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COMPLEXIDADE,

CAPITALISMO
E CIÊNCIAS
AMBIENTAIS
Paradigmas, teorias
e estudos de caso

ORG.
GUILHERME VIEIRA DIAS
JOSÉ GLAUCO RIBEIRO TOSTES
ELZA NEFFA
COMPLEXIDADE,
CAPITALISMO
E CIÊNCIAS
AMBIENTAIS
Paradigmas, teorias
e estudos de caso

ORG.
GUILHERME VIEIRA DIAS
JOSÉ GLAUCO RIBEIRO TOSTES
ELZA NEFFA
O livro Complexidade,
capitalismo e ciências
© Guilherme Vieira Dias, José Glauco Ribeiro Tostes e Elza Neffa
ambientais,
Editora fruto
Telha do trabalho
de diversos
Todos os professores-
direitos reservados.
A reprodução não autorizada desta publicação, no todo ou em parte, constitui violação de
pesquisadores, aborda
direitos autorais. (Lei a
nº 9.610/1998)

questão do novo
Conselho paradigma da
Editorial
Dra. Ana Paula P. da Gama A. Ribeiro; Dra. Camila Gui Rosatti; Dra. Carolina B. de Castro
ciência,Ferreira;
a saber, a complexidade.
Dr. Daniel Moutinho; Dr. Hamilton Richard A. F. dos Santos; Dr. Jonas M. Saru-
bi de Medeiros; Dra. Larissa Nadai; Dra. Ludmila de Souza Maia; Dra. Maria do Carmo
Tal paradigma é compreendido
Rebouças; Dr. Nathanael Araújo da Silva; Dra. Priscila Erminia Riscado; Dr. Rafael França
dentro de um Santos;
Gonçalves dos contexto deCharafeddine Bulamah; Dra. Silvia Aguião
Dr. Rodrigo

crise do capitalismo, incluindo


Catalogação na publicação
de modo decisivo questões
Elaborada por Bibliotecária Janaina Ramos – CRB-8/9166
pertinentes às ciências
ambientais, C737 desde aspectos
teóricos a estudos Complexidade,
de caso.capitalismo e ciências ambientais: paradigmas, teorias e
estudos de caso [recurso digital] / Organizadores Guilherme Vieira Dias,
José Glauco Ribeiro Tostes, Elza Neffa. – Rio de Janeiro: Telha, 2023.

Nesse sentido, osAutores: cincoGuilherme Vieira Dias, José Glauco Ribeiro Tostes,
Elza Neffa, Marcelo Silva Sthel, Krishna Neffa, Rachel Alice
primeiros capítulos Mendes tratamda Silva Dias, Juliana Rocha Tavares.

das diferenças entre o2370 “velho”


Kb.

e o “novo” paradigma ISBN 978-65-5412-302-0


da (e-book)
1. Meio ambiente - Aspectos sociais. 2. Capitalismo. 3. Sustentabilidade.
ciência, perpassando teorias
I. Dias, Guilherme Vieira (Organizador). II. Tostes, José Glauco Ribeiro
das ciências naturais e sociais,
(Organizador). III. Neffa, Elza (Organizadora). IV. Título.
CDD 304.2
enquanto os três últimos
capítulos
Índiceapresentam estudos
para catálogo sistemático
I. Meio ambiente - Aspectos sociais
de caso sobre questões
socioambientais.
Produção Editorial
Publisher: Douglas Evangelista
Gerente editorial: Mariana Teixeira
Este livro reúne
Coordenação parteEduarda
Editorial: da pro-
Rodrigues
Revisão
dução Capa: do
acadêmica texto: Rebeca Louzada
comum aos
Fernando Campos
organizadores, envolvendo
Diagramação: Rebeca S. Sales o
trançado complexidade-capita-
Editora Telha
Rua Uruguai, 380, Bloco E, 304
lismo-ciências ambientais.
Tijuca — Rio de Janeiro/RJ — CEP 20.510-052
Telefone: (21) 2143-4358
E-mail: contato@editoratelha.com.br
Site: www.editoratelha.com.br
GUILHERME VIEIRA DIAS
Sumário

Apresentação..................................................................................6
Guilherme Vieira Dias
Ciências naturais e humanas: a era das grandes e “simples”
theorias científicas a partir do século XVII .............................8
José Glauco Ribeiro Tostes
A perspectiva da complexidade: um desafio para a
educação contemporânea..........................................................16
Elza Neffa
Krishna Neffa
A teoria marxiana entre o “velho” e o “novo”
paradigma da ciência..................................................................38
Guilherme Vieira Dias
José Glauco Ribeiro Tostes
A influência da ciência da complexidade de
Prigogine nas teorias da crise do capitalismo de
Wallerstein e Mészáros..............................................................47
Guilherme Vieira Dias
José Glauco Ribeiro Tostes
Dialética, complexidade e questões socioambientais..........65
Guilherme Vieira Dias
Elza Neffa
José Glauco Ribeiro Tostes
Modelo de Células Triangulares Complexas Sustentáveis:
um estudo de caso sobre indígenas isolados do rio
Envira, na Amazônia Ocidental................................................93
Marcelo Silva Sthel
José Glauco Ribeiro Tostes
Modelos geométricos e bioculturais/culturais sustentáveis
da sociedade: o papel da cooperação não capitalista em
tempos de crise civilizacional e ambiental..........................115
Marcelo Silva Sthel
José Glauco Ribeiro Tostes
Juliana Rocha Tavares
Conhecimento e sustentabilidade socioambiental:
um estudo sobre a formação de doutores em
Ciências Ambientais no Brasil...............................................143
Guilherme Vieira Dias
Elza Neffa
Rachel Alice Mendes da Silva Dias
Sobre os Autores e Autoras.....................................................171
Apresentação

A presente coletânea, fruto do trabalho de diversos professo-


res e pesquisadores, aborda como tema central a questão do novo
paradigma da ciência, a saber, a complexidade. Tal paradigma é
abordado dentro de um contexto de crise do capitalismo, incluindo
de modo decisivo questões pertinentes às ciências ambientais. O
título “Complexidade, capitalismo e ciências ambientais” contem-
pla as relações entre esses três elementos. Por sua vez, o subtítulo
“Paradigmas, teorias e estudos de caso” diz respeito à sequência
dos capítulos, conforme explicitado a seguir.
Os cinco primeiros capítulos tratam das diferenças entre o
“velho” e o “novo” paradigma da ciência: de um lado, a era das
grandes e “simples” theorias (com h mesmo, conforme justificado
pelo autor), com grande êxito do paradigma newton-cartesiano
(analítico-reducionista) “atravessando” as ciências naturais e hu-
manas; de outro lado, o “novo” paradigma da complexidade ou
sistêmico, que há algumas décadas tem influenciado as ciências,
em contraponto ao “velho” paradigma. Trata-se das passagens da
simplicidade à complexidade, da estabilidade à instabilidade, da
objetividade à relação dialética entre sujeito e objeto.
Enquanto o capítulo 1 destaca o “velho”, o capítulo 2 apre-
senta sob diferentes enfoques o “novo” paradigma da ciência.
Além disso, discute-se — sobretudo no capítulo 3 — a teoria mar-
xiana em relação aos paradigmas científicos, isto é, Marx entre o
determinismo (“Newton da economia”) e a dialética (precursora
filosófica da ciência da complexidade). No quarto capítulo, têm-se
dois exemplos de teorias sociais atravessadas pelo paradigma da
complexidade: as teorias da crise do capitalismo de Wallerstein
e de Mészáros influenciadas pela complexidade de Prigogine, da
área de físico-química. Por fim, fechando esse “primeiro bloco” de
Complexidade, capitalismo e ciências ambientais 7

textos explorando os paradigmas e as teorias, há o quinto capítulo


fazendo uma ligação mais direta às ciências ambientais, ao discutir
dialética, complexidade e questões socioambientais.
O “segundo bloco”, formado pelos três últimos capítulos, diz
respeito a estudos de caso sobre questões socioambientais, envol-
vendo complexidade e capitalismo. O capítulo 6, a partir de modelo
geométrico envolvendo energia-economia-ecologia, apresenta um
estudo sobre uma tribo indígena “isolada” que vive na Amazônia.
O capítulo 7 apresenta um estudo a partir de modelos geométricos,
bioculturais e culturais envolvendo a importância da cooperação
humana nos esforços de superação da crise socioambiental no âm-
bito do capitalismo. Por sua vez, o capítulo 8 apresenta um estudo
dos cursos de doutorado em ciências ambientais no Brasil, a fim
de identificar “graus de complexidade” na formação dos doutores.
Todos os textos reunidos aqui têm a participação de ao menos
um dos organizadores como autor ou coautor, com alguns textos
tendo a participação dos três organizadores. Além disso, houve
a generosa contribuição de outros autores e coautores, parceiros
e parceiras. Este livro trata-se, portanto, de um esforço para sis-
tematizar e concentrar parte da produção acadêmica comum aos
organizadores desta obra, envolvendo o trançado complexidade-
-capitalismo-ciências ambientais.

Campos dos Goytacazes, 21 de novembro de 2022.

Guilherme Vieira Dias


1.

Ciências naturais e humanas: a era das


grandes e “simples” theorias científicas
a partir do século XVII(1)

José Glauco Ribeiro Tostes

“Giro um simples compasso e num círculo eu faço o mundo”


Toquinho,“Aquarela”

O mundo é extremamente complexo a quem ousar tentar com-


preendê-lo. A era da ciência moderna — dentro da Modernidade
Ocidental, a partir do século XVII — foi capaz de enfrentar, de um
modo que nos parece original, este problema do conhecimento da
“enorme complexidade do mundo”, de cada mundo (o mundo de
todo o cosmos ou do universo, o mundo de todos os fenômenos
biológicos, o mundo da história universal da humanidade a partir
do trabalho de transformação da natureza etc.). Nosso objetivo no
presente texto é dar um esboço da “era das grandes e ‘simples’
teorias científicas” que nos legou uma forma específica de construir
teorias suficientemente simples para tentar compreender/explicar
um mundo ou mundos extremamente complexos. Mas antes deste
passo, vamos colocar três perguntas envolvendo o conceito de “teo-
ria” e tentar ensaiar as respectivas respostas. Primeira pergunta: o
que é uma “teoria” numa primeira e simplificada aproximação? É
uma grande e específica explicação ou narrativa aplicada, de modo
abrangente, a um daqueles “mundos”. Segunda pergunta: qual
a origem etimológica (significado original) da palavra “teoria”?
Ela provém da palavra grega theoria, que por sua vez, tal como
theatai (teatro), possuem o radical grego comum theos (deus). Este
“deus” provem por sua vez da mitologia pagã grega, dos deu-
ses do Olimpo apreciando o espetáculo — lá do alto do Monte

(1)
Texto originalmente publicado no fanzine Alfarrábios (TOSTES, 2021).
Complexidade, capitalismo e ciências ambientais 9

Olimpo — da trágica vida humana cá embaixo. Daí o significado


de theoria (vamos manter o “h”) provindo dos antigos gregos: uma
visão abrangente, completa mesmo, daquele espetáculo (notaram
os dois ingredientes de um “teatro”? A plateia e o palco?), ou, tra-
duzido em termos atuais, daquele “mundo” da sociedade humana.
Terceira pergunta: e, afinal, o que é uma “teoria científica”? Dito de
modo extremamente simplificado, é uma theoria construída a partir
do método científico, que, do século XIX em diante, pretende-se: (a)
puramente laico (não religioso) e (b) sujeitando qualquer teoria à
crítica (comprovação ou falsificação da teoria) por meio de evidên-
cias chamadas fatos. São as famosas “evidências empíricas”. Dito
de outro modo, pretende-se que tal método, além de pedir à teoria
para explicar fatos, lhe pede também que ela seja capaz de prever
novos fatos (não se engane: a exigência rigorosa, (a), de laicidade, já
impede que o cientista possa sequer partir, em (b), de fatos “puros”,
isto é, totalmente isentos da contaminação prévia e circular de qual-
quer teoria. Mas, no momento, esqueça esta curiosa circularidade
da ciência moderna provocada, entre outras coisas, pelo rigoroso
postulado da laicidade da ciência). Enfim, uma theoria científica
busca uma enorme compressão simplificadora de ao menos parte da
enorme quantidade de informações contida em cada um daqueles
“mundos” extremamente complexos acima mencionados.

Mecânica newtoniana (final do século XVII)


Esta “nova era das grandes e simples theorias (incorporamos
o “h”) científicas” se abre na Europa pela via da nascente ciência
moderna dos sécs. XVII-XVIII, mais especificamente se abre pela
via da primeira grande, abrangente, theoria da nova ciência gerada
pelo “novo método científico” do século XVII: a Mecânica Newtonia-
na (MC-Mecânica Clássica). Vejamos uma síntese de um “velho”
Prêmio Nobel da Física, Eugen Wigner (apud HARRISON, 1981):
O mundo é muito complicado e é claramente
impossível à mente humana compreendê-lo
completamente. O homem, portanto, criou
um artifício que permite que a complicada
natureza do mundo seja descarregada em
algo que chamamos de acidental e assim lhe
permite abstrair um domínio no qual leis
simples possam ser alcançadas. As complicações
10 Guilherme Vieira Dias, José Glauco Ribeiro Tostes e Elza Neffa (org.)

são chamadas de condições iniciais. O domínio


das regularidades [e, afinal, da simplicidade, é
chamado de], as leis da natureza.

Para um melhor entendimento da Mecânica Newtoniana,


teoria que lida com o movimento ou trajetória (no tempo) de cor-
pos materiais (no espaço) de qualquer tamanho e massa, vamos
distinguir aí o domínio das complicações [condições iniciais] e o
domínio das regularidades/simplicidade (leis da natureza). Seja o
Neymar batendo uma falta. Posso prever com exatidão a trajetória
futura da bola até a baliza do adversário se, de um lado, eu possuir
(a) as “leis newtonianas da natureza” e de outro, (b) as “condições
iniciais” do chute de Neymar. Aquelas leis, de um modo simpli-
ficado, consistem da equação geral do movimento dos corpos no
universo: para apenas um corpo (a bola), esta equação é a força
total que age sobre a bola desde o chute inicial até antes dela tocar
nas redes, ou seja, força (f) = massa (m) da bola vezes a aceleração
(a) (ou seja, a sucessiva variação de velocidade da bola). Isto é, f =
m.a; em primeira aproximação, a força que age sobre a bola após
o chute é a força da gravidade, ou seja, a lei da gravitação universal
entre cada par de massas de quaisquer corpos ao longo de todo o
universo. É a mesma lei da queda da maçã na cabeça de Newton,
a da trajetória da bola de Neymar e a da atração entre a Terra e a
Lua. “Resolver” esta equação para o chute do Neymar implica em
achar sua solução matemática para a trajetória da bola, chutada
pelo jogador, ao longo de um intervalo de tempo. Para selecionarmos
esta trajetória específica dentre um número infinito de trajetórias
possíveis, é preciso o outro ingrediente acima apontado: as con-
dições iniciais (ou estado inicial da bola) do chute do Neymar (a
exata posição inicial da bola parada e sua exata velocidade inicial
imprimida quase que instantaneamente por ele; o mais fácil é
medir-se diretamente essa velocidade inicial). Esta trajetória pre-
vista, teoricamente, vai então ser essencialmente aquela que vai ser
seguida pela bola real no jogo. O que há de “complicado” em tais
condições iniciais? Nada. Tratou-se apenas de uma “partícula”:
a bola. Pergunta: e se quisermos aplicar a lei f=m.a para todas as
“partículas” do universo, em cada instante, e assim prever todo o
futuro universal (ou todo seu passado)? Aí complica! Você vai ter que
contratar um “Neymar cósmico”, que num mesmo dado instante
inicial, “t0”, consiga medir todas as posições instantâneas iniciais e
Complexidade, capitalismo e ciências ambientais 11

velocidade instantâneas iniciais de cada “bola” no universo inteiro.


Não existe esse “Neymar cósmico”.
Podemos agora fazer uma modelagem geométrica dos três
últimos parágrafos acima seguindo as quatro figuras na ordem 1,
2, 3 e 4, da esquerda para a direita.
Primeiro passo (fig. 1): a área interna do círculo vazio, “de-
senhado pelo Toquinho” (vide a epígrafe no início do presente
texto), representa, simbolicamente, todo o universo físico em toda
a sua enorme complexidade, ao longo de toda a sua imensa história
(passado, presente e futuro). Está subentendido que “esvaziamos” o
círculo da fig. 1 quando iniciamos a presente jornada da fig. 1 a fig. 4.

Segundo passo (fig. 2): dividir tal círculo em duas metades


iguais, desenhando um diâmetro vertical. Terceiro passo (fig. 3):
separar os dois semicírculos e preencher o da esquerda com um
pequeno retângulo; preencher o da direita com vários pequenos
retângulos empilhados. No pequeno retângulo separado à esquer-
da, insira a seguinte informação (“leis da natureza”):
• f = m.a (a mesma simples equação somada para cada um
de todos os corpos do universo; ver acima);
• lei da gravitação universal (a mesma simples equação da
particular força f da gravidade, somada para cada par de
corpos interagindo no universo).
Ou seja, no semicírculo esquerdo, o universo foi comprimido em
suas informações por meio de uma extrema simplicidade matemática,
ficando a enorme complexidade restante do universo para a “impossí-
vel” medida das condições iniciais (posição e velocidade) constituída
pelo conjunto de cada um de todos os corpos do universo num mesmo
instante, no semicírculo à direita. A diferente condição inicial (posição
12 Guilherme Vieira Dias, José Glauco Ribeiro Tostes e Elza Neffa (org.)

e velocidade) para cada corpo do universo é então representada por


um pequeno retângulo empilhado à direita. Repetindo o que foi dito
acima, aí distinguimos o domínio das regularidades/simplicidade (leis
newtonianas da natureza) e o domínio das complicações (condições
iniciais, que podemos escolher aleatoriamente dentre o conjunto de
todos os corpos do universo arranjados em diferentes configurações
espaciais e de velocidades, “fotografadas” cada uma em um diferente
instante). Em termos filosóficos, aí temos, respectivamente, o domínio
da necessidade (do que “tem que ser”, da lei científica simples) e o
domínio do acaso, do acidental (do que apenas “pode ser”). Mas per-
gunta-se: que “vantagem Maria leva” com tal partição do círculo total
extremamente complexo do mundo físico em um círculo do domínio
da simplicidade das leis newtonianas da natureza e em um círculo
da “restante” complexidade das condições iniciais representada pela
escolha aleatória de uma das infinitas configurações espaciais e de
velocidades de todos os corpos do universo num dado instante? Aí
entra o quarto e último passo (fig. 4) envolvendo a última figura no
lado direito: acrescentar o desenho de uma simples seta partindo do
semicírculo da esquerda para o da direita. Esta seta simboliza uma
articulação específica — através de uma direção específica — entre os
dois semicírculos. Respondendo à pergunta do parágrafo anterior: os
imensos e complexos dados envolvendo as condições iniciais em um
dado instante não possuem autonomia nem história por si próprios.
Essa luz lhes vem — em princípio — do outro semicírculo, das “leis
naturais”, do lado das “regularidades/simplicidade”; é o lado das
equações das leis newtonianas da natureza. É por meio das “leis”
simples do lado esquerdo da fig. 4 que se “determina” como serão
utilizados os dados — complexos — das “condições iniciais” do lado
direito: a seta simboliza essa operação de determinação. Esses dados
serão abstraídos e permitirão a solução das equações matemáticas
das leis naturais levando ao movimento ou história total daquele
sistema constituído por todos os corpos no universo — em direção
ao futuro ou ao passado — a partir daquele específico estado inicial
do sistema no semicírculo da direita. Vamos passar agora a aplicar
estas mesmas ideias, esquematizadas nas figs. 1, 2, 3 e 4, para outras
duas theorias, envolvendo “mundos” ou “universos” distintos do
universo que acabamos de tratar, isto é, de todos os corpos do universo
da física. Trata-se: de (a) uma theoria que pretende açambarcar
todo o mundo ou universo ou sistema, do passado em direção ir-
reversível ao futuro, dos fenômenos da vida — biologia — numa
Complexidade, capitalismo e ciências ambientais 13

“história natural” (Darwin, teoria da evolução — TE — das espé-


cies, 1859) e de (b) uma outra theoria que pretende açambarcar
todo o mundo ou universo ou sistema dos fenômenos da história,
envolvendo passado, presente e futuro da humanidade, na direção
irreversível do passado para o futuro (MARX, 2008; materialismo
histórico – MH, 1859).

Teoria da evolução das espécies (1859)


Podemos, doravante, tentar superar, em parte ao menos, a
extrema complexidade dos fenômenos da vida, complexidade essa
a partir de agora simbolizada dentro do círculo da fig. 1, antes dele
ser “esvaziado” como já o fizemos anteriormente. Tal como no caso
da Mecânica Newtoniana, vamos introduzir na “caixinha” do lado
esquerdo da fig. 3 uma extrema simplificação na ciência biológica:
escreva ali dentro da caixinha única: “Teoria (ou melhor, theoria) da
evolução (TE) das espécies por seleção natural via mutações aleató-
rias”. Este é o postulado que fornece o núcleo central original da TE
das espécies de Darwin (1859), acompanhado por poucos postulados
subsidiários a mais, o que certamente não fará tal teoria ocupar mais
de uma página. Do lado direito, as múltiplas caixinhas simbolizam
a enorme complexidade restante de toda a biologia. Finalmente, na
fig. 4, a direção da seta indica que o núcleo extremamente simples
da TE no semicírculo à esquerda tem papel determinante (ainda que
papel não absoluto) atravessando todos os intrincados e complicados
fenômenos biológicos no semicírculo à direita. Ou seja, o conteúdo
do semicírculo à direita não possui autonomia teórica própria.

Teoria da história: materialismo histórico (1859)


Finalmente vamos adentrar as ciências humanas: História.
Mais especificamente: história universal da humanidade, desde
o alvorecer das sociedades agrícolas. Mais especificamente, uma
theoria da história universal que, além do passado e do presente,
lance certas linhas de força que serão admitidas prolongar-se indefi-
nidamente (por exemplo, o mesmo binômio infra/super e a mesma
determinação em “última instância” por parte da infra, em qualquer
modo de produção etc.) no horizonte da sociedade futura. Ou seja,
uma theoria que mira a totalidade da história humana. Como, aliás,
convém a uma... theoria! É o Materialismo Histórico (MH) de Marx.
14 Guilherme Vieira Dias, José Glauco Ribeiro Tostes e Elza Neffa (org.)

O MH está centrado em dois conceitos-chave estruturais articula-


dos via metáfora da engenharia civil: uma infraestrutura material
econômica (os “fundamentos” estruturais de um edifício; apenas
centrados, na linguagem da academia, numa disciplina: economia)
e uma superestrutura imaterial político-ideológica constituída de todas
as outras disciplinas (política, ideologias, direito, filosofia, ciência,
artes, religião, “consciência” ou psique e toda e qualquer nova dis-
ciplina que não possa ser “despejada” na área da economia). Em
síntese, a superestrutura toda do “edifício” social se ergue apenas
sobre seu fundamento ou infraestrutura econômica. Voltando às
figs. 1, 2, 3 e 4, a fig. 1 representa a história em sua complexidade
aparentemente insuperável (antes de ser “esvaziada”, como já
vimos anteriormente). O que Marx “fez”? Fez a fig. 2 e daí, na fig.
3, semicírculo à esquerda, lançou a expressão “infraestrutura eco-
nômica material”, que articula “forças de produção” (lento progresso
linear tecnológico em torno do setor campesino — agrícola — e do
setor militar — mecânico, essencialmente — até há cerca de 300-200
anos; daí em diante, progresso ultraveloz a partir da Revolução
Industrial capitalista, via tecnociência e via fantástica urbanização)
e “relações de produção” (sucessivos “modos de produção” que, por
certo tempo, são o “motor do progresso” das forças produtivas
até começar a travar este próprio progresso: está na hora de uma
revolução que levará a novo modo de produção, progressista até
que chegue sua vez de decadência e assim por diante). Esse é o lado
da extrema simplicidade da teoria do MH. No semicírculo à direita,
colocaram-se todas as outras disciplinas, despejando aí tudo que
sobrou de extrema complexidade na história. Se ficássemos nesse
nível, não haveria grandes vantagens nessa teoria. Chegamos então
à fig. 4. Vê-se que a seta ali representada sai do lado esquerdo, isto
é, da extremamente simples infraestrutura econômica, e se dirige
à extremamente complexa superestrutura não-econômica. Aí está
simbolizado que o lado esquerdo, simples, do mundo da história,
determina totalmente ou em larga escala o lado direito, muito com-
plexo, do mundo histórico, que não tem uma dimensão ou história
autônoma. Trata-se, conforme Marx e Engels, do chamado primado,
em “última instância”, da economia sobre o restante emaranhado
superestrutural. Outras theorias dos séculos XIX e XX reprodu-
zem este padrão geral das três theorias aqui abordadas: é a era das
grandes e “simples” theorias científicas ou “grandes narrativas”,
ainda em curso.
Complexidade, capitalismo e ciências ambientais 15

Referências

DARWIN, C. A origem das espécies por meio da seleção natural.


São Paulo: Ubu Editora, 2018.
HARRISON, E. Cosmology: the science of the universe. Cambrid-
ge: Cambridge U. P., 1981.
MARX, K. Contribuição a crítica da economia política. 2 ed. São
Paulo: Expressão Popular, 2008.
NEWTON, I. Principia: princípios matemáticos de filosofia natural.
2 ed. São Paulo: EDUSP, 2002.
TOSTES, J. G. R. Séc. XVII em diante – ciências naturais e humanas:
a era das grandes e “simples” theorias científicas. Alfarrábios, vol.
II, p. 19-29, 2021.
2.

A perspectiva da complexidade: um
desafio para a educação contemporânea

Elza Neffa
Krishna Neffa

Introdução

Estamos inermes perante a complexidade do mundo porque


fomos educados com base nos fundamentos da ciência clássica que
edificam o pensamento a partir da ideia de certeza sobre os pilares
da ordem, da separabilidade e da lógica formal (com seus princí-
pios da identidade, da não-contradição e do terceiro excluído). Essa
certeza científica produziu as ilusões da existência de um universo
“autoconsolidado”, sustentado no conhecimento objetivo, neutro,
ordenado pelo determinismo, em que tudo escapa ao acaso, à im-
previsão, às perturbações e às incertezas, dificultando a criação e a
emergência do novo.
Nos últimos séculos, a excessiva ênfase no paradigma carte-
siano-newtoniano levou o sistema educacional a adotar abordagens
disciplinares e práticas fragmentadas e reducionistas que resulta-
ram na incapacidade de os sujeitos compreenderem e aplicarem a
categoria da totalidade no desenvolvimento das práticas pedagó-
gicas. Tais práticas relacionavam-se e continuam umbilicalmente
ligadas aos interesses da classe burguesa, para quem a educação
tem dois objetivos fundamentais: a formação de mão de obra para
a reprodução do sociometabolismo do capital e a estruturação de
uma concepção de mundo, de ideias e de valores adequados para
a garantia de tal reprodução.
Para rearticular a produção do conhecimento à dinâmica com-
plexa da vida, uma reforma do pensamento está sendo convocada
Complexidade, capitalismo e ciências ambientais 17

pela Teoria da Complexidade como forma de transgredir os limites


das abordagens metodológicas disciplinares e das ações que sepa-
ram os objetos de seus contextos, o espírito da matéria, a filosofia
da ciência, o saber tradicional do conhecimento científico e o sujeito
do objeto de conhecimento.
Enquanto a ciência clássica diluía a aparente complexidade dos
fenômenos para desvendar a simplicidade oculta das leis gerais e
imutáveis da natureza, um novo modelo de produção do conhe-
cimento, social e cientificamente relevante, emergiu com os novos
desafios colocados pela revolução quântica (Max Planck), pela física
relativista (Albert Einstein), pelo princípio da incerteza (Werner
Heisenberg), pela teoria da complementaridade (Niels Bohr), pela
revolução sistêmica (Ilya Prigogine) e pelas considerações de Karl
Popper, Thomas Kuhn e Paul Feyerabend, demonstrando que uma
teoria não é certeza absoluta, mas um momento dos nossos conhe-
cimentos da realidade, e que o não-científico, o não demonstrável,
existe no seio da própria cientificidade. Essas descobertas consoli-
daram um novo espírito científico capaz de explicar a contradição e
a desordem, e de incorporar o acaso, a indeterminação e a incerteza
à análise científica, integrando-a à natureza evolutiva do mundo
e colocando-a diante do tempo e dos complexos fenômenos das
sociedades contemporâneas.
Tais desafios têm provocado mudanças na visão de mundo
moderna, deixando o Universo de ser visto como uma profusão
de objetos distintos para apresentar-se como uma rede de relações
dinâmicas e uma totalidade orgânica na qual a originalidade da
vida não está na sua matéria constitutiva, mas na sua complexidade
organizacional. Nessa perspectiva, o mundo é percebido em função
da interdependência dos fenômenos biopsicossociais como um todo
composto de partes que conservam a sua singularidade e que, de
algum modo, contém o todo e são por ele contidas. Esse movimento
no seio da própria ciência levou à contestação do paradigma clássico
e apontou para a reforma do pensamento e das atividades educati-
vas, a partir de pressupostos que religam os conhecimentos sobre
a matéria, a energia, a vida, o ser humano e a sociedade em uma
perspectiva de superação da sociabilidade do modo de produção
18 Guilherme Vieira Dias, José Glauco Ribeiro Tostes e Elza Neffa (org.)

capitalista, que nos aprisiona ao “reino da necessidade” sem permitir


o alcance do “reino da liberdade”(2).
O novo paradigma, capaz de orientar a sociedade na constru-
ção de aprendizagens e de ações fundamentais à sustentabilidade
socioambiental, demanda uma formação mais ampla, comprometida
com sujeitos conectados e articulados com os problemas do mundo
contemporâneo e com a criação de alternativas transformadoras
das questões referentes a desigualdade social, desemprego, fome,
energia e mudanças climáticas, dentre outras geradas pelo sistema
de reprodução sociometabólica do capital, cuja lógica do crescimento
econômico e do hiperconsumo desconsidera as limitações e taxas
de renovação dos elementos naturais do planeta (WATANABE;
KAWAMURA, 2020).
A formação pedagógica para enfrentar esses e outros fenôme-
nos nos quais as incertezas e os riscos estão presentes pressupõe
incorporar a perspectiva da complexidade e estratégias integrativas
que fomentem o entendimento da realidade como totalidade em mo-
vimento em que todos os seres, organismos e sistemas se articulam
e interagem com o conjunto dos inter-retrorrelacionamentos que os
constituem. Nessa ótica, a cooperação entre os saberes forjados a
partir das contradições que constituem a própria manifestação do
existente — ordem/desordem, parte/todo, singular/geral etc. — con-
tribui para a superação da hiperespecialização e para a substituição
da concepção fragmentária do mundo.
Entretanto, a relação do meio acadêmico institucionalizado
com a prática de construção do conhecimento complexo não é fácil,
pois o modo como pensamos e interpretamos a realidade advém do
modelo mental linear (lógica formal aristotélica) que é propenso a
organizar os saberes de forma departamentalizada, valorizando as
especialidades e as práticas que não articulam o biológico, o psíqui-
co, a organização social e outras dimensões da realidade.

O reino da liberdade, aludido por Marx no Livro III d’O capital, assenta-se no
(2)

reino da necessidade, mas vai além dele ao estabelecer que as trocas orgânicas do
ser humano com a natureza por meio do trabalho, categoria ontológico-primária
do ser social, submetem-se ao controle comum dos produtores livremente
associados e não mais ao poder do capital.
Complexidade, capitalismo e ciências ambientais 19

Para o pensador francês Edgar Morin, a incorporação do


pensamento complexo na superação do paradigma vigente e na
formação humana é fundamental, posto que a complexidade não
é um conceito teórico, mas um fato da vida. Sob sua ótica, o pen-
samento complexo rejunta conhecimentos e saberes para conceber
uma humanidade integral e, nesse sentido, instaura um princípio de
conjunção e de multidimensionalidade provocador da propagação
de uma nova práxis capaz de estabelecer uma aliança entre o conhe-
cimento racional e a intuição da natureza não-linear da realidade, a
partir dos princípios de incerteza e de auto-organização. Em suas
palavras, a complexidade se constitui do “conjunto dos princípios de
inteligibilidade que, ligados uns aos outros, poderiam determinar as
condições de uma visão complexa do universo”, em contraposição
ao “paradigma da simplificação, caracterizado por um princípio de
generalidade, um princípio de redução e um princípio de separação”
(MORIN, 1999, p. 329-330).
Por negligenciarem a participação do sujeito no processo de
produção do conhecimento e edificarem o pensamento científico so-
bre os pilares da ordem, da separabilidade e da razão, os princípios
do paradigma da simplificação revelam incapacidade de ampliar a
visão de mundo dos seres humanos para uma concepção mais com-
plexa da vida e do universo, embora tenham possibilitado o avanço
do conhecimento científico e de suas conquistas na modernidade.
Não obstante o pensamento complexo anunciar a possibilida-
de de mudanças na visão de mundo dos sujeitos históricos e nas
práticas educacionais, cremos que a concretização de tais mudan-
ças vincula-se à superação do modo de produção capitalista. Isso
porque, ao formar o sujeito para o mercado, a educação assume sua
função alienante de instrumento de dominação e reprodução das
relações dominantes da sociedade burguesa (TONET, 2012). Porém,
a educação também pode realizar a sua função emancipatória, para
além do capital, quando os conteúdos e as reflexões forem organiza-
dos a partir de temas abertos e dinâmicos e quando a formação para
o trabalho caracterizá-lo como atividade humana autorrealizadora
e elemento mediador da relação ser humano-natureza, ou seja,
como princípio educativo/estruturante da formação dos sujeitos
históricos-sociais identificados como protagonistas socioambientais
ou “produtores livremente associados” (MÉSZÁROS, 2005, p. 65).
20 Guilherme Vieira Dias, José Glauco Ribeiro Tostes e Elza Neffa (org.)

Essa mediação contempla a possibilidade de o sujeito superar


a lógica desumanizadora do capital, que se apoia nos pilares do
individualismo, do lucro e da competição, ao colocá-lo como
referência do processo educativo de formação para a vida, o
que nos remete a pensar a educação na perspectiva da luta
emancipatória e da superação do capital e de seu sistema de
sociometabolismo que passa, necessariamente, pelo superação
do sistema capitalista, da produção dos valores de troca e do
mercado pelos indivíduos sociais, ou seja, pelo enfrentamento
que desafia a divisão estrutural e hierárquica do trabalho e sua
dependência ao capital em todas as suas dimensões.
Para Mészáros, essa superação representa a instauração de
uma nova forma de sociabilidade humana que pressupõe encontrar
um equivalente controlável e humanamente
compensador das funções vitais de reprodução
da sociedade e do indivíduo que devem ser
realizadas, de uma forma ou de outra, por todo
o sistema de intercâmbio produtivo, no qual é
preciso assegurar finalidades conscientemente
escolhidas pelos indivíduos sociais que lhes
permitam realizar-se a si mesmos como indi-
víduos e não como personificações particulares
do capital ou do trabalho. Nessa nova forma de
sociabilidade ou novo sistema sociometabolis-
mo reprodutivo, a atividade humana deverá se
estruturar como o princípio do tempo disponí-
vel, num modo de controle social autônomo,
autodeterminado e autorregulado (ANTUNES,
apud MÉSZAROS, 2002, p. 15-20).

E para onde tudo isso conduz, tendo em vista que o objetivo


do capital é a sua própria autorreprodução e, nessa lógica, tudo
deve estar a ele subordinado — da natureza às necessidades e
aspirações humanas?
Para Mészáros, a resposta está na função política da educa-
ção que adota a totalidade das práticas sociais e das experiências
constitutivas do sujeito como processo contínuo de aprendizagem,
permanecendo fora do âmbito do controle e da coerção institucio-
nais formais e permitindo o rompimento com a lógica do capital.
Nessa perspectiva, a abordagem educacional concebida como
Complexidade, capitalismo e ciências ambientais 21

estratégia emancipadora apresenta-se como “transcendência


positiva da autoalienação do trabalho” e, nesse sentido, como
alternativa contra hegemônica à imposição da conformidade e à
lógica capitalista (MÉSZÁROS, 2005, p. 59).
Partindo do pressuposto de que para exercer suas funções
sociometabólicas no sistema político-industrial, o capital precisa
manter os seres humanos sob as condições de uma desumanizante
alienação e de uma subversão fetichista do real estado de coisas
dentro da consciência (“reificação”), Mészáros busca em Marx a
inspiração para a proposta de mudança dessas condições em todos
os níveis e domínios da existência individual e social, a partir de
uma intervenção consciente no processo histórico que transformará
a maneira de ser dos sujeitos sociais. Com base no fato de que essa
autoalienação escravizante é engendrada no processo histórico,
cuja produção não se dá nem por uma ação exterior mítica de
predestinação metafísica, nem pela natureza humana imutável,
mas pela alienação do trabalho, Marx vislumbra a possibilidade
de superação da alienação com uma mudança qualitativa das
condições objetivas de reprodução da sociedade (reestruturação
radical das condições humanas de existência) e percebe a impor-
tância vital da educação na transição da ordem social existente,
caracterizada pela crise estrutural global do capital, para outra
qualitativamente diferente:
1) no processo de elaboração de estratégias para controlar
o poder político e o próprio capital, com vistas a mudar essas
condições e
2) na autotransformação progressiva da consciência dos indi-
víduos chamados a concretizar a criação de uma ordem metabólica
radicalmente diferente, ou seja, de uma “sociedade de produtores
livremente associados”(3) (MÉSZÁROS, 2005, p. 65). Nesse sentido,

(3)
No terceiro volume de O capital, Marx diz que, sob o capitalismo, todos os
relacionamentos naturais e humanos foram dissolvidos e transformados em
relacionamentos monetários. Sua crítica baseava-se na perspectiva da construção de
uma ordem social que promovesse o desenvolvimento dos talentos humanos e de
uma relação humana racional com a natureza, da qual somos parte. A continuação
da liberdade humana consistiria na transformação do “homem socializado em
produtores associados, regulando racionalmente seu intercâmbio material com a
natureza e pondo-a sob controle comum, em vez de permitir que ela o governasse
como uma força cega”. O controle racional da relação entre natureza e humanidade
22 Guilherme Vieira Dias, José Glauco Ribeiro Tostes e Elza Neffa (org.)

destaca dois conceitos interdependentes como relevantes para a


promoção da transcendência da autoalienação do trabalho — a
universalização da educação e a universalização do trabalho como
atividade humana autorrealizadora.
Diante dessas colocações, fica patente o desafio da educação
no que se refere à sistematização e à articulação dos princípios da
complexidade nos processos formativos. Complementando essa
problemática social, Byung-Chul Han (2021), filósofo sul-coreano
radicado em Berlim, também chama atenção para a complexa época
histórica em que vivemos, caracterizada por ele como a “sociedade
do desempenho”, cuja ética se expressa na autoexploração ilimi-
tada, voluntária, em que o ser humano é submetido à coação de
produzir-se de modo permanente na condição de empreendedor
de si mesmo. Nessa sociedade de exploração sem dominação
externa, para além da sociedade disciplinar foucaultiana, “a
autoexploração é mais eficiente do que a exploração externa,
pois vem acompanhada de uma sensação de liberdade” (2021, p.
71). O homem é o seu próprio algoz e, nesse sentido, “nunca se
forma o coletivo, um nós, que possa se rebelar contra o sistema”
(HAN, 2021, p. 149).
Na dinâmica dessa sociedade, também chamada de “socie-
dade do cansaço” (HAN, 2015), a autenticidade é uma estratégia
de produção neoliberal, tendo em vista que, para ser, todas as
coisas e pessoas precisam ser expostas e vistas para terem um
valor, enquanto mercadorias. Nessa perspectiva, desvaneceu-se
a virtude do discernimento e da sabedoria do homo sapiens e
surgiu o homo saliens, o novo homem saltitante que, para ser re-
conhecido, salta para chamar atenção com visibilidade imediata
nas mídias digitais.
Nessa esteira interpretativa e com vistas a esboçar poten-
ciais contribuições da Teoria da Complexidade para os processos
formativos que articulam os saberes aos diferentes setores da

é inerentemente contrário à dominação mecanicista da natureza pelo interesse


da expansão cada vez maior da reprodução sociometabólica do capital. Em uma
sociedade de produtores livremente associados, argumentou Marx, o objetivo da
vida social seria o desenvolvimento do potencial criativo humano como um fim em
si mesmo, o que prepararia o palco para a consecução de um reino de liberdade, no
qual seres humanos se uniriam entre si e com a natureza.
Complexidade, capitalismo e ciências ambientais 23

sociedade e à transformação social em direção à integralidade,


à liberdade, à responsabilidade do ser humano com o equilíbrio
ecossistêmico e com a superação da dinâmica de reprodução
sociometabólica do capital, em seus desdobramentos no atual
sistema social, este capítulo descreve princípios da complexi-
dade e elucida conceitos relacionados à dinâmica dos sistemas
complexos, na tentativa de desvelar caminhos para a ecologia
da ação que “não nos convida à inação, mas ao desafio que re-
conhece seus riscos e à estratégia que permite modificar a ação
empreendida” (MORIN, 1977), principalmente àquela embasada
nas relações simplistas de causa e efeito que desconsidera a evo-
lução do conhecimento e a importância da formação complexa,
crítica e reflexiva do sujeito frente à atual realidade do mundo em
veloz transformação.

A trama da trança
Morin define complexidade a partir do conceito complexus,
que significa unificação das diversas singularidades sem, todavia,
destruir as individualidades. Para ele, complexus é o pensamento
“que tece em conjunto”, corresponde ao verbo latino complexere:
“abraçar” e se prolonga na ética da solidariedade.
Segundo Ardoíno (2001, p. 548), o adjetivo complexo vem do
latim plexus, plexi, plecto, complector, e significa tecido, trançado,
enroscado, cingido, enlaçado, apreendido pelo pensamento. Em
seu uso trivial, do senso comum, o termo complexo é empregado
no sentido contrário àquilo que é simples, como complicado e, por
vezes, como impuro, significando emaranhado, embrulhado, à
espera de simplificação.
Para Morin, a noção de complexidade é uma ideia contra a
mutilação e a favor da articulação dos aspectos físicos, biológicos,
sociais, culturais, psíquicos e espirituais dos grupos humanos em
seu ambiente, capaz de potencializar a abertura de espaços para
o conhecimento multidimensional que comporta um princípio
de incompletude e de incerteza em seu interior. Nesse sentido,
o pensamento complexo pode contribuir para religar os saberes
que foram rompidos entre o fim da Idade Média e o começo do
Renascimento, quando a cultura humanística foi separada das
ciências experimentais em razão dos interesses da classe burguesa
24 Guilherme Vieira Dias, José Glauco Ribeiro Tostes e Elza Neffa (org.)

em ascensão. Segundo Marx, no posfácio da 2a edição de O capital,


a pesquisa desinteressada teve fim assim que a burguesia assumiu
o poder na França e na Inglaterra.
Não interessava mais saber se este ou aquele
teorema era verdadeiro ou não; mas importava
saber o que, para o capital, era útil ou preju-
dicial, conveniente ou inconveniente, o que
contrariava ou não a ordem policial. Os pes-
quisadores desinteressados foram substituídos
por espadachins mercenários, a investigação
científica imparcial cedeu lugar à consciência
deformada e às intenções perversas da apolo-
gética (MARX, 2013, p.86).

A partir desse momento histórico, o ser humano passou a


pensar em si próprio como fracionado e desconectado da totalidade
em que se insere. Esse ser não consegue pensar no desenvolvimento
humano como fundamento de sua práxis. Mesmo que tente levar
em consideração as necessidades da humanidade, sua tendência
é vê-la separada da natureza.
David Bohm (1980) propõe que o modo geral como o ser
humano pensa a totalidade, isto é, a sua visão geral do mundo, é
crucial para a ordem da própria mente humana. Se ele pensar a
totalidade como constituída de fragmentos independentes, então
é assim que sua mente tenderá a operar. Mas, se ele consegue
incluir tudo em um todo global indiviso (pois todo limite é uma
divisão ou ruptura), então sua mente tenderá a mover-se de modo
semelhante, e disto fluirá uma ação ordenada dentro do todo.
A percepção do mundo constituído por “blocos de construção
atômicos”, existentes separadamente, tendência predominante na
ciência moderna e contemporânea, reforça a ideia de que a visão
fragmentária é necessária e a única maneira de interpretar a rea-
lidade, o que acarreta uma fragmentação do homem e do mundo,
ocasionando um amplo espectro de crises e conflitos.
A saída para não agirmos de acordo com os nossos habituais
modos de pensar fragmentários é entender que existe uma “rela-
ção entre o conteúdo do pensamento e o processo de pensar que
produz esse conteúdo” (BOHM, 1980, p. 40), pois a fragmentação
encontra-se tanto no conteúdo do pensamento como na atividade
Complexidade, capitalismo e ciências ambientais 25

geral da pessoa que elabora o pensamento. A questão da unidade


do processo do pensamento e do seu conteúdo assemelha-se à
questão da unidade do observador e do observado que só será
entendida quando apreendermos “a causa formativa global da
fragmentação, onde conteúdo e processo efetivo são vistos juntos,
em sua totalidade” (BOHM, 1980, p. 41). Conteúdo e processo são
inseparáveis e, como tal, precisam desaparecer juntos. O caminho
para a superação será percorrido
quando de fato apreendermos a verdade da
unidade (one-ness) do processo de pensamento
que estivermos efetivamente realizando e do
conteúdo desse pensamento que é o produto
desse processo, (quando) então um tal insight
nos possibilitará observar, olhar e aprender a
respeito do movimento total do pensamento e,
assim, descobrir uma ação que seja relevante em
face desse todo, e que porá fim à “turbulência”
do movimento que é a essência da fragmentação
em cada fase da vida (BOHM, 1980, p. 41).

No século XXI, a física quântica afirmou a ciência como o do-


mínio das múltiplas certezas, sendo um problema saber enfrentar
as incertezas. Este século evidencia que os principais problemas
socioambientais (energia, meio ambiente, segurança alimentar,
fome, habitação etc.) são interdependentes. Dessa forma, emerge
a necessidade de superarmos a noção de “ordem” e o pressuposto
da concepção determinista e mecânica do mundo de que por trás
de toda desordem, considerada ignorância provisória, há uma
ordem a ser descoberta, pois essa visão reduz, simplifica, disjunta,
descontextualiza e obstaculiza a visão da totalidade que possibilita
o alcance de soluções para os problemas complexos da atualidade.
Vários autores contribuíram na formulação do pensamen-
to complexo (Gaston Bachelard – epistemologia; Margoroh
Maruyama – feedback positivos; Von Forest e Von Neuman – au-
to-organização dos sistemas; Claude Shannon e Weaver – teoria
da informação; Herbert A. Simon - arquitetura da complexidade;
Norbert Wiener – cibernética; Henri Atlan – auto-organização dos
seres vivos) para entender os processos autopoiéticos (autoprodu-
tores, autossustentados, autogestionários), dos quais as sociedades
humanas constituem um exemplo (MARIOTTI, 2002).
26 Guilherme Vieira Dias, José Glauco Ribeiro Tostes e Elza Neffa (org.)

De origem dispersa, a descoberta da palavra complexidade


é atribuída a Gaston Bachelard (1884-1962) que, em seu livro O
novo espírito científico, publicado em 1934, reflete sobre a existência
e a manutenção de uma dúvida recorrente do sujeito a respeito de
conhecimentos seguros preconizados no passado e sobre o reco-
nhecimento da ideia de complexidade nos fenômenos elementares
da microfísica contemporânea. Para esse filósofo das ciências,
o simples não existe, só o que há é o simplifi-
cado. A ciência constrói o objeto extraindo-o
de seu meio complexo para pô-lo em situações
experimentais não complexas. A ciência não é
o estudo do universo simples, é uma simplifi-
cação heurística necessária para desencadear
certas propriedades, até mesmo certas leis
(BACHELARD apud MORIN, 2007, p. 15).

Dentre as importantes contribuições, a epistemologia da


complexidade de Edgar Morin ressalta que o problema para todos
os cidadãos consiste em saber como adquirir a capacidade de ar-
ticular e organizar as informações sobre as constantes mudanças
do mundo real sem negar a multiplicidade, a aleatoriedade e a
incerteza, mas aprendendo a conviver com elas.

A complexidade: vias ou princípios


Como caracterizar, então, um sistema complexo?
O entendimento da dinâmica de sistemas complexos requer
a compreensão do “conjunto de elementos que mantém relações
entre si ou como elementos que, relacionados funcionalmente, for-
mam um todo unitário complexo” (GONDOLO, 2000, p. 62). Esses
elementos possuem propriedades estruturais, relacionadas à parte
estática do sistema, e propriedades operacionais, relacionadas à
parte dinâmica, ou seja, aos elementos de importação (entrada do
sistema) e aos elementos dos processos de transformação (saída
do sistema). A caracterização de um sistema complexo demanda
a explicitação dos seus objetivos, finalidades e função, entendida
esta como a ação desenvolvida para atingir o objetivo com envol-
vimento de alteração de material, energia e informação. Assim,
um sistema é considerado complexo quando apresenta:
Complexidade, capitalismo e ciências ambientais 27

• atravessamentos por fluxos de materiais, de informações e


de energias em interação aberta com o ecossistema no qual
se encontra;
• interdependência de uma variedade de elementos constituintes;
• níveis hierárquicos de complexidade (organização);
• redes de comunicação;
• circuitos que permitem remeter uma informação da saída do
sistema em direção à sua entrada;
• não-linearidade nos comportamentos, com apresentação de
períodos de acelerações brutais, de estabilização e de inibi-
ção, em que há anulações recíprocas dos sistemas, a partir da
complexidade de suas trocas e interações.
Para Morin (2007), conhecer pressupõe rejuntar uma infor-
mação ao seu contexto e ao conjunto ao qual pertence, pois, um
conhecimento muito sofisticado, porém isolado, pode conduzir
ao erro e à ilusão.
Daí, a reflexão sobre os princípios da complexidade ser fun-
damental para enfrentar o desafio posto pelos fenômenos incertos
e indeterminados da contemporaneidade:
• O princípio sistêmico ou organizacional permite religar o conhe-
cimento das partes com o conhecimento do todo e vice-versa.
Do ponto de vista sistêmico organizacional, o todo é mais que
a soma das partes. Esse ‘mais que’ designa fenômenos quali-
tativamente novos denominados ‘emergências’, que são efeitos
organizacionais, produtos da disposição das partes no seio da
unidade sistêmica. Por outro lado, se o todo é ‘mais’ que a soma
das partes, o todo é também ‘menos’ que a soma delas. Esse
‘menos’ refere-se às qualidades que ficam restringidas e inibidas
por efeito da retroação organizacional do todo pelas partes.
• Para Henri Atlan (2003), teórico da complexidade que se nota-
bilizou como defensor do princípio do acaso organizador, existem
múltiplas e diversas racionalidades capazes de apreender a
realidade, que não se sucedem, mas coexistem. Morin meta-
morfoseia essa noção com a “ordem pelo ruído” encontrada
na interferência das dimensões instintivas e afetivas. É a par-
tir da decodificação pelo ruído que se desestrutura a fixação
28 Guilherme Vieira Dias, José Glauco Ribeiro Tostes e Elza Neffa (org.)

do padrão cognitivo e se ampliam os modelos de referência


internos ao sistema. No processo ensino-aprendizagem, o
ruído pode ser entendido como contravenção, como elemento
desordenador da interpretação, como desordem criativa e,
nos processos científicos, como teorias concorrentes, hipó-
teses complementares, que não se enquadram no sistema de
explicação já solidificado. É por isso que os processos de apren-
dizagem “não dirigidos” são responsáveis, em grande parte,
pelo aparecimento de novos padrões de leitura do mundo.
• A esse princípio, Morin une o princípio da organização recursi-
va, que ultrapassa a noção de regulagem para a dinâmica de
autoprodução e auto-organização. Um processo recursivo é
aquele cujos produtos são necessários para a própria produção
do processo. Na ideia de circularidade autoprodutiva, o efeito
é, ao mesmo tempo, uma causa. Os indivíduos produzem a
sociedade e esta, com sua cultura e linguagem, retroage sobre
os indivíduos fazendo com que os homens sejam, ao mesmo
tempo, produtos e produtores da sociedade. A ideia de circuito
recursivo revela-nos um processo organizador fundamental
e múltiplo no universo físico, que se manifesta no universo
biológico, assim como nas sociedades humanas. Essa ideia
diz respeito ao conceito de circuito retroativo do sistema que
quebra a causalidade linear e mostra que os fatos podem,
eles próprios, tornarem-se causadores ao retroagirem sobre a
causa. É um processo no qual os efeitos ou produtos são, si-
multaneamente, causadores e produtores do próprio processo,
no qual os estados finais são necessários para a geração dos
estados iniciais. Desse modo, o processo recursivo produz-se/
reproduz-se com a condição de ser alimentado por uma fonte,
reserva ou fluxo exterior. Trata-se de um princípio introduzido
por Wiener e, posteriormente, teorizado por pensadores como
Bateson. Ante o princípio linear causa-efeito, situamo-nos em
outro nível: não só a causa age sobre o efeito, mas o efeito
retroage “informacionalmente” sobre a causa, permitindo
autonomia organizacional do sistema.
• O princípio de autonomia/dependência reproduz a ideia de pro-
cesso autoeco-organizacional. Para manter sua autonomia,
qualquer organização necessita da abertura ao ecossistema do
qual se nutre e ao qual transforma. Todo processo biológico
Complexidade, capitalismo e ciências ambientais 29

necessita da energia e da informação do meio. Não há possi-


bilidade de autonomia sem múltiplas dependências. Nossa
autonomia como indivíduos não só depende da energia que
captamos biologicamente do ecossistema, mas da informação
cultural. São múltiplas as dependências que nos permitem
construir nossa organização autônoma.
• Num mesmo espaço mental, o princípio dialógico ajuda a pensar
lógicas que se complementam e se excluem. Esse princípio
pode ser definido como a associação complexa (complementar/
concorrente/antagônica) de instâncias conjuntamente neces-
sárias à existência, ao funcionamento e ao desenvolvimento
de um fenômeno organizado. Não seria possível conceber o
nascimento do Universo sem a dialógica da ordem/desordem/
organização. Não podemos conceber a complexidade do ser
humano sem pensar a dialógica sapiens/demens; é preciso
superar a visão unidimensional de uma antropologia raciona-
lizadora que pensa o ser humano como homo sapiens sapiens.
Um exemplo de dialógica no campo da física (uma revolução
epistemológica fundamental) foi introduzido por Niels Bohr
quando se deu conta da necessidade de assumir racionalmente
a inseparabilidade de noções contraditórias para conceber um
mesmo fenômeno complexo: conceber as partículas ao mesmo
tempo como corpúsculos e como ondas. Outro exemplo reside
na impossibilidade de pensar a sociedade reduzindo-a aos
indivíduos ou à totalidade social; a dialógica entre indivíduo
e sociedade deve ser pensada em um mesmo espaço.
• No princípio hologramático, assim como no holograma, cada
parte contém praticamente a totalidade da informação do
objeto representado. Em qualquer organização complexa, não
só a parte está no todo, mas também o todo está na parte(4).

(4)
O holograma é uma imagem física, concebida por Gabor que, diferentemente das
imagens fotográficas e fílmicas comuns, é projetado ao espaço em três dimensões,
produzindo uma assombrosa sensação de relevo e cor. O objeto holografado
encontra-se restituído, em sua imagem, com uma fidelidade notável. Esse holograma
é constituído a partir de uma luz coerente (laser) e de um dispositivo que faz com que
cada ponto que constituiu essa imagem contenha uma mostra do sistema de linhas
de interferência emitido pelos pontos do objeto holografado. Pinson afirma que cada
ponto do objeto holografado é “memorizado” por todo o holograma, e cada ponto
do holograma contém a presença do objeto em sua totalidade ou quase. Desse modo,
30 Guilherme Vieira Dias, José Glauco Ribeiro Tostes e Elza Neffa (org.)

Por exemplo, cada indivíduo traz a presença da sociedade


da qual fazemos parte. A sociedade está presente em nós por
meio da linguagem, da cultura, das suas regras e normas etc.
A sociedade e a cultura estão presentes enquanto “todo” no
conhecimento e nos espíritos cognoscitivos. Presentes no mito
comunitário consubstancial a elas, na organização do Estado-
-Nação, e na organização universitária e tecnoburocrática da
ciência. Em cada espírito, a organização sociocultural ocupa
o espaço de um santuário no qual impõe seus imperativos,
normas e proibições, assim como um mirante a partir do qual
vigia suas atividades. À maneira de um Superego, porém,
essa presença do “Todo” nos espíritos singulares é muito mais
complexa do que no holograma físico: os espíritos são sub-
metidos de formas diversas, e alguns até podem neutralizar o
mirante e o santuário. Além disso, nas sociedades complexas
que comportam pluralismos e antagonismos (sociais, políticos
e culturais), esses antagonismos podem se enfrentar no seio
de um mesmo espírito, provocando conflitos internos, duplo
vínculo, crise, busca. Desse modo, o que está presente no espí-
rito individual não é unicamente o Todo enquanto dominação,
mas, também, o todo enquanto complexidade.
• Finalmente, o princípio de reintrodução do sujeito cognoscente no
conhecimento postula a necessidade de desenvolver o papel ativo
àquele que havia sido excluído por um objetivismo epistemoló-
gico cego. É preciso reintroduzir o papel do sujeito observador/
conceituador/estrategista no conhecimento. O sujeito não reflete
a realidade. O sujeito constrói a realidade por meio dos princí-
pios já mencionados.
Desse modo, o método se torna central e vital quando se
reconhece necessária a presença de um sujeito que se esforça em
descobrir, conhecer e pensar. Quando se sabe que o conhecimento
não é acúmulo de dados ou de informação, mas organização. Quan-
do a lógica perde simultaneamente seu valor perfeito e absoluto, a

a ruptura da imagem holográfica não determina imagens mutiladas, mas imagens


completas, que se tornam cada vez menos precisas à medida que se multiplicam.
O holograma demonstra, portanto, a realidade física de um tipo assombroso de
organização, na qual o todo está na parte que está no todo, e na qual a parte poderia
ser mais ou menos apta a recriar o todo. O princípio hologramático generalizado que
formulamos aqui supera o âmbito da imagem física construída pelo laser.
Complexidade, capitalismo e ciências ambientais 31

sociedade e a cultura permitem que passemos a duvidar da ciência,


em lugar de fundar o tabu a respeito de uma crença. Quando se
sabe que a teoria permanece sempre aberta e inacabada e é pre-
ciso que haja a crítica da teoria e a teoria da crítica. Por último,
quando há incerteza e tensão no conhecimento e as ignorâncias e
os questionamentos se revelam e renascem.
Trata-se de uma construção incerta porque o sujeito encon-
tra-se inserido na realidade que pretende conhecer. Não existe o
ponto de vista absoluto de observação nem o metassistema abso-
luto. Existe a objetividade, embora a objetividade absoluta assim
como a verdade absoluta constituam equívocos(5).
O conjunto de princípios metodológicos apresentados confi-
gura-se como guia para o pensar complexo (MORIN, 1977; 1999;
2001; 2007) e para a utilização desse pensar nas lutas contra o ca-
pital. Esses princípios estão contidos no método/caminho/ensaio/
estratégia. Nesse sentido, é necessário considerar que método e
paradigma são inseparáveis. Qualquer atividade metódica existe
em função do paradigma que dirige uma práxis cognitiva. Ante
um paradigma simplificador que consiste em isolar, desunir e
justapor, propomos um pensamento complexo que reata, articula,
compreende e desenvolve a sua própria autocrítica.
Se o paradigma rege os usos metodológicos e lógicos, o pensa-
mento complexo deve vigiar o paradigma. Diferentemente de um
pensamento simplificador, que identifica a lógica ao pensamento,
o pensamento complexo a governa evitando a fragmentação e
a desarticulação dos conhecimentos adquiridos. O pensamento
complexo não é, porém, uma nova lógica. O pensamento com-
plexo precisa da lógica aristotélica, mas, por sua vez, necessita
transgredi-la (e isso porque ela é igualmente pensamento). Ao ser
paradigmaticamente dialógico, o pensamento complexo evidencia
outros modos de usar a lógica. Sem rejeitar a análise, a disjunção
ou a redução (quando for necessária), o pensamento complexo
rompe a ditadura do paradigma de simplificação. Pensar de forma
complexa torna-se pertinente quando nos defrontamos com a ne-
cessidade de articular, relacionar, contextualizar. Daí decorre que

(5)
Não se trata de defender o ecletismo, posto que esse é a base do irracionalismo
e representa a fragmentação em contraste com a totalidade.
32 Guilherme Vieira Dias, José Glauco Ribeiro Tostes e Elza Neffa (org.)

não se pode reduzir o real nem à lógica nem à ideia, mas buscar
ultrapassar a racionalização e o que é conhecido.
Pensar é reconhecer a validade e situar num mesmo plano a
ideia antagônica e a ideia poética, criativa.
Educar para ver a totalidade ressalta a importância da
educação permanente além dos muros da escola, da busca de in-
formações em novos ambientes de aprendizagem que possibilitem
estratégias de ensino-aprendizagem como instrumentos capazes
de despertar a motivação, a concentração e a autonomia do edu-
cando na construção do conhecimento e da práxis fundamentada
na ecologia da ação. Educar com base no pensamento complexo
ajuda-nos a sair do estado de desarticulação e fragmentação do
saber contemporâneo, cujas abordagens simplificadoras produ-
ziram efeitos de desigualdade social e degradação ambiental, e
construir instrumentos teórico-analíticos-sistêmicos que permitam
ao ser humano integralizar suas autorreferências com elementos
de transcendência, de modo a potencializar e atualizar, em um
fluxo contínuo, sua força de autossuperação e de superação das
forças capitalistas hegemônicas.
Este é o desafio da educação integral do homem contempo-
râneo e essa tarefa pedagógica adquire uma importância fulcral
quando se toma consciência de que todo conhecimento é uma
tradução dos estímulos que o ser humano recebe do mundo exte-
rior e, ao mesmo tempo, reconstrução mental, primeiramente sob
forma perceptiva e depois por palavras, ideias e teorias. Nesse
sentido, não se pode mais conceber o conhecimento como um
simples reflexo da realidade.

Apontamentos para uma educação integral


Ainda que possamos comemorar os incontáveis avanços
da ciência e da técnica desenvolvidas desde Kepler, Copérnico,
Galileu e Newton, o caráter ambivalente de tais avanços tem se
tornado cada vez mais patente. O desenvolvimento das ciências
em múltiplas disciplinas contribui para o aprofundamento dos
conhecimentos, mas traz os inconvenientes da superespecialização,
do enclausuramento e da fragmentação do saber ao mesmo tempo
em que dissocia o espírito e a cultura das ciências da natureza, bem
Complexidade, capitalismo e ciências ambientais 33

como desagrega e dilacera o caráter biológico das ciências antro-


possociais. Conforme salientamos anteriormente, esse movimento
das especializações trouxe, em seu bojo, duas situações paradoxais:
a instauração de uma resignação à ignorância e o crescimento da
alienação. Como se não bastasse, os interesses econômicos do ca-
pital atrelados aos interesses do Estado capitalista exercem uma
coação tecnoburocrática por meio de subvenções, financiamentos
e programas que desempenham um papel ativo no processo inter-
-retroativo de criação/produção epistemológica, em que a técnica
produzida pelas ciências transforma a sociedade, mas também a
sociedade “tecnologizada” transforma a própria ciência.
A percepção da necessidade da ampliação do quadro epistê-
mico e da incorporação de outros saberes tem sido sentida pelos
pesquisadores ao refletirem sobre a construção de uma civilização
planetária alicerçada nas novas ciências e em culturas e tradições
milenares com matrizes civilizacionais alternativas a uma única
cultura imperialista dominante.
O desafio de pensar o processo educativo em uma época de
transição paradigmática civilizacional, intrinsecamente relacionada à
crise estrutural do sistema de reprodução sociometabólica do capital,
articula-se com a própria questão de pensar o ser humano em sua
integralidade prática e teórica — incluindo-se as interações entre as
dimensões física, emocional, mental e espiritual — em seu devir ético
e estético, filosófico e antropológico, ontológico e epistemológico.
Uma práxis política comprometida com a construção de um
novo paradigma civilizacional para além da lógica de acumulação
e exploração do capital pressupõe uma educação que clama pela
criação de estratégias voltadas para a disseminação dos valores
de liberdade, fraternidade, justiça; para a qualificação do trabalho
não-alienado; para a potencialização das habilidades pessoais; para
o esforço produtivo de autogestão e de usos sustentáveis dos ele-
mentos naturais; para a socialização dos conhecimentos científicos
e tecnológicos; para a utilização das potencialidades dos saberes
tradicionais; para a produção de novos processos cooperativos e
associativos que superem as práticas dos sistemas hegemônicos
e contribuam para criar um mundo que contemple um novo me-
tabolismo social, ainda inexistente, mas já em gestação.
34 Guilherme Vieira Dias, José Glauco Ribeiro Tostes e Elza Neffa (org.)

A adoção do pensamento complexo como fundamento da pro-


dução de conhecimentos e de práticas capazes de superar o sistema
de reprodução sociometabólica do capital pressupõe a implementação
de novas estratégias e de projetos político-pedagógicos centrados
na inserção dos educandos nos processos produtivos da sociedade,
a partir de uma formação crítica para enfrentamento do sistema de
exploração capitalista, o que demanda planejamentos integrados
participativos que articulem o conhecimento científico aos saberes e
às demandas da classe trabalhadora.
Como eixos fundamentais de transformação do modelo de
formação tradicional para o crítico-revolucionário-integrativo,
Mészáros (2005, p.74-75) destaca, em seu livro Educação para
além do capital:
• a necessidade de a educação elaborar estratégias, estabelecer
prioridades e definir as reais necessidades mediante plena e livre
deliberação dos indivíduos envolvidos no processo de supera-
ção da deficiência estrutural do sistema que opera por meio dos
círculos viciosos de desperdício e de escassez, produzidos com
base na geração devastadora de necessidades artificiais a serviço
da autoexpansão e da acumulação do capital;
• a articulação entre a “autoeducação de iguais” e a “autogestão da
ordem social reprodutiva”;
• o caráter de educação continuada que, enquanto parte inte-
grante dos princípios reguladores de uma sociedade para além
do capital, é indissociável da prática de autogestão — pelos
produtores livremente associados — das funções vitais do
processo metabólico social;
• a dimensão estratégica das práticas educativas que habilitam o
indivíduo a realizar essas funções na medida em que sejam redefi-
nidas por eles próprios, de acordo com os requisitos em mudança
dos quais eles são agentes ativos.
Desses destaques, desdobramos:
• promoção de processos educativos pautados pelo pensamento
crítico, sistêmico e reflexivo sobre temas abertos, existenciais e
complexos, como os socioambientais, incorporando a ética, as
emoções e as posturas afetivas;
Complexidade, capitalismo e ciências ambientais 35

• sensibilização para a necessidade de os educandos fazerem co-


nexões e inter-relações entre as questões políticas, econômicas,
sociais, ambientais e a realidade concreta;
• desenvolvimento de práticas em distintos cenários de apren-
dizagem, com análise contextualizada dos problemas locais e
produção de conhecimentos relevantes para a realidade, por
meio de articulação entre a práxis educativa e os sistemas pro-
dutivos locais;
• adoção de metodologia ativa centrada no ser humano e em va-
lores orientados à comunidade, enfatizando a incorporação do
trabalho autorrealizador no processo de educação continuada;
• organização de conteúdos curriculares como módulos interre-
lacionados, integrados à realidade local e ao contexto global,
enquanto preocupação coletiva;
• relacionamento interativo de profissionais dialogando com
os atores sociais, a partir de diferentes perspectivas científi-
cas e saberes tradicionais, com vistas ao desenvolvimento de
sensibilidades e de capacidades propositivas, cooperativas e
comunicativas dos atores envolvidos no processo formativo
(gestores, docentes, discentes, profissionais/técnicos e socie-
dade civil) para enfrentamento de conflitos e de estratégias
hegemônicas do capital;
• deslocamento do poder decisório de instâncias departamen-
talizadas para instâncias transdisciplinares em que gestores,
públicos e privados, educadores, educandos e agentes comu-
nitários participem ativamente do processo de aprendizagem
no contexto de um mundo em contínua transformação.
Nessas bases, a formação na perspectiva integradora aponta
para a epistemologia da complexidade e a perspectiva crítica, com
o processo ensino-aprendizagem centrado no reconhecimento da
prática como fundamento da reflexão teórico-crítica da dinâmica
da realidade e do aperfeiçoamento da ação.
36 Guilherme Vieira Dias, José Glauco Ribeiro Tostes e Elza Neffa (org.)

Referências

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Complexidade, capitalismo e ciências ambientais 37

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428-454.
3.

A teoria marxiana entre o “velho” e o


“novo” paradigma da ciência

Guilherme Vieira Dias


José Glauco Ribeiro Tostes

Trajetória da razão ocidental: da filosofia grega ao nascer da


ciência moderna
Desde suas formas ancestrais, o conhecimento racional es-
teve ligado à esfera do desenvolvimento econômico-social dos
diversos povos e impérios ao redor do planeta e, posteriormente,
à correspondente exploração pré-capitalista de trabalho por um
multimilenar sistema do Capital (MÉSZÁROS, 2002), sem que
as grandes transformações da base produtiva “infraestrutural”
propiciadas por tal sistema jamais determinassem mecanicamen-
te a trajetória daquele conhecimento racional “superestrutural”.
Aqui funcionam as retroações dialéticas (ou “sistêmicas”) deste
conhecimento sobre aquela base. Nos séculos V e IV a.C, inicia-se
na cultura grega a multimilenar (mas não-linear, nem contínua)
“trajetória da razão ocidental”, que, até o século XVII, foi essencial-
mente dominada pela filosofia grega gerada naquele mencionado
período bissecular e, em especial, por Platão e Aristóteles(6). A
partir do século XVII, essa hegemonia da filosofia grega começa
a declinar como ponta avançada da razão ocidental. Para come-
çar a deslocar tal filosofia e a tomar seu lugar até então central
na trajetória da razão ocidental, surge no final do século XVI e
ao longo de todo o século XVII a nova e tendencialmente laica
ciência moderna(7) de Bacon, Galileu, Descartes e Newton, uma

(6)
Grosso modo, a partir desses dois filósofos delineia-se uma razão centrada
numa ontologia do eterno, em valores e conceitos supostamente acima do tempo,
da história e decisivamente centrada na lógica aristotélica.
(7)
Ou melhor, surge o novo paradigma cartesiano da ciência; vide adiante.
Complexidade, capitalismo e ciências ambientais 39

transição superestrutural profundamente articulada ao processo


de transição revolucionária do modo de produção feudal para o
novo modo de produção capitalista.

A segunda geração do Idealismo Alemão: filosofia dialética e


rearticulação razão-história
Mesmo com o processo, então em curso, de deslocamento
da filosofia do seu lugar central na trajetória da razão ocidental,
a própria filosofia passa por um dos seus raros períodos mais ex-
traordinários, não por coincidência, entre o final do século XVIII
e o início do século XIX, onde emergem as revoluções industrial
(inglesa) e política (francesa): é o Idealismo Alemão com sua
primeira geração com Kant, segunda preponderantemente com
Hegel. De modo bastante simplificado, pode-se dizer que o ponto
central das preocupações filosóficas da segunda geração foi a busca
de rearticulação, por meio da nova “filosofia dialética” no caso de
Hegel, entre razão e história, entre lógica e tempo, entre universal
e particular, entre necessário e contingente ou entre finito e infinito
(na linguagem de Hegel). Pode-se tomar como ponto de partida
dessa “nova filosofia dialética” a relação sujeito-objeto. Esses dois
polos giram um em torno do outro, nenhum dos dois termos ou
“partes” subsiste isoladamente, mas sim formam uma inextricável
“totalidade”. Trata-se de uma relação dialética, na qual o “todo” é
maior que a mera soma das partes, mas pertence a um movimento
ou história onde ele mesmo não subsiste isoladamente, pois será
a seguir uma “parte” rumo a uma nova totalidade.
Porém, à medida que a ciência moderna — isto é, o paradigma
cartesiano da ciência — se torna a ponta avançada ou padrão na
trajetória moderna da razão ocidental, a filosofia, toda ela, inclusive
a dialética hegeliana — exceto a “filosofia da ciência” no século
XX, acaba por ficar “fora” do próprio âmbito da razão. De fato, a
filosofia não é mais sequer uma disciplina científica na academia,
portanto, nem sequer uma “ciência humana”. Isso vai marcar
profundamente a trajetória relativamente “desvantajosa” — ao
longo de pelo menos os últimos 150 anos — da filosofia dialética
na teoria marxista, desde Marx e Engels até hoje. Daí a ênfase que
será empregada adiante na relação entre a filosofia dialética e o
novo paradigma sistêmico da ciência no âmbito da teoria marxista.
40 Guilherme Vieira Dias, José Glauco Ribeiro Tostes e Elza Neffa (org.)

O conceito de paradigma da ciência de Kuhn


É no contexto de um notável ciclo mundial de crescimento
capitalista e correspondentes mudanças “superestruturais” nos
anos 1950-60 que emerge, em 1962, A estrutura das revoluções cien-
tíficas (KUHN, 1975). Já haviam ocorrido anteriormente tentativas
semelhantes à de Kuhn, mas somente agora estavam dadas as con-
dições históricas para começar a emergir um processo minimamente
sustentável de transição do pensamento científico ocidental: do
pensamento (hegemônico) cartesiano para o nascente pensamento
sistêmico(8). O conceito nuclear de Kuhn para descrever uma his-
tória não-linear foi o de paradigma — ou melhor, de sucessivos
paradigmas, caracterizando períodos teóricos produtivos de su-
cessivas “ciências normais” estáveis, entremeados por sucessivas e
turbulentas “revoluções” de transição paradigmática. No posfácio
de 1969 ao seu texto de 1962, Kuhn convergiu para dois sentidos
daquele conceito de paradigma (VASCONCELLOS, 2002): 1) “matriz
disciplinar”, equivalente ao tradicional conceito de uma dada “teoria
científica”, portanto, intradisciplinar apenas; 2) “exemplar”: seria o
sentido por excelência de paradigma para Kuhn; envolve um dado
conjunto de crenças e valores subjacentes à prática científica, isto é,
ele atravessa todas as teorias ou “matrizes disciplinares” geradas
a partir de tal conjunto; aqui paradigma é transdisciplinar — esse
será o único sentido de paradigma usado no presente texto. Diante
disso, quais são as crenças/valores básicos ou “grandes dimensões
epistemológicas”: 1) do paradigma cartesiano de ciência?; 2) do
novo paradigma sistêmico de ciência?

Paradigma cartesiano de ciência (P1)


Segundo Capra (1987), o paradigma cartesiano da ciência tem
por referência central disciplinar a física, mais especificamente a
mecânica newtoniana do século XVII.
De acordo com Vasconcellos (2002), há três grandes eixos nesse
paradigma ainda largamente hegemônico na ciência praticada nos
grandes centros acadêmicos mundiais, envolvendo praticamente

(8)
Um dos eixos do pensamento kuhniano é certamente o relevo central que ele
empresta à história, particularmente nas ciências naturais, no lugar de um método
único, definitivo e atemporal ou descontextualizado, de uma razão lógica, enfim.
Complexidade, capitalismo e ciências ambientais 41

todas as “ciências naturais” e certa fração das “ciências humanas”,


com destaque para a ciência econômica. A seguir, os três eixos com
formulação em parte extraída de Vasconcellos (2002):
1) Simplicidade do mundo: separação do mundo complexo
em partes, isto é, em seus elementos mais simples, para se entender
o todo; daí decorrem: (1.1) a análise (cartesiana) e (1.2) a busca de
relações causais lineares; a expressão “o todo é a soma das partes”
sintetiza esse eixo e a separação ou “análise” central da moder-
nidade ocidental é a separação cartesiana sociedade-natureza(9).
2) Estabilidade do mundo: crença em que “o mundo é”; li-
gados a esse pressuposto temos as crenças no (2.1) determinismo
(daí a previsibilidade) e na (2.2) reversibilidade temporal (daí a
controlabilidade) nos fenômenos.
3) Objetividade do conhecimento: crença em que é possível
conhecer objetivamente o mundo “tal como ele é na realidade”; a
subjetividade do cientista é colocada entre parênteses.

Paradigma sistêmico ou complexo da ciência (P2)


Segundo Capra (1997), este paradigma tem por referência central
disciplinar a biologia, mais especificamente a teoria da evolução darwi-
niana do século XIX e o referencial ecológico (ecossistemas) do século
XX. Aqui, apesar de todos os riscos, quer-se evitar reducionismos de
qualquer espécie (à física, à biologia etc.), particularmente no que se
refere ao campo das humanidades.
A seguir, os três eixos do P2 serão apresentados, a partir de Vas-
concellos (2002) e Capra (1997), por quase perfeito contraponto aos
três eixos paradigmáticos cartesianos:
1) Complexidade do mundo: “O todo não se reduz a mera
soma das suas partes”. Essas “partes” deixam de ser primariamente
identificadas a “objetos” isoláveis; estes passam a ser pressupostos
como “nós de relações”. Daí o conceito de “sistema” como um todo

(9)
O pressuposto causal fundamental dessa separação, desde as origens da ciência
moderna no século XVII, está na recusa sistemática em se considerar a noção de
“projeto” (ou “causa final” ou “teleologia”) nos fenômenos naturais (MONOD,
1975). Outrossim, Marx (2011) tinha clareza da utilidade de tal separação na “fase
civilizatória” do capital.
42 Guilherme Vieira Dias, José Glauco Ribeiro Tostes e Elza Neffa (org.)

integrado cujas propriedades essenciais surgem das relações entre


suas partes. Tais relações organizadoras são pressupostas formando
estruturas multiniveladas de sistemas dentro de sistemas (padrão
de rede). Cada um desses sistemas forma um todo com relação às
suas partes, enquanto, ao mesmo tempo, é parte de um todo maior.
Tais níveis não seriam idênticos. Pressupõem-se diferentes níveis
de complexidade, com diferentes leis operando em cada nível.
Nesses, os fenômenos observados exibem propriedades que não
existem no nível inferior: são as propriedades emergentes. O novo
paradigma sistêmico da ciência, por contraste com o paradigma
cartesiano, é, então: (1.1) contextual e pressupõe também (1.2) um
padrão de causalidade não-linear ou recursiva entre as “partes”
de um todo sistêmico.
2) Instabilidade do mundo: o reconhecimento de que “o
mundo está em processo de tornar-se”, e não simplesmente de
“ser o que é”. Daí decorre necessariamente, por contraste com o
“velho” paradigma, a consideração de: (2.1) indeterminação com a
consequente imprevisibilidade de alguns fenômenos e da sua (2.2)
irreversibilidade temporal, com a consequente incontrolabilidade
dos fenômenos. No domínio de teorias sistêmicas atravessadas em
termos transdisciplinares pelo paradigma P2, temos instabilidades
que podem ser fontes de novas estabilidades, em novas formas
sistêmicas de ordem ou organização, as quais, na medida em que
emergem espontaneamente de “ruídos” e flutuações aleatórias,
são auto-organizações: é “a ordem a partir do caos”. Note-se, cui-
dadosamente, que com a recusa do velho paradigma mecanicista
pelos eixos (1) e (2), a nova abordagem sistêmica de fenômenos
naturais é que tende a tornar-se semelhante as já bem estabeleci-
das descrições e explicações de fenômenos sociais e não o inverso.
Aqui estão germes de uma rearticulação teórica — sistêmica e não
reducionista — entre sociedade-natureza.
3) Relação sujeito-objeto: tal relação, no conhecimento ativo do
mundo, foi antecipada na filosofia dialética hegeliana e na correspon-
dente e indissociável relação dialética teoria-práxis marxiana. Agora,
abre-se caminho dentro de um paradigma científico para o pressuposto
da (3.1) totalidade indivisível sujeito-objeto em qualquer atividade
cognitiva humana, articulada ao pressuposto da contextualidade sis-
têmica. Particularmente, apresenta-se aqui uma formulação diferente
de Vasconcellos (2002) para o terceiro eixo.
Complexidade, capitalismo e ciências ambientais 43

Teoria marxiana e os paradigmas da ciência: os dois marxismos


de Marx (século XIX)
O pensamento de Marx, caracterizado pela unidade de um só
projeto revolucionário, ao longo de praticamente toda sua obra, vai
oscilar, teórica e dialeticamente, entre um “marxismo científico”
(da “ilha” Inglaterra) e um “marxismo crítico” (do “continente”
Alemanha), constituindo-se uma tensão nuclear muito enrique-
cedora, mas nunca plenamente resolvida por Marx. Na medida
em que estão entrelaçadas por uma relação dialética, essas duas
tendências teóricas estão longe de se constituir em fatores rígidos,
separados ou acabados, em Marx (TOSTES, 2005).

O marxismo da science inglesa (P1)


Aqui são claros os laços de Marx com o paradigma cartesiano
da ciência, que vai lhe aparecer, sem alternativas na sua época,
como o método científico por excelência: a science inglesa. Tendo a
mecânica newtoniana como sua teoria-chave, esse é o paradigma
que preside a construção teórica da economia capitalista pelos
“pais fundadores” no século XVIII, principalmente Smith e Ri-
cardo. E é esse mesmo paradigma que leva Marx, literalmente, a
ambicionar ser “o Newton da economia”.
Nos moldes newtonianos, o “marxismo científico” tende para
um rígido esquema de um férreo determinismo histórico e resvala
para um esquema teleológico da história(10), dessa vez na contra-
mão causal da science, que rumaria para o grande e único “atrator
final” constituído pela sociedade comunista. Neste esquema, a
consciência, particularmente a “consciência de classe”, tende a ser
determinada — segundo uma causalidade quase mecânica — pela
base econômica de cada modo de produção.

O marxismo da wissenchaft alemã (pré-P2)


Grosso modo, o “marxismo crítico” tem suas raízes racionais
na filosofia dialética ou wissenschaft (que normalmente é traduzi-
da como “ciência”) hegeliana. Aqui, por contraste com o mundo

(10)
Bensaid (1999) aponta que Marx oscilava entre posições teleológicas e anti-
teleológicas, esta última em linha com a science.
44 Guilherme Vieira Dias, José Glauco Ribeiro Tostes e Elza Neffa (org.)

inglês, tem-se “Marx como o Hegel da articulação materialista


razão-história”. O marxismo crítico, com certa semelhança com
a filosofia dialética hegeliana, contém dentro dele próprio uma
tensão entre elementos deterministas (o “Sistema” teleológico da
História Universal) e não-deterministas (o “Método” dialético,
precedendo o paradigma sistêmico da ciência). Pelo viés indeter-
minista, o marxismo crítico tende a defender uma relação dialética
(causalidade recíproca, também na linguagem sistêmica) entre
consciência (“sujeito”) e as suas condições materiais (“objeto”).
Pode-se supor “intuições sistêmicas” de Marx e Engels? Ao
que parece sim, pelo simples fato de se utilizarem da filosofia
dialética, Marx e Engels já estavam trabalhando de forma implí-
cita e avant la lettre com o paradigma sistêmico da ciência. Hoje se
explicita esse recurso científico e aponta-se a seguir para a pers-
pectiva de resolução da tensão “filosofia dialética alemã versus
science inglesa” em Marx, via paradigma sistêmico da ciência, isto
é, tendendo-se a uma abordagem unificável.

Teoria marxista e P2: relações entre filosofia dialética e teorias


sistêmicas da ciência (início do século XXI)
Veiga (2007), mesmo não sendo autor marxista, defende a
atualidade da filosofia dialética por contraponto com outra grande
tradição filosófica europeia: a filosofia analítica. Para usar conhe-
cida metáfora, trata-se do contraponto entre a “ilha” (Inglaterra,
tradição analítica) e o “continente” (Alemanha, tradição dialética),
mencionado anteriormente no presente texto, como uma tensão
nuclear central na teoria marxiana do século XIX. Na linguagem
paradigmática da ciência, trata-se de contraponto entre P1 e uma
abordagem filosófica pré-P2.
Defende-se aqui a importância de se abordar a articulação
entre filosofia dialética e P2 no marxismo. No sentido da inves-
tigação — apenas recém-iniciada — dessa articulação, pelo lado
marxista, tome-se por exemplo Sève (2005) e Guilli (2008). Mas o
trabalho que chamou mais a atenção nesse ponto foi o texto de
Mészáros (2002): Para além do capital. Embora utilizando-se expli-
citamente da tradição filosófica dialética ao longo de todo aquele
denso texto, esse pensador marxista utilizou implicitamente uma
teoria científica sistêmica (oriunda de P2) específica, a “ciência da
Complexidade, capitalismo e ciências ambientais 45

complexidade” de Prigogine, lastreada na termodinâmica longe


do equilíbrio. O principal foco do uso — implícito — por parte de
Mészáros de tal teoria científica sistêmica prendeu-se a uma teori-
zação sobre crises no capitalismo, particularmente na diferenciação
que aquele autor realizou com tal teoria entre crises cíclicas e crise
estrutural do capital. Nota-se aqui um exemplo de paradigma
científico geral que permeia (daí sua transdisciplinaridade) toda
e qualquer teoria sistêmica.

Teoria marxista e P2: crise estrutural do capitalismo e teoria


sistêmica (final do século XX, início do século XXI)
O tema “crise do capitalismo” está na moda. E Marx de volta
com ele. A crise iniciada em 2008 é apenas “financeira” ou é “sis-
têmica”? E neste último caso, é “cíclica” ou “estrutural”?
Duas análises críticas, com certa semelhança entre elas, abor-
dam o capitalismo enquanto sistema complexo: a de Wallerstein
(1995; 2004), muito próxima do marxismo, e a de Mészáros (1989;
2002), marxista, provindas do fim do século XX e aprimoradas,
em relação a Marx e a trajetória da teoria marxista até os anos
1970, pelos próprios desdobramentos históricos do capitalismo
(pelo menos desde a crise de 1929) e da ciência (principalmente o
processo de transição paradigmática da ciência em curso desde a
segunda metade do século XX).
No caso dos desdobramentos históricos, ambas as análi-
ses convergem para a conclusão de que a crise crescentemente
socioambiental que se inicia nos anos 1970 seria estrutural ou
“terminal” para o sistema-mundo capitalista e para o sistema do
capital, respectivamente para Wallerstein e Mészáros.
No caso da ciência, dentro do mencionado processo maior
de transição interparadigmática, tem-se a apropriação sociológica
e interdisciplinar da teoria sistêmica conhecida como “ciência da
complexidade” de Prigogine (1984) — originalmente desenhada
para a Termodinâmica de processos longe do equilíbrio (área da
físico-química) nos anos 1960-1970 — por parte de Wallerstein e
Mészáros, enriquecendo, no final do século XX, suas respectivas
análises sistêmicas na área de crise do capitalismo.
46 Guilherme Vieira Dias, José Glauco Ribeiro Tostes e Elza Neffa (org.)

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______. After Liberalism. New York: The New Press, 1995.
4.

A influência da ciência da complexidade


de Prigogine nas teorias da crise do
capitalismo de Wallerstein e Mészáros(11)

Guilherme Vieira Dias


José Glauco Ribeiro Tostes

Introdução

A ciência da complexidade de Ilya Prigogine(12) (1984a; 1984b) foi


elaborada originalmente para investigações e aplicações na área
das ciências naturais. No entanto, desde os anos 1980, ela vem
sendo apropriada por diversos autores da área das ciências sociais,
sob um diversificado leque de interesses(13). Nesse sentido, desta-
cam-se dois intelectuais respeitados mundialmente pela qualidade
de suas obras que adotaram perspectivas sistêmicas apoiadas na
complexidade prigogineana, a saber, o sociólogo estadunidense
Immanuel Wallerstein e o filósofo húngaro István Mészáros.
Wallerstein, desde os anos 1980, utilizou centralmente a
complexidade prigogineana para uma profunda crítica ao capi-
talismo. Mészáros utilizou, desde o final dos anos 1980, certos
traços da ciência da complexidade prigogineana, que podem
ser reconhecidos implicitamente em sua vasta e robusta crítica
ao capitalismo, ainda que, conforme será visto adiante, o autor
não faça referência explícita à Prigogine (TOSTES, 2007). Tanto
Wallerstein quanto Mészáros convergem suas respectivas críticas
para uma suposta crise estrutural do capitalismo, que já estaria
em curso desde os anos 1970.

(11)
Texto originalmente publicado no periódico Tramas y Redes (DIAS; TOSTES,
2021).
(12)
Prêmio Nobel de Química em 1977.
(13)
Podemos citar como exemplos Pablo G. Casanova, Enrique Leff, entre outros.
48 Guilherme Vieira Dias, José Glauco Ribeiro Tostes e Elza Neffa (org.)

Pretende-se gerar uma síntese da apropriação da ciência da


complexidade por parte de Wallerstein e Mészáros. Com maior
destaque, será enfocado nesses autores a questão da crise estru-
tural ou sistêmica do capitalismo do último quarto do século XX
e início do XXI descrita via complexidade, expondo-se alguns
conceitos-chave de Prigogine, tal como utilizados para descrever
a “trajetória” capitalista e suas crises.

O sistema-mundo capitalista de Wallerstein


Wallerstein defende um padrão comum, não obstante as espe-
cificidades de cada sistema, para cada um dos grandes e sucessivos
sistemas históricos (ao menos os ocidentais). Em particular, a etapa ou
processo final de “crise sistêmica”, de cada sistema histórico, seguiria
um mesmo padrão de complexidade prigogineano. Grande parte da
obra de Wallerstein consiste em aprofundar a aplicação deste padrão
ao que ele denomina de “crise sistêmica” do capitalismo, para dis-
tingui-la de todas as suas crises anteriores, apenas “conjunturais” ou
“superáveis” (essencialmente o mesmo para Mészáros).
A seguir, eis uma boa síntese construída pelo próprio Wal-
lerstein (2002, p. 67-68), relativa ao sistema-mundo capitalista: 1)
o sistema-mundo moderno é uma economia-mundo capitalista,
o que significa que é governado pelo ímpeto de acumulação in-
cessante de capital; 2) este sistema-mundo nasceu ao longo do
século XVI e sua divisão internacional do trabalho original incluía
grande parte da Europa e partes das Américas e se expandiu ao
longo de dois séculos, incorporando sucessivamente outras partes
do mundo em sua divisão do trabalho, até a Ásia Oriental ser a
ele incorporada em meados do século XIX; 3) o sistema-mundo
capitalista adquiriu uma extensão verdadeiramente mundial,
sendo o primeiro sistema-mundo a integrar o globo; 4) o siste-
ma-mundo capitalista é constituído por uma economia mundial
dominada por relações centro-periferia e uma estrutura política
formada por Estados soberanos dentro de uma estrutura de um
sistema interestados; 5) as contradições fundamentais do sistema
capitalista se expressaram no bojo do processo sistêmico através
de uma série de ritmos cíclicos,(14) os quais têm servido para conter

(14)
Daqui em diante, todas as palavras destacadas em itálico dizem respeito a
Complexidade, capitalismo e ciências ambientais 49

essas contradições; 6) os ritmos cíclicos resultaram em deslocamentos


geográficos lentos, mas significativos, nos lócus de acumulação de
capital e de poder, sem, entretanto, mudar as relações fundamentais
de desigualdade no interior do sistema; 7) tais ciclos nunca foram
perfeitamente simétricos; em vez disso, cada novo ciclo levou a cabo
deslocamentos pequenos, mas significativos, nas direções particulares
que constituíram as tendências seculares do sistema; 8) o sistema-mun-
do moderno, como todos os sistemas, é finito em duração e chegará
ao fim quando suas tendências seculares alcançarem o ponto em que
suas flutuações se tornarão suficientemente amplas e erráticas, dei-
xando tais flutuações de poder garantir a viabilidade renovada das
instituições do sistema; 9) quando este ponto for atingido, ocorrerá
a bifurcação, e o sistema será substituído por outro ou vários outros
através de um período caótico de transição.
Apresenta-se a seguir outros trechos de textos de Wallerstein que
evidenciam o uso de conceitos da ciência da complexidade de Prigo-
gine na sua teoria da crise estrutural do sistema-mundo capitalista.
A historical system is both systemic and
historical [...] it has enduring structures that
define it as a system — enduring, but not of
course eternal. At the same time, the system is
evolving second by second such that it is never
the same at two successive points in time. […]
Another way to describe this is to say that a
system has cyclical rhythms (resulting from
its enduring structures as they pass through
their normal fluctuations) and secular trends
(vectors which have direction, resulting from
the constant evolution of the structures). Be-
cause the modern-world system (like any other
historical system) has both cycles and trends
— cycles that restore “equilibrium” and trends
that move “far from equilibrium” — there
must come a point when the trends create a
situation in which the cyclical rhythms are no
longer capable of restoring long-term (relative)
equilibrium. When this happens, we may talk

conceitos da ciência da complexidade, originalmente elaborados para ciências


naturais, e que aparecem nos textos de Wallerstein e/ou Mészáros para tratar de
sistemas históricos.
50 Guilherme Vieira Dias, José Glauco Ribeiro Tostes e Elza Neffa (org.)

of a crisis, a real “crisis”, meaning a turning


point so decisive that the system comes to an
end and is replaced by one or more alternative
systems. Such a “crisis” is not a repeated (cycli-
cal) event. It happens only once in life of any
system, and signals its historical coming to an
end. And it is not a quick event but a “transi-
tion”, a long period lasting a few generations
(WALLERSTEIN; HOPKINS, 1996, p. 8).

Conforme o trecho citado, entende-se que a ampliação


descontrolada de flutuações internas, geradas e enfrentadas pelo
capitalismo, se dá quando esse sistema é levado, pelo acúmulo de
suas próprias contradições, para longe do equilíbrio que até então
conseguira sustentar, quando final e inevitavelmente as tendências
seculares não mais serão “reequilibráveis” pelos ritmos cíclicos do
capitalismo. Aqui Wallerstein lança mão de uma metáfora geo-
métrica, traduzindo essa evolução do sistema através de uma
“trajetória” ou “curva da vida do sistema histórico”. Enquanto há
condições de sustentar-se dinamicamente o “equilíbrio sistêmico”,
tal curva é ascendente assintoticamente (isto é, seu crescimento
é cada vez mais amortecido). O texto a seguir explicará que essa
tendência ao desequilíbrio na “trajetória” desse sistema implicará
em um processo caótico (deslanchado pela ampliação descontrolada
de suas flutuações sistêmicas), que provocará abrupto e irreversível
declínio daquela “trajetória” e finalmente desembocará em uma
bifurcação que extinguirá — a partir daí — a própria “trajetória”
do sistema-mundo capitalista e abrirá para novas possibilidades
sistêmicas, cuja seleção é ainda, nessa etapa, “imprevisível”:
All systems (physical, biological and social)
depend on cyclical rhythms to restore a mini-
mum equilibrium. […] But systems have [also]
secular trends [which] always exacerbate the
contradictions (which all systems contain).
There comes a point when the contradictions
become so acute that they lead to larger and
larger fluctuations. In the language of the new
science, this means the onset of chaos (which
is merely the widening of the normal fluctua-
tions in the system, with cumulative effects),
which in turn leads to bifurcations, whose
Complexidade, capitalismo e ciências ambientais 51

occurrence is certain but whose shape is inhe-


rently unpredictable. Out of this a new system
order emerges (WALLERSTEIN, 1995, p. 27).

Há algum papel da intervenção ou escolha humana na decisão


entre mais de uma nova possibilidade de ordem sistêmica (excluindo
ao mesmo tempo a sustentação do atual sistema histórico), possibilida-
des essas que vão se desenhando nesse processo caótico que culmina
numa bifurcação? Wallerstein resume a sua resposta à questão:
Chaotic situation is, in a seeming paradox, that
which is most sensitive to deliberate human
intervention. It is during periods of chaos,
as opposed to periods of relative order, that
human intervention [or choice] makes a signi-
ficant difference (WALLERSTEIN, 1995, p. 44).

Ou, de um ponto de vista inerente à matemática de sistemas


não lineares, um outro texto do autor aponta que nesses pontos
de bifurcação, ao contrário de períodos de relativa ordem, “insu-
mos pequenos geram grande produto (em oposição ao tempo de
desenvolvimento normal do sistema, quando grandes insumos
geram pequeno produto)” (WALLERSTEIN, 2002, p. 33).

O sistema do capital de Mészáros


Mészáros é um autor bem conhecido na área acadêmica mar-
xista. O autor está em pleno acordo com o que Marx denominava de
contradição capital-trabalho e expõe tal e mesma contradição ora
centrada no fator trabalho, ora na lei do valor (MÉSZÁROS, 2002).
O núcleo de seu pensamento crítico sobre o capitalismo — es-
tando esse englobado por Mészáros no sistema do capital — talvez
resida numa grande comparação entre uma “fase I” do capitalismo,
na qual a produção ainda atenderia progressiva e essencialmente
às necessidades humanas e exigiria expansão planetária do círculo
produção-consumo (de acordo com Marx), e uma “fase II” — de-
sencadeada a partir da resposta do capital à crise de 1929 — da
“produção destrutiva” (não prevista por Marx) caracterizada pela
taxa de uso decrescente da produção via, originalmente, o com-
plexo industrial-militar, isto é, com o Estado agora assumindo o
papel de “consumidor” de tal produção militar. Trata-se da nova
52 Guilherme Vieira Dias, José Glauco Ribeiro Tostes e Elza Neffa (org.)

era da “obsolescência programada”. Essa nova via “produtiva”


do capitalismo teria conseguido deslocar, com relativo sucesso, a
contradição central da superprodução — desencadeada pela crise
de 1929 — apenas por algum tempo, durante a “Era do Ouro” que
dura aproximadamente de 1945 ao final dos anos 1960.
A partir daí delinear-se-ia uma “fase III”, que seria uma etapa
de restrição (também não prevista por Marx, nem admitida por
Wallerstein) à expansão geográfica do círculo produção-consumo,
excluindo-se dele camadas crescentes de trabalhadores da periferia
e mesmo do centro (tanto como força produtiva, como na condição
de consumidor, dois aspectos indissociáveis). Isto é, a taxa de uso de-
crescente passa a aplicar-se também à “mercadoria força de trabalho”
como meio imperioso de se continuar sustentando a autorreprodução
destrutiva do capital. Estariam assim sendo ativados, nessa “fase III”,
segundo a obra fundamental de Mészáros (2002), os limites absolutos
do capital e o consequente desencadeamento de sua crise estrutural
ou sistêmica, uma crise insolúvel do sistema do capital.
Tem-se aqui a forma — ainda simplificada — pela qual se
desenvolve esse processo de crise para Mészáros que, segundo
a interpretação dos autores do presente trabalho, tem a ver com
a complexidade de Prigogine e, portanto, aproxima, ao menos
parcialmente, as perspectivas de Mészáros e Wallerstein. Para
Mészáros (2002, p. 797), em termos genéricos:
Uma crise estrutural afeta a totalidade de um
complexo social em todas as relações com suas
partes constituintes ou sub-complexos, como tam-
bém a outros complexos aos quais é articulada.
Diferentemente, uma crise não-estrutural afeta
apenas algumas partes do complexo em ques-
tão e, assim, não importa o grau de severidade
em relação às partes afetadas, não pode pôr em
risco a sobrevivência contínua da estrutura global.
Sendo assim, o deslocamento das contradições só é
possível enquanto a crise for parcial, relativa e in-
teriormente manejável pelo sistema, demandando
apenas mudanças – mesmo que importantes – no
interior do próprio sistema [ainda] relativamen-
te autônomo. Justamente, por isso, uma crise
estrutural põe em questão a própria existência
do complexo global envolvido, postulando sua
Complexidade, capitalismo e ciências ambientais 53

transcendência e sua substituição por algum


complexo alternativo [...] Por conseguinte,
quanto maior a complexidade de uma estrutura
fundamental e das relações entre ela e outras
com as quais é articulada, mais variadas e
flexíveis serão suas possibilidades objetivas
de ajuste e suas chances de sobrevivência até
mesmo em condições extremamente severas de
crise. Em outras palavras, contradições parciais
e “disfunções”, ainda que severas, podem ser
deslocadas e tornadas difusas – dentro dos limites
últimos ou estruturais do sistema – e neutrali-
zadas, assimiladas, anuladas pelas forças ou
tendências contrárias, que podem até mesmo
ser transformadas em forças que ativamente
sustentam o sistema em questão (grifos nossos).

Aí estão expostas algumas características sistêmicas centrais


do pensamento de Mészáros, perfeitamente relacionáveis à ciência
da complexidade de Prigogine. Em primeiro lugar, as partes de um
complexo também podem possuir características sistêmicas (“sub-
complexos”). Por sua vez, a “totalidade sistêmica” considerada
pode, ela própria, formar parte dinâmica de um “supersistema”
(que congregaria essa “totalidade” e “outros complexos” articula-
dos a ela). Em segundo lugar, na citação anterior, está claramente
exposta a forma de “auto-organização” de sistemas complexos,
que pode também ser exibida (PRIGOGINE, 1984a) sob certas
circunstâncias na matéria inanimada e, necessariamente, nos
seres vivos(15). Em terceiro lugar, tem-se o apelo a uma metáfora
de processo físico-químico de difusão de flutuações sistêmicas (flu-
tuações essas, como em Wallerstein, trazidas para o campo social
pelo rótulo de “contradições sistêmicas”). Em suma, tem-se —
metaforicamente — um mecanismo prigogineano de “difusão de
flutuações” como instrumento de amortecimento ou dissipação
interna de certas flutuações perigosas a um sistema complexo.
Até aqui, focou-se mais em como Mészáros entende as for-
mas de amortecimento/dissipação de contradições perigosas ao
sistema complexo capitalista. Será demonstrado agora como ele

(15)
Note-se a metáfora — ainda biológica — da “sobrevivência sistêmica”
empregada por Mészáros.
54 Guilherme Vieira Dias, José Glauco Ribeiro Tostes e Elza Neffa (org.)

entende, sistemicamente, o processo de crise estrutural do sistema


do capital, em que não seria mais possível a esse próprio sistema
amortecer as “contradições perigosas” que ele mesmo engendra.
Inicialmente, Mészáros (2002, p. 798) nos recorda que:
No curso do desenvolvimento histórico, as três
dimensões fundamentais do capital — produção,
consumo e circulação/distribuição/realização —
tendem a se fortalecer e a se ampliar por um longo
tempo, provendo também a motivação interna
para a sua reprodução dinâmica recíproca em
escala cada vez mais ampliada.

Mas a seguir, o autor aponta para o fim deste relativo “equi-


líbrio” sistêmico do capital:
A crise estrutural do capital que começamos
a experimentar nos anos 70 [...] significa sim-
plesmente que a tripla dimensão interna [do
texto anterior] de auto-expansão do capital exibe
perturbações cada vez maiores. Ela [tal crise] não
apenas tende a romper o processo normal de cres-
cimento, mas também pressagia uma falha na sua
função vital de deslocar as contradições acumuladas
no sistema [...]. A situação muda radicalmente
quando [...] os interesses de cada uma [daquelas
três dimensões] deixam de coincidir com os das
outras, até mesmo em última análise [leia-se: tal
“falta de coincidência” não é mais apenas con-
juntural]. A partir desse momento, as perturbações
[...], ao invés de serem absorvidas/dissipadas/des-
concentradas e desarmadas, tendem a ser tornar
cumulativas e, portanto, estruturais, trazendo com
elas o perigoso bloqueio ao complexo mecanismo de
deslocamento de contradições. Desse modo, aquilo
com que [agora] nos confrontamos [...] é [...]
potencialmente muito explosivo. Isto porque o
capital jamais resolveu sequer a menor de suas
contradições. Nem poderia fazê-lo, na medida
em que, por sua própria natureza o capital nelas
prospera (até certo ponto, com relativa seguran-
ça). Seu modo normal de lidar com contradições
é intensificá-las, transferi-las para um nível mais
elevado, deslocá-las para um plano diferente,
Complexidade, capitalismo e ciências ambientais 55

suprimi-las quando possível, e quando não


puderem mais ser suprimidas, exportá-las para
uma esfera ou país diferente (MÉSZÁROS, 2002,
p. 799-800; grifos e colchetes nossos).

Agora, tal como na descrição de Wallerstein, as turbulências (ou


flutuações, ou perturbações) impostas ao sistema capitalista tendem
a se tornar cumulativas, o que na linguagem sistêmica da ciência da
complexidade significa mecanismo dinâmico não-linear de realimen-
tação (feedback) positiva de uma pequena flutuação inicial no sistema.
O termo “realimentação negativa” refere-se aqui a mecanis-
mos sistêmicos que contrabalançam e superam uma relativamente
pequena, para as dimensões do sistema, flutuação inicial; já a
“realimentação positiva” refere-se ao processo inverso, justamente
aquele em tela agora, de uma “crise estrutural”. Uma pequena
flutuação se amplifica descontroladamente pelo sistema e termi-
na por gerar um processo de transição caótico, que por sua vez o
leva a um ponto de bifurcação que extingue esse sistema até então
vigente, conforme foi analisado anteriormente aqui neste trabalho
por meio da aplicação da ciência da complexidade à “crise estrutu-
ral” do sistema-mundo capitalista por Wallerstein. Novamente se
encontra, agora em Mészáros, uma causalidade típica de sistemas
não-lineares (em “crise”): nesse mencionado processo caótico, pe-
quenas causas (perturbações “microscópicas” no sistema) podem
gerar grandes efeitos no sistema total. Em outro texto, o pensador
húngaro trabalha esse mesmo processo de ruptura sistêmica por
um ângulo muito semelhante ao da “curva da vida do sistema
histórico” de Wallerstein, curva essa crescente de forma assintótica
(isto é, crescimento cada vez mais amortecido) fruto de “tendências
seculares e contraditórias” do próprio sistema, com um abrupto
e irreversível declínio a partir de uma (única) crise estrutural do
sistema. Compare agora com o texto de Mészáros (2002, p. 217-219):
Quanto mais mudam as próprias circunstân-
cias históricas, apontando na direção de uma
mudança necessária das contraditórias e cada
vez mais devastadoras premissas estruturais
irracionais do sistema do capital, mais cate-
goricamente os imperativos de funcionamento
devem ser reforçados e mais estreitas devem
ser as margens dos ajustes aceitáveis [...]; a
56 Guilherme Vieira Dias, José Glauco Ribeiro Tostes e Elza Neffa (org.)

margem de deslocamento das contradições do


sistema se torna cada vez mais estreita.

Finalmente, em texto original de 1989, Mészáros (1996, p. 391-


393) utilizou a linguagem da complexidade de modo significativo
através de uma dada específica relação complementar (“reciproci-
dade dialética” nas suas próprias palavras) de tendências opostas
(tendência x contratendência): é a relação equilíbrio x colapso do
equilíbrio. Mészáros distingue o inter-relacionamento “conjun-
tural” entre tais pares de tendências, que pode levar inclusive à
alternância de dominância de uma ou outra das tendências, de seu
relacionamento nos limites do desenvolvimento de capitalismo
global, em que acaba se estabelecendo “em última instância” o
que Marx denominava de “momento (ou tendência) dominante”.
No caso da relação específica de tendências “equilíbrio x colapso
do equilíbrio”, Mészáros conclui que, naqueles “limites” do ca-
pitalismo, a desorganização e o colapso do equilíbrio vem a ser
a tendência fundamentalmente dominante do sistema do capital,
em lugar da tendência complementar do equilíbrio.
Note-se aqui mais uma das semelhanças de Mészáros com
texto de Wallerstein, quando esse último autor tratou de “tendên-
cias seculares” e intrinsecamente contraditórias de longo prazo
(e, em última instância, dominantes) do capitalismo, tendências
dominantes essas que terminariam inexoravelmente por arrastar
a “trajetória” do sistema histórico “para longe do seu equilíbrio”
e, assim, para condições “caóticas” de “crise estrutural” (WAL-
LERSTEIN; HOPKINS, 1996, p. 8).

Fundamentos ocidental-modernos da articulação entre a crítica


do capitalismo de Wallerstein e de Mészáros e a ciência da com-
plexidade de Prigogine: relações com questões socioambientais
O primeiro fundamento teórico, emergindo da modernidade
ocidental, tem a ver com a relação “universal-particular” e cor-
responde ao projeto, talvez fundamental, da segunda geração do
Idealismo Alemão (devidamente apropriado pelo “lado alemão”
de Marx): rearticular a razão (lógica; necessidade; universal) e a
história (tempo; contingência; acaso; particular), separadas — para
falar de forma simplificada — por Platão e Aristóteles.
Complexidade, capitalismo e ciências ambientais 57

Tanto em Wallerstein quanto em Mészáros, a trajetória do


sistema-mundo capitalista (ou do sistema do capital) é marcada
desde seu início por contradições internas estruturais (é a parte
da lógica sistêmica do capital: o “constituinte” universal da sua
trajetória), nunca elimináveis pelo próprio sistema,(16) e que geram
crises históricas sucessivas,(17) que vão sendo dissipadas/deslocadas/
difundidas — nunca plenamente resolvidas — e que posterior e
paulatinamente ampliam inexoravelmente as barreiras ao processo
acumulativo central de capital, processo sistêmico de autorreprodu-
ção, levando tal sistema para cada vez mais longe do seu saudável
e saudoso equilíbrio original. Na linguagem (complexa, avant la
lettre) do próprio Marx, tal como acentuado por Mészáros (2002),
no par estrutural (sistêmico) dialético de momentos equilíbrio/de-
sequilíbrio, a tendência dominante ao fim da trajetória do sistema
do capital será a do desequilíbrio.
Na linguagem da ciência da complexidade, as crises cíclicas,
sempre ligadas às contradições estruturais do sistema, nascem
como pequenas flutuações ameaçadoras à estabilidade do sistema
ao longo de sua trajetória, mas sempre passíveis de “regressão” por
dissipação/deslocamento/difusão/exportação (“realimentação negativa”
de pequenas flutuações) antes que se expandam incontrolavelmen-
te e afetem o sistema como um todo (“realimentação positiva de
flutuações”). Mas esse contínuo processo de dissipação de crises
cíclicas, sempre benéficas inicialmente ao sistema, produz — tanto
para Wallerstein, como para Mészáros e, afinal, para um Marx
sistêmico — adiante barreiras cada vez maiores à rota acumulati-
va central do capital, acentuando suas contradições centrais. Até
que pequenas flutuações não mais terão mecanismos seguros de
dissipação (não há mais para onde deslocar as crises cíclicas) e aí
inexoravelmente se acende uma (única) crise estrutural ou terminal
desse sistema em tela: todas as válvulas de escape para sustentar-se
a acumulação de capital como que “entopem” e aquelas pequenas
flutuações agora podem propagar-se, “infectando” todo o sistema

(16)
Pois emergem das tendências seculares — conceito de Wallerstein — sistêmicas
cumulativas/permanentes do capital.
(17)
Crises econômicas cíclicas e conflitos sucessivos entre potências por
hegemonia política no processo de acumulação de capital: ambos os processos
caracterizam os “ritmos cíclicos” de Wallerstein, que constituem a trama histórica,
sempre contingente, daquele sistema-mundo.
58 Guilherme Vieira Dias, José Glauco Ribeiro Tostes e Elza Neffa (org.)

e tornando-o altamente instável. Atinge-se, na linguagem prigo-


gineana, um ponto de bifurcação onde acaba a trajetória sistêmica
capitalista até então em curso e abrem-se múltiplas possibilidades
(em processo não determinista) de sucessivas bifurcações (na
interpretação de Wallerstein) até a emergência de um novo siste-
ma-mundo (que Wallerstein considera impossível precisar durante
a crise terminal do sistema moribundo) ou de apenas uma grande
bifurcação: socialismo ou barbárie (Mészáros), isto é, ou um novo
sistema-mundo (socialista) ou o caos da barbárie.
Em síntese, tem-se aqui uma apropriação marxista da ciência
da complexidade prigogineana por parte de Wallerstein e Mészá-
ros, isto é, a caracterização de uma trajetória (quase) determinista
do sistema-mundo capitalista ou do sistema do capital (é o lado
dominante da “razão” via elementos “permanentes” daquele sis-
tema histórico), intercalada — face a emergência de nova trajetória
de um futuro sistema-mundo — por instabilidades incontroláveis/
ponto de bifurcação final com características não deterministas (é a
“história”, com sua face do acaso, do imprevisível, do “caótico”,
numa escala de “ciclos de civilização”).
Para Wallerstein e Mészáros, ter-se-ia instalado (ainda que
por razões distintas), desde o início dos anos 1970, a crise terminal
do sistema do capital (Mészáros) ou do sistema-mundo capitalista
(Wallerstein). Ou seja, as tendências seculares mortais que perpas-
sam toda a trajetória desse sistema (é a sua “lógica”) finalmente
estariam encontrando no nosso tempo suas condições históricas
específicas de explosão (em flutuações/crises locais) e propagação
(por todo o sistema) incontroláveis. De passagem, os autores do
presente trabalho concordam que a trajetória “prigogineana” do
sistema-mundo capitalista ou do sistema do capital vai levá-lo
inexoravelmente a uma crise terminal (ponto de bifurcação); mas
não corroboram com a tese de que essa crise iniciada na década
de 1970 seja necessariamente a crise terminal. Poderá não ser: en-
tende-se aqui que ainda existem “válvulas de escape” possíveis
(incluindo, de modo original, ingredientes ambientais) para tal
crise que se avoluma há cinquenta anos.
O segundo fundamento é a (re)articulação do pensamento da
modernidade ocidental: rearticulação sociedade-natureza (SN) e o
seu correspondente patamar epistemológico: rearticulação ciências
Complexidade, capitalismo e ciências ambientais 59

sociais-ciências naturais, processo em curso no pensamento oci-


dental — de um modo mais substantivo a partir de meados do
século XX — e ainda longe de sua conclusão.
Antes do alvorecer da modernidade ocidental, sociedade (S)
e natureza (N) estavam, em geral, organicamente articuladas em
qualquer civilização do planeta, essencialmente via religiões e,
mais particularmente no ocidente, pela via da razão aristotélica
que encarava a natureza — tanto quanto a humanidade — como
perpassada por “causas finais” (teleologia).
A modernidade ocidental teve na separação ou (des)articu-
lação cartesiana entre SN — processo que se inaugura no início
do século XVII — um dos seus aspectos mais expressivos, que se
perpetua, inclusive, na academia por meio da face epistemológica
daquela separação, a saber, a separação consequente entre ciências
sociais e ciências naturais. O nascente conceito de natureza no século
XVII como um “ser” neutro, objetivo, desprovido de qualquer pro-
jeto, destino ou “causas finais”, em síntese, desprovido totalmente
de “contaminações” antropomórficas (MONOD, 1977), tornou-se
a matriz (supostamente) ontológica das “ciências naturais”.
A história da moderna relação SN, especialmente nos últi-
mos duzentos anos, está profundamente articulada à trajetória
do sistema-mundo capitalista. Conforme compreendido pelo
próprio Marx (citado en Mészáros, 1989) em O capital, o capitalis-
mo dos primórdios da revolução industrial precisava sustentar
— “astuciosamente”, segundo Marx — aquela separação SN e
a (epistemologicamente) correspondente “neutralidade” e con-
sequente dessacralização da ciência: os quadros do proletariado
urbano nascente provinham do campo, onde velhas e medievais
tradições religiosas/místicas/antropomórficas dos camponeses
referentes à natureza poderiam se tornar sérios empecilhos ao
trabalho fabril de exploração ilimitada da natureza.
Pelos meados do século XIX, Marx e Engels — opondo-se ao
capitalismo — buscam (re)articular sociedade e natureza por meio
da história, ou melhor, por meio da articulação entre histórias
natural e humana.
Já no século XX, o sistema capitalista enfrentou, a partir
de 1929, uma crise de proporções devastadoras. Uma das suas
60 Guilherme Vieira Dias, José Glauco Ribeiro Tostes e Elza Neffa (org.)

estratégias sistêmicas de saída acabou levando a uma (re)articu-


lação — não esperada nem logo detectada — entre sociedade e
natureza pela via da violência (TOSTES, 2006).
Finalmente, e mais importante, na segunda metade do século
XX, começam várias iniciativas de (re)articulação sociedade-na-
tureza (inclusive pela via dos movimentos ambientalistas) e,
epistemologicamente, de rearticulação entre ciências humanas
e ciências naturais (PINGUELLI ROSA, 2005; 2006). Dentre tais
iniciativas epistemológicas, destaca-se aqui a de Prigogine (PRI-
GOGINE; STENGERS, 1984a, 1984b). Partindo da Termodinâmica
do não equilíbrio ou longe do equilíbrio e de suas “estruturas
dissipativas”,(18) que só podem existir estavelmente em sistemas
abertos (isto é, trocando energia e matéria com o “ambiente”),
Prigogine é levado, num ponto central de sua obra, a contrastar
a relação sociedade-natureza na visão do mundo mecanicista
(newtoniana) com uma visão de mundo sistêmica fundada na
ciência de sistemas complexos. Esta última ciência envolve um
projeto interdisciplinar por excelência, pois a separação ciências
humanas-ciências naturais é a matriz ou tronco original setecen-
tista de todas as subsequentes separações disciplinares que ainda
hoje existem no cotidiano da academia.
A articulação entre as perspectivas marxistas de crítica do
capitalismo de Wallerstein e de Mészáros e a ciência de sistemas
complexos de Prigogine se dá dentro do processo maior em curso
de rearticulação entre sociedade e natureza ou, epistemologicamen-
te, entre ciências sociais e ciências naturais. Em outras palavras,
a ciência da complexidade de Prigogine leva para dentro do uni-
verso marxista, via Wallerstein e Mészáros, uma perspectiva mais
“ecológica” de análise que a perspectiva da “máquina do mundo
newtoniana”. Conjetura-se que tal processo rearticulador entre SN
— sinalizando para um além da modernidade ocidental e de sua
separação central SN — será, provavelmente, mais acelerado nos
próximos anos devido aos crescentes problemas socioambientais.
O terceiro e último fundamento, formando um trançado com
os outros dois, tem a ver com uma faceta ainda pouco explorada

(18)
Termo usado para distingui-las das “estruturas de equilíbrio”, que podem
existir estavelmente mesmo em sistemas isolados.
Complexidade, capitalismo e ciências ambientais 61

da história do século XX. A ciência da complexidade de Prigogine


pode ser vista como a ponta avançada de um processo bem mais
geral de emergência e construção de um modelo europeu alter-
nativo de civilização, que denominaremos de “modelo cíclico de
transições caóticas”, em curso desde o fim da Primeira Guerra
Mundial. Paralelamente, o sistema-mundo capitalista seria pro-
duto e motor da própria modernidade europeia e estaria centrado
em um modelo hegemônico (isto é, em um projeto de civilização)
iluminista axial-progressista — e profundamente antiecológico
— de transformar o planeta numa sociedade de mercado. Mesmo
o lado “inglês” de Marx (o “marxismo científico” de Marx como
“Newton da economia”) e o socialismo real (e seu “capitalismo de
Estado”), a partir de 1917, se apropriaram essencialmente desse
modelo axial-progressista.
Grosso modo, o modelo alternativo defende um análogo “bio-
lógico” para cada civilização: nascimento, crescimento e decadência
e uma descontinuidade entre cada uma delas, não dando lugar a
uma linha ou fio condutor contínuo articulando — progressistamen-
te ou não — a trajetória de tais civilizações. Esse modelo começa
com traços — bastante ligados à respectiva conjuntura alemã de
1918 — de extremo pessimismo na obra de Spengler (1959) e se
desdobra em geral nas mesmas cores negativas no entre guerras
europeu, chegando mesmo a envolver o historiador inglês Toynbee
e o estrategista Sorokin nos EUA — este último adotando uma pers-
pectiva mais “neutra” (CAPRA, 2006). Mas não consegue chegar,
firmemente, ao status de um “projeto de civilização”.
Durante a “Era de Ouro” capitalista (1945-1973), o modelo
cíclico evidentemente perde espaço para o projeto do “progresso”,
mas retorna sob novos prismas a partir dos anos 1980, sendo apro-
priado e transformado em “projeto de civilização”, por exemplo,
pelo físico e ambientalista Capra (2006) e, mais relevante para o
presente trabalho, ainda apenas na condição de modelo, pela aná-
lise dos sistemas-mundo de Wallerstein (2004), apropriação essa
que em ambos os casos ocorre consciente e principalmente pelo
mesmo viés prigogineano que ambos autores imprimiram a este
modelo. Nestes dois autores, esse viés fica claro quando utilizam
a alternância de Prigogine entre diferentes trajetórias sistêmicas
bem definidas (deterministas) com períodos (bifurcações “indeter-
ministas”) de transição “caóticas” intersistemas.
62 Guilherme Vieira Dias, José Glauco Ribeiro Tostes e Elza Neffa (org.)

Mészáros tem posição diferenciada. Se, de um lado, no fim da


trajetória do multimilenar sistema do capital se tem uma única e
típica bifurcação prigogineana (socialismo ou barbárie) com resul-
tado imprevisível a partir daquela trajetória anterior que se esgota,
de outro lado, tem-se — aparentemente — uma enorme trajetória
contínua ao longo de larga parte da história das civilizações. Dado
o caráter crescentemente socioambiental de uma crise do capital
que já se desdobra há cerca de cinquenta anos, pode-se conjeturar
que o modelo cíclico de civilização tem mais possibilidades de
se firmar como um “projeto” nos próximos anos em detrimento
do clássico projeto de civilização do progresso linear das “forças
produtivas” via ciência/tecnologia.
Em síntese, a ciência da complexidade de Prigogine — uma
ponta avançada do modelo civilizatório cíclico de transições caó-
ticas — leva para dentro do universo marxista, via Wallerstein e
Mészáros, uma perspectiva mais “ecológica” que aquela do modelo
hegemônico do progresso linear-cumulativo.
Complexidade, capitalismo e ciências ambientais 63

Referências

CAPRA, F. O ponto de mutação: a ciência, a sociedade e a cultura


emergente. São Paulo: Cultrix, 2006.
DIAS, G. V.; TOSTES, J. G. R. Um sistema complexo longe do equi-
líbrio: a complexidade nas críticas ao capitalismo de Wallerstein e
Mészáros. Tramas y Redes, v. 1, n. 1, p. 87-102, dic. 2021.
MÉSZÁROS, I. Para além do capital: rumo a uma teoria da tran-
sição. São Paulo: Boitempo, 2002.
______. O poder da ideologia. São Paulo: Ensaio, 1996.
______. Estado capitalista e produção destrutiva. São Paulo: En-
saio, 1989.
MONOD, J. O acaso e a necessidade. Rio de Janeiro: Vozes, 1977.
PINGUELLI ROSA, L. Tecnociências e Humanidades. Vol. 1. São
Paulo: Paz e Terra, 2005.
______. Tecnociências e Humanidades. Vol. 2. São Paulo: Paz e
Terra, 2006.
PRIGOGINE, I.; STENGERS, I. A nova aliança: a metamorfose da
ciência. Brasília: UNB, 1984a.
______. Order out of chaos. New York: Bantam, 1984b.
SPENGLER, O. The decline of the West. New York: Knopf, 1959.
TOSTES, J. G. R. Crise no capitalismo e ciência da complexidade.
[Comunicação]. V Colóquio Internacional Marx e Engels (CE-
MARX). Campinas, Brasil, 2007.
______. Capitalismo no século XX: aspectos civilizadores e anti-
-civilizadores. In CARVALHO E SILVA, J.A. (Ed.). Estresse no
trabalho: machismo e papel da mulher. Niterói: Muiraquitã, 2006.
WALLERSTEIN, I. World-systems analysis: an introduction.
Durham: Duke University Press, 2004.
______. O fim do mundo como o concebemos: ciência social para
o século XXI. Rio de Janeiro: Revan, 2002.
______. After Liberalism. New York: The New Press, 1995.
64 Guilherme Vieira Dias, José Glauco Ribeiro Tostes e Elza Neffa (org.)

WALLERSTEIN, I.; HOPKINS, T. (orgs.). The age of transition: tra-


jectory of the world-system, 1945-2025. London: Zed Books, 1996.
5.

Dialética, complexidade e questões


socioambientais(19)

Guilherme Vieira Dias


Elza Neffa
José Glauco Ribeiro Tostes

Introdução
As questões socioambientais exigem a construção de conhe-
cimentos que deem conta de responder aos desafios enfrentados
pelas sociedades contemporâneas (mudanças climáticas globais,
conservação da natureza, conflitos socioambientais urbanos e
rurais, crise financeira global, fome, guerras, dentre outras).
Tais questões demandam a formação de profissionais capazes de
identificar problemas, criar novos saberes e soluções e de aplicá-
-los na transformação da realidade socioambiental, visando ao
desenvolvimento humano e ao cuidado com o planeta. Em função
dessa demanda há, atualmente, um acúmulo de debates sobre
a problemática do meio ambiente e diversos profissionais têm
sido formados a partir de diferentes áreas do conhecimento, in-
corporando a dimensão socioambiental nas análises acadêmicas.
A área de Ciências Ambientais foi criada pela CAPES como
resposta à “necessidade de se dar conta da complexidade dos
problemas ambientais, face à indissociabilidade entre sistemas
antrópicos e naturais que emergem no mundo contemporâneo”
(CAPES, 2016). Entretanto, pesquisas exploratórias acerca da pro-
dução científica nesta área sugerem: a) que ainda há teses com a
separação ser humano x natureza (ou sociedade x ambiente), com
entendimento de “ambiental” como sinônimo de natureza numa
perspectiva analítico-reducionista inerente ao paradigma cien-
tífico cartesiano-newtoniano, que exclui o “social” das questões

(19)
Texto originalmente publicado no periódico Vértices (DIAS; NEFFA;
TOSTES, 2018).
66 Guilherme Vieira Dias, José Glauco Ribeiro Tostes e Elza Neffa (org.)

socioambientais; b) insuficientes esforços na direção científica


de uma perspectiva complexa que contribua para a aplicação
do novo paradigma científico sistêmico-complexo no estudo
de questões socioambientais; c) carência de discussões sobre as
relações sociais e suas contradições nas problemáticas socioam-
bientais; d) propostas que defendem a adoção de mecanismos
de mercado como solução para os problemas socioambientais,
assumindo o sistema capitalista como inexorável.
Tais pontos obstaculizam a interpretação das questões so-
cioambientais em suas múltiplas determinações e a proposição de
alternativas sustentáveis na medida em que: a) o paradigma car-
tesiano-newtoniano da ciência, ao separar natureza e sociedade,
bem como ciência e política, atua como limitador no tratamento
de questões socioambientais; b) o capitalismo é parte da crise
socioambiental, conforme fundamentos teórico-metodológicos
adotados no presente texto e de acordo com evidências históri-
cas, sendo no mínimo questionável a adoção de “mais mercado”
como caminho para o desenvolvimento sustentável, visando a
solucionar as “falhas de mercado” do sistema capitalista.
No presente capítulo, discute-se a dialética e a complexi-
dade como possíveis aliados dos cientistas da área de Ciências
Ambientais no estudo de temáticas socioambientais. As questões
que se colocam à reflexão – dialética e complexidade – comple-
mentam-se no estudo de problemas socioambientais? Buscar
“afinidades limitadas” entre a dialética e as novas ciências da
complexidade abrirá possibilidades para a transição a um sis-
tema alternativo ao capitalismo, com desenvolvimento humano
pautado na sustentabilidade ambiental? Esse texto faz alguns
apontamentos sobre essas questões.

A problemática socioambiental à luz do método dialético


O ponto de partida da discussão acerca da dialética(20) e de sua
importância na problemática socioambiental, no presente texto, será

(20)
Um breve histórico de precursores da dialética, tanto na filosofia ocidental
quanto nas culturas orientais, pode ser encontrado em Neffa (2017, p. 25-36).
Complexidade, capitalismo e ciências ambientais 67

o método dialético de Marx(21). Segundo Casanova (2006, p. 150-151),


a variante materialista-dialética, iniciada por Marx(22), continua sendo
uma das mais significativas na explicação e na ação da Idade Moder-
na e Pós-Moderna e de suas contradições. Para ele, “entende-se por
dialética as tentativas de dar sentido às contradições”.
O método dialético concebe a realidade complexa como uma
rica totalidade com múltiplas determinações (MARX, 1983). Tanto
para entender e explicar a realidade quanto para transformá-la
(MARX; ENGELS, 2007) é preciso que o pesquisador vá além das
aparências, perceba a “aparência fenomênica da coisa” (KOSIK,
1986) enquanto processo do qual resulta o “concreto pensado”. Em
O capital, por exemplo, Marx (2013) analisa o capital enquanto um
processo de expansão do valor(23); é o valor em movimento que se
manifesta em formas específicas de aparência, tais como capital-
-dinheiro e capital-mercadoria — na esfera da circulação, e capital

(21)
No decorrer do texto, porém, serão abordados aspectos das dialéticas de
Hegel e de Engels, sem que haja aqui um aprofundamento nesse sentido, uma
vez que o objetivo deste capítulo é apresentar uma introdução à dialética e à
complexidade a partir de autores que trabalham com questões socioambientais.
Pretende-se aprofundar a discussão sobre as semelhanças e diferenças entre as
dialéticas de Hegel, Marx e Engels num futuro artigo.
(22)
O “método dialético” em Marx — que ele nunca formulou precisamente —– segue
ainda, junto com Hegel, uma tradição filosófica. Em Marx, face ao idealismo hegeliano,
ocorre a “inversão (filosófica) materialista”, que articulada com o seu materialismo
histórico, focava nas contradições histórico-sociais e no “metabolismo” homem-
natureza. Quem inaugura, dentro do marxismo, uma tradição científica da dialética
é o “último Engels” a partir de 1878 com o “Anti-Duhring” (ENGELS, 2015). Engels
aí transporta categorias da filosofia dialética hegeliana para uma ciência dialética
engelsiana. Estava assim formulado o seu posteriormente chamado “materialismo
dialético”, com suas três “leis”, científicas e universais, isto é, abrangendo a natureza
(pré-humana, pré-“metabolismo”) e a história.
(23)
De acordo com Marx (2013), em O capital, as trocas M-D-M e D-M-D (onde
M é mercadoria e D é dinheiro), na esfera da circulação, não gera valor, pois
pressupõe trocas entre equivalentes. Sendo assim, como é produzido valor? A
chave é a mercadoria força de trabalho. De um lado, M-D-M (sendo M, nesse caso,
a mercadoria força de trabalho) ocorre com o trabalhador vendendo sua força de
trabalho em troca de salário para comprar outras mercadorias necessárias à sua
subsistência (o dinheiro, nesse caso, não é capital); de outro lado, em D-M-D’ (sendo
D’ igual a dinheiro inicial acrescido de mais-valia, que é o excedente produzido
pelo trabalhador e apropriado pelo capitalista), o capitalista adianta dinheiro,
compra força de trabalho e obtém mais dinheiro (aqui, o dinheiro é capital). Assim,
a produção e reprodução do capital ocorre num processo histórico no qual a força
de trabalho expropriada dos meios de produção se transforma em mercadoria.
68 Guilherme Vieira Dias, José Glauco Ribeiro Tostes e Elza Neffa (org.)

produtivo — na esfera da produção. O capital, todavia, é uma rela-


ção social, que toma a forma de “coisa”, e que não pode ser entendida
separadamente das relações sociais de produção capitalistas.
Desse modo, além do método dialético, Marx desenvolve a
teoria do materialismo histórico (MARX, 1974, 1983, 2013; MARX;
ENGELS, 1998, sendo a história entendida a partir de uma pers-
pectiva materialista, em contraposição ao idealismo hegeliano, e
explica a dinâmica das sociedades humanas com base no modo
de produção, isto é, pela forma histórica na qual as sociedades se
organizam para produzir e distribuir os bens necessários para viver
(VIANA, 2007, p. 107), significando que os modos de produção da
existência podem ser datados e espacializados, não sendo eternos
ou universais e sim provisórios e restritos a determinado tempo e
espaço(24). Nesse sentido, Marx afirma que:
(...) o capital não é uma coisa, mas uma relação
de produção definida, pertencente a uma for-
mação histórica particular da sociedade, que
se configura em uma coisa e lhe empresta um
caráter social específico (...). São os meios de
produção monopolizados por um certo setor
da sociedade, que se confrontam com a força de
trabalho viva enquanto produtos e condições
de trabalho tornados independentes dessa
mesma força de trabalho, que são personifi-
cados, em virtude dessa antítese, no capital.
Não são apenas os produtos dos trabalhadores
transformados em forças independentes —
produtos que dominam e compram de seus
produtores —, mas também, e sobretudo, as
forças sociais e a (...) forma desse trabalho,
que se apresentam aos trabalhadores como
propriedades de seus produtos. Estamos,

(24)
O modo de produção capitalista foi o primeiro a alcançar vasta extensão do
globo, coexistindo com outros modos de produção, mas prevalecendo sobre os
demais (MARX; ENGELS, 1998). No mesmo sentido, Wallerstein (2004) afirma que
o sistema-mundo capitalista foi o primeiro a ser, de fato, mundial — no sentido
de ter atingido todo o planeta. Contudo, isso não significa que seja imutável, dado
que historicamente os sistemas-mundo têm início, meio e fim ou, numa analogia
biológica e substituindo sistema-mundo por modo de produção, pode-se dizer que
os modos de produção nascem, se desenvolvem e morrem, dando lugar a outro.
Complexidade, capitalismo e ciências ambientais 69

portanto, no caso, diante de uma determinada


forma social, à primeira vista muito mística, de
um dos fatores de um processo de produção
social historicamente produzido (MARX, 1974,
cap. XLVIII).

Ainda que a problemática socioambiental não tenha assu-


mido, no século XIX, a importância que assumiu mundialmente,
a partir da década de 1960, a adoção do “materialismo histórico-
-dialético” na análise de questões socioambientais remete a Marx
(1974; 2004; 2013), como fica evidenciado em trechos de sua prin-
cipal obra O capital, tais como: “O desenvolvimento da civilização
e da indústria em geral sempre se mostrou tão ativo na destruição
das florestas que tudo que foi feito pela sua conservação e produção
é completamente insignificante na comparação” (MARX, 1974, p.
742); e quando aborda a contradição entre produção capitalista e
agricultura, que não permite a necessária recuperação dos solos e
prejudica, assim, as gerações futuras:
O modo pelo qual o cultivo de determinadas
lavouras depende das flutuações dos preços de
mercado e as mudanças constantes do cultivo
com estas flutuações de preços — todo o espírito
da produção capitalista, que é orientada para os
lucros monetários mais imediatos — é contradi-
tório com a agricultura, que precisa se preocupar
com toda a gama de condições de vida perma-
nentes exigidas pela cadeia de gerações humanas
(...). Do ponto de vista de uma formação socioe-
conômica superior, a propriedade privada da
terra por determinados indivíduos vai parecer
tão absurda como a propriedade privada de um
homem por outros homens. Nem mesmo uma
sociedade inteira, ou uma nação, ou o conjunto
simultâneo de todas as sociedades existentes é
dono da terra. Eles são simplesmente os seus pos-
seiros, os seus beneficiários, e precisam legá-la
em melhor estado às gerações que as sucedem
como boni patres familias [bons pais de família]
(MARX, 1974, p. 901).

Foster (2005) destaca a contribuição do materialismo para a


ecologia, mormente nas obras de Darwin e de Marx — considerados
70 Guilherme Vieira Dias, José Glauco Ribeiro Tostes e Elza Neffa (org.)

os maiores materialistas do século XIX. Segundo o autor, a perspec-


tiva científica construída por Marx é fundamental para entender
e desenvolver uma visão ecológica que associa a transformação
social à transformação da relação humana com a natureza. Nesse
sentido, Veiga (2007, p. 129) afirma que, para que seja compreen-
dida a relação dialética entre desenvolvimento e sustentabilidade,
as revoluções científicas iniciadas por Darwin e por Marx não
podem ser subestimadas. De acordo com esse autor, o concei-
to socioambiental “responde a uma necessidade objetiva. A um
imperativo que nunca poderá ser entendido — e muito menos
explicado — por quem insista em negar ou rejeitar que a relação
entre cultura e natureza tenha um caráter essencialmente dialéti-
co”, Veiga sustenta que
a questão básica da relação socioambiental
está na maneira de se entender as mudanças
sociais, que jamais podem ser separadas das
mudanças da relação humana com o resto da
natureza. Uma relação que Marx chamou de
“metabolismo” da humanidade com a nature-
za. Essa noção de metabolismo socioambiental
capta aspectos fundamentais da existência dos
seres humanos como seres naturais e físicos,
que incluem as trocas energéticas e materiais
que ocorrem entre os seres humanos e seu meio
ambiente natural. De um lado, o metabolismo
é regulado por leis naturais que governam os
vários processos físicos envolvidos. De outro,
por normas institucionalizadas que governam
a divisão do trabalho, a distribuição da riqueza
etc. (2007, p. 105-106).

Loureiro (2002, p. 16) enfatiza a escolha do materialismo


histórico-dialético na análise das questões socioambientais porque
nessa abordagem, as relações sociais envolvem
não só interações entre indivíduos, grupos ou
classes, mas compreendem as relações desses
com a natureza. (...) O modo como nos inse-
rimos em um ambiente é essencialmente um
conjunto de relações sociais, portanto, uma
alteração radical nestas relações depende de
uma mudança estrutural da sociedade em
Complexidade, capitalismo e ciências ambientais 71

questão. (...) Além disso, para esta perspectiva


analítica cumpre ter presente que a humani-
dade não constitui unidade homogênea e as
condições decorrentes da atuação no ambiente
são definidas em função de cada modo de vida
social, em interação dialética com as condições
ecológicas de sustentação.

Do mesmo modo, ao elaborar uma crítica à concepção de


desenvolvimento sustentável, Foladori (2001, p. 121) destaca o
papel deste método ressaltando que
a relação da sociedade humana com seu am-
biente é sempre uma relação na qual intervêm
três elementos: o trabalho ou atividade huma-
na, os meios de produção, que são resultado
de trabalhos passados, e a natureza. Mas essa
combinação pode se dar de diferentes modos,
segundo assinala a própria história da huma-
nidade. A sociedade primitiva de caçadores
e coletores combinava os três elementos de
maneira diferente daquela utilizada pela
sociedade escravista, a feudal, as de tributo
coletivo, a sociedade capitalista, a socialista
etc. Na forma social dessa combinação está a
chave para entender os problemas derivados
da velocidade de utilização e da utilidade dos
recursos naturais.

Segundo Mészáros (1989, 2002), a partir da “produção destru-


tiva” no sistema de acumulação do capital, acentuou-se a velocidade
de utilização de recursos naturais considerados úteis para a produ-
ção de mercadorias. Com isso, os problemas socioambientais já
existentes se aprofundaram, ampliaram sua extensão e gravidade,
e novos problemas surgiram. A partir da crise de 1929, o Estado
teve significativo papel no processo de salvar o mercado, tanto no
financiamento quanto na função de grande consumidor, começan-
do pelo complexo militar-industrial e pelas guerras quentes e frias
que vieram nas décadas seguintes. Posteriormente, mormente no
pós-Segunda Guerra Mundial, a indústria civil também passou a
utilizar largamente a taxa de uso decrescente (TUD), de lâmpadas a
automóveis, sujeitando tudo à obsolescência planejada de mercado-
rias. Nessa perspectiva, Mészáros desloca a crítica do “consumismo”
72 Guilherme Vieira Dias, José Glauco Ribeiro Tostes e Elza Neffa (org.)

para a crítica da produção de bens supérfluos fabricados sob a


perspectiva da obsolescência planejada. Quem promove a produção
destrutiva são os capitalistas, quem consome a maior parte dos bens
são as elites e classes médias (no sentido econômico), enquanto há
parcelas crescentes de trabalhadores que são excluídos do sistema(25),
sofrendo os efeitos da TUD aplicada à mercadoria força de trabalho,
gerando um enorme “excedente” de população.
Pode-se dizer, relacionando Gramsci (1991; COUTINHO,
1989) e Mészáros (1989, 2002), que as classes dominantes atuam em
duas frentes complementares: 1) via sociedade política, o Estado
incorporou a função de agente fundamental na economia, atuando
como financiador e grande consumidor, o que resultou em dois
movimentos — um anticivilizatório, com base no complexo militar-
-industrial, e outro civilizatório, com o Estado de Bem-Estar Social
(TOSTES, 2006); 2) via sociedade civil, a formação e difusão da
“ideologia consumista”, com importante papel dos meios de comu-
nicação e da propaganda. Não se trata de atender às necessidades
básicas dos trabalhadores, mas de assegurar a “vendabilidade” de
mercadorias. Do ponto de vista do capital, importa antes o valor de
troca do que o valor de uso, portanto quanto maior o consumo e a
troca por novas mercadorias, melhor. Como nem todos conseguem
acompanhar esse ritmo de consumo, a reprodução da TUD se dá
em “círculos de consumo” limitados, em grande medida chegando
até a classe média (no sentido econômico). Ou seja, a produção de
mercadorias no sistema do capital não pretende primordialmente
atender às necessidades básicas dos trabalhadores, mas assegurar
a “vendabilidade” de novas mercadorias mesmo que seja para os
mesmos grupos sociais, por meio da criação de necessidades de
bens supérfluos, a fim de manter a reprodução do capital.
Ao discutir “o que são problemas ambientais?”, Foladori
(2001, p. 102-114) propôs um diagrama para orientar a classifica-
ção dos vários problemas ambientais denunciados por ativistas e
pesquisadores, tendo como ponto central o processo produtivo,
conforme pode ser visto a seguir.

Excluídos do ponto de vista do trabalho no processo produtivo hegemônico,


(25)

do acesso à propriedade dos meios de produção e do consumo até mesmo de


bens de primeira necessidade, mas incluídos no sentido de que são úteis como
“exército de reserva” (MARX, 2013).
Complexidade, capitalismo e ciências ambientais 73

Diagrama 1. Processo produtivo e problemas ambientais

Recursos ← PRODUÇÃO → Detritos


↓ ↓
Depredação Poluição
Excedente de população
Problemas ambientais

Fonte: Foladori, 2001.

Segundo o diagrama acima, é o processo produtivo que, ao


demandar recursos naturais, gera problemas de degradação da
natureza; que, ao lançar detritos pós-produção no ambiente, gera
problemas como os vários tipos de poluição; que, ao não absor-
ver toda a população na dinâmica econômica, gera problemas de
“excedente de população” e pobreza. Entretanto, a partir desse
diagrama, Foladori (2001) defende a tese de que poucos autores
discutem os problemas ambientais considerando as contradições
internas ao processo produtivo, o que implicaria reconhecer o papel
das relações sociais de produção e suas contradições. Os proble-
mas ambientais são, quase sempre, discutidos enquanto efeitos do
processo produtivo, sendo este considerado sob a perspectiva de
relações técnicas (forças produtivas) — “impactos da industrializa-
ção”, ou mesmo ignorado — neste último caso, sendo substituído
pelos genéricos “impactos do homem” sobre a natureza. Prevalece,
assim, a interpretação segundo a qual classes sociais e seus interes-
ses nada têm a ver com problemas ambientais, pois estes atingem
a todos, independentemente de classe social, ainda que em graus
diferentes. Assim, considera-se equivocadamente que o movimento
ambientalista está acima das disputas político-ideológicas.
Diante disso, problemas socioambientais como a extinção
de espécies tendem a ser tratados em termos de “impactos do ho-
mem sobre o ambiente” ou “impactos da industrialização”; outros
problemas socioambientais, como o grande acúmulo de resíduos
sólidos e poluição dos solos e da água, tendem a, no máximo, serem
74 Guilherme Vieira Dias, José Glauco Ribeiro Tostes e Elza Neffa (org.)

tratados como “impactos do consumismo”, sem que se discutam


as desigualdades de classes (LOUREIRO, 2011, p. 119-122) e o
modelo de desenvolvimento capitalista. Trata-se, em geral, de um
homem genérico com necessidades ilimitadas(26), causando impac-
tos no ambiente, como causa dos problemas socioambientais. E as
soluções propostas por essa perspectiva, em geral, passam por: a)
tentativas de mudanças técnicas das condições de produção (um
filtro aqui, uma redução de emissão de gases ali!), a serem adotadas
pelos empresários “conscientes” ou serem exigidas por meio de
medidas compensatórias por um Estado que se espera que atue
como gestor do bem-comum; b) mudanças de comportamento
individuais a partir da conscientização ecológica, como consumir
menos e regular o uso da água, traduzida no pressuposto “cada
um faz a sua parte”.
Indubitavelmente que mudanças técnicas e comportamentais
são importantes para a construção de sociedades sustentáveis
ecologicamente e justas econômica e socialmente. Entretanto, as
generalizações omitem ou negam as relações sociais de produção
e, com isso, as classes sociais e seus interesses, as questões do
trabalho, os agentes políticos da manutenção do status quo ou das
transformações sociais, enfim, omitem ou negam a diversidade
social, cultural, econômica e política dos humanos e a importância
dessa “sociodiversidade” para o entendimento dos problemas
socioambientais e para as propostas de soluções.
De acordo com Foladori (2001, p. 80),
a distribuição dos meios de produção é a
base e a condição para a reprodução de toda
a sociedade. As relações sociais de produção
estabelecem, em cada momento histórico, com-
binações de propriedade/acesso/uso desses

(26)
Como se fosse uma essência humana universal, a-histórica. Historicamente,
porém, dada a diversidade social e cultural dos vários povos e, ainda,
considerando-se as sociedades modernas classistas, não é correto afirmar que
os humanos impactam o ambiente de maneira semelhante, seja individualmente
ou coletivamente, ao compararmos povos distintos ou classes de uma mesma
sociedade. Além disso, as “necessidades ilimitadas” também não se confirmam
historicamente, tratando-se de argumento da economia neoclássica que transferiu
a “necessidade ilimitada pelo lucro” dos capitalistas modernos para as famílias/
indivíduos, como se fosse uma essência destes (FOLADORI, 2001).
Complexidade, capitalismo e ciências ambientais 75

meios e, ao fazê-lo, condicionam as próprias


relações técnicas, ou seja, a forma de relacio-
namento com a natureza.

Como exemplificação, pode-se mencionar que a capacidade


de intervenção de um grande empresário da construção civil no
ambiente é muito maior do que a de um pedreiro, ainda que seja
este a colocar a “mão na massa”, pois a capacidade do grande em-
presário de eleger ou mesmo corromper políticos favoráveis a seus
interesses, incluindo a facilidade para obtenção de licenciamentos
ambientais questionáveis, por exemplo, é muito maior que a do
pedreiro conseguir moradia digna e saneamento básico, a partir de
reivindicações de implantação de políticas públicas. Ainda que haja
desigualdade socioeconômica e, consequentemente, diferenciadas
capacidades de consumo entre as classes sociais, as propostas de
solução para a “superpopulação” passam por incentivos a métodos
contraceptivos aplicados aos mais pobres (justamente o grupo social
que menos consome recursos). Esses exemplos revelam relações
sociais e contradições que são ignoradas, pois persiste o discurso
sobre “impactos do homem sobre o ambiente”, “consumismo”,
“homem x natureza”, entre outras generalizações que pouco con-
tribuem para o entendimento dos problemas socioambientais e, em
consequência, para a proposição e o encaminhamento de alterna-
tivas sustentáveis. A crítica às generalizações nada tem a ver com
privilegiar o local sobre o global ou o particular sobre o geral, mas
diz respeito à omissão ou negação dos diversos interesses sociais
e das diferentes capacidades de intervenção humana no ambiente,
seja nas causas dos problemas socioambientais ou nas ações que
visam a solucionar tais problemas.

O pensamento complexo na leitura das questões contemporâneas


Para entender e superar a crise socioambiental em curso, no
atual estágio do sistema capitalista, são necessárias novas formas
de pensar e agir que consigam ir além das fronteiras da produção
do conhecimento e da ação política empreendidas sob a hegemonia
do paradigma cartesiano-newtoniano da ciência, que fragmenta
os saberes e separa a ciência da política. Novas teorias e propostas
de ação, com origens nas mais variadas áreas do conhecimento,
têm contribuído para questionar o paradigma hegemônico e,
76 Guilherme Vieira Dias, José Glauco Ribeiro Tostes e Elza Neffa (org.)

paralelamente, lançar luzes para a consolidação de um pensamento


sistêmico e complexo, e para adoção de abordagens metodológi-
cas inter/transdisciplinares que remetam às noções de “relação”,
“conexão”, “totalidade”. Além disso, questiona-se a neutralidade
científica, uma das premissas da ciência moderna, salientando-se o
papel político do cientista desde a produção do conhecimento até sua
aplicação para além da academia, o que implica o entendimento das
contradições inerentes à realidade e ao pensamento e a proposição
de alternativas. A “questão socioambiental” é terreno fértil para essas
discussões, contrariando a cisão entre ciências naturais e ciências so-
ciais, dado que exige formas inovadoras de abordagem da realidade,
o que geralmente ocorre com cientistas naturais incorporando o “so-
cial” em suas pesquisas, bem como o inverso, isto é, cientistas sociais
incorporando a “natureza” ou o “ambiente” nas pesquisas sociais.
Nesse sentido, novas ciências sistêmicas/complexas surgiram
na contramão do “velho” paradigma, buscando as relações, os
nexos, a visão de totalidade. A “questão socioambiental”, ao de-
mandar saberes integradores, constituiu-se em área privilegiada
para pesquisas desse tipo. Contudo, há uma perspectiva natural/
ecológica em Ciências Ambientais que, apesar de se opor teórica (e
retoricamente) ao paradigma cartesiano-newtoniano, reconhecendo
o ambiente de modo sistêmico-complexo, termina por reproduzir a
simplificação/redução no “social” do socioambiental, o que resulta
na despolitização do debate e, consequentemente, na dificuldade em
elaborar e empreender soluções para os problemas socioambientais.
O mecanicismo, reducionismo e fragmentação
da realidade foram igualmente questionados
no campo das ciências naturais em meados do
século XX com as suas primeiras formulações
sistêmicas, contudo, a rigor, sem entrar no
mérito de questões societárias e culturais. (...) É
preciso reconhecer o mérito dos seculares pen-
samentos dialéticos e a contribuição recente das
formulações sistêmicas nas ciências naturais,
para que se consolidem as bases do pensamento
complexo (não preso ao sistemismo e à teoria
de Bertalanffy), sem voltarmos a produzir
novas simplificações teóricas e metodológicas
(LOUREIRO, 2011, p. 138-139).
Complexidade, capitalismo e ciências ambientais 77

Conforme destaca Loureiro no trecho supracitado, para que


seja possível consolidar as bases do “pensamento complexo” é pre-
ciso reconhecer: a) o mérito dos seculares “pensamentos dialéticos”
e b) as recentes contribuições “sistêmicas” das ciências naturais.
Sem isso, o “velho” paradigma é criticado apenas parcialmente,
sem que se questione a despolitização das questões socioambien-
tais. Nesse sentido, Leff (2002, p. 201) afirma que
a ecologia tem se estendido até os domínios
da história — da ordem simbólica e social —,
sem compreender a especificidade na natureza
humana — relações de poder, interesses sociais,
desejo humano, organização social, racionalida-
de econômica —, que não podem subsumir-se
no âmbito de uma ordem ecológica.

Assim, para entendermos os problemas socioambientais


enquanto emergências no contexto do sistema capitalista há que se
buscar formas de superação da fragmentação do saber promovidas
pelo paradigma cartesiano-newtoniano, o que demanda o diálogo
entre as “duas culturas”:
é importante uma atitude dialógica/dialética,
admitindo que nem o biologicismo e nem o
culturalismo deram conta de entender a dinâ-
mica natural-societária, de modo a se evitar o
reducionismo típico de quem apenas inverte os
polos sem romper com os paradigmas domi-
nantes: ou tudo é cultura ou tudo é biológico.
São construções que partem de premissas
frágeis, que resultam em dicotomias falsas e
que precisam ser superadas em busca de um
posicionamento paradigmático complexo, dialético
e crítico, que nos leve a um entendimento da
unidade sintética do movimento dinâmico da
vida e da sociedade na história natural (LOU-
REIRO, 2011, p. 118, grifo nosso).

Há importantes interseções entre o que pode ser denominado


novo paradigma sistêmico-complexo da ciência — relacionando o
“pensamento sistêmico” (ESTEVES DE VASCONCELLOS, 2002)
com o conceito de paradigma (KUHN, 1975), no sentido de um
dado conjunto de crenças e valores historicamente construído
78 Guilherme Vieira Dias, José Glauco Ribeiro Tostes e Elza Neffa (org.)

que atravessa “transdisciplinarmente” uma série de teorias ou


“matrizes disciplinares” — e a filosofia dialética de Hegel do iní-
cio do século XIX, o materialismo histórico-dialético de Marx e o
materialismo dialético de Engels. Nesse sentido, há indícios de que
estes dois últimos autores apresentaram insights sistêmicos avant
la lettre, isto é, muito antes da emergência daquele novo modo de
pensar a ciência. Mas, de que formas a dialética e as novas ciências
da complexidade se aproximam?

Dialética e complexidade: uma aproximação possível?


Para essa aproximação, Konder (2005, p. 51-52) fornece uma
primeira pista ao tratar das diferenças entre o conceito de totali-
dade em Hegel e em Marx. O autor afirma que Hegel concebia a
realidade como uma totalidade fechada, pois sabia de antemão o
início e o fim do processo ao apoiar-se numa concepção idealista,
enquanto Marx, partindo de sua concepção materialista da história,
entendia a realidade como uma totalidade aberta, isto é, sem pretender
reduzir a infinita riqueza da realidade ao conhecimento(27). Para tanto,
os conceitos devem ser fluidos(28), para conseguir dar conta dos
movimentos, das transformações:
Marx, por sua vez, conseguiu “fluidificar”
muito mais radicalmente o conceito de natureza
humana. Para Marx, o homem tinha um corpo,
uma dimensão concretamente “natural”, e por
isso a natureza humana se modificava material-
mente, na sua atividade física sobre o mundo:
“ao atuar sobre a natureza exterior, o homem
modifica, ao mesmo tempo, sua própria na-
tureza”. (...) “A formação dos cinco sentidos”
— escreveu Marx — “é trabalho de toda a histó-
ria passada”. A natureza humana (...) só existe na

(27)
Morin (2014, p. 77; 79) afirma que a totalidade é inalcançável, pois está
sempre se desfazendo e refazendo, e afirma não entender os críticos de Hegel
que o acusam de um sistema fechado. Barata-Moura (apud NEFFA, 2017, p. 32),
sobre a totalidade na dialética hegeliana, afirma que “o todo forma ele próprio
um processo em devir, constitui uma totalização em curso”. Para além das
discordâncias quanto à dialética de Hegel, o que é importante aqui é a ideia de
uma “totalidade aberta”, seja ela atribuída a Hegel ou a Marx.
(28)
Sobre a fluidez dos conceitos, ver também Engels (2015).
Complexidade, capitalismo e ciências ambientais 79

história, num processo global de transformação,


que abarca todos os seus aspectos. E a história,
em seu conjunto, “não é outra coisa senão uma
transformação contínua da natureza humana”
(conforme se lê na Miséria da Filosofia) (KON-
DER, 2005, p. 52-53, grifo do autor).

Há, entre outras, duas bem distintas linhas de “filosofia


dialética” presentes no marxismo: a) a primeira delas, muito bem
apresentada por Cirne-Lima (2002), defende que os dois opostos
dialéticos só aparecem na forma de polos “contrários”, isto é, am-
bos positivos (tese e antítese) e podendo ser falsos simultaneamente;
aqui claramente não ocorre violação do aristotélico Princípio da
Não-Contradição. Como um exemplo, tome-se a “1ª Tese sobre
Feuerbach”, de Marx e Engels (2007). Os polos contrários, po-
sitivos, ambos falsos, são simplificadamente o “materialismo
passivo” de Feuerbach e o “idealismo ativo” de Hegel. Isso pede
uma “síntese” que, embora não explicitada por Marx e Engels,
seria algo como um “materialismo ativo”. Como se vê, na síntese,
certos aspectos foram eliminados de cada um dos dois polos e outros
foram conservados. Essa duplicidade “eliminação-conservação”
está contida num mesmo conceito alemão, aufhebung, empregado
por Hegel; b) a segunda linha, apresentada pelo “último Engels”
(2015) na formulação do seu “materialismo dialético”, abre lugar
para os dois opostos dialéticos na forma de polos “contraditórios”,
isto é, um positivo (exemplo: “ser humano”) e o outro, o seu ne-
gativo ou contraditório (“não-ser humano”). Dentro do Princípio
da Não-Contradição aristotélico, se, ao mesmo tempo, um desses
polos é verdadeiro, o outro necessariamente será falso: entre eles
só existiria o “ou”. Mas Engels (2015), por exemplo, toma o prin-
cípio do movimento em geral a partir de um “estar e não-estar, ao
mesmo tempo, no mesmo lugar”, claramente violando o Princípio
da Não-Contradição, mas apontando a seguir para a necessária
superação processual de tal contradição.
Frise-se que Marx acabou por nunca encetar uma abordagem
sistemática da dialética. Todavia, a dialética de Marx admitia que
determinados aspectos da realidade perduram na história (mas
não fora ou acima da história, de acordo com seu materialismo
histórico). Segundo Konder (2005, p. 53-54, grifo nosso), “em todas
as grandes mudanças há uma negação, mas ao mesmo tempo uma
80 Guilherme Vieira Dias, José Glauco Ribeiro Tostes e Elza Neffa (org.)

preservação (e uma elevação a nível superior) daquilo que tinha


sido estabelecido antes. Mudança e permanência são categorias
reflexivas”. Complementando a ideia de Konder, Veiga argumenta
que as emergências podem surgir a partir de, pelo menos, três
tipos de contradições,(29) isto é, Marx entendia contradição como
antagonismo, mas, ao aprofundar seus estudos sobre a economia
capitalista, ele encontrou mais dois tipos de “oposições não antagô-
nicas, nas quais os contrários estão em posição lógica de simetria.
Nesses casos, não ocorre eliminação inovadora de um deles, nem
superação ‘sintética’ dos dois, mas sim uma espécie de reprodução
cíclica” (VEIGA, 2007, p. 120-121, grifo nosso).
Essa interpretação aproxima-se da concepção de dialógica(30)
de Morin (2014, p. 84-85), conforme fica evidente a seguir:
Deixei de acreditar em uma “superação” das
contradições. Existem contradições que são
insuperáveis e isso em todos os domínios,
físicos, biológicos, humanos. (...) Eu percebia
a natureza um pouco intemperante e desaver-
gonhada da dialética hegeliana: tese e antítese
produzem uma síntese. Ali havia sempre um
terceiro termo que superava euforicamente
a contradição. (...) Em minha mente, a dia-
lógica (...), para a qual as contradições são
simultaneamente antagônicas, conflitantes e
complementares, começava a assumir o lugar
da dialética hegeliana, sem por isso renegá-la.

(29)
Essas contradições não coincidem com algumas abordagens marxistas,
que interpretam contradições de caráter histórico apenas como antagonismos,
particularmente a contradição capital-trabalho e a luta de classes.
(30)
Morin critica a dialética hegeliana, que busca sempre a superação das
contradições, enquanto a dialógica reconhece que há contradições insuperáveis
e complementares. O objetivo deste capítulo é explorar o estudo das contradições
em questões socioambientais, importando mais, num primeiro momento,
as semelhanças entre dialética e dialógica do que as diferenças. A dialógica
aproxima-se mais da dialética de Engels, uma vez que admite as contradições na
natureza, enquanto a dialética de Marx, articulada com o materialismo histórico,
focava nas contradições social-históricas. Contudo, tal distinção conceitual
merece uma discussão aprofundada, pois não há consenso sobre a dialética
não reconhecer contradições insuperáveis e complementares, tal como ficou
evidenciado nas interpretações de Konder e Veiga supracitadas.
Complexidade, capitalismo e ciências ambientais 81

Para mim, a dialógica é uma herdeira da dialé-


tica hegeliana sem seus riscos de intemperança.

Segundo Veiga (2007, p. 104-105), a dialética praticada por cien-


tistas, principalmente por aqueles que se preocupam com a filosofia
de sua ciência, tem sido mais interessante que a dos filósofos. Nesse
sentido, o autor indica cientistas das ciências naturais que trabalham a
partir da dialética(31). O autor destaca a teoria da complexidade como
nova abordagem da dialética, com possibilidades de generalização,
isto é, utilização científica geral, para além da separação entre ciências
sociais e ciências naturais. Segundo esse autor, “está principalmente
no desenvolvimento da teoria da complexidade — e particularmente
nas discussões sobre a ideia de ‘emergência’ — uma nova abordagem da
dialética que não confirma a impossibilidade de generalização” (idem,
p. 109, grifo nosso)(32). Todavia, o autor lamenta o fato do debate sobre
a possível generalização da dialética ter se tornado restrito ao que
considera como as “simplistas anotações de Engels” (1985), rascunhos
que o mesmo não chegou a publicar, mas que foram transformados
em cartilha pelos stalinistas (idem, p. 110)(33).
Casanova (2006, p. 158, grifo nosso) discorda de Veiga sobre
a questão da generalização, mas compartilha a ideia de que há
“afinidades limitadas” entre o pensamento crítico (dialética) e a
complexidade, como evidenciado a seguir:
As novas ciências da complexidade aproximam-se
dos conceitos do pensamento crítico com um sentido

(31)
Como os cientistas ligados aos grupos “Dialectics of Biology Group” e o
“Sciences et dialectiques de la nature”, entre outros. Dentre os autores que
utilizam a dialética num viés científico, Veiga (2007, p. 108-109) cita Prigogine
e Stengers (1984) que, por sua vez, inspiraram Wallerstein em sua teoria dos
sistemas-mundo (TOSTES, 2007).
(32)
Sobre a generalização de que fala Veiga, trata-se do paradigma da
complexidade perpassando diferentes ciências, tanto naturais quanto sociais,
com seus respectivos métodos e teorias. Leff (2002) e Casanova (2006), apesar
de concordarem com Veiga em relação às aproximações da dialética com a
complexidade, criticam a generalização.
(33)
Segundo Konder (2005, p. 58), há várias limitações na tentativa de Engels
(1985) de estabelecer leis para a dialética que servissem tanto para as ciências
naturais quanto para as ciências sociais (a generalização de que fala Veiga). O
autor indaga: “como poderiam ser fixadas em artigos as leis de uma filosofia da
mudança, de uma concepção do mundo segundo a qual existe sempre alguma
coisa de novo sob o sol?”.
82 Guilherme Vieira Dias, José Glauco Ribeiro Tostes e Elza Neffa (org.)

histórico do cosmos, da matéria, da vida e do


homem, em interações e redefinições que
articulam a cultura, a política, a economia e
a sociedade com sistemas complexos auto-re-
gulados e adaptativos que mostram fissuras,
desequilíbrios, enfrentamentos, alguns evitá-
veis e outros inevitáveis quando se tomam por
constantes as metas essenciais ou vitais do “sis-
tema conservador” e se insiste em conservar
o “sistema”, ponto de ruptura entre “ciência
normal” e o pensamento crítico.

A realidade complexa demanda saberes complexos. Entretan-


to, as novas ciências da complexidade não têm conseguido abordar
a complexidade social a partir de uma perspectiva natural/ecoló-
gica, sendo necessário reconhecer a importância do pensamento
crítico para a construção de um diálogo, considerando que
o legado teórico, político e moral do pensamen-
to crítico que vem de Marx continua sendo o
mais importante para estudar as contradições
e a dialética da exploração em um sistema ca-
pitalista complexo. Seu diálogo e sua discussão
com as ciências da complexidade, com as no-
vas ciências e as tecnociências são prementes.
Para esse diálogo, parece necessário superar
algumas heranças metafísicas (CASANOVA,
2006, p. 154-155).

Leff (2002, p. 202-203) concorda com essa ideia, afirmando que


considera importante “revalorizar a contribuição do pensamento
dialético e da complexidade emergente ao conhecimento crítico,
para que se possa construir uma racionalidade ambiental e uma
sociedade ecocomunitária”. Isso porque
a complexidade emergente não inclui de
forma natural ao conhecimento crítico os
interesses sociais e as formações ideológicas
que orientam a construção de uma “sociedade
ecológica” e de uma racionalidade ambien-
tal. Diante dos “métodos da complexidade”
que emergem da ecologia e da cibernética,
que explicam a realidade como sistemas de
inter-relações, interdependências, interações
Complexidade, capitalismo e ciências ambientais 83

e retroalimentações, o pensamento dialético


proporciona a fertilidade da contradição dis-
cursiva, a diversidade do ser e a confrontação
de interesses que mobilizam o processo de
construção de uma racionalidade ambiental.
(...) O pensamento complexo oferece uma via
heurística para se analisar processos inter-
-relacionados que determinam as mudanças
socioambientais, ao passo que a dialética, vista
como pensamento utópico, orienta uma revo-
lução permanente no pensamento, que mobiliza
a sociedade para a construção de uma racio-
nalidade ambiental (LEFF, 2002, p. 202-203,
grifo do autor).

Na perspectiva de Leff, portanto, dialética e complexidade


podem ser complementares, desde que não ambicionem a ge-
neralização (unificação de um método para todas as ciências),
respeitando as especificidades do natural e do social, articulando
as “diferentes ordens do real” (idem, p. 202).
A dialética da complexidade ambiental des-
loca-se do terreno ontológico e metodológico
para um campo de interesses antagônicos
orientados no sentido da apropriação da na-
tureza; um campo no qual qualquer totalidade
é concebida como um conjunto de relações
de poder constituído por valores e sentidos
diferenciados. (...) Dialética sem síntese hegeliana
do uno desdobrando-se em seu contrário e
reencontrando-se no uno mesmo da unida-
de e na ideia absoluta. A transcendência do
saber ambiental é a fecundidade do Outro,
vista como produtividade da complexidade,
antagonismo de interesses e ressignificação do
mundo ante os desafios da sustentabilidade,
da equidade e da democracia (LEFF, 2002, p.
204-205, grifo nosso).

De acordo com Casanova (2006), as ciências da complexidade


permitem renovar o pensamento crítico. No entanto, alguns auto-
res não incluem a questão central da “exploração” e, ao adotarem
uma perspectiva sistêmico-complexa sem debater a exploração
84 Guilherme Vieira Dias, José Glauco Ribeiro Tostes e Elza Neffa (org.)

de um ser sobre outro, se configuram em analistas de sistemas


conservadores. Segundo esse autor, é preciso que o pensamento
crítico dialogue e se renove com as ciências da complexidade, mas
sem abandonar as questões da “exploração” e da “dominação”.
O realmente novo nas ciências da complexida-
de permite renovar a análise do pensamento
crítico, desde que este mantenha em sua mira
as relações de dominação e exploração, inclu-
sive as coloniais e de classe, e fortaleça como
metas irrenunciáveis construir e lutar em to-
madas de posição cada vez mais concretas por
uma sociedade mais livre e justa. (...) Quando
as ciências da complexidade rompem os limites
da tecnociência e na ordem aparece o caos,
as diferenças dos sistemas complexos e dos
sistemas dialéticos diminuem. A luta entre o
“materialismo” e o “idealismo” perde parte de
seus antagonismos. Ao mesmo tempo sobres-
sai um motivo principal de desencontros. Os
que têm chegado a conclusões e teorias pare-
cidas se separam taxativamente em um ponto.
Enquanto alguns incluem “a exploração de
uns homens por outros”, há quem nem queira
ouvir falar de “exploração”. (...) Frequente-
mente as diferenças reduzem-se à exclusão ou
inclusão da problemática principal: enquanto
os construtivistas não incluem a exploração
como objeto de estudo, os marxistas, sim, as
incluem. Essa é quase toda a diferença, às ve-
zes. (...) Mas incluir ou excluir a “exploração”
ou os sistemas de exploração marca diferenças
epistêmicas profundas (CASANOVA, 2006, p.
156-157, grifo do autor).

Sobre o olhar sistêmico-complexo do pensamento crítico


(dialética) e a importante diferença para os analistas de sistemas
conservadores, Casanova afirma que
O pensamento crítico não só sustenta que
o sistema capitalista tem uma origem e um
fim; também analisa as alternativas que por si
aparecem no sistema e que se opõem a sua sub-
sistência, e as quais é conveniente ou desejável
Complexidade, capitalismo e ciências ambientais 85

organizar para contribuir para o nascimento de


um sistema alternativo conhecido como socia-
lismo. Entre múltiplas diferenças, os autores do
pensamento crítico ocupam uma posição que
os distingue dos analistas de sistemas conser-
vadores: é a busca de um sistema alternativo e
a pesquisa desse sistema nas próprias relações
de produção e de dominação (CASANOVA,
2006, p. 147-148).

Em suma, ao se assumir uma perspectiva sistêmico-comple-


xa articulada ao pensamento crítico, vai-se além da análise e da
constatação dos problemas, buscando-se a superação deles. Para
tanto, é importante conferir aos sistemas complexos um caráter
histórico, reconhecendo-os como sistemas históricos.
Em todo caso, é a partir do pensamento crítico
que se resolvem mais profundamente as contra-
dições e a dialética dos sistemas complexos como
sistemas históricos. No pensamento crítico, de-
saparecem os atributos idealistas dos sistemas
complexos, dinâmicos ou adaptativos e emerge
um comportamento evolutivo com mudanças
irreversíveis e contradições incontroláveis, aos
quais os teóricos e retóricos conservadores não
se referem em sua função de tecnocientistas e
publicistas do establishment (CASANOVA, 2006,
p.150, grifo do autor).

Por que é importante buscar novas abordagens em Ciências


Ambientais? De acordo com Casanova (2006, p. 154), porque as
classes dominantes do sistema capitalista empreenderam esforços
notáveis com suas “organizações autorreguladas, adaptativas e
complexas” para “ocultar os fenômenos crescentes de iniquida-
de”. Isso significa que as classes dominantes já se apropriaram
das novas ciências da complexidade porque precisam delas para
conhecer a realidade complexa e manter a acumulação do capital
gerada pela reprodutibilidade do seu metabolismo social.
A saída, do ponto de vista do pensamento crítico, é buscar
as “afinidades limitadas” entre dialética e as novas ciências da
complexidade, sem abrir mão da questão da exploração.
86 Guilherme Vieira Dias, José Glauco Ribeiro Tostes e Elza Neffa (org.)

Recorrer às ciências da complexidade e ao


pensamento crítico que inclui a exploração
para incursionar pelas semelhanças e diferen-
ças entre ambos pode proporcionar amplos
rendimentos no conhecer-fazer de verdadeiras
soluções, consensuais, aos problemas sociais
fundamentais. Se o caminho é improvável,
não é impossível na busca por dar um sentido
dialético-teórico-prático à luta entre contradi-
ções em que estamos inseridos (CASANOVA,
2006, p. 158).

Morin (2014, p. 96-98) afirma que sua concepção de comple-


xidade é uma ampliação do marxismo para além das complexas
concepções de homem e sociedade de Marx, incluindo dimensões
biológicas, psíquicas, físicas, cósmicas etc. O autor considera ter
superado Marx:
meu marxismo se ampliou. Ele se transformou
progressivamente em um metamarxismo até
não ser mais do que um invólucro no qual
se opera a gestação inconsciente de minha
concepção da complexidade que, por sua vez,
fará implodir e provincializar Karl Marx. Não
rejeitei Marx.

A complexidade de Morin, a partir da sua dialógica, pretende


ser uma ampliação do marxismo, ou dito de outro modo, uma
ampliação da dialética de Marx, incorporando a ideia de contra-
dições insuperáveis e complementares, por um lado, e por outro
admitindo outras dimensões da realidade e do saber para além das
complexas concepções de homem e sociedade de Marx apoiadas no
materialismo(34). Todavia, Morin (2014, p. 101) admite que conserva
algo de Marx, a saber: “de Marx conservo, portanto, a ideia de um
grande pensamento complexo, um pensamento fundador que deve
ser continuado, enriquecido, desenvolvido em direções novas”.(35)
Mas faz um alerta: “É preciso, porém, abandonar qualquer lei da

(34)
Cabe ressaltar que Engels (1985; 2015), no século XIX, já havia tentado ampliar
o marxismo (ou a dialética), ao aplicar a dialética à natureza por meio do que
ficou conhecido como materialismo dialético.
(35)
Em artigo de Dias e Tostes (2012), buscou-se reconhecer aspectos da
complexidade em Marx.
Complexidade, capitalismo e ciências ambientais 87

História, qualquer crença providencial no progresso e extirpar a


fé funesta na salvação terrestre”.
Morin (2014, p. 87-88) elogia Hegel como um grande exemplo
de pensador do concreto. Por concreto, o autor entende não apenas
o “corpóreo”, o “sensível”, o “imediato”:
o concreto é também outra coisa. É o com-
plexo. Quando se compreende um homem
em toda sua complexidade, estamos em
seu concreto. O concreto é a capacidade de
religar uns aos outros os diferentes aspectos
de uma mesma realidade que parecem con-
traditórios, heterogêneos e, aparentemente,
não compatíveis logicamente. Dito de outra
forma, estamos no concreto quando rejeita-
mos as reduções, as simplificações. De resto,
é a ideia bastante profunda que se encontra
em um texto de Hegel que me marcou mui-
to: O que significa pensar abstrato? Pensar
abstrato é reduzir um conjunto complexo a
um só de seus aspectos. (...) Para concluir, eu
diria que Hegel, pensador da complexidade,
é também um pensador das contradições.

Nos Manuscritos econômico-filosóficos, Marx (apud MORIN,


2014, p. 90) afirma que “um dia, as ciências da natureza englobarão
a ciência do homem, do mesmo modo que a ciência do homem
englobará as ciências da natureza: existirá uma única ciência”.
Para Morin (2014, p. 90),
isso significava que as duas ciências deviam
se enlaçar uma à outra, que nenhuma delas
devia anexar a outra, mas que uma e outra
deviam tecer uma relação dialética indis-
solúvel. (...) Meu marxismo me convidava
fundamentalmente a trabalhar atravessando
as fronteiras das disciplinas, a procurar as
transversalidades, as complementaridades
entre os domínios do saber. As disciplinas
(...) não eram senão categorias, certamente
úteis, mas limitantes, e eu tinha necessidade
de compreender os problemas antroposso-
ciais em sua multidimensionalidade. Eu via
88 Guilherme Vieira Dias, José Glauco Ribeiro Tostes e Elza Neffa (org.)

nisso a possibilidade de um conhecimento do


todo como todo, que permitia integrar o que
o saber universitário separa, em particular as
ciências da natureza e as ciências do homem.

Desse modo, de acordo com Casanova (2006, p. 158), as


“afinidades limitadas” com as novas ciências da complexidade
podem servir para o pensamento crítico: a) redefinir conceitos
que são tabus para os pesquisadores das “ciências normais”; b)
renovar definições histórico-políticas que se tornaram obsoletas; c)
desfazer-se do legado reducionista e determinista do paradigma
cartesiano-newtoniano.

Considerações finais
A filosofia dialética apresenta características que, atualmente,
se expressam nas novas ciências da complexidade. Marx e Engels
projetaram fazer a transição da dialética da filosofia para a ciência,
numa perspectiva materialista: Marx, por meio do “método dialé-
tico” aplicado ao estudo da história (humana), que ficou conhecido
como materialismo histórico ou materialismo histórico-dialético;
Engels, ampliando a dialética para o estudo da natureza, com o
materialismo dialético. Ambos os projetos inacabados. As ciências
da complexidade fizeram a transição da dialética da filosofia para
a ciência, a partir das descobertas científicas que demonstram
uma realidade mais interconectada e fluida do que se supunha
até o século XIX e parte do XX. A física quântica, a cibernética,
os avanços da biologia, dentre outros campos, demonstram, com
inúmeros exemplos, os limites da perspectiva científica analítica,
estabelecendo a necessidade de uma perspectiva complexa, que
explique as propriedades emergentes das relações entre elementos
sistêmicos, em variados graus de interação. A dialética e a com-
plexidade fornecem, assim, ferramentas às Ciências Ambientais
para que expliquem as relações entre ambientes e sociedades, não
fragmentando e reduzindo natureza e sociedade.
Este capítulo buscou apontar alguns aspectos que aproximam
a dialética da complexidade e sua importância para o estudo
das questões socioambientais. Contudo, trata-se de um esforço
inicial que exige, sem dúvidas, desdobramentos em pesquisas
mais aprofundadas por todos os cientistas que reconhecem a
Complexidade, capitalismo e ciências ambientais 89

indissociabilidade entre sistemas antrópicos e naturais. Desse


modo, buscar “afinidades limitadas” entre dialética e as novas
ciências da complexidade é o desafio posto à academia, na atua-
lidade. Para o reconhecimento e posterior mitigação/superação
de problemas socioambientais no contexto do sistema capitalista,
a dialética e a complexidade são fundamentais, pois permitem o
estudo das contradições a partir de uma visão de totalidade aberta,
capaz de vislumbrar alternativas sistêmicas que contemplem o
desenvolvimento humano e a sustentabilidade ambiental.
90 Guilherme Vieira Dias, José Glauco Ribeiro Tostes e Elza Neffa (org.)

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6.

Modelo de Células Triangulares


Complexas Sustentáveis: um estudo de
caso sobre indígenas isolados do rio
Envira, na Amazônia Ocidental(36)

Marcelo Silva Sthel


José Glauco Ribeiro Tostes

Introdução
A complexidade do acoplamento dos sistemas humanos e
naturais (CHANS) (LIU, 2007a; 2007b), já estava presente desde
os primórdios da sociedade humana. Portanto, dos primeiros ho-
minídeos até o aparecimento do gênero homo houve um conjunto
de complexas interações com o ambiente biofísico (ambiente) do
planeta, e particularmente as influências climáticas produziram
alterações significativas na evolução morfológica da espécie
humana (SUSAN, 2007), bem como na evolução do comporta-
mento do nosso cérebro social ancestral (DUNBAR; SCHLTZ,
2007). Desde o início da história da sociedade humana, o alcance
e a intensidade destas interações vêm sendo ampliada de ma-
neira crescente, com uma grande inflexão a partir da revolução
industrial. Historicamente, a grande maioria das interações se
dava localmente; algumas exceções eram as guerras e migrações.
Mas, atualmente, essas interações vêm se dando a nível regional,
continental e até mesmo global (LIU, 2007a).
Os problemas ambientais globais vêm atingindo patamares
preocupantes na atualidade; foi na década de 1970 que se iniciou
uma tomada de consciência para tais fatos. A sociedade humana
deparou-se com uma questão: o ambiente! Será que poderíamos

(36)
Texto originalmente publicado em inglês no periódico Journal of Sustainable
Development (STHEL; TOSTES, 2012).
94 Guilherme Vieira Dias, José Glauco Ribeiro Tostes e Elza Neffa (org.)

continuar a explorar os recursos naturais indefinidamente? Como


equacionar os graves problemas ambientais, diante da grande ex-
pansão do setor econômico a partir dos anos cinquenta, onde as
taxas de consumo de recursos naturais cresceram abruptamente?
O progresso material que uma parcela da população humana vem
alcançando nos últimos anos tem sido conquistada, em grande
parte, pelo desenvolvimento científico e tecnológico atingido pelo
homem, aliado a uma ação predatória dos recursos naturais dis-
poníveis em nosso planeta. A manutenção da qualidade da vida
em sua totalidade necessita que alguns parâmetros ambientais
sejam mantidos dentro de um rígido controle (isto é, dentro de
flutuações mínimas). Alterações no ambiente tais como: polui-
ção química, acidificação dos oceanos, modificações nos ciclos
biogeoquímicos, mudanças no uso da terra, depleção da camada
de ozônio estratosférico, mudanças climáticas, diminuição da
biodiversidade e escassez de recursos naturais que atingem de
modo global a sociedade humana (ROCKSTROM, 2009; CRUT-
ZEN, 2002; STEFFEN, 2007; SCHMIDT, 2010; KEVIN, 2012). Os
recursos naturais são amplamente utilizados pela humanidade e
são incorporados em complexos sistemas socioecológicos (SESs)
(OSTROM, 2009). Sendo assim os SESs são formados de vários
subsistemas e variáveis internas dentro desses subsistemas, onde
existem múltiplos níveis, análogos aos organismos compostos
por órgãos, tecidos de órgãos, tecidos por células, e células por
proteínas (PENNISI, 2003)
Dentre as alterações ambientais globais, as mudanças
climáticas são as que mais têm sensibilizado a opinião pública
mundial. O aquecimento global (HANSEN, 2008; ROSENZ-
WEIG, 2008; SOLOMON, 2009; NATHAN, 2008; YARROW,
2009, LACIS, 2010; 2012) é apontado como causador dessas mu-
danças que produziram alterações em grandes proporções, tais
como: degelo em montanhas, lagos e mares, aumento do nível
dos oceanos, acidez dos oceanos, aumento na intensidade dos
furacões e variações nos padrões de chuvas (secas, enchentes),
podendo causar prejuízos monumentais a economia (STERN,
2006). A preocupação mundial com a redução dos gases estu-
fa é uma realidade presente em discussão nos grandes fóruns
econômicos mundiais e nos acordos ambientais internacionais,
como o de Kyoto. O simples anúncio para se ampliar a redução
Complexidade, capitalismo e ciências ambientais 95

para o próximo período de pós-vigência desse acordo já provo-


ca intensos debates, cercados de polemicas. Afinal, temos que
alterar as matrizes energéticas de origem fóssil, que perduram
desde a revolução industrial.
Os desafios da sociedade atual são enormes para o século
XXI; não queremos perder o progresso material que o conhe-
cimento humano nos proporcionou via a tecnologia. Então, se
queremos manter o progresso econômico já conquistado, temos
que alterar a matriz energética planetária de modo a reduzir
as emissões de gases estufa (MEINSHAUSEN, 2009; MYLES,
2009), de modo a evitar, por sua vez, cenários mais complexos
para as mudanças climáticas. Portanto, teremos que buscar um
equilíbrio nas relações inseparáveis e complexas que permeiam
os três agentes envolvidos nessas questões: a Economia, a Ener-
gia e a Ecologia (Ambiente) (RIFKIN, 2009). Neste trabalho
apresentamos um modelo geométrico que visa simplificar a
compreensão das relações entre estes conceitos, a saber, Eco-
nomia, Energia e Ecologia, aplicados a um indivíduo (homem)
em qualquer cultura da sociedade humana atual. Conceitos de
ecoeficiência (ICC, 1991; UNEP, 1998) foram propostos desde
a década de oitenta, em que se procuravam as conexões mais
harmônicas e simétricas entre Economia e Ecologia, aplican-
do-se assim um modelo unidimensional. Deste então, os temas
econômicos e ecológicos vêm sendo amplamente debatidos
(HORNBORG, 1998; 2001; COSTANZA, 1991; ODUN, 1989;
BOULDING, 1966). Apresentamos aqui uma nova proposta,
em que exploraremos as atuais relações entre os 3E, (Energia,
Economia, Ecologia), sugerindo um modelo bidimensional, em
que o conceito de energia passa a ser levado em consideração,
em relação ao modelo unidimensional, devido à importância
desse nas atuais discussões sobre mudanças climáticas, por
meio dos relatórios do IPCC (2007a, 2007 b). Estes conceitos
agora estariam dispostos cada um num vértice de um triângulo
(Energia, Economia, Ecologia), num modelo bidimensional, cuja
área é considerada como representando a pegada ecológica do
indivíduo (WWF, 2006; DIAS, 2006; STHEL, 2007; 2008; CESAR,
2011). Aplicaremos esse modelo a um estudo de caso de um
grupo de indígenas, recentemente descobertos às margens do
rio Envira no estado do Acre, na Amazônia Ocidental no Brasil.
96 Guilherme Vieira Dias, José Glauco Ribeiro Tostes e Elza Neffa (org.)

Método

Células Triangulares Sustentáveis


Propomos, de forma preliminar, um modelo geométrico
qualitativo e sintético que descreva a situação atual do conflito
homem/natureza. Introduzindo, assim, o modelo de células
triangulares complexas sustentáveis, em que utilizamos como
representação geométrica um triângulo, célula, para sinalizar
a inseparabilidade das relações entre três vértices: Energia,
Economia, Ecologia (“triângulo dos 3E”), Figura 1. Outrossim,
marcamos o centro geométrico desse triângulo com um ponto que
representa um indivíduo qualquer da sociedade atual, já que ele
é o principal causador dos problemas ecológicos e ambientais por
ser um grande consumidor de recursos naturais, particularmente
de energia, além de comandar os sistemas produtivos, isto é, a
economia. Portanto, o homem aparece como personagem central
na representação dos padrões de células triangulares sustentá-
veis complexas dos 3E, sendo este triângulo um sistema aberto,
isto é, que troca energia e matéria com o meio, representando
assim um complexo acoplamento humano com sistemas natu-
rais (CHANS). Definimos também que a área desse triângulo
representa as necessidades de sobrevivência deste indivíduo,
isto é, sua pegada ecológica individual. Existem ainda três setas
que atravessam ao meio cada uma das arestas do triângulo e
cujas direções convergem para o mesmo ponto central da figura
geométrica: o homem. Essas mesmas setas — que dirigimos para
o centro do triângulo — representam uma tendência prioritária
caracterizada pelo consumo individual e por um intenso uso de
energia e bens materiais (trocas com o ambiente), cuja configura-
ção ambiental desordenada sugere a formação de um triângulo
escaleno, isto é, com uma assimetria nas relações dos 3E. Desta
maneira, haverá no modelo atual de sociedade uma tendência
crescente da área desse triângulo, aumentando assim a pegada
ecológica individual e, consequentemente, da sociedade como um
todo. Gera-se, assim, um afastamento dos vértices do triângulo
(3E) e, consequentemente, um incremento da assimetria desses
conceitos, levando-se desse modo a uma situação de insustenta-
bilidade ambiental crescente.
Complexidade, capitalismo e ciências ambientais 97

Figura1: Representação de um indivíduo da sociedade atual


(triângulo escaleno), 3 E

Fonte: Sthel; Tostes (2012).

Vivenciamos uma sociedade humana multifacetada, com


uma incrível desigualdade econômica, que tende a se articular de
maneira cada vez mais negativa com matriz cultural planetária,
gerando uma grande desordem do ponto de vista socioambiental.
Entre os indivíduos dessa sociedade, existe um consumo per capita
de recursos naturais extremamente diferenciado, o que nos leva a
uma situação de extrema complexidade social (LUHMANN, 1995;
ARTHUR, 1998). Portanto, a representação triangular escalena leva-
-nos ao modelo das células triangulares complexas. A inexistência
da inseparabilidade entre os três conceitos (Energia, Economia,
Ecologia) os levam a se realimentar entre si, formando assim laços
cíclicos que trocam matéria e energia (HAROLD; ERIC, 2007) com
o ambiente, uma característica de sistema aberto, o que traduz um
sistema complexo, dinâmico e autorregulador, característico de sis-
temas vivos. Para representamos qualquer indivíduo, teremos uma
infinidade de triângulos escalenos devido à variabilidade de suas
áreas, de modo que se possa representar as diferentes pegadas eco-
lógicas que compõem a sociedade humana. Portanto, que retratem e
descrevam as diferenças sociais, econômicas e culturais de qualquer
indivíduo dessa sociedade. Sendo assim, os padrões triangulares
escalenos, células complexas, representam uma descrição caótica
da valorização do individual na sociedade atual.
Numa tentativa de tornar as relações sociedade-ambiente as
mais harmoniosas e sustentáveis possíveis, podemos propor um
novo triângulo, o triângulo equilátero (Figura 2b), onde a relação
98 Guilherme Vieira Dias, José Glauco Ribeiro Tostes e Elza Neffa (org.)

dos 3E seria agora simétrica e cuja efetivação no real dependerá


de uma grande conscientização individual dos limites de explo-
ração dos recursos do planeta, via o conceito sustentabilidade,
que implicaria numa possível redução da área desse triângulo,
diminuição da pegada ecológica individual, em relação ao triân-
gulo escaleno que o gerou (Figuras 2a, 2b). Porém, mesmo com a
reconstrução desse indivíduo através da aplicabilidade dos con-
ceitos “sustentáveis”, a direção dessas setas continuaria dirigida
para o próprio indivíduo, indicando uma valorização do consumo
de recursos naturais individuais; mesmo no triângulo equilátero,
ainda poderia haver um aumento de sua área, logo, teríamos ainda
custos ambientais altos. Sendo assim, o maior desafio da huma-
nidade seria inverter estas setas no sentido contrário (Figura 3b),
gerando novos paradigmas culturais; nessa nova representação, o
indivíduo passaria a aceitar soluções coletivas (partilha de recursos
naturais); não seria o indivíduo isolado da representação anterior
(seta para dentro). Desse modo, aceitaria reduzir o uso de recursos
naturais via compartilhamento; por exemplo: redução do consumo
de energia da comunidade onde ele reside via a implementação
de um transporte coletivo eficiente para esta comunidade. Dessa
forma, poderia haver a redução da área do triângulo equilátero
(Figura 3b), isto é diminuição da pegada ecológica desse indivíduo
e, consequentemente, de toda a comunidade.

Figura 2: Transformação, via sustentabilidade e dentro da


mesma matriz econômica, de um triângulo escaleno para um
triângulo equilátero (sociedade) 3E

Fonte: Sthel; Tostes (2012).


Complexidade, capitalismo e ciências ambientais 99

Figura 3: Inversão de setas em triângulo equilátero: rumo a um


novo padrão (paradigma cultural) de sustentabilidade

Fonte: Sthel; Tostes (2012).

Quando invertemos as setas “para fora”, podemos acoplar


geometricamente uma coleção de triângulos equiláteros articula-
dos para representar uma comunidade onde cada indivíduo, por
sua vez, é representado por um triângulo e, para cada grupo de
seis indivíduos, formamos um padrão (de rede) do tipo hexágo-
no regular (Figura 4). Trata-se de um padrão no qual as relações
entre os membros desta comunidade ecológica não são lineares,
envolvendo múltiplos laços de realimentação; vale dizer, uma
comunidade humana sustentável, que partilha recursos naturais
(CRUTZEN, 2002)) e necessita, portanto, que as diversas relações
entre seus membros sejam interdependentes — a dependência
mútua de todos os indivíduos desta comunidade — tal como se
caracteriza a natureza de todas as relações ecológicas naturais,
sustentáveis. Fortalecer a comunidade significa fortalecer as
relações entre os indivíduos (cooperação). Com o conceito de
inversão das setas foi possível construir a estrutura hexagonal
regular (Figura. 4), de modo a permitir que outras estruturas se-
melhantes se acoplem geometricamente entre si. Gera-se, então,
um modelo de um sistema social sustentável que: i) continua a
trocar energia e matéria com o seu meio, ou seja, é estrutural-
mente aberto, mas ii) possui um padrão de crescimento (em rede)
fechado, ou seja, é um sistema auto-organizado (KAUFMANN,
1993; HOLLAND, 1996; LEVIN, 1999; BAK, 1996)(37). Da estrutura

(37)
Como se trata de sistemas abertos/auto-organizados, é possível ser
desenvolvida uma modelagem que utilize teoria dos sistemas dinâmicos
(GEORGESCU-ROEGEN, 1995), devido às características não lineares que
100 Guilherme Vieira Dias, José Glauco Ribeiro Tostes e Elza Neffa (org.)

caótica do modelo atual de triângulos assimétricos escalenos in-


dividualizados, pode-se gerar ordem, por meio de uma mudança
não determinista no paradigma cultural que leve à emergência
de um novo sistema auto-organizado. Obteremos, assim, uma
ordem das relações hexagonais regulares, que permitem aco-
plamentos indefinidamente, até a formação de representações
auto-organizadas de grande número de indivíduos, isto é, um
acoplamento hexagonal. De fato, a representação das setas para
fora indica a capacidade de mantermos a interdependência entre
os indivíduos que compõem o conjunto de hexágonos regulares,
formando assim uma estrutura em rede, que partilha recursos
e serviços ambientais de forma sustentável. Como exemplo da
vida natural, temos a complexidade (WATKINS, 2008; WARDS
et al., 2008) de um grande cardume de peixes, que se auto-orga-
niza para defender-se dos predadores. Estamos também, nesse
modelo, aplicando o conceito da inteligência coletiva (PATTEN,
1991; PARRISH; EDELSTEIN-KESHET, 1999).

Figura 4: Estrutura Hexagonal Regular partilha recursos


naturais (cooperação)

Fonte: Sthel; Tostes (2012).

envolvem diversos laços de realimentação dos indivíduos dessas comunidades.


Complexidade, capitalismo e ciências ambientais 101

Consideramos neste modelo que o compartilhamento de re-


cursos naturais nos leva a uma redução da pegada ecológica desta
comunidade regular hexagonal; isto consequentemente nos leva
a uma redução da área total do hexágono, que será menor que a
soma das áreas dos respectivos triângulos equiláteros individuais
que o geraram. Isso ocorre porque a formação do hexágono é um
fenômeno coletivo (NATIONAL GEOGRAPHIC, 2007; NEWS,
2007; BROWN; LAUDER, 2000; SUNSTEIN, 2006), em que, por
uma possível mudança do paradigma cultural, poderíamos repac-
tuar o uso de recursos naturais de forma racional (a ser decidida
por cada comunidade) (CRUTZEN, 2002); por exemplo: uso de
energias renováveis, uso transporte coletivo, programas de efi-
ciência energética, amplo programa de reciclagem, eficiência na
utilização de recursos hídricos, uso sustentável da terra e um rígido
controle da poluição.
O modelo triangular poderia ficar igualmente ajustado se no
lugar do vértice “energia” usássemos o vértice “entropia”. Ora, basta
nos lembrarmos que a 2ª Lei da Termodinâmica trata da entropia,
que, por sua vez, pode ser encarada como descrevendo uma certa
qualidade de energia (GEORGESCU-ROEGEN,1995;1971), a saber,
energia dissipada em processos físico-biológicos e não mais reciclável
em novos processos físico-biológicos. Assim, podemos livremente
intercambiar “energia” com “entropia” no modelo triangular.

Um estudo de caso: indígenas isolados do rio Envira, na


Amazônia Ocidental
Uma tribo indígena da Amazônia foi recém-descoberta, em
maio de 2008, por uma equipe da Frente de Proteção Etnoambiental
da FUNAI (Fundação Nacional dos Povos Indígenas), coordenada
pelo sertanista José Carlos Meirelles (MEIRELLES, 2009) e docu-
mentada pelo fotógrafo Gleilson Miranda, às margens do rio Envira,
no estado do Acre, na Amazônia Ocidental (TERRA MAGAZINE,
2008). Após quase 20 horas num avião monomotor, o sertanista
comandou um sobrevoo que resultou nas primeiras fotografias dos
indígenas (TERRA MAGAZINE, 2008) de uma das quatro etnias
isoladas que vivem na fronteira do estado do Acre com o Peru. As
mulheres e suas crianças fugiram para a floresta em busca de pro-
teção, enquanto os guerreiros da tribo se posicionaram e reagiram
102 Guilherme Vieira Dias, José Glauco Ribeiro Tostes e Elza Neffa (org.)

atirando flechas no avião (Figura 5). São chamados de “indígenas


invisíveis”, pela dificuldade de sua localização. Serviram como o
primeiro estudo de caso para aplicação de nosso modelo de células
triangulares sustentáveis complexas. Trata-se de uma tribo de pou-
cos indivíduos, remanescentes de indígenas que vivem na fronteira
Brasil-Peru (SURVIVAL INTERNATIONAL, 2008; BBC NEWS,
2008). As intensas atividades madeireiras no Peru e a chegada de ga-
rimpeiros colocaram estas etnias em fuga para o território brasileiro.

Figura 5: Fotografados pela primeira vez, os “índígenas


invisíveis” reagem disparando flechas no avião, no interior
do Acre, Brasil

Fonte: Terra Magazine (2008).

Esses indígenas, algumas poucas dezenas, ainda não tiveram


contato com a nossa civilização, vivendo numa economia de caça e
coleta com o uso de uma agricultura rudimentar para sua subsistência.
Portanto, não consomem nenhum produto gerado pelas mãos dos
homens civilizados, como: roupas, utensílios domésticos, materiais
para construção de moradias, adubos etc. Também não consomem
energia gerada por nenhum meio que tivesse a intervenção do homem
civilizado, nem existe definição de ecologia nessa comunidade devido
a sua própria relação altamente sustentável com o meio ambiente. A
economia de mercado, tal como definida para o homem “civilizado”,
é praticamente inexistente. Eles habitam em malocas coletivas (Figuras
6 e 7), sendo uma comunidade que partilha os recursos naturais de
Complexidade, capitalismo e ciências ambientais 103

modo eficiente (CRUTZEN, 2002), numa relação altamente sustentá-


vel com o ambiente, praticando uma forma de inteligência de grupo,
que auxilia na sobrevivência da comunidade.

Figura 6: Fotografia aérea de cabanas dos


“indígenas invisíveis”

Fonte: Terra Magazine (2008).

Figura 7: Fotografia ampliada de uma cabana dos


“indígenas invisíveis”

Fonte: Terra Magazine (2008).


104 Guilherme Vieira Dias, José Glauco Ribeiro Tostes e Elza Neffa (org.)

Portanto, não tem sentido separar os conceitos de Economia,


Ecologia, Energia como são separados na nossa sociedade de
consumo, devido a uma perfeita harmonia entre homem–natu-
reza, existente nesta situação. Sendo assim, para representamos
um indivíduo dessa comunidade, utilizaríamos, a princípio, o
triângulo equilátero (Figura 3b), um caso de equilíbrio perfeito
entre os 3 vértices E. Logo, o triângulo equilátero que represen-
tasse este indivíduo (o indígena) tenderia a sofrer o fenômeno
chamado “colapso equilateral” (Figura 8), onde seus vértices
convergiriam para o centro do triângulo devido à inexistência da
definição dos conceitos de Economia, Energia e Ecologia para essa
comunidade primitiva. Este colapso leva a uma redução brusca
da área do triângulo equilátero, indicando uma pegada ecológica
praticamente nula para cada indivíduo. Os “indígenas invisíveis”
são um exemplo bem adequado para ser aplicado ao modelo do
hexágono regular (Figura 4), em que a cooperação (NEWS FOCUS,
2009) é uma característica central desta comunidade coletiva.
Se aplicarmos o conceito de colapso nesse hexágono regular de
indígenas, veremos a formação de um pequeno círculo, cuja área
tende ser nula, o que retrata uma pegada ecológica mínima para
a comunidade. Denominaremos essa figura de “Sociedade Colar”,
em homenagem aos “indígenas invisíveis” do rio Envira (Figura
9). Logicamente que tomamos como exemplo um único hexágono
(seis indígenas), mas poderemos incluir um número maior, que
represente toda a tribo; veja-se que a Figura. 9, que é o círculo
que representa a sociedade colar, tem setas para fora, o que indica
a possibilidade de interação (cooperação) entre indivíduos, isto
é, novas células circulares (colares) podem ser acopladas como
numa estrutura de uma rede, contemplando assim os demais
indígenas. É interessante notar que essa sociedade indígena
representa um limite inferior do custo ambiental do modelo do
hexágono regular, que é formado pelas células triangulares equi-
láteras sustentáveis e que, nesse caso, passam a ser circular, com
uma pegada ecológica praticamente nula. Portanto, é um caso de
sustentabilidade ideal. Podemos, então, questionar que o atual
modelo de civilização jamais voltará a esse limite inferior, mas
tal limite já existiu no início da formação da civilização humana
e ainda incrivelmente perdura nos dias de hoje, como no caso
dos indígenas invisíveis do rio Envira. As figuras 6 e 7 são um
olhar para o passado da civilização humana.
Complexidade, capitalismo e ciências ambientais 105

Figura 8: Colapso da célula triangular equilátera para


um indivíduo indígena

Fonte: Sthel; Tostes (2012).

Figura 9: Colapso da Estrutura Hexagonal Regular para


sociedade dos indígenas

Fonte: Sthel; Tostes (2012).

Apresentamos, assim, um exemplo em que as relações entre


o homem e a natureza estão em perfeita harmonia, e, por incrível
que pareça, ainda existem comunidades com poucos indivíduos
vivenciando este modelo; sociedades como essas tendem a serem
extintas rapidamente devido à expansão do homem civilizado. A
civilização atual, no seu estágio inicial, já vivenciou tal situação.
106 Guilherme Vieira Dias, José Glauco Ribeiro Tostes e Elza Neffa (org.)

Isto é, no início éramos poucos indivíduos que formavam pequenos


grupos, compartilhando alimento, moradia e nos protegendo dos
predadores: uma sociedade colar. Evoluímos para comunidades
maiores e passamos a ser uma sociedade hexagonal, onde inicia-
mos a prática da agricultura ainda que rudimentar, usamos fogo,
arados, irrigação; não éramos mais colar, já possuíamos, mesmo
que pequena, a nossa pegada ecológica. Chegamos, então, às re-
voluções industriais e, certamente, a partir daí, com uso intensivo
de matéria e energias fósseis, construímos a civilização atual. Nesta
fase inicia-se uma “escalenização” dos triângulos equiláteros que
formavam as civilizações hexagonais regulares anteriores; portan-
to, foi havendo uma deformação da geometria hexagonal até um
ponto de implosão total do hexágono. Dessa forma, começamos a
nos transformar nos triângulos escalenos individualizados, células
complexas que somos hoje, com áreas crescentes, portanto, com um
aumento das nossas pegadas ecológicas devido ao uso intensivo
de recursos naturais. Criamos um sistema altamente complexo do
ponto de vista socioambiental e teremos a tarefa de encontrar um
novo ponto de estabilidade (dinâmica) sistêmica, isto é, harmonizar
os três conceitos vitais: Economia, Energia, Ecologia. E temos que
nos conscientizar que este é um dos grandes, senão o maior, desafios
deste século, o qual, por sua vez, está profundamente articulado à
busca (ocidental) de uma rearticulação entre sociedade e natureza.

Resultados e Discussões
Apresentamos no presente trabalho uma representação geométri-
ca simplificadora de três conceitos importantes que estão intimamente
atrelados a vida real (Economia, Energia, Ecologia), mas que, devido
ao presente modelo civilizatório adotado, parecem alimentar conflitos
“insolúveis” entre sociedade e ambiente. Assim, Economia (“apenas”
sociedade) e Ecologia (“apenas” ambiente) parecem duas esferas se-
paráveis da realidade. Já o uso da Energia parece apenas decidido na
esfera da economia, não importando suas consequências para a esfera
ecológica (externalização de custos do uso “apenas” social da energia).
Quando introduzimos o conceito de “hexagonalização” dos
triângulos equiláteros e admitimos uma redução na área do hexágo-
no em comparação com a soma das áreas dos triângulos equiláteros
individuais que o formaram, estamos diminuindo a pegada ecológica
Complexidade, capitalismo e ciências ambientais 107

deste hexágono-comunidade; logo, estamos buscando o compartilha-


mento de recursos naturais de forma a reduzir impactos ambientais.
Isso não é novo na história da sociedade humana e já é levado em
consideração em antropologia ambiental. A mudança de paradigma
cultural para a construção do modelo hexagonal nos reporta a um
ponto crucial sobre a sobrevivência coletiva, já experimentado pelos
nossos antepassados e que os antropólogos denominam de “Dis-
positivos de Amortecimento Cultural” (HALL, 2008; KUHN; STINER,
2006) Trata-se de um fator no comportamento de um grupo — uma
tecnologia em forma de organização social, tradição cultural — que
funciona como garantia de suas apostas no arriscado jogo da seleção
natural. Mary Stiner e Steven Kuhn (KUHN; STINER, 2006) sustentam
que os primeiros seres humanos modernos surgiram na África com
um desses “dispositivos de amortecimentos”: uma abordagem das
atividades de caça e coleta que era eficiente e resultava numa dieta
mais variada, aumentando a chance de sobrevivência da espécie.
Eris Trinkhaus (HALL, 2008) vai mais longe e sugere que “de todos
os dispositivos de amortecimento cultural, talvez o mais importante
seja a existência da própria sociedade”. Ele explica essa afirmação
conceituando essa função “amortecedora” da sociedade em termos
sistêmicos de realimentação:
grupos grandes exigem mais interações sociais
(DUNBAR; SCHLTZ, 2007; SILK, 2007; JOLLY,
2007; GILBERT; WILSON, 2007) de seus mem-
bros, o que leva a maior atividade cerebral
durante a infância e a adolescência, impulsiona
no sentido de maior complexidade da lingua-
gem e, indiretamente, aumenta a expectativa
média de vida. Essa longevidade, por sua
vez, fomenta a transmissão de conhecimento
de uma geração a outra e cria, segundo Chris
Stringer, a “cultura da inovação” — a passa-
gem de habilidades práticas de sobrevivência e
das técnicas de produção de instrumentos dos
membros mais idosos aos mais jovens.

Por sua vez, concluímos nós, esse circuito se fecha então


estimulando a ampliação do próprio “grupo grande” original(38).

Este conceito sistêmico de “amortecimento cultural” poderia ser trabalhado


(38)

dentro da “ciência da complexidade” de Prigogine (1984a; 1984b), desde que se


108 Guilherme Vieira Dias, José Glauco Ribeiro Tostes e Elza Neffa (org.)

O homo eretus fez (o compartilhamento de


recursos naturais), desenvolvendo a primeira
economia de caça-e-coleta em que animais de
caça eram uma parte significativa da dieta e os
recursos eram compartilhados entre os mem-
bros do grupo (LEONARD, 2002).

Para compreender o papel da alimentação na evolução hu-


mana, devemos lembrar que a procura por alimento, seu consumo
e, finalmente, como ele é usado em processos biológicos são todos
aspectos críticos da ecologia de um organismo. Outro conceito
importante é o de “energia dinâmica” (LEONARD, 2002; 1997) entre
organismos e seus ambientes(39), ou seja, é a energia despendida
com a caça comparada com a energia adquirida com o produto
da caça, o que teve consequências adaptativas importantes para
a sobrevivência e a reprodução. Esses dois últimos componentes
da aptidão darwiniana refletem-se na forma com que estimamos
o estoque de energia de um animal. A energia de manutenção é
o que sustenta um animal vivo. Como o animal aqui considerado
é o homem, podemos propor que, na sociedade do homo eretus,
a Energia, a Economia, a Ecologia — evidentemente que numa
forma rudimentar — tinham uma relação mais harmoniosa entre
si, portanto aproximando-se de uma sociedade hexagonal (Figura
4). Olhando para trás, podemos ver que alcançamos o sucesso
porque compartilhamos recursos naturais para nos protegermos
originalmente de nossos inimigos naturais e das mudanças climá-

levasse em conta a rapidez com que tais “dispositivos de amortecimento” seriam


transmitidos ou comunicados por todo o sistema social em questão. Nas palavras
de Prigogine, “quanto mais complexo é um sistema, maiores são as possibilidades
de, em qualquer caso, certas flutuações serem perigosas. [...] É provável que
nos sistemas muito complexos, em que as espécies ou indivíduos interagem de
maneira muito diversificada, a difusão, a comunicação entre todos os pontos
do sistema seja igualmente muito rápida. [...] A rapidez da comunicação é que
determinaria a complexidade máxima que a organização de um sistema pode
atingir sem se tornar demasiado instável”.
(39)
Tal como no conceito de “amortecimento cultural”, em Leonard (2002), temos
uma linguagem sistêmica de realimentação, agora articulando dieta alimentar
aprimorada/compartilhada, aumento evolutivo do cérebro e comportamento
social complexo crescente: “after the initial spurt in brain growth, diet and
brain expansion probabily interacted synergistically: bigger brains produced
more complex social behavior, which led to further shifts in foraging tactics and
improved diet, which in turn fostered additional brain evolution”.
Complexidade, capitalismo e ciências ambientais 109

ticas (SILK, 2007). É incrível que, ainda hoje, existam “indígenas


invisíveis”, como os do rio Envira, que praticam a caça e a pesca,
como uma sociedade coletora, mas conhecem uma forma rudi-
mentar de agricultura. Que não impactam o meio em que vivem
e mantêm uma relação harmoniosa com o ambiente, de modo
similar ao que ocorria com nossos ancestrais.
Apresentamos neste trabalho uma tentativa de sintetizar as
complexas relações sociedade e natureza, por meio de uma lingua-
gem geométrica bem simples, de modo a facilitar o entendimento
das questões ambientais globais. Utilizamos um exemplo real:
“indígenas invisíveis” do rio Envira, para mostrar a aplicação do
modelo das células triangulares complexas, via construção geo-
métrica regular hexagonal, e a aplicação do conceito de colapso,
dessa geometria, quando aplicada ao estudo desse caso proposto.
Vimos também que através da utilização das Figuras 2 e 3 foi possí-
vel descrever uma trajetória rumo a uma sociedade sustentável, por
meio de duas etapas consecutivas de transformações “geométricas”
de um processo socioambiental. Em particular, nossa geometria
triangular equilátera (Figura 3a), de transição (setas para dentro)
representa um modelo econômico que estamos tentando construir
na atualidade, que se apresenta aparentemente “equilibrado”, mas, a
rigor, é ainda insustentável. Outrossim, o processo que delineamos a
partir de um estado de coisas atual (Figura 1) não é determinista, mas
um percurso possível de ser criado. Será que conseguiremos adotar
um dispositivo de amortecimento cultural, já utilizado por nós em
outros períodos da nossa história, na complexa conjuntura da atual
sociedade humana? O nosso desafio é encontrar um mecanismo de
amortecimento cultural, mesmo diante da complexidade da socie-
dade atual, que nos leve a atenuar as ameaças ambientais globais e
que nos permita como espécie continuar no arriscado jogo da seleção
natural. Permitindo-nos, assim, ampliar nossa capacidade adapta-
tiva num planeta cuja biosfera apresenta-se em entropia crescente,
com o rompimento de importantes ciclos naturais (ROCKSTROM,
2009; FOLKE, 2002) na manutenção da vida, por exemplo, o ciclo
do carbono; o que nos leva a uma questão ambiental central: “Mu-
danças Climáticas” (TRENBERTH et al., 2006; CZICZO, 2009; DIM,
2012; JARVIS, 2012).
110 Guilherme Vieira Dias, José Glauco Ribeiro Tostes e Elza Neffa (org.)

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7.

Modelos geométricos e bioculturais/


culturais sustentáveis da sociedade: o
papel da cooperação não capitalista em
tempos de crise civilizacional
e ambiental(40)

Marcelo Silva Sthel


José Glauco Ribeiro Tostes
Juliana Rocha Tavares

Introdução
Neste trabalho, apresentaremos uma breve análise das rela-
ções entre o padrão de produção e consumo da civilização ocidental
e os crescentes problemas ambientais globais. Pela primeira vez ao
longo da história das civilizações, estamos enfrentando desafios
civilizatórios de proporções globais. Deixando de lado, para sim-
plificar, a antiguidade clássica e a Idade Média, a etapa moderna
da civilização ocidental (que levaria a Europa a uma hegemonia
político-econômica mundial) teve início no século XVI. Do lado
“material” da história — articulado com as mudanças do lado
“imaterial” — ocorreu uma gigantesca mudança na utilização das
navegações, que eram restritas ao “pequeno oceano” mediterrâneo
e passaram a abranger o imenso oceano Atlântico, turbinando o
capitalismo nascente. Do lado “imaterial” (ideias, crenças e va-
lores), ocorreu uma profunda inflexão na razão ocidental: nasceu
a ciência moderna, centrada, no século XVII, em um “método
científico” e na separação/análise cartesiana homem-natureza.
Esses processos (material e imaterial) levariam, no século XVIII,
ao projeto civilizatório europeu iluminista. Desde o século XIX,
esse projeto alavancou um sistema econômico industrial planetário

(40)
Texto originalmente publicado em inglês no periódico Journal of Sustainable
Development (STHEL; TOSTES; TAVARES, 2017).
116 Guilherme Vieira Dias, José Glauco Ribeiro Tostes e Elza Neffa (org.)

que gerou um desenvolvimento tecnológico gigantesco, aliado


a ondas de desemprego, desigualdade e crises econômicas de
grandes proporções. As crises geradas pelo modelo vigente de
desenvolvimento (em especial, as crises de 1929 e 2008), contribuí-
ram para promover uma crise ambiental sem precedentes, que, por
sua vez, retroalimentaram a crise na esfera econômica. Dentre os
principais efeitos da crise ambiental, destacamos o aquecimento
global. Essa trajetória não ecológica de contradições articuladas
parece estar conduzindo o sistema econômico mundial baseado
numa forte competitividade aos seus últimos limites. Mais uma
vez, podemos observar, do ponto de vista material, que o eixo
econômico se desloca da bacia do Atlântico (esfera de hegemonia
geopolítica dos EUA e da UE) à bacia do Pacífico (nova esfera de
hegemonia geopolítica dos EUA e da China). Tal mudança também
pode levar o capitalismo aos seus limites, pois há uma tendência
de esgotamento das reservas de trabalho barato que sustentam o
sistema. Do ponto de vista imaterial (articulado com as mudanças
materiais), está em curso um conflito entre o velho pensamento
científico (newtoniano/cartesiano) e o novo pensamento científico
(pensamento sistêmico). Muitos conceitos sistêmicos serão encon-
trados e explicados ao longo do presente trabalho.
As questões ambientais se apresentam como um grande desafio
civilizatório neste começo de século XXI. O espantoso progresso
material alcançado pela sociedade humana através do uso intensivo
da tecnologia e a expansão do sistema capitalista teria limites? Diante
de uma possível escassez de recursos naturais devido ao crescente
consumo de bens materiais, com ciclos de vida cada vez menores,
como sustentar indefinidamente esse modelo de sociedade? A partir
da Revolução Industrial, a era dos combustíveis fósseis foi forte-
mente intensificada no século XX com a expansão das indústrias e
intensa urbanização. As políticas neoliberais (ANDREWS et al., 2013;
KLITGAARD, 2013; PELLIZZONI, 2011; HEATH; GIFFORD, 2006),
aplicadas a partir de meados da década de 1980, intensificaram
um modelo de sociedade cada vez mais competitiva, consumista e
individualista, gerando um aumento avassalador no consumo de
energia e de recursos naturais.
A partir da Revolução Industrial, a era dos combustíveis fósseis
foi altamente intensificada com a expansão industrial e intensa ur-
banização. Em 2007, o Painel Intergovernamental sobre Mudanças
Complexidade, capitalismo e ciências ambientais 117

Climáticas (IPCC, 2007) publicou um relatório alarmante, indicando


que o uso em larga escala de combustíveis fósseis, responsáveis pelo
aumento nas emissões de gases de efeito estufa, estariam intensi-
ficando o aquecimento global e produzindo mudanças climáticas.
(RANDERSON, 2013; STOCKER, 2013; COX et al., 2013; HANSEN
et al., 2012; SOLOMON et al., 2009; ROCKSTROM et al., 2009).
O relatório prevê que o aquecimento global ocasione impac-
tos ambientais de grandes proporções, que afetarão diretamente a
sociedade e a biodiversidade (FLYNN et al., 2012; PALMER, 2014;
DING et al., 2014; BALMASEDA et al., 2013; RAMSAY, 2014;
LENOIR et al., 2008; ROSENZWIEG, 2008). Nesse contexto, um
grande desafio nos é colocado: a busca por uma economia com
baixa emissão de baixo carbono. Durante os anos de 2006 e 2007,
com a divulgação dos relatórios de Nicholas Stern (2006) e do IPCC,
parecia que os problemas ambientais finalmente fariam parte das
agendas governamentais internacionais e das reais preocupações do
sistema econômico. No entanto, desde 2008, podemos observar uma
mudança de prioridades para as questões associadas à crise econô-
mica, reduzindo sensivelmente o espaço para discussão de temas
importantes como as mudanças climáticas. Durante a Conferência
das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas em Doha, no Catar,
os avanços foram incipientes e as principais medidas de redução
das emissões de gases de efeito estufa foram adiadas para depois
de 2015. Existem expectativas razoavelmente bem fundamentadas
sobre reduções na emissão de carbono a partir da COP 21 de Paris
(TOLLEFSON; WEISS, 2015).
Rockstrom (2009) aponta mais oito grandes problemas am-
bientais globais, além do aquecimento global. Pior ainda, esses nove
problemas são interligados e podem reforçar-se mutuamente. Dessa
forma, esse conjunto de problemas ambientais é responsável, em gran-
de medida, pelo que podemos chamar de “crise ambiental global”.
Assistimos hoje a um grave e complexo conflito entre o ho-
mem e a natureza (PRIGOGINE; STENGERS, 1984a; PRIGOGINE;
STENGERS, 1984b), em que a visão dominante do atual modelo
econômico foi responsável por transformar a sociedade em um
grande mercado, em que há um grande apelo ao individualismo e
à competição, utilizando como premissa “a mão invisível do mer-
cado”, que resolveria todos os problemas da economia. Essa velha
118 Guilherme Vieira Dias, José Glauco Ribeiro Tostes e Elza Neffa (org.)

visão foi contestada a partir da crise econômica de 2008, onde a “mão


invisível do mercado” foi substituída pela “mão visível do Estado”.
Grandes somas de dinheiro público (muitos indivíduos) foram
usadas para salvar a sociedade de mercado (poucos indivíduos).
Durante esta crise, muitos esforços e trabalho de muita gente, tra-
duzidos em impostos, têm sido usados p ​​ ara salvar uma quantidade
ínfima de pessoas (o sistema financeiro), a fim de evitar, como foi
dito, “grandes instabilidades no sistema econômico global”. Para
lidar com a crise econômica, o meio ambiente perdeu o lugar de
destaque que parecia ter atingido entre 2006 e 2007. Considerando os
grandes impactos ambientais previstos pela comunidade científica,
consideramos preocupante que as questões ambientais não estejam
mais sendo debatidas com a seriedade e urgência necessárias. O
presente trabalho relaciona as duas crises (ambiental e econômica)
como dois aspectos inevitavelmente articulados e retroalimentados
que apontam para limites severos do próprio capitalismo enquanto
projeto de civilização.
Neste trabalho, foi realizada uma análise do contexto atual
do processo civilizatório e o conflito entre homem e natureza se
tornou o cerne das questões ambientais. No tópico 2, Sthel e Tostes
propuseram em 2012 um modelo de Células Triangulares Susten-
táveis Complexas (CTCS) (STHEL; TOSTES, 2012) para facilitar a
compreensão desse complexo conflito. Esse triângulo proposto tem
três vértices inevitavelmente ligados: Economia, Ecologia e Ener-
gia (triângulo EEE). A figura de um triângulo escaleno com setas
apontadas no centro simboliza a acumulação individual de bens
de consumo. A área do triângulo é a pegada ecológica de qualquer
consumidor humano, individualizado, competitivo e voraz no
consumo de recursos naturais. Por outro lado, a figura de um triân-
gulo equilátero com setas apontando para fora é empregada para
simbolizar uma forte cooperação e interação entre os indivíduos e,
por fim, um hexágono regular pode ser construído, por meio do
“somatório” de seis desses triângulos, simbolizando a partilha dos
recursos naturais a fim de reduzir a pegada de carbono do indivíduo
(reduzindo a área total do hexágono).
O modelo também incorpora a ideia da indissociabilidade dos
conceitos (energia, economia e ecologia), que estão localizados nos
vértices do triângulo, simbolizando que as crises atuais de consu-
mo de energia, ambiental e econômica não têm soluções separadas
Complexidade, capitalismo e ciências ambientais 119

(STHEL et al., 2013). O modelo CTCS pode ser utilizado para reduzir
a pegada energética para o cenário de 2030 (STHEL et al., 2013),
baseado na proposta de Chakravarti et al. (2009).
Antes de começar a tratar dos propósitos do presente trabalho
no tópico 3, foi realizada ali inicialmente uma rápida e não conven-
cional análise dos limites gerais do capitalismo através de autores
capitalistas, pós-crise de 2008.
Em seguida, focou-se especialmente — no tópico 3, item
(3.1) — nos limites ambientais globais do capitalismo, aplicando-se
o modelo geométrico CTCS. Esquematicamente, enfatizamos que
está em curso um processo de “escalenização” global expansivo e
acelerado do sistema econômico a partir da crise de 29 até o atual
estágio neoliberal capitalista.
Ainda no tópico 3, item (3.2), e novamente aplicando o modelo
CTCS, ao longo dos últimos 45 anos, durante os quais surgiram
crises ambientais na esfera pública e governamental, ocorreram
algumas experiências locais, instáveis ​​e evanescentes de “equilate-
ralização” cooperativa (setas para fora), visando a sustentabilidade.
Normalmente, essas “ilhas” cooperativas de “equilateralização” não
capitalistas apareceram, desde o início, misturadas, até certo ponto
e, contraditoriamente, com o “oceano” de “escalenização” competi-
tiva capitalista (SACHS, 1991; SACHS, 2009; OSTROM, 2009). Esse
processo faz com que, geralmente, tais “ilhas” tenham vida curta.
No último tópico (4), consideraremos muito preliminarmente
os modelos bioculturais da história da sociedade humana e os mo-
delos culturais restritos à história ocidental, que se interconectam
no que tange à especial presença da cooperação humana em todos
esses modelos. Eles são, então, adequados para estes tempos de
crise civilizacional/ambiental.
Começaremos com um esboço do padrão biocultural de No-
wak (NOWAK, 2006; 2010; 2011; 2012a; 2012b; TAMITA; TAUBES,
2013), abraçando, apoiados em modelos matemáticos, a totalida-
de da história da civilização humana. Tal padrão envolve ciclos
alternativos cooperativos e egoístas, sendo os ciclos cooperativos
intrinsecamente instáveis. Em seguida, esboçaremos o padrão bio-
cultural de Wilson (2012), que também abrange o conjunto de toda
a história humana. Este último modelo articula: de um lado, i) um
120 Guilherme Vieira Dias, José Glauco Ribeiro Tostes e Elza Neffa (org.)

processo multinível envolvendo seleções individuais e grupais (esta


última seleção explica os efeitos da cooperação evolutiva), onde nem
as seleções individuais nem grupais devem ser isoladas; e, de outro,
ii) os indivíduos, que se situam dentro de uma rede de complexidade
crescente da civilização urbano-industrial, chocando-se com nossos
instintos milenares de arranjos de pequenos grupos. Argumentare-
mos que características do modelo podem ser melhoradas se forem
anexados limites superiores de complexidade a elas, com a ajuda de
duas “teorias” sistêmicas.
Fechando o tópico 4, argumentamos que modelos bioculturais
(da história humana) como os de Nowak e Wilson, acima, se encon-
tram com modelos históricos (ocidentais) das ciências humanas que,
supostamente, são apenas culturais, particularmente, no que diz respei-
to à cooperação humana, como o modelo Weber-Alberoni. De acordo
com Alberoni (1989), Max Weber afirmou ter detectado experiências
religiosas ocidentais locais, transitórias, instáveis e​​ puramente coopera-
tivas que, em algumas situações, levaram a saltos civilizacionais, como
é o caso das origens do cristianismo e sua impressionante expansão.
Ressalta-se que Alberoni (1989) estendeu esse mesmo padrão religioso
weberiano às grandes e contemporâneas revoluções políticas não religiosas
(como a Revolução Russa de 1917 e sua impressionante expansão) e
associou tais experiências a um modelo dissipativo, como o proposto
por Prigogine e Stengers (1984a; 1984b). Alberoni também enfatizou
o claro viés não capitalista — e, afinal, comunista, no seu limite — de
tais experiências puramente cooperativas. Afirmamos, fechando esta
introdução, que o modelo Weber-Alberoni está intimamente relacio-
nado com o nosso modelo geométrico CTCS, explicado no tópico 2 e
empregado nos tópicos 3 e 4.

Células Triangulares Complexas Sustentáveis (CTCS): Compe-


tição e Cooperação
O modelo CTCS, introduzido por Sthel e Tostes (2012) ba-
seia-se na utilização de uma forma geométrica simples, que é o
triângulo escaleno (Fig. 1), para representar a inseparabilidade
entre três importantes temas da atualidade: energia, ecologia e
economia (3E), apresentando uma visão complexa e sistêmica da
sociedade humana. Um ponto colocado no centro geométrico de
cada triângulo representa um indivíduo de qualquer sociedade
Complexidade, capitalismo e ciências ambientais 121

moderna, pautada na competição. Por fim, a área do triângulo cor-


responde à “pegada ecológica” do indivíduo (pegada de carbono).
São três setas que partem do centro de cada borda do triângulo,
convergindo em direção ao seu ponto médio. A direção das setas
representa um consumo altamente individualizado de recursos
naturais e energia fóssil. As políticas neoliberais estimulam um
enorme consumo e um padrão cultural em que a competição e
o individualismo são supervalorizados. Os vértices do triângulo
(3E) são progressivamente espaçados e, consequentemente, há um
aumento da assimetria desses três conceitos, criando assim uma
situação de crescente insustentabilidade ambiental.

Figura 1: Representação de um indivíduo no triângulo


escaleno atual (competição).

Fonte: Sthel; Tostes (2012).

Entre os indivíduos da sociedade contemporânea, há um con-


sumo per capita de recursos naturais altamente diferenciados, o que
leva a uma situação de extrema complexidade social (ARTHUR,
1998; LUHMANN, 1995; LEVIN, 1999). A ausência de indissocia-
bilidade dos três conceitos (energia, economia e ecologia) pode
ser observada à medida que eles se retroalimentam, formando
ligações cíclicas (STHEL et al., 2013), onde há uma intensa troca
de matéria e energia com o meio ambiente, característica de um
sistema aberto, complexo e dinâmico (KAUFMANN, 1993; WAT-
KINS; MERVYN, 2008; VASCONCELLOS, 2002). Uma infinidade
de triângulos escalenos pode representar as pessoas da sociedade
atual, com grande variabilidade em suas áreas, associadas às
122 Guilherme Vieira Dias, José Glauco Ribeiro Tostes e Elza Neffa (org.)

questões sociais, econômicas e culturais dos indivíduos dessa


sociedade. Assim, os padrões celulares do complexo triangular
escaleno representam uma descrição caótica da recuperação do
indivíduo e da competitividade do modelo econômico vigente.
Para representar relações sociedade-ambiente mais sustentá-
veis, foi proposto um novo triângulo, o triângulo equilátero, onde
as relações entre os 3E seriam mais simétricas (equilibradas). No
entanto, mesmo com a transformação para um triângulo equilátero,
as setas permanecem apontadas para o indivíduo, ainda indicando
um grande consumo individualizado de recursos naturais. Assim,
inverter a direção dessas setas, aceitando um novo padrão cultural
de cooperação (STHEL; TOSTES, 2012) constitui um desafio para a
humanidade. Nessa nova representação, o indivíduo usaria e acei-
taria soluções coletivas (compartilhamento de recursos naturais)
para tratar das questões ambientais. Ao compartilhar recursos, o
consumo total de recursos seria reduzido.
Quando as setas estiverem invertidas, será possível acoplar os
triângulos equiláteros (indivíduos) de forma a formar um padrão
do tipo hexágono regular (figura 2). Nesse padrão, as relações entre
os membros da comunidade ecológica não são lineares, envolvendo
múltiplos ciclos de retroalimentação. Fortalecer a comunidade signi-
fica fortalecer as relações entre os indivíduos (cooperação). A nova
estrutura representada pelo hexágono regular pode ser acoplada,
em rede, a outras estruturas hexagonais semelhantes, representando
uma grande rede social cooperativa. Gera-se um modelo de sistema
social sustentável que continua trocando energia e matéria com o
meio ambiente. Em outras palavras, esse sistema é estruturalmente
aberto, mas apresenta um aproximado padrão de crescimento na
rede. A partir da estrutura caótica do atual modelo de triângulos
escalenos assimétricos individualizados, a ordem é gerada, por meio
de mudança não determinística no paradigma cultural, levando à
emergência de um novo sistema auto-organizado (KAUFMANN,
1993; WATKINS; MERVYN, 2008; VASCONCELLOS, 2002).
Complexidade, capitalismo e ciências ambientais 123

Figura 2: Estrutura hexagonal regular: Compartilhamento de


recursos naturais (cooperação).

Fonte: Sthel; Tostes (2012); Sthel et al. (2013b).

De fato, a representação das setas indica a capacidade de manter


a interdependência entre os indivíduos que compõem o conjunto de
hexágonos regulares, formando assim uma estrutura em rede, que
compartilha recursos e serviços ambientais de forma cooperativa
sustentável. Nesse modelo, consideramos que a partilha dos recursos
naturais leva a uma redução da pegada de carbono do indivíduo
dessa comunidade hexagonal regular; isto é, leva a uma redução
da área total do hexágono, que é menor que a soma de suas áreas
individuais de triângulos equiláteros. Como exemplos, podemos
citar o uso de energia renovável, o incentivo à utilização de trans-
porte coletivo, programas de eficiência energética, programas de
reciclagem, consumo colaborativo, compartilhamento de veículos,
uso eficiente de recursos hídricos, uso sustentável do solo e rígido
controle de emissão de gases de efeito estufa.

Limites do capitalismo ambiental e modelo geométrico de


sustentabilidade
Em dois estudos anteriores (STHEL; TOSTES, 2012; STHEL
et al., 2013), o sistema capitalista e seus limites foram localizados
preliminarmente dentro do nosso modelo geométrico sistêmico
de sustentabilidade.
124 Guilherme Vieira Dias, José Glauco Ribeiro Tostes e Elza Neffa (org.)

No primeiro artigo relativo ao atual estágio “escalenizado”


do capitalismo, os autores afirmavam que: “A sociedade atual é
multifacetada, com enorme desigualdade econômica que tende
a ser fortemente articulada com a matriz capitalista planetária.”
(STHEL; TOSTES, 2012) Poderia haver uma possível transição
dentro do capitalismo (aqui representado por indivíduos triangu-
lares interagindo) de um triângulo escaleno (setas apontando para
dentro) para o capitalismo representado por um triângulo equi-
látero (setas ainda apontando para dentro). Este último triângulo
representa o modelo econômico que as grandes nações capitalistas
estão tentando construir para uma suposta economia (capitalista)
aparentemente mais equilibrada, mas, rigorosamente falando, o
modelo proposto ainda é insustentável (em termos ambientais).
Desde o início da crise em 2008, uma fração dos economis-
tas americanos/franceses, em nome do capitalismo, se dividiu,
defendendo, de forma simplificada, dois posicionamentos profun-
damente opostos: de um lado, autores que apresentam análises
muito líricas sobre o capitalismo atual (PINKER, 2012); de outro,
autores profundamente críticos ao sistema capitalista. Estas úl-
timas vozes críticas soaram de forma catastrófica, explicitando,
portanto, de forma mais ou menos incisiva, sobre os limites gerais
do capitalismo. Selecionamos três dessas vozes.
Em primeiro lugar, o economista francês Piketty (2014), cujo
livro Capital no século XXI teve enorme repercussão nos Estados
Unidos da América em 2014. Ele afirma que há um crescente
desnível de desigualdade social durante as últimas três ou quatro
décadas, particularmente nos países de capitalismo avançado.
Tal desnível seria, em última instância, devido a uma “contradição
central do capitalismo”, já que a taxa de retorno do capital sempre
excederia a taxa de crescimento da renda (o lado mais semelhante
ao fator trabalho) e que poderia levar o sistema econômico a uma
“espiral infinita de desigualdade”. Piketty aponta para uma solução
fiscal racional: uma regulação capitalista internacional por meio
de um aumento de impostos mundiais para as “riquezas”, mas
deixou em aberto a questão crucial das condições políticas atuais
para alcançar tal solução econômica no futuro próximo.
Em segundo lugar, o matemático americano Casti (2012),
membro do Santa Fe Institute e da Rand Corporation, que aplica
Complexidade, capitalismo e ciências ambientais 125

a “ciência da complexidade” em sua ramificação cibernética aos


sistemas sociais dentro do novo pensamento científico sistêmico
(T2) em oposição à antiga alternativa newtoniana-cartesiana (T1)
(VASCONCELLOS, 2002). Para compreender os argumentos de
Casti sobre o capitalismo atual e suas contradições associadas,
precisamos, antes, dominar seu conceito central de complexidade.
Este autor trata das enormes e crescentes desníveis — “gaps” — de
desigualdade (lembrar de Piketty) nas últimas três décadas (aproxi-
madamente o enorme desnível mundial de renda entre os 1% de
capitalistas e 99% de trabalhadores), o que nos ajudará a entender
o conceito de “desnível de complexidade”:
Em um ataque contundente à crescente desi-
gualdade de renda na América, Stiglitz (2011)
afirmou que 1% da população mundial mais
rica tem as melhores casas, a melhor educação,
os melhores médicos e os melhores estilos de
vida. No entanto, segundo ele, há uma coisa
que o dinheiro parece não ter comprado: o
entendimento de que seu destino está ligado à
forma como os outros 99% vivem. A partir dessa
observação, pode-se inferir que o número de
escolhas de estilos de vida disponíveis, desde
casas, médicos, viagens e educação, serve como
uma medida razoável do nível de complexida-
de da vida de uma pessoa. Colocado de forma
compacta, quanto mais escolhas você tem, mais
complexa é a sua vida. Em outras palavras, os
ricos têm muitos graus de liberdade (ou seja, esco-
lhas de ação). O que eu realmente escolho fazer
não afeta em nada o nível de complexidade da
minha vida. Para torná-lo complexo, basta ter
opções disponíveis. E, para melhor ou para
pior, em grande parte é o dinheiro que compra
essas escolhas em nosso mundo (CASTI, 2012,
grifo nosso).

Seguindo esse pensamento, Casti afirma que se esse estado de


coisas, se mantiver sem uma intervenção racional humana, ele irá
— provavelmente — conduzir o capitalismo norte-americano a um
limite superior de ampliação desse desnível de desigualdade e a uma
consequente redução abrupta e espontânea desse mesmo desnível:
126 Guilherme Vieira Dias, José Glauco Ribeiro Tostes e Elza Neffa (org.)

Utilizando este conceito de complexidade, não


há sombra de dúvida de que os EUA estão
experimentando um desequilíbrio de comple-
xidade social que cresceu exponencialmente
nas últimas décadas, podendo levar a um even-
to [“evento extremo”] rápido e doloroso para
fechar esse desnível. Pintou-se, dessa forma,
um quadro extremo de como a complexidade
criada pelo homem se encaixaria perfeitamente na
primeira visão marxista da história. Isso é especial-
mente triste, pois, ao mesmo tempo, vivemos
na sociedade tecnologicamente mais avançada
já conhecida pela humanidade. No entanto, de
acordo com Casti, continuamos a semear as se-
mentes de nossa própria destruição, sementes
que pela primeira vez na história são capazes
de se desenvolver na destruição de toda a nossa
espécie (CASTI, 2012).

A recente e monumental crise de 2008-2009 foi também, segundo


Casti, um resultado espontâneo (“evento extremo”) emergindo de um
crescente desnível de complexidade entre o sistema supostamente
regulador (o Estado, principalmente) e o suposto sistema regulado
(o sistema financeiro). Foi o sistema financeiro, nas últimas três dé-
cadas, que se tornou cada vez mais complexo (graus de liberdade
cada vez mais interligados) em relação ao seu suposto “regulador”,
o Estado. Tornou-se cada vez mais complexo (até mesmo para seus
próprios criadores) extrair o maior lucro possível de transações cada
vez mais financeiras. No entanto, Casti questiona quão úteis seriam
esses lucros quando causam o colapso do próprio sistema?
Em terceiro lugar, o economista americano Roubini, que previu
ainda em 2006, em suas linhas gerais, o desastre econômico de 2008.
Após essa famosa previsão, Roubini, em entrevista ao Wall Street
Journal (ROUBINI, 2011a), emprestou a Marx, o que poderia ser
chamado de “contradição limitante do capitalismo”, para criticar (em
uma justa correspondência com Piketty) a crescente concentração
de renda nos EUA, mesmo durante a crise financeira, explodindo
nos EUA em 2008 e estendida à União Europeia a partir de 2010.
Karl Marx tinha razão. Em algum momento,
o capitalismo poderia se autodestruir. Não
seria possível continuar transferindo a renda
Complexidade, capitalismo e ciências ambientais 127

do trabalho para o capital sem ter excesso de


capacidade [produtiva] e falta de demanda
agregada [do lado do consumo] e isso foi o que,
de fato, aconteceu. Pensamos que mercados
funcionassem. Eles não estavam funcionando.
O indivíduo pode ser racional. [No entanto]
a empresa, para sobreviver e prosperar, ten-
de a buscar reduzir cada vez mais os custos
trabalhistas, desconsiderando que os custos
trabalhistas correspondem, ao mesmo tempo,
à renda e ao potencial consumo dessa pessoa.
Conclui, portanto, que o sistema se constrói
através de um [irracional] processo autodestru-
tivo (ROUBINI, 2011a).

Em um artigo do mesmo ano, Roubini (2011b) reitera essen-


cialmente o mesmo ponto de vista:
Assim, Marx, parece, estaria parcialmente
correto ao argumentar que a globalização, a
intermediação financeira descontrolada e a
redistribuição de renda e riqueza do trabalho
para o capital poderiam levar o capitalismo à
autodestruição [...]. As empresas estariam cor-
tando empregos porque não havia demanda
final suficiente. Mas cortar empregos reduz
a renda do trabalho, aumenta a desigualdade,
acabando por reduzir a demanda final.

Como possível solução para frear essa tensão limitante au-


todestrutiva do capitalismo, Roubini (2011b) aconselha a um
conjunto de ações centradas no seguinte eixo: “retornar ao justo
equilíbrio entre mercados e provisão de bens públicos”. Dentre as
diversas ações sugeridas por ele, destacamos no presente trabalho
a proposta de supervisão e regulação mais rígidas de um sistema
financeiro descontrolado, por meio do desmembramento de bancos
grandes demais para falir e de trusts oligopolistas. Reaparece, como
em Piketty, a proposta racional de “cura regulatória” e, novamente,
não são dadas as condições políticas para a implementação de tal
“cura”, que deve ser provida, em última instância, pelo Estado.
O atual estado da arte político/econômico dos países capita-
listas avançados, pelas lentes teóricas sistêmicas de Casti, torna
128 Guilherme Vieira Dias, José Glauco Ribeiro Tostes e Elza Neffa (org.)

altamente improvável qualquer proposta regulatória estatal


racional e eficiente. De fato, o desnível entre o nível de alta com-
plexidade do sistema financeiro e o nível de baixa complexidade
das agências reguladoras está crescendo novamente. Parece que
uma nova crise (evento extremo) está sendo “atraída” por esse
crescente desnível de complexidade.

Triângulo Escaleno EEE: processo acelerado de “escalenização”


do Sistema Capitalista nos últimos 80 Anos causando efeitos
ambientais e definindo um limite ambiental para tal sistema
Antes de 1800, a civilização viveu uma longa era geoambiental
de estabilidade, o Holoceno. A Terra foi capaz de absorver, mais
ou menos, suavemente as perturbações externas e internas. Um
novo período, o Antropoceno (CRUTZEN; STOERMER, 2000;
CRUTZEN, 2002; ZALASIEWICZ, 2010), surgiu a partir da Re-
volução Industrial e uma de suas principais características foi a
centralidade das ações humanas nas mudanças ambientais globais.
Mas uma dessas ações, em particular, acelerou espetacularmente
os problemas ambientais mundiais (FERNANDES, 2014).
Especificamente a resposta capitalista à crise de 1929 foi um
detonador antrópico decisivo para as mudanças climáticas e outros
impactos ambientais: a obsolescência planejada e o escoamento acele-
rado da produção (DIAS, 2009) vêm acelerando o consumo brutal
de recursos naturais, a poluição, o aquecimento global, dentre ou-
tros efeitos deletérios ao meio ambiente. Assim, começamos aqui
a primeira aplicação do nosso modelo geométrico CTCS. O lado
ambiental deletério do processo, estendido por cerca de oitenta
anos como consequência dessas respostas à crise de 1929, pode
ser modelado como uma “escalenização” acelerada ou processo
de distorção de cada lado do triângulo EEE (que representa cada
indivíduo). Esse forte e unilateral processo de ênfase no vértice E
(Economia) pode ser representado geometricamente como um forte
“puxão” desse vértice. Se a resposta acima mencionada à crise de
1929 ajudou o capitalismo a sair de uma enorme crise econômica
cíclica, essa mesma resposta, agora, tende a enviá-lo para um de
seus limites necessários ou intransponíveis. Uma delas se refere ao
limite ambiental provocado, em parte, pelo conjunto de nove grandes
problemas ambientais globais esboçados por Rockstrom (2009).
Complexidade, capitalismo e ciências ambientais 129

Se o sistema econômico capitalista tivesse decidido internali-


zar, até por volta de 2050, os custos dos danos ambientais (gerados
e/ou estendidos pelo próprio sistema) para todos os nove problemas
ambientais globais (que estão interligados) isso afetaria severamente
a taxa de lucro, um dos mais importantes pilares da estabilidade
econômica do sistema capitalista (ROCKSTROM, 2009).
Além disso, a inércia do sistema para enfrentar os problemas
ambientais pode ter efeitos econômicos muito mais desastrosos
sobre essa mesma estabilidade do sistema de produção capitalista,
ainda que apenas um dentre esses nove problemas, o aquecimento
global, esteja sendo considerado atualmente (STERN, 2006).

Triângulo Equilátero EEE (com setas para fora): processos locais


evanescentes de “equilateralização” cooperativa misturados com
elementos capitalistas competitivos nos últimos 40 Anos
Contra a “escalenização” universal capitalista, ocorreram,
durante os últimos 40 anos, alguns processos breves, instáveis e
evanescentes de “equilaterização” cooperativa (inversão das setas
para fora). Tal “equilateralização” apareceu misturada, em algum
grau ou extensão, com ingredientes capitalistas competitivos. Essas
contratendências cooperativas existiram encravadas brevemente e
de forma contraditória dentro da competitiva matriz global capi-
talista “escalenizada” durante os últimos 40 anos.
A instabilidade e evanescência de tais “ilhas” cooperativas
dentro do “oceano” capitalista sistêmico certamente as impediriam
de se tornarem hexágonos estáveis, o que sinalizaria com mais
eficácia sociedades pós-capitalistas e, portanto, sustentáveis em ter-
mos ambientais. Em termos de nosso modelo CTCS, os incipientes
triângulos equiláteros cooperativos não capitalistas (com setas para
fora) gerados nessas “ilhas” seriam, cedo ou tarde, distorcidos de
volta à sua configuração competitiva escalena usual e predominante.
Um primeiro exemplo dessas “ilhas” evanescentes está re-
lacionado ao surgimento do conceito de ecodesenvolvimento na
década de 1970, associado principalmente a Sachs (1991), ainda
dentro dos moldes da era do Estado de bem-estar social. Este autor
procura articular a diversidade ecológica e biológica e a diversi-
dade cultural, recusando-se a soluções de desenvolvimento que,
130 Guilherme Vieira Dias, José Glauco Ribeiro Tostes e Elza Neffa (org.)

supostamente respeitariam os ecossistemas, através de soluções


pretensamente universais e às correspondentes fórmulas gene-
ralizadas. O elemento “cooperação” estava justamente presente
naquele forte apelo cultural de Sachs, mas é rapidamente esquecido
com a prevalência dos novos tempos neoliberais e seu conceito
alternativo de desenvolvimento sustentável na década de 1980.
Além disso, de forma contraditória, Sachs (2009) recomenda que
os governos municipais, estaduais e nacionais adotem o modelo
competitivo de grande empresa, ainda que não seja pelo apelo à
simples dinâmica das forças de mercado, mas também envolven-
do planejamento, novamente em consonância com o modelo de
Estado de bem-estar social.
Dentro desse mesmo lado cooperativo da proposta de Sachs, que
busca unir ecologia e cultura por meio da cooperação, na atualidade
podemos citar também os modelos avançados de complexidade sis-
têmica de Ostrom (2009): os sistemas socioecológicos simples, mais
uma vez misturados a elementos da atual economia capitalista e,
então, muito provavelmente, condenados a vidas curtas.

Modelos Bioculturais/Culturais de Cooperação para Tempos de


Crises Civilizacionais/Ambientais
O biólogo Nowak (2006; 2010; 2011; 2012) relata que, na
história ambiental planetária em curso, nossas chances de salvar
a vida humana parecem ser pequenas, considerando a nossa difi-
culdade em conservar os recursos naturais, que estão diminuindo
rapidamente em um mundo com uma crescente população consu-
midora de produtos tecnologicamente avançados. Seu argumento
está correto, uma vez que o modelo econômico atual prioriza o
individualismo e a competição (ANDREWS, 2013; KLITGAARD,
2013; PELLIZZONI, 2011), em vez da cooperação postulada por
Nowak. Mais especificamente, Nowak apresenta um padrão bio-
cultural, baseado em modelos matemáticos, que atravessaria toda
a história humana (NOWAK, 2012).
Simulações evolutivas indicam que a coope-
ração é intrinsecamente instável; períodos de
prosperidade cooperativa inevitavelmente dão
lugar a uma fase competitiva com impactos
destrutivos. E, no entanto, o espírito altruísta
Complexidade, capitalismo e ciências ambientais 131

parece sempre se reconstruir e as nossas bús-


solas morais, de alguma forma, tendem a se
realinhar. Ciclos de cooperação e competição
são visíveis em diferentes fases da história
humana, nas oscilações dos sistemas políticos
e financeiros.

Assim, ciclos instáveis de prosperidade cooperativa tendem


a dar lugar a ciclos relativamente muito mais estáveis de deserção
destrutiva (competição, não cooperação, como no sistema capita-
lista). No entanto, no atual estágio avançado da crise ambiental,
as temidas mudanças climáticas não parecem mais passíveis de
serem enfrentadas por soluções político-econômicas tradicionais
e “seguras”, a menos que governos e grandes movimentos sociais
adotem estratégias como o “mecanismo cultural de amortecimen-
to”, que é esquema cooperativo já utilizado por nossos chamados
ancestrais “pré-históricos” (STHEL; TOSTES, 2012).
O biólogo Wilson (2012) apresenta um padrão biocultural,
que também atravessa toda a história humana. Seguindo Wilson
(2012), a evolução biológica das espécies, principalmente a partir
da árvore hominídea, teria como “força” impulsionada uma seleção
multinível, composta por uma seleção individual e, também, uma
seleção grupal, agindo conjuntamente sobre o mesmo indivíduo,
principalmente uma contra a outra. Segundo Wilson (2012):
a seleção individual é o resultado da compe-
tição pela sobrevivência e reprodução entre
os membros do mesmo grupo. Ela molda
instintos em cada membro que são fundamen-
talmente egoístas em relação a outros membros.
Em contraste, a seleção de grupo consiste na
competição entre as sociedades, por meio de
conflito direto e competência diferencial na ex-
ploração do meio ambiente. A seleção de grupo
molda os instintos que tendem a tornar os
indivíduos mais altruístas uns em relação aos
outros, mas não em relação aos membros de
outros grupos. Entretanto, existe uma regra de
ferro na evolução social genética. Indivíduos
egoístas vencem indivíduos altruístas, enquan-
to grupos de indivíduos altruístas vencem
grupos de indivíduos egoístas. A vitória nunca
132 Guilherme Vieira Dias, José Glauco Ribeiro Tostes e Elza Neffa (org.)

pode ser completa, o equilíbrio das pressões de


seleção não pode se mover para nenhum dos
extremos. Se a seleção individual dominasse,
as sociedades se dissolveriam. Se a seleção
de grupos dominasse, os grupos humanos se
assemelhariam a colônias de formigas.

Wilson (2012) conclui que, “além da origem da empatia


instintiva, a seleção de grupo pode, pelo menos em parte, ser in-
vocada para explicar a cooperação, uma característica ainda mais
importante da natureza humana”.
Nesse modelo biocultural qualitativo, apresenta-se uma
espécie de “janela de seleção” contingente (através do “equilíbrio
de pressões de seleção”), que continua, até agora, sustentando-se
e equilibrando-se para os hominídeos entre os dois processos de
seleção mencionados. Deve-se ressaltar que esse padrão biocultu-
ral qualitativo de Wilson modula o padrão biocultural matemático
de Nowak, ou seja, os dois tipos de ciclos alternativos do padrão
Nowak não devem ser conduzidos para seus respectivos extremos
de egoísmo “puro” ou de perfeita cooperação. Se este fosse o caso,
a evolução dos hominídeos estaria severamente ameaçada de
desvios em relação à trajetória multissecular real do homo sapiens.
O modelo de Wilson ainda apresenta outro lado: articula cada
indivíduo com uma rede de complexidade crescente (WILSON, 2012).
Cada indivíduo está vinculado a uma rede
de outros membros do grupo. Sua própria
sobrevivência e capacidade reprodutiva de-
pendem em parte de sua interação com outros
na rede. Ao longo da pré-história, à medida
que a humanidade desenvolveu suas proezas
cognitivas, a rede de cada indivíduo era quase
idêntica à do grupo ao qual pertencia. Com o
surgimento das aldeias e, em seguida, com o
surgimento dos chefes no período neolítico,
há cerca de 10.000 anos, a natureza das redes
mudou drasticamente. Sua existência social
tornou-se muito menos estável do que o mundo
dos caçadores e coletores. No mundo moder-
no, as redes cresceram a uma complexidade
que se mostrou desconcertante para a mente
Complexidade, capitalismo e ciências ambientais 133

paleolítica que herdamos. De acordo com Wil-


son, nossos instintos ainda desejam as pequenas
e unidas redes que prevaleceram durante as
centenas de milênios que antecederam o início
da história moderna. Nossos instintos perma-
necem despreparados para a civilização.

Nesse modelo de Wilson, surge um crescente distanciamento


entre a civilização urbana e complexa e nossa tendência evoluti-
va herdada, ao longo de milhares de anos, para pequenas redes
populacionais fortemente unidas. Então, o famoso rótulo ecológico
“pequeno é bonito” seria uma expressão dessa tendência evolutiva.
Selecionamos um último lado (uma conjectura) do modelo
de Wilson (2012):
Estudos adicionais sugerem [...] que o nivela-
mento [socioeconômico] seria benéfico mesmo
para as sociedades modernas mais avançadas.
Aqueles que fazem o melhor para seus cida-
dãos em qualidade de vida, desde educação
e assistência médica até controle do crime e
autoestima coletiva, também teriam o menor
diferencial de renda entre os cidadãos mais
ricos e os mais pobres.

Sinteticamente, o modelo biocultural de Wilson apresenta as


seguintes características que julgamos mais relevantes para nossa
análise a seguir:
W1) a seleção multinível constituída a partir de dois tipos de
seleção (individual e grupal), em que enfatizamos a importância
da cooperação em termos bioculturais a partir da seleção do grupo;
W2) uma “janela de seleção”, favorável à evolução dos hominídeos;
W3) a articulação de cada indivíduo a uma rede de complexidade
crescente (grupal), rumo à civilização industrial, na contramão de
nossos instintos que “desejam” redes de pequenos grupos;
W4) pode-se conjecturar que o caminho para o nivelamento
socioeconômico nacional é mais vantajoso, mesmo para as socie-
dades humanas já mais avançadas.
Lembremos que o conceito de “complexidade” (crescente)
134 Guilherme Vieira Dias, José Glauco Ribeiro Tostes e Elza Neffa (org.)

empregado por Wilson está associado a um sistema com muitos compo-


nentes e exibindo aumento no número e diversidade de conexões entre esses
componentes (WILSON, 2012). Os itens W3 e W4 se tornariam mais
sofisticados se lhes atribuíssemos limites superiores de complexidade.
Poderíamos fazê-lo por meio de duas teorias sistêmicas distintas
(ou seja, ambas atravessadas pelo mesmo pensamento científico
sistêmico T2, acima mencionado). Uma dessas teorias é a “ciência
da complexidade” de Prigogine (PRIGOGINE; STENGERS, 1984a;
PRIGOGINE, STENGERS, 1984b). Ele argumenta que o crescimento
da complexidade sistêmica apresenta limites superiores. Além des-
ses limites, o sistema (pré-biótico, biológico ou biocultural) tende a
uma alta instabilidade (PRIGOGINE, STENGERS, 1984a):
A questão dos limites da complexidade tem
sido frequentemente levantada. De fato,
quanto mais complexo é um sistema, mais
numerosos são os tipos de flutuações que
ameaçam sua estabilidade. Como então, po-
dem existir sistemas tão complexos quanto
organizações ecológicas ou humanas? Como
eles conseguem evitar o caos permanente? O
efeito estabilizador da comunicação, dos pro-
cessos de difusão, poderia ser uma resposta
parcial a essas questões. Em sistemas comple-
xos, onde espécies e indivíduos interagem de
muitas maneiras diferentes, é provável que a
difusão e a comunicação entre várias partes do
sistema sejam eficientes. Há competição entre
estabilização por comunicação e instabilidade
por flutuações. O resultado dessa competição
determina o limiar de estabilidade.

Este mecanismo apresentado por Prigogine pode ser anexa-


do ao item W3 de Wilson (2012) que apontamos acima. Por outro
lado, Casti (2012), empregando um modelo cibernético simples
(ver tópico 3 acima), afirma que, para um determinado padrão
de complexidade sistêmica crescente, há também uma tendên-
cia crescente de que tal sistema se torne cada vez mais instável
e, possivelmente, atinja um ponto crítico, que seria um evento
extremo. Tal evento diminuiria de forma drástica e espontânea a
complexidade do sistema. Mais uma vez, temos um mecanismo
que poderia ser empregado no item W3, apontado por Wilson.
Complexidade, capitalismo e ciências ambientais 135

Agora, em relação ao item W4, pode-se empregar uma variante


da mesma teoria cibernética utilizada por Casti (ver tópico 3). Ele
afirma que “o aumento dos desníveis de complexidade” (no pre-
sente caso do item W4 há um desnível entre as rendas nacionais
máxima e mínima) também pode levar a um aumento perigoso da
instabilidade sistêmica, o que pode levar a uma redução drástica
e espontânea desses desníveis.
Para certos propósitos do presente trabalho, podemos unificar
os modelos de Nowak e Wilson em um mesmo modelo.
Os modelos bioculturais da história humana de Nowak e
Wilson possuem intersecções com modelos de grandes inflexões
na história ocidental que, supostamente, são considerados apenas
como modelos “culturais” das ciências humanas; particularmente,
no que diz respeito aos elementos humanos da cooperação.
Em primeiro lugar, voltamos ao início do século XX: Max
Weber (apud ALBERONI, 1989), em 1918, em seu texto Economia e
sociedade, detectou experiências religiosas locais em certos países
ocidentais fortemente e puramente cooperativas. Ele rotulou tais
experiências como “estados nascentes”. Em algumas raras oca-
siões, sob condições históricas específicas (pelo menos no mundo
ocidental), tais experiências levaram a profundas inflexões sociais
ou até mesmo a um salto civilizatório (ALBERONI, 1989), a partir
de uma pequena “comunidade insular” (ou de um “arquipélago”
de pequenas “ilhas”), dentro de um “sistema social oceânico”
muito maior. Uma dessas experiências notáveis ​​foi a expansão,
pós-estado nascente, relativamente rápida (poucos séculos) da
cristandade através do império romano. Tal tipo de experiência de
longo curso caracteriza-se por ser forte e internamente iniciável por
um processo transitório e não institucional. Tal processo tipo “bi-
g-bang” possui, portanto, uma instabilidade intrínseca. No entanto,
pode ser suficientemente estável para provocar o mencionado salto
civilizacional em direção a novas instituições estáveis.
Em segundo lugar, o sociólogo italiano Alberoni (1989) esten-
deu, de modo sociologicamente heterodoxo, esse mesmo padrão de
“estado nascente” de Weber às grandes revoluções políticas seculares
contemporâneas (com destaque para a Revolução Russa de 1917 e
a sua notável expansão, pós-estado nascente, do que se poderia
denominar um “socialismo possível”), que são muito mais bem
136 Guilherme Vieira Dias, José Glauco Ribeiro Tostes e Elza Neffa (org.)

documentadas hoje face a experiências análogas do século I da


era cristã. Certas interseções com o modelo biocultural de Wilson
são evidentes no espaço: a cooperação extrema dos “estados nas-
centes” de Weber e Alberoni só foi possível para pequenos grupos.
Os ambientalistas, mais uma vez, “redescobriram a roda”, uma
“roda” que vem, seguindo a trilha acima de Wilson, de tempos
distantes, anteriores à civilização agrícola, através da afirmação:
“o pequeno é belo” (“small is beautiful”). Tal extrema cooperação
de “estados nascentes”, até onde a alcançamos hoje, é somente
realizável através de pequenos intervalos de tempo. Repetindo: tais
processos são intrinsecamente instáveis.
Alberoni (1989) associa o surgimento de experiências de
“estados nascentes” a um processo gerador de desordem. Ultrapas-
sado um certo limite ou limiar de desordem, não é mais possível
a reversão à ordem institucional anterior, ou seja, o sistema se
torna “dissipativo”, tal qual descreve Prigogine. Toda a estrutura
institucional precedente entra em crise e pode sofrer uma profunda
reformulação rumo a uma nova ordem, nova estrutura institu-
cional (ALBERONI, 1989). Essa seria uma (nova) “ordem a partir
do caos”, como descrita na “ciência da complexidade” de Prigogine
(PRIGOGINE, 1984a, PRIGOGINE, 1984b). Alberoni conclui que
uma condição mais geral para o surgimento de tais comunidades
transitórias “supercooperadoras” de “estado nascente” são aquelas
fortes crises institucionais que não permitem mais soluções (mesmo
que parcialmente) baseadas na competição, normalmente aceitá-
veis ​no interior de estruturas institucionais estáveis.
O claro caráter não capitalista dessas experiências extrema-
mente cooperativas de “estados nascentes” pode ser ainda mais
esclarecido do ponto de vista de Weber-Alberoni. Alberoni (1989)
lista um conjunto de características comuns a esses “estados”,
parcialmente extraídas de Weber: i) ausência total de qualquer
contabilidade econômica, ou seja, ausência de qualquer coerção
estatal; ii) partilha total de todos os bens comunitários, ou seja, a
prática distributiva: “cada um segundo as suas necessidades”; iii)
democracia plenamente participativa. Tal como Weber, Alberoni
sintetiza num só conceito essas três características: comunismo.
Como essas experiências supercooperativas são dinâmicas, hoje, em
tempos de crise ambiental, elas devem incorporar, por exemplo: iv)
Complexidade, capitalismo e ciências ambientais 137

a necessidade de uma nova e profundamente pós-cartesiana relação


homem-natureza ou, talvez, mais precisamente, homem-ambiente.
Em tempos de crise civilizatória e ambiental viemos nesse
tópico 4 objetivando encontrar interconexões, ressaltando aí o
papel da cooperação não capitalista, entre: (1) modelos geométricos,
bioculturais e culturais de sustentabilidade; (2) e, quando possí-
vel, interconexões entre tais modelos sustentáveis de sociedade e
o novo pensamento científico sistêmico ou da complexidade, T2.
Em primeiro lugar, articulamos no presente tópico 4, ainda
de forma muito preliminar, o modelo “fundido” de Nowak-Wil-
son, compondo cooperação/competição, com o novo pensamento
(científico) sistêmico, T2, por meio do emprego qualitativo de duas
teorias sistêmicas, atravessadas de forma transdisciplinar por T2: a
“ciência da complexidade” de Prigogine e uma teoria cibernética,
empregada por Casti.
Em segundo lugar, sinteticamente, articulamos no presente
tópico 4, ainda de forma muito preliminar, os modelos bioculturais
cooperativos/competitivos da história humana de Nowak e Wilson
com o modelo (que se supõe apenas puramente) cultural coopera-
tivo da história ocidental de Weber-Alberoni, por meio do emprego
qualitativo de uma mesma teoria sistêmica atravessada de forma
transdisciplinar por T2: a “ciência da complexidade” de Prigogine
Em terceiro lugar, vamos relacionar agora, de modo muito
preliminar, o modelo de Weber-Alberoni (tópico 4) ao nosso mo-
delo geométrico CTCS (sintetizado no tópico 2 e aplicado no tópico
3). Eis uma justificativa esquemática. No caso muito particular do
triângulo equilátero (setas para fora) do modelo de CTCS, bem como
no caso do “estado nascente” do modelo de Weber-Alberoni, pode-
mos observar a prevalência total da cooperação sobre a competição.

Considerações finais
Empregamos, no presente trabalho, diferentes modelos de
história humana e sociedade humana, todos eles qualitativos e de
simples compreensão. Alguns desses modelos são extremamente
abstratos (como o modelo geométrico CTCS, aqui usado, em que
o indivíduo é representado por um triângulo); outros modelos
são mais concretos, como o modelo de Weber-Alberoni. Todos
138 Guilherme Vieira Dias, José Glauco Ribeiro Tostes e Elza Neffa (org.)

eles devem ser considerados sistêmicos e, mais precisamente,


atravessados ​​pelo novo pensamento científico (T2). Tais modelos
também incluem o conceito central de “cooperação não capitalista,
em tempos de crise civilizatória e ambiental”. Particularmente, pelo
menos dois dos modelos aqui analisados ​​tratam de cooperação
sem qualquer traço de competição, tal como apontado no último
parágrafo do item (4) mencionado anteriormente.
Muitas pessoas, ainda dispersas ou organizadas em agrupa-
mentos muito pequenos, estão agora à procura de um novo padrão
de civilização, alternativo ao capitalismo e além da hegemonia
político-econômica ocidental. Busca-se um novo projeto susten-
tável e cooperativo a nível global, mas também multicivilizador
e consonante com um novo pensamento científico sistêmico (T2)
“imaterial”, ajustado a esse projeto, em substituição ao velho
pensamento científico newton-cartesiano (T1), ajustado ao projeto
iluminista, na sua versão clássica, pré-ambiental e pré-sistêmica,
do século XVIII.
Complexidade, capitalismo e ciências ambientais 139

Referências

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8.

Conhecimento e sustentabilidade
socioambiental: um estudo sobre a
formação de doutores em Ciências
Ambientais no Brasil

Guilherme Vieira Dias


Elza Neffa
Rachel Alice Mendes da Silva Dias

Introdução
Em 2011, a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Nível Superior (CAPES) criou a área de Ciências Ambientais, com
o objetivo de reconhecer e estimular Programas de Pós-Graduação
que trabalhem na perspectiva da indissociabilidade entre sistemas
antrópicos e sistemas naturais, dada a complexidade das associa-
ções entre humanos e ambientes.
Ocorre que a relação entre sociedade e meio ambiente tende
a ser vista, em muitos casos, sob o enfoque das relações técnicas
entre humanos e ambiente, sem que haja de forma complementar
uma discussão sobre as relações sociais, isto é, entre humanos.
Todavia, diante da crise socioambiental em curso no âmbito do
sistema capitalista, o estudo das relações sociais é imprescindível
para entendermos as relações técnicas.
Assim sendo, algumas questões são postas às Ciências Am-
bientais: a forma hegemônica de geração do conhecimento, por
meio de um paradigma científico analítico-reducionista, consegue
cumprir o objetivo da área? A formação acadêmica e a produção
de conhecimento em Ciências Ambientais sinalizam para novas
formas de geração do conhecimento que incorporem contradições,
emergências e incertezas? As Ciências Ambientais produzem
conhecimento crítico sobre as relações sociais no capitalismo e
apresentam alternativas para além do capital?
144 Guilherme Vieira Dias, José Glauco Ribeiro Tostes e Elza Neffa (org.)

Diante disso, elaborou-se um estudo sobre a formação acadê-


mica em Ciências Ambientais no Brasil, mais especificamente sobre
como essa área tem contribuído para a geração de conhecimento
complexo, crítico e propositivo nos Cursos de Doutorado. A pes-
quisa verificou como os Programas de Pós-Graduação na área de
Ciências Ambientais no Brasil, em seus Cursos de Doutorado, têm
discutido as relações entre capitalismo e ambiente(41).

Procedimentos metodológicos
A pesquisa foi elaborada por meio de análises de conteúdo
temáticas, realizadas a partir de fonte documental, com textos
extraídos da Plataforma Sucupira – Coleta CAPES (2018) e dos
sites oficiais de cada um dos 36 Programas de Pós-Graduação com
Cursos de Doutorado em Ciências Ambientais avaliados e reco-
nhecidos pela CAPES no Brasil até 2018.(42) Os textos descritivos
dos objetivos, das linhas de pesquisa e das disciplinas obrigatórias
foram organizados numa Ficha de Análise de Conteúdo. Os Cur-
sos de Doutorado foram identificados pela letra D (Doutorado)
seguida de um número de 1 a 36 (número de Cursos).
Após a coleta das descrições dos objetivos, das linhas de
pesquisa e das disciplinas obrigatórias dos Cursos, procedeu-se
às análises de conteúdo temáticas, a fim de compreender como os
PPG’s/Cursos de Doutorado abordam a questão do conhecimento
científico nas Ciências Ambientais e a questão da sustentabilidade
no âmbito do capitalismo. Nesse sentido, elaborou-se a seguinte
classificação para o recorte dos trechos das descrições: a) conheci-
mento socioambiental: utilizado para organizar os trechos relativos
ao conhecimento científico, isto é, à forma como os PPG’s/ Cursos
de Doutorado objetivam abordar as questões socioambientais e
produzir conhecimento científico para compreender os problemas
e buscar soluções; b) sustentabilidade socioambiental: utilizado para
organizar os trechos relativos às discussões sobre relações técnicas

(41)
Disponibilidade de dados: todo o conjunto de dados que dá suporte aos
resultados deste estudo pode ser encontrado em Dias (2019). No presente texto
foram selecionados apenas alguns dados exemplificativos.
(42)
Os sites foram necessários para obter as descrições das linhas de pesquisa,
uma vez que na Plataforma Sucupira – Coleta CAPES constam apenas os nomes
das linhas de pesquisa, sem as descrições.
Complexidade, capitalismo e ciências ambientais 145

e relações sociais, isto é, buscam-se apenas soluções técnicas ou as


relações sociais são problematizadas?
Essa classificação remete à categorização definida a priori
como relações Complexidade-Ambiente (C-A), Capitalismo-Am-
biente (K-A) e Complexidade-Capitalismo-Ambiente (C-K-A),
com a ideia de “níveis de complexidade” em dois níveis desempe-
nhando uma importante função de articulação, conforme descrito
a seguir: a) nível 1 de complexidade: o conhecimento socioambiental
ou relação C-A se dá de modo precário no nível 1 de complexi-
dade, pois a noção de “complexidade” basicamente se limita à
articulação de várias disciplinas e saberes “ambientais”, isto é,
ciências da natureza/tecnociências; por sua vez, no que tange à
sustentabilidade socioambiental ou relação K-A, no nível 1 de
complexidade tende a prevalecer perspectivas de sustentabilida-
de que buscam adequar o capitalismo, via soluções técnicas, às
demandas ambientais; ou, diante de um capitalismo visto como
inexorável, busca-se conservar parte da natureza (“natureza a
preservar”) ou certos recursos naturais, sem que se discuta a “na-
tureza ordinária” (ACSELRAD, 2002) e a complexidade “social”;
b) nível 2 de complexidade: no que tange ao conhecimento socioam-
biental ou relação C-A, o nível 2 de complexidade refere-se à
inclusão do “social” nas discussões ambientais, com a articulação
entre as ciências naturais/tecnociências e as ciências sociais no
esforço coletivo de compreensão dos problemas socioambientais
e na busca por soluções; já no que diz respeito à sustentabilidade
socioambiental, no nível 2 de complexidade, há discussões sobre
questões socioambientais que entendem o “social” de modo mais
abrangente, como algo complexo, que inclui economia, cultura,
política, enfim, não se limitando às relações técnicas, permitindo
assim o questionamento da possibilidade de conciliação entre
capitalismo e sustentabilidade socioambiental.
É a partir do nível 2 de complexidade (C-A2 associado a K-A2),
a rigor, que uma relação C-K-A torna-se possível, por meio da qual
os estudos sobre questões socioambientais vislumbram o “social”
como algo complexo, incluindo as relações sociais, as contradi-
ções, os conflitos, enfim, formando junto com as relações técnicas
entre sociedade e ambiente e junto com toda complexidade na-
tural, uma rica totalidade.
146 Guilherme Vieira Dias, José Glauco Ribeiro Tostes e Elza Neffa (org.)

O conhecimento socioambiental e seus níveis de complexidade

O objetivo geral da interdisciplinaridade


No que diz respeito aos objetivos dos PPG’s/Cursos de
Doutorado (MEC/CAPES/PLATAFORMA SUCUPIRA, 2018),
o termo que se destacou em conhecimento socioambiental foi
“interdisciplinar”. É o mesmo termo usado para definir a área In-
terdisciplinar na qual se vinculam os PPG’s/Cursos de Doutorado
em Ciências Ambientais. A análise de conteúdo enfatizou, a partir
daí, os sentidos/significados de “interdisciplinar” presentes em
cada um dos objetivos dos PPG’s/Cursos de Doutorado, isto é, se
esse termo significava “interdisciplinaridade em ciências naturais/
tecnociências” (nível 1 de complexidade) ou se admitia as Ciências
Sociais como parte do conhecimento necessário para o estudo de
questões socioambientais (nível 2 de complexidade). Sobre o co-
nhecimento socioambiental, a questão norteadora foi a seguinte:
os Programas de Pós-Graduação/Cursos de Doutorado pretendem
formar doutores a partir de qual noção de complexidade (ou de
interdisciplinaridade, termo mais utilizado pelos PPG’s)? Após a
análise dos objetivos/perfis dos egressos, constatou-se que todos
os PPG’s/Cursos de Doutorado manifestam a intenção de formar
doutores aptos a desempenhar reflexões e ações interdisciplinares
que perpassam por ciências naturais/tecnociências e ciências so-
ciais, geralmente usando os termos “interdisciplinar” e a variante
“interdisciplinaridade”. Sendo assim, conforme a classificação
do conhecimento socioambiental em C-A1 e C-A2, no que diz
respeito aos objetivos/perfis dos egressos, todos os PPG’s/Cursos
de Doutorado foram classificados como C-A2, isto é, a noção de
complexidade não se limita às ciências naturais/tecnociências,
englobando também as ciências sociais.
Diante disso, como os PPG’s/Cursos de Doutorado preten-
dem alcançar seus objetivos relativos à formação acadêmica e à
produção de conhecimento interdisciplinar? Para responder a
essa questão, as descrições das linhas de pesquisa e as ementas
das disciplinas obrigatórias foram analisadas, a fim de verificar de
que modo os PPG’s/Cursos estão incentivando as discussões sobre
a formação acadêmica e a produção do conhecimento científico
multi/inter/transdisciplinar, sobre os paradigmas científicos, sobre
Complexidade, capitalismo e ciências ambientais 147

a complexidade, enfim, sobre a necessidade de uma formação


acadêmica e uma produção de conhecimento científico que arti-
cule sociedade e ambiente no desafio de compreender e propor
soluções aos problemas socioambientais, tarefa fundamental das
Ciências Ambientais.

As linhas de pesquisa e as disciplinas obrigatórias socioam-


bientais: propostas de reflexão sobre a formação acadêmica e a
produção de conhecimento científico em Ciências Ambientais
As análises das linhas de pesquisa e das disciplinas obriga-
tórias deram-se a partir das seguintes questões: como os PPG’s/
Cursos estimulam as reflexões sobre a formação acadêmica e a
produção do conhecimento científico socioambiental?
Há 105 linhas de pesquisa nos 36 PPG’s/Cursos de Doutora-
do (média de aproximadamente três linhas/PPG). Destas, não foi
possível analisar 14 linhas de pesquisa por ausência de descrições,
envolvendo quatro PPG’s/Cursos de Doutorado(43). Das 91 linhas
de pesquisa, cujas descrições foram obtidas por meio dos sites
oficiais dos PPG’s, duas linhas de pesquisa não fazem qualquer
menção à relação sociedade-ambiente, ambas no mesmo PPG/
Curso de Doutorado (D5). Ou seja: apenas duas linhas de pesquisa
foram classificadas como C-A1.
Das 89 linhas de pesquisa socioambientais (C-A2), isto é, que
mencionam, ainda que de modo superficial, algum termo relativo a
“humano”, “social”, “antrópico”, entre outros, apenas nove linhas
de pesquisa (em nove PPG’s/Cursos) sugerem discussões sobre a
formação acadêmica e/ou a produção do conhecimento científico
socioambiental, o que representa aproximadamente 9% do total de
linhas de pesquisa ou 10% se consideradas somente aquelas com
descrições disponíveis para a análise. A seguir, trechos extraídos
dentre as nove linhas de pesquisa que exemplificam como elas
apresentam em suas descrições a questão da formação acadêmica
e/ou da produção de conhecimento.(44)

(43)
Alguns sites estavam desatualizados ou não continham as descrições das
linhas de pesquisa. Nesses casos, contatou-se por e-mail os coordenadores(as)
dos PPG’s ou secretaria. Ainda assim, houve algumas ausências de descrições,
porém não o suficiente para inviabilizar as análises.
(44) Serão apresentados apenas dois (2) exemplos de cada análise, uma vez que
148 Guilherme Vieira Dias, José Glauco Ribeiro Tostes e Elza Neffa (org.)

Quadro 1 – Linhas de Pesquisa e o conhecimento


socioambiental (C-A2)
Linha de
D Trechos selecionados das descrições
pesquisa

A partir das novas epistemologias (híbridas, do sul,


culturais, políticas) e das teorias da descolonização
busca-se pensar os problemas socioambientais, os
Episte- conflitos territoriais e identitários e as alternativas
15 mologia elaboradas pelas práticas dos atores subalternos e suas
Ambiental estratégias discursivas e políticas em direção a novas
racionalidades ambientais. Implícito a essa abordagem
emergem os debates sobre o conhecimento científico, o
papel das ciências e dos saberes culturais (...).

Desenvolver estudos empíricos e reflexões teóricas, com


base em metodologias qualitativas e perspectivas teóri-
Constru- cas da área das ciências sociais e humanas, objetivando
17
ção Social o entendimento dos processos de construção social do
do Meio meio ambiente, geograficamente situados, que se rela-
Ambiente cionam (...) [com a] produção de conhecimentos científicos
e de tecnologias em laboratórios e instituições públicas
e privadas de pesquisas.

Fonte: Dias, 2019.

Fica evidenciado que, apesar de todos os PPG’s/Cursos de


Doutorado afirmarem que objetivam uma formação acadêmica e,
consequentemente, uma produção de conhecimento científico so-
cioambiental, no sentido da interdisciplinaridade, apenas nove linhas
de pesquisa mencionam em suas descrições algo relativo à reflexão
sobre o conhecimento, usando termos como “epistemologias”, “ra-
cionalidades ambientais”, “conhecimentos científicos”, “princípios
éticos e filosóficos da relação sociedade-natureza”, “paradigmas”,
“sistemas complexos e adaptativos”, “totalidade”, entre outros.
Já no que diz respeito às disciplinas obrigatórias, há um to-
tal de 142.(45) Desse total, não foram obtidas descrições de cinco

os quadros com todos os trechos não ficariam adequados no formato de livro,


além de ser exaustivo ao leitor. Todos os quadros podem ser vistos na íntegra
em Dias (2019).
(45)
Os Cursos D2, D32 e D33 não têm disciplina obrigatória. Além disso, não foram
contabilizadas as disciplinas do tipo “estágio docente” e “elaboração de tese”.
Complexidade, capitalismo e ciências ambientais 149

disciplinas obrigatórias envolvendo quatro PPG’s/Cursos de


Doutorado(46). Das 137 disciplinas obrigatórias com descrições
disponíveis para análise, 24 não fazem qualquer menção a rela-
ções entre sociedade e ambiente, não configurando minimamente
como uma disciplina socioambiental, sendo 15 disciplinas (em
nove PPG’s) exclusivamente sobre ciências naturais(47) e nove
disciplinas (em oito PPG’s)(48) sobre técnicas de estatística. Essas
24 disciplinas foram classificadas como C-A1.
Das 113 disciplinas obrigatórias socioambientais (C-A2), 74
disciplinas tratam sobre a formação acadêmica e/ou a produção
de conhecimento científico socioambiental, sendo 14 disciplinas
sobre “Metodologia Científica” envolvendo técnicas de pesqui-
sa, procedimentos metodológicos, elaboração de artigos, entre
outros; 27 disciplinas do tipo “Seminário”, com discussões
interdisciplinares que incluem a participação de docentes do
Programa, docentes/pesquisadores externos e estudantes de
mestrado e doutorado; 29 disciplinas que sugerem discussões
mais aprofundadas sobre a formação acadêmica e a produção
científica socioambiental, envolvendo epistemologias, história
e filosofia da ciência, interdisciplinaridade, entre outros; e ape-
nas quatro disciplinas envolvendo trabalhos de campo/projetos
multi/inter/transdisciplinares.
Os trechos a seguir, extraídos das ementas das disciplinas obri-
gatórias, disponibilizadas na Plataforma Sucupira – Coleta CAPES

(46)
Uma disciplina obrigatória sem descrição em D4; uma não especificada em
D5, uma sem descrição em D16; e duas sem descrição em D20. Além dessas cinco,
não foram obtidas as ementas de outras duas disciplinas em D19, porém estas
foram contabilizadas, sendo utilizadas nas análises do Quadro 3 por ser do tipo
“seminários” e, assim, oferecerem indícios de seu conteúdo (ver o Quadro 3 na
sequência do texto).
(47)
O Curso D12 apresenta discussões sobre teoria da complexidade, mas com
ênfase em física e matemática, não sugerindo explicitamente relações com
temáticas socioambientais, de tal forma que não foi mencionado como um dos
exemplos socioambientais.
(48)
O Curso D26 tem duas disciplinas obrigatórias sobre “Estatística”. Portanto,
tem-se nove disciplinas obrigatórias em “Estatística”, em oito Cursos. Apesar
da “Estatística” ser uma ferramenta da produção de conhecimento, nenhuma
dessas disciplinas sugere uma discussão sobre a natureza do conhecimento ou
sobre as dificuldades estatísticas em estudos socioambientais. As descrições
sugerem que se trata de disciplinas instrumentais, cujo foco é o aprendizado de
técnicas estatísticas.
150 Guilherme Vieira Dias, José Glauco Ribeiro Tostes e Elza Neffa (org.)

(2018), exemplificam o que foi encontrado em 14 disciplinas sobre


metodologia científica que tratam de procedimentos metodológicos
e/ou produção textual.

Quadro 2 – Disciplinas obrigatórias e o conhecimento


socioambiental (C-A2), com procedimentos metodológicos
e/ou produção textual
D Disciplina Trechos selecionados das descrições
Os alunos inscritos deverão desenvolver atividades
de pesquisa e produção textual científica em uma área
do conhecimento distinta da área de sua formação
Práticas inter- profissional principal ou especialidade científica.
18
disciplinares As atividades dos alunos neste estágio serão su-
pervisionadas e orientadas por um docente do
programa que não seja o orientador principal de
Mestrado ou Doutorado.
Apresentar métodos da pesquisa em sustentabilidade,
explorar as diversas visões e facetas necessárias à
pesquisa multi e interdisciplinar. Capacitar o aluno
de mestrado e de doutorado por meio da apre-
sentação e discussão de algumas das principais
metodologias a respeito da ciência e da pesquisa científica
Metodologias
em sustentabilidade, com a leitura de textos e apre-
30 de Pesquisa em
sentação de palestras que abordem as dimensões
Sustentabilidade
metodológicas de caráter interdisciplinar. (...) Conteú-
do: Introdução à natureza da investigação científica;
Epistemologia e a História da Ciência; Interdisciplina-
ridade: questões de pesquisa; Métodos e técnicas de
pesquisa; Delineamento da pesquisa interdisciplinar;
(...) Pesquisa interdisciplinar em sustentabilidade.

Fonte: Dias, 2019.

Cabe destacar que as disciplinas sobre “Metodologia


Científica” flutuam entre discussões de cunho teórico-metodo-
lógico e o aprendizado de procedimentos metodológicos para
a elaboração de artigos e da tese, por exemplo. Ou seja, tais
disciplinas têm um aspecto “prático” cujo objetivo é oferecer
instrumentos técnicos de elaboração de trabalhos científicos. Esse
aspecto apresenta-se de forma mais evidente em seis disciplinas
(envolvendo seis PPG’s/Cursos), havendo poucos indícios de
Complexidade, capitalismo e ciências ambientais 151

discussão teórico-metodológica nas disciplinas sobre “Metodolo-


gia Científica” desses Cursos. Por outro lado, em oito disciplinas
(envolvendo oito PPG’s/Cursos) há evidências de discussões de
cunho teórico-metodológico aliadas ao aprendizado de técnicas
de pesquisa e produção científica.
Os trechos a seguir, extraídos das ementas das disciplinas
obrigatórias, demonstram as disciplinas do tipo “Seminário”,
com apresentação de projetos de pesquisa dos doutorandos e/ou
dos docentes e/ou com a participação de palestrantes externos
ao Programa, visando ao debate de temas variados:

Quadro 3 – Disciplinas obrigatórias e o conhecimento


socioambiental (C-A2), com seminários
D Disciplina Trechos selecionados das descrições
Proporcionar troca de experiências entre as diferen-
tes áreas de pesquisa. Incentivar o desenvolvimento
8 Seminários
de espírito crítico e capacidade de julgamento de
apresentações (...).

Seminário O objetivo desta disciplina é discutir referenciais


de Tese teórico-metodológicos que tratam da interação
34
entre ação humana e recursos naturais, fortale-
cendo o diálogo interdisciplinar (...).

Fonte: Dias, 2019.

No que diz respeito à disciplina “Seminário”, duas dentre


as 27 disciplinas não puderam ser analisadas por ausência de
descrição (ambas no mesmo PPG/Curso). Das 25 disciplinas
com descrições disponíveis, oito disciplinas (seis PPG’s/Cursos)
sugerem práticas limitadas à apresentação de seminários pelos
discentes e/ou sobre temas mais específicos, enquanto 17 disci-
plinas sugerem maior abertura a discussões sobre a formação
acadêmica e a produção de conhecimento socioambiental, cujo
termo “interdisciplinar” novamente se destaca.
Os trechos a seguir, extraídos das ementas das disciplinas
obrigatórias, exemplificam as 29 disciplinas que sugerem, sob
diversas denominações, discussões mais aprofundadas sobre o
saber socioambiental:
152 Guilherme Vieira Dias, José Glauco Ribeiro Tostes e Elza Neffa (org.)

Quadro 4 – Disciplinas obrigatórias e o conhecimento


socioambiental (C-A2), com discussões sobre os fundamentos
filosóficos e científicos

D Disciplina Trechos selecionados das descrições

Epistemologia no pensamento científico. Abordagens


metodológicas das ciências da natureza e da socie-
dade. A questão ambiental e as novas epistemes.
Perspectivas científicas da questão ambiental. Os
limites das abordagens ambientais. O pensamento
Epistemologia
1 complexo e a multidisciplinaridade. A Complexidade da
Ambiental
Questão Ambiental. Interdisciplinaridade - articula-
ção das ciências e o diálogo de saberes. O paradigma
científico-tecnológico como alicerce do padrão de
desenvolvimento do mundo moderno: contradições
e limites e novos modelos explicativos.

Introdução dos principais fundamentos e evidências


científicas relacionados à emergência do paradigma
da sustentabilidade, envolvendo limites ambientais
(fronteiras planetárias) e suas interações com os
Ciência e aspectos sociais e econômicos do desenvolvimen-
3 Gestão da Sus- to. Serão abordados conceitos e tipologias de sistemas
tentabilidade socioecológicos, e os conflitos relacionados à gestão
socioambiental e ao uso dos recursos naturais.
(...) Sistemas agroambientais, teorias envolvendo a
relação entre sistemas humanos e naturais, mudanças
de uso da terra;

Fonte: Dias, 2019.

Sob diversas denominações, as disciplinas supracitadas des-


tacam-se por indicarem discussões aprofundadas sobre a formação
acadêmica e/ou a produção de conhecimento científico em Ciências
Ambientais. Nesse quesito, sete Cursos de Doutorado destaca-
ram-se com duas disciplinas cada. Além disso, a divisão dessas
disciplinas por eixos temáticos resulta em 14 disciplinas sobre
“Filosofia/História das Ciências/Epistemologia”, oito disciplinas
sobre “Teoria Social/ Desenvolvimento”, cinco disciplinas sobre
“Ecologia/ Recursos Naturais”, e ainda “Gestão” e “Modelagem”
com uma disciplina cada.
Complexidade, capitalismo e ciências ambientais 153

Os trechos a seguir, extraídos das ementas das disciplinas


obrigatórias, exemplificam as quatro disciplinas que sugerem
a realização de trabalhos de campo e/ou estudos de caso como
estratégia de formação multi/inter/transdisciplinar:

Quadro 5 – Disciplinas obrigatórias e o conhecimento


socioambiental (C-A2), com trabalho de campo/estudo de caso

D Disciplina Trechos selecionados das descrições


Proporcionar aos alunos uma visão holística das
ciências ambientais e sua relação com as diversas
áreas de conhecimento do corpo docente do
programa ora proposto. Realização de ativi-
Oficinas em Aná-
7 dades práticas (estudo de casos), com docente
lise Ambiental
que não seja o próprio orientador, nem de
linha de pesquisa próxima, a fim de estimular
a experiência no desenvolvimento de pesquisa
em outras áreas.
Política ambiental e desenvolvimento susten-
Vulnerabilida- tável; Ecologia Política; Relações entre ecologia
de e Conflitos política e economia política; Conflitos ecoló-
17
Socioambientais: gicos distributivos; Vulnerabilidade social e
Estudos de Caso vulnerabilidade ambiental; Gestão de riscos
naturais; Estudos de casos.

Fonte: Dias, 2019.

Das quatro disciplinas com trabalhos de campo e/ou estudos


de caso, apenas uma dá indícios de discussão mais restrita, enquan-
to as demais indicam discussões multi/inter/transdisciplinares.
Considerando-se todas as disciplinas obrigatórias sobre o
conhecimento socioambiental, no que tange às reflexões sobre
a formação acadêmica e/ou a produção do conhecimento cien-
tífico, oferecidas pelos PPG’s/Cursos de Doutorado em Ciências
Ambientais no Brasil, constata-se que sete PPG’s/Cursos de
Doutorado oferecem quatro disciplinas cada, outros seis PPG’s/
Cursos oferecem três disciplinas cada, 11 PPG’s/Cursos oferecem
duas disciplinas cada, seis PPG’s/Cursos oferecem uma disciplina
cada, enquanto seis PPG’s/Cursos não oferecem disciplina ou não
foi possível analisar pela ausência de descrição.
154 Guilherme Vieira Dias, José Glauco Ribeiro Tostes e Elza Neffa (org.)

A Coordenação da área CAPES de Ciências Ambientais, no


Documento de Área (MEC/CAPES, 2016, p. 8), afirma que
a interdisciplinaridade é uma emergência oriunda
de grandes problemas contemporâneos, dentre
os quais as questões ambientais, que requerem
nova epistemologia baseada na complexidade
que demanda colaboração e coprodução entre
diversos campos de conhecimento.

Além disso, a Coordenação trata do objeto das Ciências Am-


bientais e afirma que a emergência da interdisciplinaridade se dá
a partir da práxis.
O objeto das Ciências Ambientais é, assim,
naturalmente multidisciplinar e requer a
convergência de conhecimentos distintos
possibilitando a reflexão vista por diferentes
perspectivas. Dessa maneira, a interdiscipli-
naridade emerge da própria práxis científica
e passa a ser identificada como atitude e como
método na produção de conhecimento (MEC/
CAPES, 2016, p. 8).

A Coordenação de Ciências Ambientais sugere, desse modo,


que a interdisciplinaridade seja encarada como “método”, cabendo
aos Programas de Pós-Graduação em Ciências Ambientais promo-
verem essa construção de um novo conhecimento interdisciplinar,
empreendendo esforços desde a concepção do Programa, o que
envolve pensar em área de concentração, objetivos, linhas de
pesquisa e disciplinas que contribuam para o diálogo de saberes
e para a superação dos problemas socioambientais.
A Área busca assimilar o conhecimento in-
terdisciplinar, demandado pelos problemas
reais, no próprio processo de avaliação dos
programas. A interdisciplinaridade não é
entendida como um novo campo disciplinar,
mas como uma proposta que busca apro-
ximação entre as ciências da natureza e as
sociais, dando flexibilidade para análise das
questões relevantes na interface ambiente e
sociedade. Logo, um método de integração
do conhecimento a partir da necessidade
Complexidade, capitalismo e ciências ambientais 155

emanada dos fenômenos estudados pelas


pesquisas. Portanto, cabe induzi-la, por meio
de mecanismos de distribuição de recursos e
avaliação, visando à integração entre as áreas
do conhecimento. Assim, a Interdisciplina-
ridade deve estar presente nos Programas
de Pós-Graduação na Área de Ciências
Ambientais em todos os seus processos,
desde a proposta dos cursos, corpo docente
e discente de formação diversificada e pro-
jetos de pesquisa com equipe proveniente
de diferentes campos disciplinares (MEC/
CAPES, 2016, p. 9).

Embora a complexidade esteja relacionada à noção de


transdisciplinaridade, nota-se nos trechos citados anteriormente
que a Coordenação de Ciências Ambientais da CAPES faz uma
associação entre interdisciplinaridade e epistemologia baseada na
complexidade. A rigor, a interdisciplinaridade implica na intera-
ção entre disciplinas ou entre ciências, sem que deixem de existir
as disciplinas e ciências “isoladas”. Por outro lado, segundo Weil,
D’Ambrosio e Crema (1993, p. 35), a transdisciplinaridade “resulta
do encontro de várias disciplinas do conhecimento, em torno de uma
axiomática comum”, podendo ser dividida em dois tipos: a) trans-
disciplinaridade geral (axiomática comum entre ciência, filosofia,
arte e tradição); b) transdisciplinaridade especial (axiomática dentro
das ciências, das filosofias, das artes ou das tradições espirituais).
Isso significa que a transdisciplinaridade vai além das disciplinas
e além da interdisciplinaridade, sendo qualitativamente mais com-
plexa do que a interdisciplinaridade. De toda forma, ao ressaltar
que a interdisciplinaridade deve ser vista como um método que
se dá pela práxis, no sentido de buscar compreender e solucionar
os problemas socioambientais contemporâneos, a Coordenação
de Ciências Ambientais sinaliza para a tentativa de superação do
paradigma científico cartesiano-newtoniano por meio de uma
nova perspectiva científica “sistêmico-complexa”, buscando-se a
articulação, ao menos, de parte das ciências naturais/tecnociências
e das ciências sociais.
Como foi constatado nas análises de conteúdo, todos os
PPG’s/Cursos de Doutorado analisados demonstram, em seus ob-
jetivos, a intenção de promover a formação de cientistas ambientais
156 Guilherme Vieira Dias, José Glauco Ribeiro Tostes e Elza Neffa (org.)

capazes de articular saberes diversos, para além da sua formação


básica/graduação, capazes de produzir um conhecimento científico
que dê conta das emergências socioambientais. Contudo, verificou-
-se que nem todos os PPG’s/Cursos oferecem condições concretas
para que os objetivos sejam cumpridos, isto é, nem todos oferecem
linhas de pesquisa e disciplinas obrigatórias — para todos — no
sentido de refletir sobre essa formação acadêmica e produção do
conhecimento interdisciplinar.

A sustentabilidade socioambiental e seus níveis de complexidade

O objetivo de conciliação entre desenvolvimento e sustentabilidade


Após analisar os objetivos, as linhas de pesquisa e as disci-
plinas obrigatórias no que tange ao conhecimento socioambiental,
partiu-se para as análises relativas à sustentabilidade socioam-
biental, a fim de averiguar se os PPG’s/Cursos de Doutorado se
limitam a abordar as relações técnicas entre sociedade e ambiente
ou abordam também discussões sobre as relações sociais. De modo
geral, os PPG’s/Cursos de Doutorado prometem, em seus objetivos,
promover estudos e pesquisas capazes de mitigar impactos am-
bientais de atividades humanas, conservar a natureza e caminhar
para o “desenvolvimento sustentável”.

As linhas de pesquisa e as disciplinas obrigatórias socioambien-


tais: discussões sobre as relações técnicas e as relações sociais
nas Ciências Ambientais
Com este estudo, partiu-se, então, para a análise das linhas
de pesquisa. Dentre as 91 analisadas, foram encontradas 82 linhas
de pesquisa que sugeriam discussões envolvendo noções de sus-
tentabilidade socioambiental.
A seguir, exemplos de trechos selecionados das 40 linhas de
pesquisa que apresentaram noções de sustentabilidade socioam-
biental, com enfoque na discussão de relações técnicas entre
sociedade e ambiente (Relação Capitalismo-Ambiente – K-A1).
Complexidade, capitalismo e ciências ambientais 157

Quadro 6 – Linhas de pesquisa e a sustentabilidade


socioambiental, com ênfase nas relações técnicas (K-A1)

D Linhas de Pesquisa Trechos selecionados das descrições

Pesquisas relacionadas às mudanças tempo-


Diagnóstico, Monito-
rais nos ecossistemas marinho, tanto naturais
ramento e Gestão de
5 como antrópicas. Utiliza-se técnicas de moni-
Sistemas Costeiros e
toramento ambiental em estudos integrando
Marinhos
variáveis físico-químicas e biológicas.

Avaliar as condições ambientais (solo, água,


atmosfera e biota), principalmente da biodi-
10 Ambientes Naturais versidade regional, por meios dos estudos da
relação com os fatores abióticos, como pesticidas,
dejetos industriais, queimadas entre outros.

Fonte: Dias, 2019.

Constatou-se que prevalecem, nas descrições das linhas


de pesquisa K-A1, noções de sustentabilidade socioambiental
que giram em torno da conservação da natureza/recursos natu-
rais, por um lado, e do desenvolvimento e aplicação de novas
tecnologias visando à mitigação de impactos humanos sobre o
ambiente, por outro. Tais noções têm em comum a fragilidade
com a qual as relações sociais são tratadas, o que resulta numa
interpretação equivocada de “impactos humanos” como se tais
impactos fossem iguais independentes de classe, cultura, capaci-
dade produtiva, enfim, como se houvesse um indivíduo humano
padrão, genérico.
Por outro lado, 42 linhas de pesquisa demonstraram abor-
dar a sustentabilidade socioambiental, incluindo discussões
sobre as relações sociais, para além das relações técnicas, o que
envolve cultura, economia, política, história, entre outros saberes
que contribuem para problematizar a realidade social em suas
interconexões com o ambiente. A seguir, exemplos de trechos
selecionados dessas 42 linhas de pesquisa categorizadas no se-
gundo nível de complexidade (K-A2).
158 Guilherme Vieira Dias, José Glauco Ribeiro Tostes e Elza Neffa (org.)

Quadro 7 – Linhas de pesquisa e a sustentabilidade


socioambiental, com discussão de relações sociais (K-A2)

D Linhas de Pesquisa Trechos selecionados das descrições

Identificação, avaliação e análise dos fenômenos


biofísicos e ecológicos e das formas e processos
Conservação dos
1 socioeconômicos e étnicos no acesso e manejo
Recursos Naturais
dos recursos naturais nos diferentes
ecossistemas da Amazônia.

[Estudo do] conjunto de atividades voltadas à


formulação, implementação e avaliação de políticas
Políticas Públi-
que convergem para o desenvolvimento sus-
3 cas, Cultura e
tentável. Engloba igualmente a abordagem da
Sustentabilidade
dimensão cultural, como componente indissociável da
sustentabilidade.

Fonte: Dias, 2019.

Nas linhas de pesquisa sobre sustentabilidade socioambien-


tal K-A2, constatou-se que prevalecem discussões envolvendo o
desenvolvimento e a sustentabilidade, com menor penetração de
temáticas tecnológicas e de conservação de recursos naturais por
um lado, e maior ênfase em gestão e políticas públicas, por outro.
A Coordenação da área CAPES de Ciências Ambientais, nos
esforços preliminares à Avaliação Quadrienal 2013-2016, divulgou
um estudo no Documento de Área (MEC/CAPES, 2016, p. 7) no
qual identificava os principais temas abordados nas linhas de
pesquisa dos PPG’s em Ciências Ambientais no Brasil, associados
às áreas de formação/atuação dos docentes permanentes, como
pode ser visto a seguir.
Complexidade, capitalismo e ciências ambientais 159

Quadro 8 – Blocos Temáticos das Linhas de Pesquisa


dos Programas

Incidência
Nº Bloco Temático Área de Formação/ Atuação
Temática
Desenvolvimento,
Ciências Políticas, Sociolo-
1º Sustentabilidade e Meio 46%
gia, Economia e História
Ambiente

Uso de Recursos Ciências Biológicas e


2º 37%
Naturais Ecologia
Planejamento, Gestão Planejamento Urbano
3º e Políticas Públicas 53% Regional, Arquitetura, Geo-
Ambientais grafia e Administração

Tecnologia, Modelagem Engenharias Civil, Ambien-


4º 77%
e Geoprocessamento tal e Química

Fonte: MEC/CAPES, 2016, p. 7.

O quadro 8 revela uma maior incidência de temas ligados à


“tecnologia, modelagem e geoprocessamento” nas linhas de pes-
quisa dos PPG’s em Ciências Ambientais no Brasil, sendo tais temas
associados a docentes (e possivelmente discentes) das Engenharias
Civil, Ambiental e Química. Considerando-se os mesmos blocos
temáticos utilizados pela Coordenação da área CAPES de Ciências
Ambientais, ao comparar com as análises de conteúdo realizadas
nas linhas de pesquisa dos Cursos de Doutorado no presente tra-
balho, no que diz respeito à sustentabilidade socioambiental(49),
tem-se o seguinte quadro:

(49)
Recorda-se que 89 linhas de pesquisa “socioambientais” foram analisadas
no presente estudo (não foi possível analisar outras 14 linhas, cujas descrições
não foram obtidas, e excluiu-se duas linhas apenas “naturais”, que não faziam
qualquer menção às relações socioambientais. Além disso, cabe destacar que
não ficou claro se o estudo cujo resultado está no Quadro 8 foi realizado apenas
a partir dos títulos das linhas de pesquisa ou com análises de todo o conteúdo
das descrições das linhas, tal como foi feito no presente trabalho.
160 Guilherme Vieira Dias, José Glauco Ribeiro Tostes e Elza Neffa (org.)

Quadro 9 – Blocos Temáticos das Linhas de Pesquisa dos


Cursos de Doutorado

Nº Bloco Temático Incidência Temática


Desenvolvimento, Sustentabilidade e
1º 55%
Meio Ambiente

2º Uso de Recursos Naturais 49%

Planejamento, Gestão e Políticas


3º 49%
Públicas Ambientais

Tecnologia, Modelagem e
4º 49%
Geoprocessamento

Fonte: Dias, 2019.

Na comparação entre os blocos temáticos das linhas de


pesquisa socioambientais dos Cursos de Doutorado e das linhas
de pesquisa em geral, uma vez que o estudo da Coordenação de
Ciências Ambientais envolveu todos os PPG’s da área e não excluiu
da análise as linhas apenas “ambientais”, constata-se um aumento
proporcionalmente significativo de linhas de pesquisa sobre “De-
senvolvimento, Sustentabilidade e Meio Ambiente” e sobre “Uso
de Recursos Naturais, enquanto o tema “Planejamento, Gestão e
Políticas Públicas Ambientais” teve uma leve queda e “Tecnologia,
Modelagem e Geoprocessamento”, uma queda mais acentuada.
Todavia, ao separar as linhas de pesquisa sobre sustentabili-
dade socioambiental em K-A1 (ênfase em relações técnicas) e em
K-A2 (incluindo discussão de relações sociais), como foi realizado
no presente trabalho, os blocos temáticos tomam nova dimensão,
como pode ser visto nos quadros a seguir.
Complexidade, capitalismo e ciências ambientais 161

Quadro 10 – Blocos Temáticos das Linhas de Pesquisa dos


Cursos de Doutorado, com ênfase nas relações técnicas (K-A1)

Nº Bloco Temático Incidência Temática


Desenvolvimento, Sustentabilidade e
1º 25%
Meio Ambiente

2º Uso de Recursos Naturais 60%

Planejamento, Gestão e Políticas Públi-


3º 35%
cas Ambientais
Tecnologia, Modelagem e
4º 60%
Geoprocessamento

Fonte: Dias, 2019.

Quadro 11 – Blocos Temáticos das Linhas de Pesquisa dos Cursos


de Doutorado, com discussões sobre as relações sociais (K-A2)
Nº Bloco Temático Incidência Temática
Desenvolvimento, Sustentabilidade
1º 87%
e Meio Ambiente
2º Uso de Recursos Naturais 37%
Planejamento, Gestão e Políticas
3º 63%
Públicas Ambientais
Tecnologia, Modelagem e
4º 37%
Geoprocessamento

Fonte: Dias, 2019.

Nota-se que as incidências temáticas de “Uso de Recursos


Naturais” e de “Tecnologia, Modelagem e Geoprocessamento”
coincidem em ambos os quadros. Bem como as incidências de
“Desenvolvimento, Sustentabilidade e Meio Ambiente” e de “Pla-
nejamento, Gestão e Políticas Públicas” apresentam alta e queda nos
mesmos quadros, embora não coincidam como no caso anterior. Es-
sas correlações reforçam a discussão realizada no presente trabalho,
no sentido de demonstrar que ainda há, nas Ciências Ambientais,
um forte apelo aos estudos “ambientais” e não socioambientais, o
162 Guilherme Vieira Dias, José Glauco Ribeiro Tostes e Elza Neffa (org.)

que implica em estudos que ignoram ou abordam, de modo inade-


quado, as relações sociais que são fundamentais para entendermos
as questões socioambientais atuais e buscar soluções. As for-
mações acadêmicas/área de atuação dos docentes permanentes
correlacionados a cada um dos blocos temáticos contribui para
explicar as dificuldades no avanço de discussões enriquecidas
com as Ciências Sociais.
Diante dos resultados apresentados no Quadro 8, a Coordena-
ção de Ciências Ambientais manifestou-se afirmando que
baseado neste mesmo estudo referenciado
acima, a Coordenação de Ciências Ambientais
sugere que temas ainda ausentes ou apenas
tangenciados, tais como a economia ecoló-
gica, educação ambiental, direito ambiental,
tecnologia apropriada e outras, possam ser
inseridos nas linhas de pesquisa dos Progra-
mas existentes ou das propostas de cursos
novos. A Coordenação de Área ressalta a
importância dos programas, a partir de seus
cursos, darem respostas a problemas/comple-
xidades socioambientais, que são transversais
as ciências da terra, biológicas, agrárias, saúde,
sociais aplicadas, humanas e as engenharias,
que se desejam compreender e, preferencial-
mente, propor alternativas de soluções (MEC/
CAPES, 2016, p. 7).

Além disso, a Coordenação de Ciências Ambientais demons-


trou preocupação com a perspectiva instrumental/técnica nos
Programas de Pós-Graduação, salientando a importância da cons-
trução de um novo conhecimento.
Adverte-se que a complexidade ambiental e a
interdisciplinaridade não podem ser confun-
didas com a contribuição de conhecimentos
técnicos ou instrumentos que possibilitam
práticas de pesquisas e intervenção na natureza,
mas como colaboração dos diversos conheci-
mentos, originando algo novo, construindo
um novo saber, que possibilite a busca de so-
luções para os problemas oriundos da relação
sociedade e natureza. Nas Ciências Ambientais,
Complexidade, capitalismo e ciências ambientais 163

os problemas de pesquisa são intrínsecos às


atividades sociais, econômicas e tecnológicas,
entre outras. São problemas que ultrapassam
competências acadêmicas especificas (MEC/
CAPES, 2016, p. 8).

Após a análise das linhas de pesquisa, deu-se a análise das


disciplinas obrigatórias, visando a compreender as noções de
sustentabilidade socioambiental. Dentre as 137 disciplinas ana-
lisadas, foram identificadas 61 disciplinas que tratam, de algum
modo, de questões socioambientais envolvendo a sustentabili-
dade. A seguir, exemplos dentre as 24 disciplinas obrigatórias
que discutem a sustentabilidade socioambiental enfatizando as
relações técnicas (K-A1).

Quadro 12 – Disciplinas obrigatórias e a sustentabilidade


socioambiental, com ênfase nas relações técnicas (K-A1)

D Disciplinas Trechos selecionados das descrições

Métodos físico, químicos e biológicos de


Fundamentos de avaliação de áreas impactadas; Métodos
24
Tecnologia Ambiental biológicos e físico-químicos de remediação/
tratamento de poluentes.

Compreender processos físicos atuantes


Princípios da Engenha- nos componentes de sistemas ambientais,
26
ria Ambiental visando a sua aplicação na resolução de
problemas ambientais.

Fonte: Dias, 2019.

A seguir, exemplos dentre as 37 disciplinas obrigatórias que


apresentaram a sustentabilidade socioambiental com discussões
de relações sociais (K-A2), para além das relações técnicas.
164 Guilherme Vieira Dias, José Glauco Ribeiro Tostes e Elza Neffa (org.)

Quadro 13 – Disciplinas obrigatórias e a sustentabilidade


socioambiental, com discussão de relações sociais (K-A2)

D Disciplinas Trechos selecionados das descrições

Dentre os temas que norteiam a pesquisa


em Sustentabilidade, destacam-se as causas,
consequências e inter-relações das alterações
climáticas e pobreza, dos problemas de saúde
pública, das questões demográficas (envelheci-
mento da população, crescimento da população
Sustentabili-
30 nos estratos mais pobres, migração, urbaniza-
dade
ção etc.) e a redução da bio e geodiversidade, da
ameaça aos ecossistemas naturais, poluição do
ar, solo e água com a vulnerabilidade ambiental
das populações entre outras possíveis correla-
ções estabelecidas por diferentes dinâmicas que
se estabelecem.

A sociologia ambiental assume então uma po-


sição significativa para estudar as divergências
e conflitos sobre os diferentes usos da natureza
Teoria Social e
34 (entendida aqui em seu sentido mais amplo, ou
Ambiente
seja, tanto o ambiente natural quanto o cons-
truído) e as causas e a extensão dos problemas
ambientais e os diversos atores envolvidos.

Fonte: Dias, 2019.

Nota-se, com relação às disciplinas socioambientais que


tratam da sustentabilidade, que a maior parte delas (37) foi classi-
ficada como K-A2, isto é, como disciplinas que sugerem discussões
sobre relações técnicas e sociais, incluindo aspectos culturais,
econômicos, políticos, dentre outros, enquanto as demais disci-
plinas (24) foram classificadas como K-A1, sugerindo discussões
mais restritas às relações técnicas entre sociedade e ambiente. Ao
identificar a frequência dos termos que mais são citados em cada
um dos grupos de disciplinas, chegou-se ao seguinte resultado:

A) K-A1: os cinco termos mais frequentes


nesse grupo de disciplinas foram con-
servação (13), ambiental (10), manejo (9),
gestão (8) e recursos naturais (5). O termo
desenvolvimento (3) foi citado em menor
Complexidade, capitalismo e ciências ambientais 165

medida, enquanto outros termos como


cultura, política, social e socioambiental
não foram citados.

B) K-A2: por outro lado, os cinco termos


mais citados nesse grupo de disciplinas
foram desenvolvimento (51), política (25),
ambiental (19), cultura (14) e social (11). Ou-
tros termos são citados em menor medida,
como, por exemplo, gestão (9), recursos na-
turais (8), socioambiental (6), conservação
(4) e manejo (3).

Fica evidenciado, desse modo, que as disciplinas caracterizadas


como K-A2 apresentam discussões mais abrangentes, mais comple-
xas, isto é, incluem o “social”, “cultural”, “político” e, sobretudo,
o “desenvolvimento” como parte das discussões dos problemas
socioambientais. Contudo, cabe ressaltar que o termo “ambiental”
(citado 10 e 19 vezes, respectivamente em K-A1 e em K-A2) supera de
forma considerável o termo “socioambiental” (que sequer foi citado
em K-A1 e apareceu apenas seis vezes nos trechos selecionados de
K-A2). Além disso, cabe chamar a atenção para o termo “social”, que
não é mencionado em K-A1 e aparece 11 vezes em K-A2, ou seja,
quase o dobro de menções em comparação a “socioambiental”; e na
comparação entre “ambiental” e “social”, separadamente, tem-se
em K-A1 as frequências de 10 a 0, e em K-A2 19 a 11.
Embora a maior parte dessas disciplinas tenha sido classificada
como K-A2, cabe lembrar que o universo de disciplinas analisadas
na pesquisa foi de 137, das quais foram identificadas 61 disciplinas
que tratam, de algum modo, de questões socioambientais envol-
vendo a sustentabilidade. Foram excluídas, portanto, as disciplinas
totalmente voltadas para questões específicas das ciências naturais,
bem como as disciplinas técnicas/instrumentais, como aquelas
voltadas para estatísticas. Em suma: o fato de 37 disciplinas serem
classificadas, conforme os critérios adotados na presente pesquisa,
como K-A2, sendo isso encarado como algo positivo no sentido de
representar discussões mais complexas do que aquelas sugeridas
nas outras 24 classificadas como K-A1, quando se compara ao uni-
verso das disciplinas analisadas essas 37 disciplinas representam,
aproximadamente, apenas 27% do total de disciplinas.
166 Guilherme Vieira Dias, José Glauco Ribeiro Tostes e Elza Neffa (org.)

Considerações finais
Em síntese, a presente pesquisa analisou as descrições dos
objetivos, das linhas de pesquisa e das ementas das disciplinas
obrigatórias de todos os 36 Cursos de Doutorado avaliados e
aprovados pela CAPES em pleno funcionamento em 2018, totali-
zando 105 linhas de pesquisa (das quais 91 foram analisadas) e 142
disciplinas obrigatórias (das quais 137 foram analisadas).
No que tange à categorização “conhecimento socioambiental”
(relação C-A), dentre as 91 linhas de pesquisa analisadas, classificou-
-se apenas duas linhas de pesquisa como C-A1 (aproximadamente
2%), enquanto 89 linhas de pesquisa foram classificadas como C-A2
(98%). Foram identificadas, nesse segundo grupo, nove linhas de
pesquisa sobre a formação acadêmica em Ciências Ambientais e/
ou a produção de conhecimento científico socioambiental, o que
representa aproximadamente 10% das linhas de pesquisa analisa-
das. Ainda que apenas 10% das linhas de pesquisa se ocupem de
discussões sobre a formação acadêmica em Ciências Ambientais
e/ou sobre a produção do conhecimento científico socioambiental,
considera-se relevante quase a totalidade das linhas de pesquisa
sinalizarem para discussões socioambientais. Por sua vez, dentre as
137 disciplinas obrigatórias analisadas, a categorização em “conhe-
cimento socioambiental” resultou em 24 disciplinas classificadas
como C-A1 (aproximadamente 18%), sendo 15 disciplinas voltadas
exclusivamente às ciências naturais (11%) e nove disciplinas sobre
técnicas de estatística (7%), enquanto as demais 113 disciplinas
foram classificadas como C-A2 (82%), das quais 74 disciplinas obri-
gatórias discutem a formação acadêmica em Ciências Ambientais
e/ou sobre a produção do conhecimento científico socioambien-
tal, o que representa 54% do total das disciplinas analisadas ou
65% das disciplinas C-A2. Isso significa que, embora haja poucas
linhas de pesquisa dedicadas a pensar a formação acadêmica e/
ou a produção de conhecimento científico socioambiental, no que
diz respeito às disciplinas, o cenário muda, com mais da metade
das disciplinas obrigatórias sugerindo discussões dessa natureza.
No que se refere à categorização “sustentabilidade socioam-
biental” (relação K-A), dentre as 91 linhas de pesquisa analisadas
foram encontradas discussões envolvendo a sustentabilidade
socioambiental em 82 linhas de pesquisa (90%), sendo 40 delas
Complexidade, capitalismo e ciências ambientais 167

classificadas como K-A1 (aproximadamente 49%) e outras 42 como


K-A2 (51%). Constata-se, desse modo, que pouco menos da meta-
de das linhas de pesquisa aborda a questão da sustentabilidade
socioambiental priorizando debates em torno da conservação de
partes da natureza e de avanços tecnológicos capazes de mitigar os
“impactos humanos”, enquanto pouco mais da metade das linhas
de pesquisa sugere discussões mais aprofundadas envolvendo
aspectos sociais, culturais, políticos e econômicos. Por sua vez,
dentre as 137 disciplinas obrigatórias analisadas, 61 (45%) foram
categorizadas em “sustentabilidade socioambiental”, das quais 24
disciplinas (39%) foram classificadas como K-A1 e 37 disciplinas
(61%) como K-A2. Embora a maioria das disciplinas categorizadas
em “sustentabilidade socioambiental” tenha sido classificada como
K-A2, ressalta-se que menos da metade do total das disciplinas
obrigatórias trata de discussões socioambientais sobre a susten-
tabilidade, fazendo com que a porcentagem de disciplinas K-A2
seja de apenas 27% do total de disciplinas obrigatórias.
Articulando-se o conhecimento socioambiental e a susten-
tabilidade socioambiental, nas perspectivas das relações C-A2 e
K-A2, tem-se os seguintes resultados:
Aproximadamente 10% das linhas de pesquisa analisadas
propõem discussões sobre a formação acadêmica em Ciências
Ambientais e/ou sobre a produção de conhecimento científico
socioambiental, envolvendo nove PPG’s/Cursos de Doutorado;
enquanto aproximadamente 46% das linhas de pesquisa analisa-
das sugerem discussões de relações sociais articuladas às questões
socioambientais, envolvendo 22 PPG’s/Cursos de Doutorado;
A) Em relação às linhas de pesquisa, um PPG/Curso de Dou-
torado aparece apenas em C-A2, outros 14 PPG’s/Cursos de
Doutorado aparecem apenas em K-A2, e oito PPG’s/Cursos de
Doutorado aparecem tanto em C-A2 quanto em K-A2;
B) Aproximadamente 54% das disciplinas obrigatórias analisa-
das sugerem discussões sobre a formação acadêmica em Ciências
Ambientais e/ou sobre a produção de conhecimento científico
socioambiental, envolvendo 30 PPG’s/Cursos de Doutorado;
enquanto aproximadamente 27% das disciplinas obrigatórias
analisadas discutem as relações sociais articuladas às questões
socioambientais, envolvendo 22 PPG’s/Cursos de Doutorado;
168 Guilherme Vieira Dias, José Glauco Ribeiro Tostes e Elza Neffa (org.)

C) Em relação às disciplinas obrigatórias, 10 PPG’s/Cursos de


Doutorado aparecem apenas em C-A2, outros dois PPG’s/Cur-
sos de Doutorado aparecem apenas em K-A2 e 20 PPG’s/Cursos
de Doutorado aparecem tanto em C-A2 quanto em K-A2;
D) Por fim, dentre os 36 Programas de Pós-Graduação em
Ciências Ambientais no Brasil, com Cursos de Doutorado,
destacam-se a seguir os oito (aproximadamente 22%) que
tiveram tanto linhas de pesquisa quanto disciplinas obri-
gatórias classificadas como C-A2 e K-A2, alcançando uma
articulação mais completa C-K-A:
• Programa de Pós-Graduação em Ciências Ambientais
(UNEMAT);
• Programa de Pós-Graduação em Meio Ambiente e De-
senvolvimento (UFPR);
• Programa de Pós-Graduação em Meio Ambiente (UERJ);
• Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento e Meio
Ambiente (Prodema/ UFPE);
• Programa de Pós-Graduação em Agroecossistemas
(UFSC);
• Programa de Pós-Graduação em Sustentabilidade (USP);
• Programa de Pós-Graduação em Ambiente e Sociedade
(UNICAMP).
• Programa de Pós-Graduação em Sociedade, Natureza e
Desenvolvimento (UFOPA).
Evidentemente, os resultados da presente pesquisa não
permitem classificar como ruins os demais Programas de Pós-Gra-
duação, tampouco significa que esses oito Cursos de Doutorado
sejam os melhores da área de Ciências Ambientais no Brasil
atualmente, uma vez que vários critérios devem ser levados em
consideração numa avaliação de qualidade dos cursos. Na ava-
liação da CAPES (MEC/CAPES, 2017), por exemplo, seis dentre
os oito Cursos de Doutorado destacados foram avaliados com
conceito quatro, um recebeu conceito cinco e outro obteve seis.
Ou seja: nenhum deles foi avaliado com o conceito máximo sete.
Contudo, esses oito Cursos de Doutorado (22%) se destacam por
Complexidade, capitalismo e ciências ambientais 169

apresentarem indicativos de propostas importantes na busca por


alternativas teórico-metodológicas e societárias na direção da
sustentabilidade em seus diversos aspectos, proporcionando aos
doutorandos, por meio de suas linhas de pesquisa e disciplinas
obrigatórias, condições de avançar no entendimento e na busca
de soluções para as questões socioambientais.
170 Guilherme Vieira Dias, José Glauco Ribeiro Tostes e Elza Neffa (org.)

Referências
ACSELRAD, H. et al. Tudo ao mesmo tempo agora. Petrópolis,
RJ: Vozes, 2002.
DIAS, G. V. Trançando capitalismo, complexidade e ambiente no
estudo da formação acadêmica em Ciências Ambientais. Tese.
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2019.
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO/ COMISSÃO DE APERFEIÇOA-
MENTO DE PESSOAL DE NÍVEL SUPERIOR (BRASIL) – MEC/
CAPES/PLATAFORMA SUCUPIRA. Coleta CAPES. 2018. Dispo-
nível em: <https://sucupira.capes.gov.br/sucupira/public/index.
xhtml>. Acesso em: 15 jul. 2018.
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO/ COMISSÃO DE APERFEIÇOA-
MENTO DE PESSOAL DE NÍVEL SUPERIOR (BRASIL) – MEC/
CAPES. Relatório de Avaliação – Ciências Ambientais – Avaliação
quadrienal 2013-2016. Relatório técnico. 2017.
______. Documento de Área – Ciências Ambientais – Avaliação
quadrienal 2013-2016. Relatório técnico. 2016.
WEILL, P.; D’AMBROSIO, U.; CREMA, R. Rumo à nova transdis-
ciplinaridade. São Paulo: Summus, 1993.
Complexidade, capitalismo e ciências ambientais 171

Sobre os Autores e Autoras

Guilherme Vieira Dias


Doutor em Ciências do Meio Ambiente (UERJ); Mestre em
Ciência Ambiental (UFF); Licenciado em Geografia (IFF); Bacharel
em Ciências Sociais (UENF). Professor do Instituto Federal de Edu-
cação, Ciência e Tecnologia Fluminense (IFF); Líder do Núcleo de
Estudos em Educação em Direitos Humanos e membro do Núcleo
de Estudos Geográficos (IFF/CNPq).
E-mail: gdias@iff.edu.br

José Glauco Ribeiro Tostes


Pós-Doutorado em Química (UNICAMP); Doutor em Química
(UNICAMP); Mestre em Química (IME); Especialista em Matemática
(IME); Bacharel em Química Industrial (UFRJ). Professor Titular
aposentado da Universidade Federal Fluminense (UFF) e da Uni-
versidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF).
E-mail: joseglaucotostes@hotmail.com

Elza Neffa
Doutora em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade (CPDA/
UFRRJ); Mestra em Filosofia da Educação (IESAE/ FGV); Pedagoga.
Professora Titular e pesquisadora da Faculdade de Educação e do
Programa de Pós-graduação em Meio Ambiente (PPGMA); Coordena-
dora do Núcleo de Referência em Educação Ambiental (NUREDAM)
e Membro do Observatório Interdisciplinar das Mudanças Climáticas
(OIMC) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ.
E-mail: elzaneffa@gmail.com

Marcelo Silva Sthel


Doutor em Física (UNICAMP); Mestre em Física (UNICAMP);
Bacharel em Física (UFES). Professor da Universidade Estadual do
Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF).
E-mail: sthel@uenf.br
172 Guilherme Vieira Dias, José Glauco Ribeiro Tostes e Elza Neffa (org.)

Krishna Neffa
Pós-Doutorado em Ciências Ambientais do Programa de
Pós-Graduação em Meio Ambiente (PPGMA/UERJ); Doutor em
Políticas Públicas e Formação Humana (PPFH/UERJ); Mestre em
Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade (CPDA/UFRRJ). Ad-
vogado e Diretor da Vórtex Consultoria.
E-mail: krishnaneffa@gmail.com

Rachel Alice Mendes da Silva Dias


Mestra em Cognição e Linguagem (UENF); Bacharela em
Ciência da Educação (UENF). Professora da Prefeitura Municipal
de Campos dos Goytacazes.
E-mail: chelalice@yahoo.com.br

Juliana Rocha Tavares


Doutora em Ciências Naturais (UENF); Mestra em Ciências
Naturais (UENF); Licenciada em Física (UENF); Licenciada em
Educação Artística (Conservatório Brasileiro de Música). Pro-
fessora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia
Fluminense (IFF).
E-mail: jutavares@iff.edu.br
COMPLEXIDADE,
CAPITALISMO E
CIÊNCIAS AMBIENTAIS

A física quântica, a cibernética, os avanços da biologia, dentre


outros campos, demonstram, com inúmeros exemplos, os limites
da perspectiva científica analítica, estabelecendo a necessidade
de uma perspectiva complexa, que explique as propriedades
emergentes das relações entre elementos sistêmicos, em variados
graus de interação. As classes dominantes já se apropriaram das
novas ciências da complexidade porque precisam delas para
conhecer a realidade complexa e manter a acumulação do capital
gerada pela reprodutibilidade do seu metabolismo social. Para o
reconhecimento e posterior mitigação/superação de problemas
socioambientais no contexto do sistema capitalista, a dialética
e a complexidade são fundamentais, pois permitem o estudo
das contradições a partir de uma visão de totalidade aberta,
capaz de vislumbrar alternativas sistêmicas que contemplem o
ISBN
ISBN978-65-5412-228-3

desenvolvimento humano e a sustentabilidade ambiental.


978-65-5412-302-0

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