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O espaço está na ordem do dia. Muitos, a partir dos anos 1990, falam até mesmo
num “giro” ou “virada” espacial. A mais célebre referência a esta guinada foi Michel
Foucault, sempre citado quando se comenta a mudança da “era do tempo”, ou da história,
referida à passagem do século XIX para o XX, e a gradativa assunção da “era do espaço”,
que ele já identificava no final dos anos 1960 (FOUCAULT, 2001, original escrito em
1967). Entramos nesta “era espacial” tanto no sentido da exploração dos micro-espaços
(dos gens às micro-partículas) quanto dos macro-espaços (da exploração da Lua ao big-
bang). Mas o que nos interessa mais de perto, aqui, enquanto geógrafos, é justamente a
ênfase dada hoje à espacialidade numa escala mais especificamente “humana”, aquela de
nossa reprodução e de nossa circulação enquanto seres viventes, móveis, que necessitam de
abrigo, alimento e que, a todo momento, recriam o mundo pela própria ressignificação e
simbolização de seu espaço-tempo.
Espaço-tempo: esta é a expressão que realmente nos interessa. Muito mais do que
uma “virada espacial”, ingressamos, desde Einstein, na era do “espaço-tempo”, da
indissociabilidade entre essas dimensões do social. Não podemos mais nos referir a essas
“categorias” diante de genéricas dicotomias como aquelas que separam presente de
passado, sincrônico de diacrônico, fluidez de fixação, transformação de permanência. O
presente “geográfico” passa a [deve] ser visto, sempre, como a condensação de múltiplas
durações de um passado que se contrai e, ao mesmo tempo, como a abertura para um futuro
de múltiplos caminhos e, assim, de múltiplas possibilidades. Por mais que o espaço pareça
ser a esfera da fixação e da estabilidade, na verdade ele é a condição para que o tempo
futuro seja aberto e possa realizar diferentes alternativas, colocadas a partir dessa múltipla
combinação de trajetórias que incorporamos no nosso presente, na coetaneidade de nossa
geografia (MASSEY, 2008).
Multiplicidade é uma palavra da moda, marca, para muitos, de nossos tempos “pós-
modernos” ou “pós-estruturalistas”. Mas temos que ter muito cuidado com ela.
Sobrevalorizá-la pode nos levar a ocultar, muitas vezes, a difícil empreitada de encontrar
novos caminhos dentro de um espaço moldado por sujeitos poderosos que ditam a maior
parte das regras através de uma sociedade regida, sobretudo, pela lógica contábil da
economia de mercado, onde quase tudo, hoje, é passível de compra e venda. Mas não
podemos também, por outro lado, ignorar as múltiplas trajetórias que o espaço nos coloca
para alimentarmos a criação, o novo ou, nas palavras de Deleuze e Guattari (1995), os
momentos de efetiva “desterritorialização” em que “linhas de fuga” nos levam à construção
de novos agenciamentos, tanto no campo das práticas quanto das representações espaciais.
“Desterritorialização” também acabou sendo um termo da moda a partir dos anos
1990, embora Deleuze e Guattari já o propusessem desde, pelo menos, os anos 1970 1. Tudo
parecia se desenraizar, perder qualquer base sólida ou, pelo menos, hibridizar-se. As bases
territoriais de controle mais conhecidas, aquelas relativas ao Estado, pareciam cada vez
mais debilitadas. O próprio capitalismo tendia a “flexibilizar-se”, perdendo a rigidez de sua
era fordista, e a famosa expressão de Marx, “tudo o que é sólido desmancha no ar”,
popularizada por Marshall Berman (1986), parecia fazer realmente sentido. Mas esse
desmanche e essa descartabilidade sócio-espacial, em sua maior parte, tinham endereço
certo: realimentar a espiral de crescimento e de especulação que, depois, resultaria em
crises regionais ou mundiais que, em maior ou menor grau, acabariam afetando a todos nós.
E não se tratava somente de crises econômicas, elas também abrangiam o campo dos
valores, crises de representação na nossa forma de ler o mundo e seu espaço – vide, por
exemplo, o que se passou após a queda das torres gêmeas de Nova York em 2001 e a
ambiguidade simbólica adquirida pelo 11 de Setembro.
Hoje, a instabilidade e a incerteza, definitivamente, recheiam nossas geografias, do
espaço local, mais cotidiano, ao global. Nem mesmo a dimensão material de nossos
espaços, a começar pelas rápidas transformações geradas pelas mudanças climáticas,
permitem imaginarmos o espaço como a dimensão da permanência e da “longa duração” –
como defendeu um dia o historiador Fernand Braudel 2. Ao contrário, porém, de uma
desterritorialização enquanto destruição inexorável de nossos territórios, vistos como
1
. Sobre essa temática, ver nossa abordagem em Haesbaert, 2004, sobretudo o capítulo 3
2
. Apenas na primeira fase de sua obra, ressalte-se, notadamente na introdução de “O Mediterrâneo e o Mundo
Mediterrânico na época de Felipe II” (Braudel, 1983), quando ele, polemicamente, caracteriza o tempo
histórico de longa duração como “tempo geográfico” (sobreenfatizando, certamente, uma geografia física em
que a natureza ainda seria caracterizada, sobretudo, por seus ritmos lentos).
espaços efetivamente dominados e/ou apropriados, o que encontramos é uma mudança
muito mais rápida de territórios, moldando aquilo que propusemos denominar
“multiterritorialidade”: a vivência, concomitante ou sucessiva, de múltiplos territórios na
composição de nossa territorialidade.
Se os territórios são espaços de exercício de poder, de relações de poder feitas
(no/pelo) espaço, este poder, contudo, tem múltiplas faces. Devemos considerar desde
aquelas do poder político “tradicional”, restrito à figura do Estado e/ou das “classes
hegemônicas”, quanto aquelas mais amplas, que enfatizam também sua dimensão simbólica
(ver, por exemplo, o “poder simbólico” tal como definido por Bourdieu, 1989).
Para o nosso tratamento do poder e, em parte, do próprio território, tomaremos
como referência central, aqui, Michel Foucault. Para ele, numa visão mais ampla de poder,
toda relação social é também uma relação de poder, poder não apenas repressivo, mas
também “produtivo”. A questão fundamental que se coloca não é aquela que responde a “o
que é” o poder, mas a “como ele se exerce”. Por isso, também, a relevância das formas
espaciais/territoriais através das quais ele é produzido.
Para Foucault (2008), ao longo do mundo moderno se sobrepuseram três formas
básicas de manifestação do poder: o (macro-)poder soberano, forjado fundamentalmente
pelo Estado, no exercício da soberania, ou seja, no controle sobre seu território de
jurisdição; o poder disciplinar, com toda uma “microfísica” que produz a disciplina a partir
da normatização do tempo e do espaço a nível individual; e o biopoder ou poder sobre a
vida, que se efetua através do homem visto enquanto “população”, em seu “meio” de
circulação e reprodução como ser vivente, biológico.
Foucault, infelizmente, aliou à sua visão ampla de poder uma abordagem muito
restrita de território, pois restringiu o uso do termo à espacialidade do poder estatal,
soberano. Na Geografia, há muito tempo (desde pelo menos Jean Gottman, nos anos 1950),
superou-se a abordagem que associava o território apenas à figura do Estado, como, de
alguma forma, propusera o geógrafo alemão Friedrich Ratzel, no final do século XIX. Hoje,
o território pode ser visto nas mais diversas escalas (Souza, 1995) e através de uma
concepção muito mais ampla de poder (Haesbaert, 2004), que inclui até mesmo a
apropriação simbólica de espaços que, desta forma, para os grupos que se identificam com
eles, leva a uma espécie de empoderamento. Nesse sentido, podemos dizer, pelo menos
desde Antonio Gramsci já se fazia a ligação entre poder político como coersão, em seu
sentido estatal (e/ou representativo de uma classe), e poder simbólico ou do consentimento,
no sentido gramsciano de construção da hegemonia.
Assim, podemos afirmar que as territorialidades dominantes no mundo moderno de
matriz europeia impuseram inicialmente uma padronização territorial, de caráter
pretensamente universal e exclusivista, cuja matriz foi o Estado e seus domínios em área,
construindo “territórios-zona” que não admitiam sobreposição e cuja multiterritorialidade
tinha um caráter meramente funcional, dentro de uma mesma lógica piramidal de controle:
ao território “mínimo” da propriedade privada se sobrepunha o território municipal que, por
sua vez, estaria dentro de territórios “departamentais”, “provinciais” ou “estaduais”, a
seguir incorporados ao território estatal como um todo e, mais recentemente, pelo menos no
caso da União Europeia, a uma entidade supranacional ou de bloco internacional de poder.
Ao mesmo tempo, não podemos esquecer que, em geral sob o beneplácito do
Estado, sobrepunha-se de modo cada vez mais intrincado uma outra forma de organização
territorial, a dos “territórios-rede” das grandes corporações empresariais, em processo
gradativo de multi ou transnacionalização. Ao contrário do poder estatal, todavia,
especialmente com o fim do domínio colonial, às empresas interessava muito mais o
controle de fluxos e redes do que de áreas ou zonas – estas, ainda assim, representando
parcela indissociável na “amarração” de seus territórios-rede. A lógica territorial das
grandes corporações é sempre, em certo sentido, multi (ou mesmo “trans”) territorial, na
medida em que só estruturam seu poder pela organização de uma imensa articulação de
territórios, desde os territórios-zona em que constroem a infra-estrutura de suas bases
produtivas e/ou de circulação até a conexão em rede ao redor do mundo, realizando assim
imensos circuitos de fluxos sobre os quais efetivamente exercem seu controle.
Trata-se, contudo, também, de uma multiterritorialidade dentro de uma mesma
lógica funcional, globalmente padronizada. A diferença em relação á multiterritorialidade
funcional do Estado é que, enquanto esta se faz pelo encaixe simultâneo de territórios-zona
autocontidos, a das grandes empresas se realiza pela sucessão de territórios-zona
articulados, formando grandes territórios-rede onde o controle mais importante não é o que
se dá sobre áreas/zonas/superfícies, mas sobre dutos e/ou fluxos e pontos ou polos de
conexão que, conjugados, compõem as redes transnacionais.
Hoje, ao lado do “sujeito” grande empresa capitalista, temos também os próprios
grupos culturais, em suas migrações diaspóricas de caráter global, construindo e
vivenciando uma complexa multiterritorialidade ao redor do mundo. Esta, ao contrário da
multiterritorialidade também em rede, mas meramente funcional, das empresas globais,
refere-se a uma maior multiplicidade de dimensões do poder. O migrante em diáspora,
através das múltiplas territorialidades a que pertence, possui trunfos (“trunfos espaciais”,
diria o geógrafo Ma Mung, 1999) para sacar quando necessita, na medida em que, em geral,
pode acionar conexões situadas em diferentes contextos territoriais (locais, nacionais) ao
redor do mundo.
Esse migrante globalizado pode estar ligado a territorialidades locais (um bairro
numa grande metrópole), regionais (a região e a língua ou dialeto no país de origem ou de
destino), nacionais (o Estado-nação em que se situa e o de onde partiu) e globais (o próprio
território-rede da diáspora a que pertence). A multiterritorialidade que ele constrói pelo
acionamento – simultâneo e/ou sucessivo – dessas múltiplas territorialidades é composta
não só pela “funcionalidade” que o leva, por exemplo, a estabelecer toda uma rede de
auxílio financeiro transnacional, mas também pela identificação que ele cria com uma
grande multiplicidade de territórios, permitindo, inclusive, se for um grupo mais aberto, a
construção de territorialidades híbridas com outras etnias e/ou nacionalidades. Bem ao
contrário da multiterritorialidade meramente funcional dos grandes executivos de empresas
multinacionais que, por mais que frequentem diferentes territórios ao redor do mundo,
acabam recriando sempre suas “bolhas” de segurança, no convívio entre iguais, que os
impede de dialogar com territorialidades efetivamente distintas.
Esses migrantes em diáspora podem, ao mesmo tempo, ser o núcleo de
territorialidades múltiplas, abertas, em constante reconstrução pelo trânsito por diversos
territórios “alheios”, e ser objeto, também, de formas de reclusão ou confinamento, como
ocorre quando da formação de guetos – seja “guetos voluntários”, quando se encontram
apenas entre seus semelhantes (reproduzindo traços de alguns grupos hegemônicos), seja
“guetos efetivos”, quando, enquanto grupos subalternos, são forçados a se fechar em
espaços mais precarizados no interior das cidades.
É justamente frente a essa precarização social ou, em outras palavras, à
desterritorialização em sentido mais estrito, isto é, à perda relativa de controle de seus
territórios, que esses grupos subalternizados são objeto de medidas, ora de reclusão – como
no poder disciplinar que propõe retirar por um tempo os “anormais” do convívio social com
o pressuposto de “resgatá-los” mais tarde (numa “reclusão de sequestro”, como aludia
Foucault, 2001), ora de contenção – como denominamos os atuais processos biopolíticos de
controle da circulação, especialmente em relação aos fluxos migratórios globais.
Foto 1. “Muro-barragem” de
contenção de expansão da
favela Santa Marta, no Rio de
Janeiro, conhecido
retoricamente como “ecolimite”
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BERMAN, M. 1986. Tudo o que é sólido desmancha no ar. São Paulo: Companhia das
Letras.
BOURDIEU, P. 1989. O Poder Simbólico. Lisboa: Difel; Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.
MASSEY, D. 2008. Pelo Espaço: por uma nova política da espacialidade. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil.
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