto resulta uma inversão de análise, pois os sujeitos da
pesquisa passam a ser os pescadores. São eles que informam
sobre as perdas históricas que a poluição desse lago, decorrente
de usos múltiplos, promove à pesca artesanal. Ao mesmo tempo,

157
(Re)Ligar a Geografia: Natureza e Sociedade

também, explicitam os conflitos com os protagonistas dos


diferentes impactos: a administração pública, os empresários, os
agricultores.
Esses conflitos externos à comunidade de pescadores
resultam em tensões entre pescadores, cujos espaços de pesca já
estavam, em certa medida, solidificados no que denominou
territorialidades da pesca. Constituem estas territorialidades
objetivações de modos de vida, em tensão com as políticas de
Estado nas suas diferentes escalas, além de empresários e
agricultores.
O mapa elaborado a partir de uma cartografia
comunitária expressa essa territorialização e, ao mesmo tempo,
identifica os conflitos de uso associados a cada um desses
territórios de pesca (Fig. 1).

Fig. 1. Arranjos Territoriais na Área de Abrangência do Fórum


Delta do Jacuí. Fonte: De Paula 2015.

158
Geografia e Ambiente: desafios ou novos olhares

Tomando como base o conjunto de informações obtidas


ao longo de sua pesquisa, conclui De Paula:
Compreendemos que existem cinco arranjos territoriais na área de
abrangência do Fórum Delta do Jacuí e estes integram inúmeras
dinâmicas territoriais dos pescadores artesanais. Contudo, são
afetados em diversos graus por disputas territoriais, com mineração,
agricultura, poluição doméstica e industrial, esportes náuticos,
principalmente, e unidades de conservação. Os impactos ambientais
das atividades econômicas têm causado o colapso dos recursos
pesqueiros e o abandono de territorialidades tradicionais dos
pescadores. Ainda, a extinção da pesca nesses pesqueiros tem
provocado o aumento da competição entre pescadores por territórios
em outras áreas. Ainda foi possível compreender que, enquanto
alguns arranjos territoriais são mais influenciados por atividades
econômicas, outros são palcos de disputas territoriais entre pescadores
locais e pescadores de outras regiões (DE PAULA, 2013, p.
121).

Revela esta pesquisa o conflito entre as territorialidades


construídas historicamente pelos pescadores e o Estado. Aqui
tem-se a manifestação de uma territorialidade onde há
apropriação dos recursos para manutenção da vida, pois a terra,
ou no caso a água (pois são pescadores) é apropriada
comunitariamente, é um bem de todos. Os pescadores não são
proprietários nem mesmo de suas moradias, têm apenas o direito
de uso, uma vez que moram, pelo menos os pescadores do Delta
do Jacuí, em ilhas, portanto, terras da marinha brasileira.
Um outro estudo que evidencia na análise ambiental a
imbricada relação da economia, política, natureza e cultura, é a
tese de Morelli (2011), relativa à expansão do eucalipto na
Metade Sul do estado do Rio Grande do Sul. Segundo este autor:
[...] esta região, desde 2007, está sendo palco de um processo de
territorialização associado a expansão da silvicultura com ênfase na
monocultura do eucalipto voltado para abertura do mercado
mundial. Neste processo de territorialização e de formação sócio
espacial tem-se uma expressão política, uma expressão econômica e
uma expressão socioambiental. (SUERTEGARAY e
MORELLI, 2011, p. 22)

159
(Re)Ligar a Geografia: Natureza e Sociedade

Morelli (2011) enfoca outra escala analítica. Ao efetuar


sua análise, parte das políticas de governo para decifrar o tema,
expansão do eucalipto na metade sul do Rio Grande do Sul, que
emerge enquanto problema ambiental de um lado e problema de
acesso à terra, de outro.
Com relação à questão ambiental decorrente da expansão
do eucalipto, o autor esclarece que:
A expressão política se caracteriza pela apropriação do espaço, na
tentativa, nos últimos anos, de mudança da matriz econômica da
região. Esta alteração de matriz econômica revela um embate entre
dois projetos econômicos distintos de apropriação territorial. Existe o
projeto para intensificar a Agricultura Familiar na região e existe o
projeto para transformar a região em um polo produtor de eucalipto
através da implantação de bases florestais por grandes empresas do
setor de papel e/ou celulose. A expressão econômica se caracteriza
pelos altos investimentos que as empresas de celulose anunciam para
os locais onde desejam se instalar e desenvolver seus projetos de
implantação de bases florestais com ênfase no plantio de eucalipto,
para este, posteriormente servir de matéria-prima para exportação,
ou uso em suas fábricas de celulose no Brasil e/ou no exterior... A
expressão socioambiental se caracteriza pela expectativa gerada nas
populações locais das áreas de atuação das empresas em torno de
empregos, melhorias sociais e medidas mitigadoras para o ambiente
através dos setores de responsabilidade socioambientais das empresas
(SUERTEGARAY e MORELLI, 2011, p. 22).

Por fim, demonstra que a questão ambiental, foco inicial


de sua tese, além de se expressar nas três dimensões analisadas
anteriormente, se integra ao que denominou expressão
territorial, entendida como manifestação de conflitos políticos.
Ou seja:
A expressão política, a expressão econômica e a expressão
socioambiental integram a expressão territorial da questão na
Metade Sul do estado do Rio Grande do Sul, que se caracteriza pela
formação de um território contínuo e outro território descontínuo. O
território contínuo se materializa pela espacialização da silvicultura
com base na monocultura do eucalipto em porções contíguas da
Metade Sul, caracterizadas por grandes extensões territoriais em
uma determinada porção do espaço, formando um polo produtor de

160
Geografia e Ambiente: desafios ou novos olhares

bases florestais com eucalipto que podem se integrar com os territórios


contíguos dos países vizinhos: Argentina e Uruguai, formando um
polo de monocultura do eucalipto no bioma pampa. Esta
configuração territorial caracterizada pela cooperação econômica e
pela concentração de grandes extensões territoriais por um grupo de
empresas do setor de papel e/ou celulose permitem a formação de
oligopólios econômicos e territoriais com consequências de difícil
mensuração. O território descontínuo se materializa quando
transforma a Metade Sul do estado, em um território-rede
juntamente com territórios na Argentina e no Uruguai,
transformando o território gaúcho em um ponto-nó, que permite às
empresas do setor de celulose e/ou papel estabelecerem seus fluxos
com outros territórios contínuos onde estão as decisões centrais de
suas atividades. (MORELLI, 2011, p. 23).

A figura 2 expressa a área de abrangência desses


territórios, contínuos e descontínuos e superposição, espaço e
disputa por projetos políticos diferenciados e uso e concepções
de natureza, também diferenciados. De um lado, as grandes
empresas visando, neste caso, ao espaço para produção de
espécies exóticas, concebendo a terra como meio de produção e
a madeira como mercadoria, por outro, o projeto de expansão da
agricultura camponesa, que tem na terra sua possibilidade de
subsistência e reprodução da vida, aguardado e manifestado
através da luta pela terra. Nas duas situações, política, economia
e ambiente estão presentes como instâncias em conflito, na
medida em que imbricada nessa disputa está presente a discussão
sobre a preservação do bioma Pampa.

161
(Re)Ligar a Geografia: Natureza e Sociedade

Fig. 2 - Polo Florestal no Bioma Pampa. Fonte: ZH,


27/09/2005. Fonte: Morelli, 2011.

Esses dois exemplos, entre outros, permitem que se


perceba as diferentes instâncias envolvidas nas questões
ambientais e demonstram que essas disputas são sobretudo
questões territoriais enquanto processo de formação econômico
social, pois tanto um como outro se inserem nos conflitos
contemporâneos, em território brasileiro, em relação ao uso e
apropriação da terra.
No primeiro exemplo, o dos pescadores, tem-se a tensão
entre diferentes protagonistas do espaço do Delta do Jacui (usos
múltiplos) e os pescadores artesanais. Enquanto que para os

162
Geografia e Ambiente: desafios ou novos olhares

agricultores comerciais e empresários, solo, água, sedimentos são


recursos a serem apropriados para a produção – a exemplo dos
agricultores comerciais cujo principal plantio é o arroz e dos
areeiros que demandam areia para a construção civíl – para os
pescadores trata-se da necessidade de manter as condições
ambientais adequadas à possibilidade de pesca. Para estes a pesca
é sua fonte de subsistência e posibilidade de reprodução de seus
modos de vida, mantendo suas territorialidades históricas. De
fato, estes admitem que ao se extinguir a pesca se extingue
também o pescador tradicional com o seu modo de vida
específico. No caso do pescador tradicional permanece, ainda
que de maneira tênue, o metabolismo entre sociedade e
natureza, conforme se expressava Marx*. A relação orgânica do
pescador com a água e o peixe ainda persiste, e do desejo de
manutenção desse metabolismo resulta o conflito com outras
instâncias que compõem a FES brasileira.
No caso dos empresários de extração de areia, da
agricultura comercial (Lago Guaíba) e mesmo a silvicultura,
conforme o exemplo tratado para a metade Sul do Rio Grande
do Sul, os recursos naturais, consistem em mercadoria, então,
para estes o metabolismo natureza-homem há muito já foi
rompido. E, ao romper-se, a natureza passa a ser entendida
como outra coisa, portanto, passível de ser tecnicamente
dominada e explorada. Assim é possível perceber que há, num
mesmo contexto social/cultural, concepções diversas sobre
natureza, sobre preservação, sobre conservação. Estas revelam
uma tensão ainda presente em nossa sociedade entre
comunidades tradicionais e seus modos de vida. Embora
fragilizado, o metabolismo homem e natureza ainda se mantém
entre os camponeses, ribeirinhos, pescadores tradicionais, como
expressões de modos de vida constituintes da FES brasileira, e

163
(Re)Ligar a Geografia: Natureza e Sociedade

assim desejam que permaneça. Para outras classes de agrícultores


capitalistas ou empresariais, este metabolismo efetivamente se
rompeu, restando como decorrente deste rompimento a
ampliação da problemática ambiental pela cada vez mais ampla
necessidade de recursos à produção e à circulação.

Para finalizar
Este ensaio busca reconhecer que no conceito de
ambiente e na análise ambiental as instâncias da
sociedade/cultura, da política e da economia estão presentes e
essa presença se manifesta sob diferentes tensões. Considera-se
que a concepção de natureza como o de naturezas–culturas
permite uma ampliação quando se trata de análise geográfica, ao
mesmo tempo que estabelece uma distinção entre a análise
ecológica, mesmo sendo esta elaborada no campo da
denominada Ecologia Humana.
Ao trabalhar com a dimensão da cultura, reconhece-se a
diversidade do conceito de natureza. Muito embora o
multiculturalismo nos permita avaliar, com base nos estudos dos
diferentes modos de vida, os etnocídios, dos quais nos falam os
diferentes movimentos sociais: pela Terra, pela Água, pela
Floresta, há outras dimensões necessárias para decifrar a questão
fundante da crise ambiental.
Considera-se que só compreenderemos a essência do
“ecocídio” se considerarmos que o espaço geográfico se forja
pelo imbricado conflito entre instâncias sociais, econômicas,
políticas e culturais. Estas se manifestam no território como
disputas, por mais natureza como valor de troca, pelo capital, de
um lado e, de outro, por mais natureza como valor de uso pelas
sociedades e territorialidades originais e originárias dos
lugares/territórios.
164
Geografia e Ambiente: desafios ou novos olhares

Ou seja, etnocídios/ecocídios por conta da apropriação e


uso dos recursos, podem ser entendidos, conforme a definição
de Alier (2007), como conflitos ecológicos distributivos.
Na essência desses conflitos está aquilo que se constitui,
na lógica dialética de Marx, agora, segundo Foster (2010)2, a base
para um possível entendimento da questão ambiental, ou seja, o
conceito de metabolismo entendido como o processo pelo qual o
homem, através de suas ações medeia, regula e controla o metabolismo entre
ele mesmo e a natureza (p. 201). Ao rompimento desta relação
orgânica, Marx denominou de falha metabólica. Tal conceito de
falha metabólica constitui a essência da compreensão da
separação do homem da natureza e sua progressiva alienação.
Portanto, o metabolismo, como conceito unificador do
homem com a natureza, ao mesmo tempo, se constitui, pelo seu
rompimento, o processo que separa o homem da natureza,
gradativamente, no decorrer da história. Este movimento nos
parece ainda visível, certamente, na sociedade contemporânea,
manifesto na valoração da natureza, enquanto valor de uso e
valor de troca tensionada pelas formas atuais de apropriação de
territórios, recursos, capital e trabalho, acumulação/consumismo
e sobrevivência.

Um agradecimento especial para Sinthia Batista pela leitura,


questionamentos e sugestões desse texto.

2 Maiores esclarecimentos sobre o conceito de metabolismo em Marx


encontram-se em FOSTER, 2010, a Ecologia de Marx: materialismo e
natureza.

165
(Re)Ligar a Geografia: Natureza e Sociedade

Referências
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Revista Eletrônica da Associação dos Geógrafos Brasileiros – Seção Três
Lagoas/MS. nº. 14, Ano 8, nov. 2011.

166
Pesquisa de Campo em Geografia*

Este procedimento, como sabemos, não é exclusivo da pesquisa em


Geografia, dele se apossam as mais diferentes áreas do conhecimento,
sejam classificadas como exatas, da terra ou social .... Desnecessário
seria falar da fundamental importância do trabalho de campo na
pesquisa geográfica. (SUERTEGARAY, 2002)

O presente texto é resultado de uma leitura sobre


Geografia e trabalho de campo apresentada em Belo Horizonte
durante o IV Encontro Estadual de Geografia de Minas Gerais.
Trata-se de um tema muito importante na Geografia, porém,

*Texto originalmente publicado na Revista Geographia, revisado e


ampliado.
SUERTEGARAY, D. M. A. Pesquisa de campo em Geografia.
GEOgraphia (UFF), Niterói/RJ, v. 7, p. 92-99, 2002.
167
(Re)Ligar a Geografia: Natureza e Sociedade

com pequena discussão. Na intenção de contribuir com o debate,


trago ao público este tema, estabelecendo uma relação entre
atividade de campo e método. É importante, em particular, para
aqueles que se iniciam na pesquisa, pensar suas formas de
realização. Cabe dizer, de início, que embora a discussão sobre
trabalho de campo seja pequena, significativos textos de
geógrafos experientes estão disponíveis para leitura. Não vou
arrolar todos, porém, é importante lembrar os textos de: Lacoste
(1985), Tricart (1980) Kayser (1985) e Oliveira (1985), entre
outros que tratam do tema. As referências completas destas obras
acrescentamos na bibliografia, mas, é importante dizer que esses
textos escritos nas décadas de 70 e 80 trazem à discussão, o
sentido do trabalho de campo para o geógrafo, o compromisso
com as comunidades envolvidas e a divulgação dos resultados.
Ao ler a súmula/ementa proposta para discussão na
referida mesa, encontrei entre os diferentes termos que podem
expressar a pesquisa de campo, a palavra campear. Campear é
uma palavra utilizada pelo homem do campo (peão) e de maneira
ampla pela população da Campanha no Rio Grande do Sul e
significa procurar. Quando alguém diz "estou campeando algo"
significa estou procurando. Escolhi, então, esta palavra como
uma forma de fazer campo. Campeando – procurando –
pesquisando. Se entendermos campear como pesquisar, cabe
dizer que pesquisar é busca. Entretanto, inicio esta fala
colocando, num primeiro momento, o que entendo por pesquisar.

Primeiro Momento
As respostas às questões que me coloco partem da
concepção de construção do conhecimento que se baseia, entre
outras leituras, em Maturana e Varela (1996) e Maturana (1994),

168
Pesquisa de Campo em Geografia

dois bioneurologistas chilenos que fornecem a base biológica


para a construção/explicação das teorias construtivistas. A partir
delas pretendemos expor nossas ideias nessa mesa.
1ª Questão: O que é pesquisar?
Em meu entendimento, pesquisar é responder questões,
responder perguntas.
- Que perguntas respondemos?
Respondemos as perguntas que nos instigam. Buscamos
respostas para nossas dúvidas em relação ao mundo e a nós,
neste mundo.
O processo de pesquisa/investigação é, também, um
processo de auto-conhecimento, ou seja, o reconhecimento de
nós no mundo.
2ª Questão: No processo de conhecer – conhecendo - se
como se visualiza a questão do sujeito?
Neste processo, sujeito e objeto se fundem.
Neste processo, o sujeito constrói o objeto e o objeto
reconstrói o sujeito (para lembrar Armando C. da Silva).
3ª Questão: Esta relação foi sempre compreendida desta
forma?
Diríamos que não, ela é expressão de diferentes
interpretações filosóficas, históricas, sociológicas e biológicas na
medida em que expressam a partir das formas de conhecer os
métodos para conhecer, em diferentes momentos históricos,
portanto, diz respeito a diferentes compreensões e ou leitura do
mundo. Exemplificando temos:
No método positivista, tão conhecido nosso, o campo
(realidade concreta) é externo ao sujeito. O conhecimento/a
verdade está no objeto, portanto no campo, no que observamos.
169
(Re)Ligar a Geografia: Natureza e Sociedade

No método neo-positivista o campo como realidade


empírica é externo ao sujeito. Agora, nesta perspectiva, o campo
como realidade externa é reconhecido a partir da construção do
sujeito, ou seja, de suas referências teóricas, ou de sua posição
enquanto observador, diante do objeto.
No método dialético, o campo como realidade não é
externo ao sujeito, o campo é uma extensão do sujeito, como é,
numa outra escala, a ferramenta utilizada para o trabalho, uma
extensão do seu corpo, ou seja, a pesquisa é fruto da interação
dialética entre sujeito e objeto.
Resulta da compreensão dialética o conceito de PRÁXIS e
a concepção de que estamos no mundo para pensá-lo e
transformá-lo. Pesquisar pressupõe reconhecer para intervir. Esta
concepção metodológica informa que a consciência do mundo
forjava-se/ forja-se coletivamente e, as transformações dar-se-
iam ou dar-se-ão pela unificação das lutas (pelo coletivo dos
trabalhadores). A pesquisa de campo é o conhecimento
produzido no contexto da vida que ao promover questões,
promove engajamento e investigação. Esta por sua vez alimenta a
reflexão e, na vivência a luta pela transformação.
No método fenomenológico, o campo é a expressão das
diferentes leituras do mundo. É o lugar (da observação e da
sistematização) do olhar do outro – daí o método
fenomenológico dizer da necessidade de se colocar no lugar de.
Negando o positivismo este método não separa sujeito e objeto.
Entretanto, caracteriza-se como um método descritivo do que
seria o outro (sujeito) a partir da sua expressão fenomenal.
Na compreensão da hermenêutica, o campo é a interação
do sujeito no seu caminhar e pensar com o objeto. O sujeito
como ponto de partida do conhecimento promove, a partir de

170
Pesquisa de Campo em Geografia

sua vivência, a ação que desencadeia o processo de conhecimento


e (re)construção do mundo. O campo é o texto, este precisa ser
desvendado aberto e compreendido em seus múltiplos
significados para, a partir dessa compreensão promover a
reconstrução do sujeito/objeto/sujeito. Da nossa prática advém
nossas indagações e das respostas que damos a elas advém nossa
prática e as transformações simultâneas de nós e do mundo.
4ª Questão: Os diferentes métodos encaminham formas
diferenciadas de pesquisa de campo?
Sim, e estas diferentes práticas vão expressar diferentes
Geografias. Assim temos no âmbito de nossa disciplina:
Pesquisa de campo como observação empírica e
descritiva, neste caso a resposta está no fenômeno. E fenômeno é
entendido como algo que está fora, algo externo ao sujeito,
visível, perceptível por ele.
Esta prática promove o reconhecimento do campo
entendendo que o observador é externo ao fenômeno analisado,
que este é capaz de captar a informação vinda do objeto em
análise, portanto, um conhecedor neutro, apenas sistematizador
do que o mundo dos fenômenos revela.
Numa outra visão geográfica, podemos aceitar que a
pesquisa de campo é desnecessária, pois a leitura do mundo pode
ser feita a partir das representações do mundo, a exemplo dos
mapas, das cartas e, mais recentemente, das imagens de satélites.
Esta leitura de campo não difere da concepção de
fenômeno anteriormente apresentada, quando a realidade se
apresenta como algo externo ao sujeito. Da mesma forma, que a
visão positiva, promove o conhecimento do mundo para outros.
Decifra o mundo que para o pesquisador se revela. O que
promove a diferença é a incorporação da leitura das
representações (imagens) como sendo o mundo.
171
(Re)Ligar a Geografia: Natureza e Sociedade

Na pesquisa de campo como ação de explicação e


transformação, a necessidade de campo é pensada com vistas a
sua transformação. A Geografia, neste caso, exerce uma ação de
grafar o território. Constrói novas, “territorialidades”, juntamente
com outros segmentos sociais.
Neste caso pesquisa de campo constitui para o geógrafo
um ato de observação da realidade do outro, interpretada pela
lente do sujeito na relação com o outro sujeito. Esta interpretação
resulta de seu engajamento com o objeto de investigação. Sua
construção geográfica resulta de suas práticas sociais. Neste caso,
o conhecimento não é produzido para subsidiar outros processos.
Ele alimenta o processo, na medida em que desvenda as
contradições, na medida em que as revela e, portanto, cria nova
consciência do mundo. Trata-se do movimento da Geografia
engajada, seja este em movimentos sociais, agrários urbanos ou
ambientais. Enfim, movimentos de “territorialização,
desterritorialização e reterritorialização”.
A pesquisa de campo como compreensão hermenêutica
supera a relação sujeito versus objeto, o campo é nosso espaço de
vida que se apresenta como um texto carregado de signos que
precisam ser desvendados. Entende-se que, nesta perspectiva, o
geógrafo (sujeito) é objeto (campo) e Campo (é sujeito). O
geógrafo, neste caso, visualiza o mundo como uma totalidade
complexa e dialética. Trata-se, como diz Morin (1982), de um
sistema que não deve ser compreendido como na biologia
(externo ao sujeito). Trata-se de um sistema mundo da qual faço
parte como observador e transformador num movimento em que
me percebo no movimento e na transformação do mundo.
Assim, a busca de mudança ou de defesa do “sistema”
atual poderá ser gestada a partir de cada um de nós (sujeitos),
com nossas práticas e indagações sobre o mundo, se assim
desejarmos.
172
Pesquisa de Campo em Geografia

Enfim, concluo na busca das respostas a questões feitas


na ementa sugerida para esta mesa.
O mundo atual é, ao mesmo tempo, virtual e real.
Não reconhecemos o mundo dito real, hoje, se não
compreendemos a lógica do mundo virtual, das imagens, redes de
comunicação, da simulação, das representações. Dado que eles
nos aproximam e, ao mesmo tempo, distanciam-nos do real.
Portanto, ir ao (mundo) campo é necessário, agora, cabe
perguntar com que ritmo, com que ética? Em meu entendimento,
o ritmo e a ética são respondidos pelo método, ou seja, como
vemos o mundo.
Assim, vemos o campo pelo olhar do método. O método
escolhido é a expressão de nossa concepção do mundo. Método,
portanto, é uma escolha que diz respeito ao nosso ritmo e a
nossa compreensão/ética.

Segundo Momento
Nesta segunda parte cabe resgatar algumas questões
vindas dos debates. Uma delas diz respeito aos instrumentos que
nos auxiliam no olhar, quando da pesquisa de campo. Neste caso,
a analogia foi feita com um fotógrafo; dizia-se então: como,
pensar o instrumental em Geografia? Uma boa fotografia exige
uma boa máquina, cuja lente seja capaz de registrar as nuances.
Sim, tem razão quem faz este questionamento. As novas
tecnologias auxiliam em muito a leitura do campo pelos
geógrafos, porém elas não bastam, como não basta uma máquina
de fotografia sofisticada; a leitura expressa em ambos os casos
exige e deixa evidente o método e a visão de mundo do
observador geógrafo ou fotógrafo. Lembremos Sebastião

173
(Re)Ligar a Geografia: Natureza e Sociedade

Salgado, sua obra e sua visão de mundo constituem expressão de


um método, o que ele quer e como quer olhar. Sua sofisticada
máquina responde seu caminhar. É neste caminho que, entendo,
devemos pensar o uso de nossos instrumentos de campo ou de
laboratório, enfim de pesquisa. Eles não podem como temos
verificado, ser os encaminhadores dos resultados. Instrumentos
são meios de trabalho e não o fim.
As novas tecnologias, em particular, os usos dos Sistemas
de Informação Geográfica em muitos casos são utilizados dessa
forma. Elas são por si só uma possibilidade analítica, se não nos
dermos conta dessa limitação ficaremos sujeitos (e nesse caso
viramos objeto) do caminho e dos resultados aí possibilitados.
Sobre isto escrevi há um tempo o seguinte:
Um grande número de usuários destas tecnologias desconhece, por
formação, a dinâmica da natureza e a complexa articulação com a
sociedade, traduzindo suas avaliações a partir de procedimentos de
classificação e superposição de forma mecânica. Ao trabalhar nesta
perspectiva, que se assenta na perspectiva cartesiana, pois a base de
construção espacial destes dados estrutura-se através de
pontos/linhas/áreas propõe um gerenciamento do espaço de vida,
através de uma síntese da realidade produzida através do que
denominamos “empilhamento de mapas ou planos de informações”.
Tratar-se-ia, neste caso, de um resgate de procedimentos clássicos da
Geografia - superposição de mapas - visando a construção da síntese
(geográfica), agora feita através de tecnologias modernas mais
rápidas, porém mais generalistas que as anteriores. Tudo o que pode
ser mapeado com estes procedimentos se expressa em pontos, linhas,
polígonos. Uma análise, desta ótica de trabalho nos leva à percepção
de que estamos trabalhando ainda uma “velha” Geografia, agora,
com uma nova roupagem. Toda discussão epistemológica feita ao
longo destes últimos anos parece ter, em parte, “afundado” e vivemos
novamente o advento do estudo de áreas/regiões que apresentam
características internas semelhantes e diferenciadas e que, sobre elas,
deve se impor um planejamento, ou gestão. Trata-se, ainda, de
perguntar planejar para quem?" (SUERTEGARAY,2002,
p.97).

174
Pesquisa de Campo em Geografia

Terceiro Momento
Concebemos, portanto, o trabalho de campo de forma
mais ampla, como um instrumento de análise geográfica que
permite o reconhecimento do objeto e que, fazendo parte de um
método de investigação, permite a inserção do pesquisador no
movimento da sociedade como um todo. Esta visão não nega a
possibilidade de uso de instrumentalização no campo e na
pesquisa de forma ampla.
Daí a necessidade de pensar o uso das novas tecnologias.
Sem dúvida, não devemos descartá-las. Devemos utilizá-las a
serviço de nossas escolhas. Muitas experiências já são praticadas
com essa perspectiva.
O que quero dizer é que sem pensar corremos o risco de
nos tornar de sujeitos do processo em objetos do processo. Isto
não é algo novo ou impossível. Neste momento de construção
do mundo, a ciência torna-se suporte efetivo do processo
produtivo, por conseqüência, seu interesse cada vez mais se torna
privado e em sendo privado direcionado.
A construção do conhecimento, ao se tornar privado,
nega o sentido original de sua construção, aquele de descoberta
do eu no mundo, pois transforma o conhecer em mercadoria e o
pesquisador em objeto, instrumento de produção de um dado
conhecimento, cujo método e o instrumental, muitas vezes, ou,
na maioria das vezes, é previamente determinado.
Pesquisar é o fundamento de nossa busca,
particularmente, neste momento histórico, onde a educação
defende a tese de que apreendemos o tempo todo e educar é
ensinar a apreender, ou seja, pesquisar, ou ainda no linguajar
pampeano - campiar.

175
(Re)Ligar a Geografia: Natureza e Sociedade

Quarto Momento
Desde a publicação deste texto (2002) prosseguimos na
caminhada. Este quarto momento revela uma experiência de
atividade de campo, trata-se agora de pensar o campo de forma
participativa para além do porquê fazemos campo, trata-se de
refletir sobre com quem faremos campo? Como exemplo,
resgata-se as referências de um texto, também já publicado, que
relata das vivências de campo mais recentes, em atividades
conjuntas entre, ribeirinhos, gestores e pesquisadores na da
Floresta Nacional de Tefé- FLONA de Tefé.
O ponto de partida foi a elaboração de um mapeamento, que se
integra a um processo de gestão territorial". Esse tipo de cartografia
“que se quer participativo entende ligar os atores e o território, construir o
território com os atores e mobilizar estes atores através do território sob a
hipótese de que nessa relação uns e outros se transformam” Joliveau (2008,
p38).
Trata-se, portanto, de trabalhar na perspectiva do mapeamento
comunitário ou mapeamento participativo do uso da terra. Os mapas
comunitários podem conforme já se referiu Colchester (2002), na
leitura de Acselrad e Coli (2008, p.19), serem “ferramentas úteis
para mobilizar a comunidade e gerar debates locais sobre a demanda
de terra, como também para planificar o manejo dos recursos
naturais”. Podem também fortalecer as comunidades reafirmando
seus valores e seus conhecimentos quando são resgatadas e valoradas
práticas tradicionais de uso da terra ou mesmo “habitus” fortalecidos
pela cotidianidade dos fazeres.

Consiste ... um processo de mapeamento participativo com


utilização/mediação do SIG (Sistema de Informação Geográfico).
Aliado aos pressupostos acima introduzimos a ideia do Sistema de
Informações Geográficas Participativas (SIGP) que

buscam o envolvimento comunitário na produção de mapas a fim de


evitar possíveis distorções no uso dos GIS convencionais, pela
utilização do conhecimento local como base de dados e o
empoderamento dos envolvidos para a tomada de decisões. Milagres
(2011, pg. 41)
176
Pesquisa de Campo em Geografia

Pleiteamos que os SIGP devem ser visto sob a ótica da cartografia


geográfica, que objetiva utilizar os mapas para a análise do espaço
geográfico, Giraidi (2011, p. 4), não a simples elaboração de cartas
base. O SIGP pode constituir uma prática desenvolvida através do
diálogo de saberes, para que o ato de planejamento, manejo e
comunicação da informação espacial, conforme Rambaldi et al.
(2006) busque incorporar as necessidades, saberes e desejos das
pessoas que são afetadas pelo processo de tomada de decisões, no
âmbito da gestão territorial. Assim, a pesquisa é realizada dentro de
um espaço de interlocução onde os atores implicados participam na
identificação e na resolução dos problemas específicos ao processo, com
conhecimentos diferenciados. (SUERTEGARAY ET AL 2012,
p.177 e 178)

Enfim, o campo constitui um procedimento fundante da


Geografia que associado a Cartografia, ao longo do percurso
acadêmico, constitui forma de fazer, pensar, registrar, analisar,
interpretar e, sobretudo, atuar.

Viver é muito perigoso. Guimarães Rosa


Grande Sertão Veredas

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sobre a Geografia. São Paulo: Edições AGB.

179
Essa obra foi produzida em
Porto Alegre pela Editora
Compasso Lugar-Cultura. Na
composição foram utilizadas
as fontes Garamond e
GaramondNº8.

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