Você está na página 1de 14

O território em tempos

de globalização

Rogério Haesbaert e Ester Limonad*

RESUMO noção), incluindo a proposta para uma


Este trabalho é uma introdução ao caracterização das múltiplas faces do
estudo das novas territorialidades emer- território, verificando como se manifes-
gentes neste final de século, época que tam novas territorialidades como o
tantas vezes é definida como aquela território-mundo no âmbito dos proces-
mareada por um processo que, generica- sos de globalização/fragmentação.
mente, convencionou-se denominar de
globalização. Esboça-se uma síntese das PALAVRAS—CHAVE:
principais linhas de interpretação ainda Globalização/Fragmentação; Território;
hoje vigentes sobre este conceito (ou Territorialidade; Rede.

ste trabalho é uma introdução ao rialidades como o território-mundo, propalado

C estudo das novas territorialidades


emergentes neste final de século,
época que tantas vezes é definida como aquela
hoje por pesquisadores das mais diversas áreas.
Controvérsias em torno da globalização
O termo globalização, nascido no âmbito do
marcada por um processo que, genericamente, discurso jornalístico de teor econômico, tornou-
convencionou-se denominar de globalização. Após se palavra da moda e passou a ser utilizado de
comentário inicial sobre algumas controvérsias em modo generalizado no discurso teórico de diver-
torno dos processos concomitantes de globaliza- sos campos do conhecimento. Podemos dizer,
ção e fragmentação, abordaremos a concepção de com alguma ironia, que o que mais se globali-
território através de um breve resgate histórico, re- zou foi a adoção deste termo para indicar a dis-
lacionando as mudanças conceituais com as prin- seminação em escala planetária de processos ge-
cipais transformações sociais em curso. rais concernentes às relações de trabalho, difu-
Adiante, esboçamos uma síntese das princi- são de informações e uniformização cultural.
pais linhas de interpretação ainda hoje vigentes A idéia de globalização, neste fim de século,
sobre este conceito (ou noção), e finalizamos com remete-nos de imediato a uma imagem de ho-
uma proposta para uma caracterização das múl- mogeneização sócio-cultural, econômica e espa-
tiplas faces do território em um período marca- cial. Homogeneização esta que tenderia a uma
do pelos processos de globalização, tentando dis- dissolução das identidades locais, tanto econô-
tinguir aí o que realmente há de novo e o que micas quanto políticas e culturais, em uma úni-
ainda reproduz antigos processos sociais, verifi- ca lógica, e que culminaria em um espaço global
cando assim como se manifestam novas territo- despersonalizado.

GIZO UERJ Revista do Departamento de Geografia, 11E1U, RJ, n. 5, p. 7-19, le semestre de 1999
I
Há que se considerar, porém, que tal idéia de dora, que pode ser ao mesmo tempo um produ-
homogeneização é falsa. Para ilustrar, tomamos to da globalização (a exclusão fruto da concen-
como exemplo a anedota onde o remador das tração de capital no oligopólio central capitalista)
galés de uma nau trirreme romana sobe ao con- ou uma resistência a ela (no caso de grupos reli-
vés e diz ao capitão: "Assim não dá para conti- giosos fundamentalistas, por exemplo).
nuar"; ao que o capitão, em meio a uma grande A maior parte dos estudiosos vê a globaliza-
orgia, retruca "Como não? Estamos todos no ção - ou a mundialização, termo utilizado geral-
mesmo barco!" Em síntese, pode-se dizer que mente como homônimo - antes de tudo como
está em curso uma homogeneização (mesmo que um produto da expansão cada vez mais amplia-
ela se refira apenas à consciência de que "esta- da do capitalismo e da sociedade de consumo.
mos todos no mesmo barco"), mas que no en- Para alguns a distinção entre globalização e mun-
tanto não atinge igualmente todos os segmentos dialização seria meramente idiomática: os ingle-
sócio-espaciais, pois não somente ela se processa ses preferindo a primeira, os franceses a segun-
em pontos seletivamente escolhidos do globo da. No Brasil acabou se firmando a vertente an-
terrestre como, em muitos casos, é obrigada a glo-saxônica, mas alguns autores diferenciam
adaptar-se e/ou a reelaborar processos político- globalização - referida mais aos processos econô-
econômicos e culturais em nível local. Há que mico-tecnológicos, e mundialização - referida
se considerar, ainda, que se há uma homogenei- mais aos processos de ordem cultural (v. por ex.
zação pelo alto, do capital e da elite planetária, ORTIZ, 1994).
há também uma homogeneização da pobreza e Marx e Engels no Manifesto Comunista já
da miséria, considerando-se que, na medida em destacavam o caráter globalizador do capitalis-
que a globalização avança, ela tende a acirrar o mo. Ele se expande tanto em profundidade - ao
processo de exclusão sócio-espacial. reordenar modos de vida e espaços já organiza-
Se muitos autores afirmam que o mundo dos e consolidados - como em extensão - através
contemporâneo vive uma era de globalização, da incessante incorporação de novos territórios.
outros, por sua vez, enfatizam como caracterís- Movimentos estes, então, que deveriam tenden-
tica principal do nosso tempo a fragmentação. cialmente caminhar em direção à produção de
Globalização e fragmentação constituem na rea- um espaço global.
lidade os dois pólos de uma mesma questão que As limitações deste trabalho não permitem
vem sendo aprofundada, seja através de uma li- aprofundar a questão das origens e bases históri-
nha de argumentação que tende a privilegiar os cas desse processo. Naturalmente, a globaliza-
aspectos econômicos - e que enfatiza os proces- ção não ocorreu de forma linear e sem resistên-
sos de globalização inerentes ao capitalismo, seja cias; passou por fases de aceleração e crises, im-
através do realce de processos fragmentadores de pulsos tecnológicos e refreamentos sócio-políti-
ordem cultural, que podem ser um produto (vide cos e encontra-se, em períodos mais recentes,
o multiculturalismo das metrópoles com o au- cada vez mais subordinada aos imperativos do
mento do fluxo de migrantes de diversas origens) capital financeiro e dos fluxos mercantis das gran-
e uma resistência à globalização (vide o islamis- des corporações transnacionais.
mo mais radical). Cabe, entretanto, distinguirmos entre inter-
HAESBAERT (1998a) distingue uma frag- nacionalização e globalização. Internacionaliza-
mentação inclusiva ou integradora, pautada ção refere-se simplesmente ao aumento da ex-
numa lógica de fragmentar para melhor globali- tensão geográfica das atividades econômicas ca-
zar (como na formação de blocos econômicos), pitalistas através das fronteiras nacionais, não se
e uma fragmentação excludente ou desintegra- constituindo, portanto, em um fenômeno novo.

Geo UERJ Revista do Departamento de Geografia, UERI, IU, n. 5, p.7-19, 10 semestre de 1999 I
A globalização da atividade econômica (capita- Procuramos, aqui, trabalhar esta controvér-
lista) é qualitativamente diferente: trata-se de sia em nível de territorialidades que, supostamen-
uma forma mais avançada e complexa da inter- te, são expressões destes processos recentes, se-
nacionalização, implicando em um certo grau de jam eles de globalização e/ou de fragmentação.
integração funcional entre as atividades econômi- Uma análise das territorialidades que surgiram
cas dispersas em escala planetária e a um cresci- no mundo contemporâneo - quer sejam de fato
mento cada vez mais pronunciado dos fluxos do novas ou não - pode contribuir para uma me-
capital financeiro de caráter volátil ou fictício. lhor compreensão do próprio processo de globa-
A globalização - compreendida neste último lização e, quem sabe, ajudar a superar as visões
sentido, portanto, é mais recente; acelera-se a dicotômicas (globalização versus fragmentação
partir dos anos 60 e consolida-se no decorrer da ou global versus local) através de uma perspecti-
década de 70. Todo este processo é facilitado e va dialética, tanto no sentido de uma globaliza-
torna-se possível conforme se acelera a velocida- ção que fragmenta como no de uma fragmenta-
de da circulação, mediada pela técnica, em par- ção que ao mesmo tempo se antepõe aos proces-
ticular pelas novas formas de tele-comunicação sos mais gerais.
e comunicação mediada por computadores (re- Para compreendermos até que ponto estas
des informacionais) que constituem a base ma- territorialidades em formação apresentam-se efe-
terial do "espaço de fluxos" do capital financei- tivamente como novas, impõe-se aprofundar-
ro. Isto leva autores como CASTELLS (1996) a mos, inicialmente, algumas questões relaciona-
caracterizarem a sociedade atual como uma so- das às concepções de território e territorialidade.
ciedade-rede, pautada naquilo que SANTOS
(1985, 1994) denominou meio técnico-científi- TERRITÓRIO: ALGUMAS CONSI-
co informacional. DERAÇÕES TEÓRICAS 9
A controvérsia entre globalização e fragmen- Podemos partir de uma constatação aparen-
tação estabelece-se quando observamos que, ao temente banal: sem dúvida o homem nasce com
lado destes processos dominantes de expansão e o território, e vice-versa, o território nasce com
aprofundamento do capitalismo, que na década a civilização. Os homens, ao tomarem consciên-
de 90 vai rapidamente incorporando ao seu do- cia do espaço em que se inserem (visão mais sub-
mínio os antigos países socialistas, começam a jetiva) e ao se apropriarem ou, em outras pala-
surgir mobilizações em torno de propostas de vras, cercarem este espaço (visão mais objetiva),
contra-globalização. constróem e, de alguma forma, passam a ser cons-
Essas formas de resistência, bem como as pró- truídos pelo território. No território, o espaço
prias consequências mais diretas da globalização, material, concreto, torna-se uma mediação na
conduzem a um processo de fragmentação que construção das relações de poder. Autores como
se manifesta na forma de exclusão, reforço de RAFFESTIN (1992) propõem uma distinção,
desigualdades etc. e constituem, assim, o pólo da qual nem todos partilham, entre espaço, pri-
oposto aos processos hegemônicos pretensa- são original, primeira, dos homens, e território,
mente homogeneizadores. A simples emergên- a prisão que os homens constróem para si.'
cia de muitas novas-velhas territorialidades an- Para SOUZA (1995), Raffestin pratica-
tepõe-se à idéia de globalização na medida em mente reduz espaço ao espaço natural, enquanto
que, dialeticamente, enquanto a globalização que território de fato torna-se, automaticamente,
remete à idéia de unidade do diverso muitas ter- quase que sinônimo de espaço social, empobrecen-
ritorialidades itudaoje-emergem são per se a pró- do assim o arsenal conceitual à nossa disposição e
pria diversidade. não desenvolvendo a perspectiva relaciorud a que

Geo UERJ Revista do Departamento de Geografia, UERJ, Ri, n. 5, p. 7-19, 1° semestre de 1999 I
o autor se propõe (p. 97). Na verdade o territó- zonas e nas sociedades modernas predominaria a
rio não deve ser confundido com a simples ma- construção de territórios onde o elemento do-
terialidade do espaço socialmente construído minante seriam as redes ou a geometria dos
nem com um conjunto de forças mediadas por pontos e linhas. A preponderância da dimen-
esta materialidade. O território é sempre, e con- são mais subjetiva e/ou simbólica de apropri-
comitantemente, apropriação (num sentido mais ação do espaço nas sociedades tradicionais cede
simbólico) e domínio (num enfoque mais con- lugar, nas sociedades modernas, à dimensão
creto, político-econômico) de um espaço social- mais objetiva e/ou funcional de dominação do
mente partilhado (e não simplesmente constru- espaço. Preponderância, note-se bem, pois nun-
ído, como o caso de uma cidade fantasma no ca existiram espaços puramente simbólicos ou
deserto americano, exemplificado por SOUZA). puramente funcionais'.
Desta forma, o importante a enfatizar aqui é Se nas sociedades tradicionais o homem pre-
que a noção de território deve partir do pressu- enchia todos os poros de seu território através de
posto de que: uma apropriação simbólica onde, por exemplo,
primeiro, é necessário distinguir território e uma dimensão sagrada dotava de sentido o es-
espaço (geográfico); eles não são sinônimos, paço em sua totalidade, nas sociedades moder-
apesar de muitos autores utilizarem indiscri- nas o território passa a ser visto, antes de tudo,
minadamente os dois termos; o segundo é numa perspectiva utilitarista, como um instru-
muito mais amplo que o primeiro. mento de domínio a fim de atender às necessida-
o território é uma construção histórica e, des humanas.
portanto, social, a partir das relações de po- Podemos dizer, assim, que enquanto o terri-
der (concreto e simbólico) que envolvem, tório mais estável nas sociedades tradicionais era
'o concomitantemente, sociedade e espaço geo- em geral fragmentador e excludente em relação
gráfico (que também é sempre, de alguma a outros grupos culturais mas profundamente
forma, natureza); integrador e holístico no que se refere ao interior
o território possui tanto uma dimensão mais do grupo social, no mundo moderno capitalista
subjetiva, que propomos denominar de com- a fragmentação territorial interna ao sistema é
ciência, apropriação subjetiva ou mesmo, em uma necessidade vital para a sua reprodução
alguns casos, identidade territorial, e uma di- (a começar pela instituição da propriedade
mensão mais objetiva, que propomos deno- privada e pela dessacralização da natureza, di-
minar de dominação do espaço, num sentido vorciada do social), sendo que esta forma de
mais concreto, realizada por instrumentos de organização territorial, cada vez mais moldada
ação político-econômica'. pela mobilidade, pelos fluxos e pelas redes, ten-
Esse espaço tornado território pelas relações de a fragmentar e, destarte, a assimilar todo tipo
de apropriação e dominação social é constituído de cultura estrangeira.
ao mesmo tempo por pontos e linhas redes e su- A vinculação entre território e rede é extre-
perfícies ou áreas zonas. É possível acrescentar mamente polêmica. As abordagens vão desde
então, que são elementos ou unidades elemen- aquelas que os distinguem de forma nítida, con-
tares do território aquilo que Raffestin denomi- trapondo as duas concepções (v. por ex. BADIE,
na de malhas - que preferimos denominar de 1995 e, de forma mais nuançada, LÉVY, 1993),
áreas ou zonas, e as linhas e os nós ou pontos - até aquelas que vêem uma simbiose praticamen-
que, reunidos, preferimos denominar de redes. te total entre elas, fazendo desaparecer a especi-
Nas sociedades tradicionais prevaleceria uma ficidade das redes no interior dos territórios. Uma
construção de territórios baseada em áreas ou tendência importante, contudo, é aquela que

I • Geo UERJ Revista do Departamento de Geografia, UERJ, RJ, n. 5, p. 7-19,1° semestre de 1999
propõe a rede como um elemento do território o lugar, enquanto espaço caracterizado pela
ou, no máximo, como uma das formas do terri- contigüidade e por relações de co-presença
tório se apresentar. Ainda em 1981, BONNE- (GIDDENS, 1991), é uma das formas de
MAISON (p. 253-254) afirmava que: manifestação do território, e embora no
lugar não se privilegiem os fluxos e as redes,
um território antes de ser uma frontei- estes não podem ser vistos em contraposição
ra é primeiro um conjunto de lugares hie- a ele.
rarquizados, conectados a uma rede de iti- No sentido de poder contribuir para a com-
nerários. (..) A territorialização (..) en- preensão dessa mudança de significado do terri-
globa ao mesmo tempo aquilo que é fixa- tório, devemos analisar as formas com que hoje
ção [enraizamento] e aquilo que é mobili- ele é apropriado, em um contraponto com as
dade, em outras palavras, tanto os itinerá- práticas sociais anteriores. Ora, o conjunto de
rios quanto os lugares. práticas sociais e os meios utilizados por distin-
tos grupos sociais para se apropriar ou manter
É polêmica também a relação território-lu- certo domínio (afetivo, cultural, político, eco-
gar. Autores como TUAN (1983) chegam a pre- nômico etc...) sobre/através de uma determina-
ferir lugar em vez de território, e vários outros da parcela do espaço geográfico manifesta-se de
autores vêm trabalhando com a concepção de diversas formas, desde a territorialidade mais
lugar como uma nova noção contraposta ao con- flexível, permeável, até os territorialismos mais
ceito de rede. Deste modo, o lugar pode ser vis- fechados.
to como o espaço da unidade e da continuidade Em uma visão geopolítica do território, en-
do acontecer histórico (SANTOS, 1996, p.132) quanto espacialidade social contida por limites e
frente ao espaço dos fluxos e da descontinuida- fronteiras sob o estatuto de um Estado-nação,
Iii
de das redes (CASTELLS, 1996, p. 423). por exemplo (mas nunca restrita a ele), a territo-
Se partirmos, porém, da noção mais ampla rialidade pode ser vista como a estratégia geo-
de espaço geográfico como um espaço relacio- gráfica para controlar/atingir a dinâmica de pes-
nal, definido pelas relações sociais, o espaço dos soas, capital e informações através do domínio
fluxos (ou das redes) e o espaço dos lugares não sobre o acesso de uma determinada área (SACK,
podem ser dissociados, porque o espaço social 1986). O mundo contemporâneo, ao mesmo
não pode existir sem os fluxos, as redes. Neste tempo que se abre a fluxos como os do capital
sentido, a questão de CASTELLS: como os signi- financeiro globalizado, exibe inúmeros exemplos
ficados espaciais podem ser ligados ou desenvolvi- de fortalecimento dos controles territoriais, como
dos no interior de uma experiência na qual o espa- é evidente nas fronteiras internacionais que se
ço dos fluxos... supera o espaço dos lugares? (HEN- fecham aos fluxos migratórios.
DERSON e CASTELLS, 1987) torna-se nada Existe, assim, uma imensa gama de territóri-
mais do que uma figura de linguagem'. os sobre a superfície do globo terrestre, a cada
Iremos optar por uma posição em que: qual correspondendo uma igualmente vasta di-
o território pode ser uma noção mais ampla versidade de territorialidades, com dimensões e
que lugar e rede mas pode também, em conteúdos específicos. Uma das propriedades
muitos casos, confundir-se com eles; mais importantes a ser considerada é a da escala,
a rede pode ser tanto uma forma básica de pois a territorialidade adquire conotações muito
expressão/organização do território (princi- distintas se a focalizamos no nível local, cotidia-
palmente na atual fase globalizante) quanto no, nos níveis regionais ou nos níveis nacional e
um elemento constituinte do território; supranacional. Igualmente, existem diversas con-

I Geo UERJ Revista do mento de Geografia, UERJ, RJ, n. 5, p. 7-19, 1° semestre de 1999 I
cepções de território de acordo com a sua maior toda definição de espaço geográfico e de territó-
ou menor permeabilidade: temos, desta forma, rio. Podemos mesmo partir da premissa de que
desde territórios mais simples, exclusivos/exclu- as concepções de território, bem como aquela
dentes, até territórios totalmente híbridos, que mais ampla, de espaço geográfico, transitaram
admitem a existência concomitante de várias ter- ao longo do tempo entre uma visão mais natu-
ritorialidades. Embora em vários períodos da ralista ou naturalizante e uma visão mais cultu-
história apareçam territorialidades múltiplas, ralista ou sociologizante.
sobrepostas (vide os múltiplos domínios territo- Na abordagem naturalista temos uma natu-
riais medievais), elas são uma marca indiscutível ralização do território que pode se dar de duas
do mundo globalizado/fragmentado. formas:
Para fins didático-analíticos, distinguimos as uma naturalização biologicista, que entende o
diferentes concepções de território a partir de três homem/a sociedade como simples continui-
linhas de abordagem conforme a dimensão soci- dade, extensão ou até mesmo raiz do mundo
al que é priorizada (v. quadro 1), sabendo que o da natureza, tendo portanto um destino na-
que temos na realidade são distintas formas de tural(como os próprios animais) de dominar
fusão de pelo menos três dimensões: a jurídico- certa parcela do espaço (seu nicho ecológico) e
política, sempre mais enfatizada, a cultural e a de seus recursos para sobreviver (evitando
econômica. assim, na argumentação de seus defensores,

QUADRO 1 - AS ABORDAGENS CONCEITUAIS DE TERRITÓRIO EM TRÊS VERTENTES BÁSICAS


principais principais vetores exemplos de
dimensão concepções correlatas concepção de território atores/agentes da da perspectiva da trabalhos que se
privilegiada territonalização territorialização Geografia aproximam desta
vertente
121 jurídico-política um espaço delimitado e . Estado-nação relações de Geografia a abordagem de
Estado-nação
(majoritaria, fronteiras políticas e limites controlado sobre/por . diversas dominação Política Alliès (1980)
inclusive no âmbito político-administrativos , meio do qual se exerce„,•„ções política e (Geopolítica) a visão dássica de
da Geografia) um determinado ,poder, oc,Wcas regulação Ratzel
espedalmente o de '
caráter estatal
cultural(ista) lugar e cotidiano produto indivíduos relações de Geografia Deleuze e Guattari
identidade e aheridade social huidamentalmente da • grupos étnico- identificação Humanística (1972)
apropriação do espaço culturais cultural e/ou Tuan (1980 e
cultura e :1,inaginário
feita através do Geografia 1983)
(imaginário: conjunto de
imaginário e/ou da Cultural
representações, crenças, desejos,
sentimentos, em termos dos quais um identidade social
indivíduo ou grupo de indivíduos vê a
realidade e a si mesmo”)
econômica muitas divisão territorial do trabalho (des)territorialização é empresas relações sociais Geografia Storper (1994)
vezes economicista) classes sociais e relações de vista como produto e do (capitalistas) de produção Econôm
ica Benko (1996)
minoritária produção embate entre classes trabalhadores Vela (1996)
sociais e da relação Estados
capital-trabalho enquanto unidades
econômicas

O TERRITÓRIO ENTRE A CULTU— dilemas como a superpopulação); a tese de


RA E A NATUREZA Gaia, da Terra como um grande ser vivo, pode
Outra questão que merece um tratamento levar a conclusões vinculadas a esta perspec-
mais detido é aquela que diz respeito à indisso- tiva de território;
ciabilidade entre território e natureza, geralmente uma naturalização de fundo funcional-eco-
menosprezada pelos geógrafos. Com todas as nomicista (e, em última instância, imperia-
controvérsias que esta diferenciação implica, na- lista), como na tese determinista de que um
tureza e cultura ou natureza e sociedade estão Estado ou uma civilização só se desenvolvem,
presentes (ou pelo menos deveriam estar) em progridem, a partir de sua expansão físico-ter-

GOO UERJ Revida do Departamento de Geografia, UERJ, RJ, n. 5, p. 7-19, 1° semestre de 1999 I
ritorial; vide por exemplo as pan-regiões de Ecossistemas, biomas, desenvolvimento susten-
Haushofer, ao longo de faixas longitudinais tável e biodiversidade são concepções que, sob
que iriam de um pólo ao outro, a fim de ga- prismas distintos, evidenciam esse retorno a uma
rantir, em cada uma delas, a diversidade e a natureza inerentemente ligada à dinâmica da
auto-suficiência de recursos naturais; sociedade.
Já no outro extremo, uma abordagem cultu- O homem geralmente tem tratado o espaço
ralista sobrevaloriza a constituição social do ter- natural exclusivamente como uma espécie de
ritório, ao ponto de prescindir de qualquer base territórios-domínio, fechados em si mesmos, e não
física ou natural para sua existência: na sua imbricação com redes (tanto ligadas à
numa visão que prioriza e sobrevaloriza o própria dinâmica da natureza como socialmente
a'?
político (visão politicista), o território não construídas), vendo-o assim parcelizado, com
passa de uma construção sócio-política, con- fronteiras claras e não conectado através de flu-
junto de normas ou forças que atuam sem xos globais. Vide os diferentes tipos de vegeta-
ligação indissociável com a natureza ou com ção e solo e a dinâmica climática planetária - se
o ambiente físico socialmente construído; os primeiros são marcados mais pela continui-
numa outra visão culturalista, de caráter sa- dade espacial, a segunda é marcada sobretudo
cralizador ou mitificador, o espaço que com- por movimentos e fluxos globalmente conecta-
põe um território não passa de uma apropri- dos, e hoje nem um deles pode ser conhecido
ação simbólica, mítica, enquanto produto de sem as múltiplas vinculações com as redes do
uma sacralização totalizadora, morada dos deu- capitalismo planetário.
ses (ou o espaço se confundindo com os pró- Como já afirmamos, a diversidade natural foi
prios deuses). Aqui, as leituras culturalista e uma das primeiras bases para a formação de ter-
naturalista do território acabam se confun-
dindo, na medida em que a sacralização pode
ritórios (e ainda o é em certos espaços/grupos
sociais, como os indígenas da Amazônia, os tua-
Fl
tornar completamente indissociáveis socieda- regues do Sahara ou os nômades mongóis e tibe-
de e natureza. tanos). Fornecendo recursos diferentes e desigual-
A verdade é que não podemos ignorar, prin- mente distribuídos, bases fisicas distintas para a
cipalmente enquanto geógrafos, que nossa defi- ocupação, ela não só condicionou redes molda-
nição de território precisa levar em conta a di- das por uma divisão territorial do trabalho (es-
mensão material e/ou natural do espaço, mas sem pecialmente nos setores extrativo e agrícola), mas
sobrevalorizá-la. É importante não esquecer que também ajudou a moldar diferentes identidades
há sempre uma base natural para a conformação territoriais, associadas às paisagens e ao tipo de
de territórios e que, dependendo do grupo soci- recurso natural dominante.
al que o produz (por exemplo, as comunidades Hoje, numa outra escala, aparece também a
indígenas), a relação dos grupos sociais com a formação de territórios-reservas associados a uma
primeira natureza pode mesmo ser primordial na rede de caráter mundial. As reservas naturais e
sua definição. As diferenças naturais atuam em os patrimônios culturais da humanidade podem
si mesmas como uma espécie de território - nes- ser considerados tipos específicos de território,
te caso preferimos utilizar o termo domínio na- produtos característicos da modernidade contem-
tural - que, com a modernidade e sua dinâmica porânea'. Seu valor ao mesmo tempo simbólico
tecnológica, acabaram bastante relativizadas. e concreto e seu papel conservacionista parecem,
Hoje, entretanto, com a intensidade das trans- a princípio, contradizer o espírito mutável da
formações sócio-econômicas, de efeitos impre- sociedade moderna ou, pelo menos, impor-lhe
visíveis, essa relação volta a receber destaque. limitações de ordem ao mesmo tempo cultural e

1
Geo UERJ Revista do Departamento de Geografia, UERJ, RJ, n. 5, p. 7-19, 1° semestre de 1999 1
natural para a transformação do espaço geográ- mediante longos e extenuantes conflitos, em que
fico. A institucionalização de uma natureza pre- identidades e culturas locais tiveram que se su-
servada como objeto de contemplação na forma bordinar ou foram subjugadas, por um largo es-
de santuários naturais (BERQUE, 1995) e, hoje, paço de tempo, a uma identidade e cultura naci-
também como reserva biotecnológica, numa es- onal alheia7. Temos, assim, no processo de cons-
pécie de territórios-clausura (de acesso pelo me- trução dos Estados contemporâneos uma mes-
nos temporariamente vedado), está sendo colo- cla de distintas identidades culturais/territoriais,
cada em cheque na medida em que muitas espé- que antes conformavam distintas territorialida-
cies não irão sobreviver isoladas umas das ou- des (variadas formas de apropriação de uma par-
tras, sendo imprescindível a criação de redes (cor- cela do espaço por distintos grupos sociais). Neste
redores) que interliguem as diversas reservas, pelo processo de construção dos Estados nacionais "
menos aquelas pertencentes a um mesmo ecos- temos a relação cada vez mais forte entre o Esta-
sistema. do territorial e o Estado-nação, o Estado e seu
território tendendo a promover uma única iden-
ANTIGAS E NOVAS tidade, construída, vale ressaltar mais uma vez,
TERRITORIALIDADES através do processo de consolidação de uma iden-
Se o território é uma construção histórica, tidade nacional, seja do ponto de vista cultural -
sem esquecer que dele fazem parte diferentes em termos do partilhamento de uma cultura (lín-
formas de apropriação e domínio da natureza, as gua, religião...) - que leva à asfixia de traços cul-
territorialidades também são forjadas socialmente turais e tradições minoritários, seja do ponto de
ao longo do tempo, em um processo de relativo vista da organização social mais ampla.
enraizamento espacial. Porém, se hoje o mapa Por um largo período de tempo, portanto,
da Europa, por exemplo, é redesenhado, reto- diversas territorialidades, que hoje emergem com
mando algumas configurações de muitas déca- caráter de novas, foram subordinadas ou subju-
das atrás, porque falar em novas territorialida- gadas coercitivamente, e permaneceram, por as-
des? O que existiria de efetivamente novo? sim dizer, submersas, como é o caso de muitos
Cabe aqui um breve parênteses, para consi- processos em curso nos anos 90 no ex-bloco so-
derarmos, ainda que de forma sucinta, a relação cialista. Cabe, portanto, questionar onde está aí
entre Estado e território e o seu caráter relativa- a novidade.
mente recente. No decorrer do século XX, até O fato é que, se as velhas territorialidades
1980, pode-se dizer que se consolidou uma iden- pareciam mais nítidas ou mais fáceis de ser iden-
tidade entre Estado e base espacial (ou, mais sim- tificadas, hoje temos uma complexificação e uma
plesmente, o Estado territorial moderno), a qual sobreposição muito maior de territórios. De fato,
foi construída de distintas maneiras ao longo da muitas vezes não se tratam de novas territoriali-
história, construção em larga escala iniciada na dades enquanto construção de novas identida-
alvorada da era moderna, no século XVI - salvo des culturais; a novidade está mais na forma com
raras exceções, como a França (século VIII), In- que muitas destas territorialidades, imersas sob
glaterra (século XII) e Portugal (século XIII). o jugo da construção identitária padrão dos Es-
Esta indissociabilidade entre Estado (enquan- tados-nações, ressurgem e provocam uma rede-
to fonte de poder) e espaço (tornado território finição (ou mesmo indefinição) de limites polí-
por estas relações de poder) propiciou de certa tico-territoriais, alterando a face geográfica do
forma a construção de uma unidade de base ter- mundo neste fim de milênio. Da intensificação
ritorial com limites político-administrativos de- do fluxo de pessoas de diferentes classes, línguas
finidos, unidade esta alcançada muitas vezes e religiões à intensificação do fluxo de mercado-

I Geo UERJ Revida do Departamento de Geografia, UERJ, RJ, n. Sp. 7-19,1° semestre de 1999 I
rias, capital e informações, tudo parece mais alude SANTOS, 1996), em outros, os naciona-
móvel, relativizando as fronteiras territoriais lismos são retomados, sob as mais diversas argu-
tradicionais como forma de controle. Hoje o es- mentações e colorações políticas, da esquerda
paço nacional cede rapidamente lugar aos espa- ultra-radical à extrema direita. Estamos muito
ços locais, seletivamente escolhidos para se inse- longe, entretanto, do fim dos territórios, como
rirem nos circuitos da globalização. tentou defender BADIE (1995), mesmo se sim-
Entre as características que regem a emergên- plificarmos, grosseiramente, restringindo a no-
cia destas novas-antigas territorialidades temos, ção de território às relações na escala do Estado-
inseridas nos processos de globalização/mundi- nação.
alização: Por uma caracterização geral dos territórios
a formação simultânea de uma elite globali- Como instrumento geral de análise e como
zada vis à vis uma enorme massa de excluídos síntese da multiplicidade de feições que o terri-
que buscam reconstruir seus territórios, mui- tório e os processos de territorialização assumem
tas vezes de forma reacionária e ainda mais num mundo dito globalizado, podemos afirmar
discriminatória que a dos Estados-nações. que:
o fortalecimento dos processos de âmbito lo- A construção do território resulta da articu-
cal frente ao regional e ao nacional - seja como lação de duas dimensões principais, uma mais
meio de fortalecer condições para competir material e ligada à esfera político-econômica,
no mercado, seja como forma de resistência outra mais imaterial ou simbólica, ligada so-
político-cultural; bretudo à esfera da cultura e do conjunto de
o aparecimento de vínculos complexos de símbolos e valores partilhados por um grupo
ordem concomitantemente local e global, sin- social. Assim, temos a princípio três possibi-
tetizado nos processos de glocalização anali- lidades na fundamentação dos territórios,
sados por ROBERTSON (1995), e, mais ra- conforme eles estejam mais ligados a uma ou
dicalmente, na formação de translocalidades, outra destas três esferas da sociedade. Num
tal como proposto por APPADURAI (1997); sentido mais material-funcionalista, o terri-
o recrudescimento de regionalismos e nacio- tório pode estar vinculado tanto ao exercício
nalismos de ordem político-cultural - enquan- do poder e ao controle da mobilidade via for-
to movimentos, pelo menos parcialmente, talecimento de fronteiras, quanto à funcio-
contra-globalizadores; nalidade econômica que cria circuitos relati-
a formação de novas modalidades político- vamente restritos para a produção, circula-
institucionais reguladoras do território atra- ção e consumo.
vés, por exemplo, de entidades supranacio- Num sentido mais simbólico, o território
nais e de organizações não-governamentais. pode moldar identidades culturais e ser mol-
Uma das causas fundamentais para essa rees- dado por estas, que fazem dele um referenci-
truturação estaria nas mudanças do papel nor- al muito importante para a coesão dos gru-
mativo e regulador do Estado, enquanto agluti- pos sociais.
nadar de diferentes interesses, onde a fração no O território, além de ter diferentes composi-
poder gozaria de uma autonomia relativa (POU- ções na interação entre as dimensões políti-
LANTZAS, 1978). Enquanto em alguns luga- ca, econômica e simbólico-cultural, pode ser
res há um enfraquecimento do Estado, que não visto a partir do grau de fechamento e/ou
tem mais meios de manter uma pretensa coesão controle do acesso que suas fronteiras im-
nacional frente às disputas regionais e dos luga- põem, ou seja, seus níveis de acessibilidade.
res para se globalizar (a guerra dos lugares a que Assim, teríamos desde os territórios mais

1 GeO IJERJ Revista do Departamento de Geografia, UERJ, RJ, n. 5, p. 719,1° semestre de 1999
abertos, de fronteiras permeáveis, intensa- Outra característica a ser considerada é a mai-
mente conectados ou resificados, até aqueles or ou menor instabilidade territorial, seja pela
mais fechados, quase impermeáveis. Entre os facilidade em recompor os desenhos frontei-
dois extremos desdobram-se os mais diver- riços, seja pela facilidade em diminuir e au-
sos níveis de permeabilidade ou flexibilidade mentar o seu grau de acessibilidade. Logica-
(ver, por exemplo, a territorialidade flexível mente esta instabilidade está amplamente li-
apontada por SOUZA (1995, p.87) para as gada à maior ou menor fragmentação terri-
metrópoles modernas). torial e à duração de uma territorialidade no
Uma propriedade geográfica fundamental diz tempo, conforme comentado nos dois itens
respeito à continuidade e descontinuidade do anteriores. A isso se soma ainda a maior ou
território, ou seja, seu maior ou menor grau menor superposição a que um território está
de fragmentação espacial. Territórios globais submetido (item a seguir).
tendem a se fragmentar e ao mesmo tempo Juntamente com o grau de instabilidade ter-
se re-articular pela presença de diversos tipos. ritorial encontramos a maior ou menor pos-
de rede que vinculam seus diversos segmen- sibilidade de um território ser entrecruzado
tos. A velha estratégia do dividir para melhor por ou se inserir no interior de outros, já que
dominar, embora mais complexa, também uma das características do mundo dito glo-
está presente no mundo contemporâneo, balizado, conforme já destacamos, é promo-
vide os exemplos da Bósnia e da Palestina. ver uma complexa superposição de territóri-
Neste sentido, mais tradicional, de territó- os. Vinculada a esta super ou interposição en-
rio político buscando a condição de Esta- contramos a questão da escala territorial: con-
do-nação, a fragmentação geográfica não é, tinua muito relevante para o geógrafo saber
entretanto, como no passado, uma condi- se uma territorialidade tem abrangência lo-
ção para a fragilização do poder, tendo em cal, regional, corresponde aos limites do Es-
vista que este se dá sobretudo pela capaci- tado-nação, ou é capaz de cobrir o mundo
dade conectiva (de conexão) de cada frag- como um todo. Porém mais do que isto, é
mento do espaço. imprescindível, hoje, verificar até que ponto
O território deve ser trabalhado sempre a os territórios estão des-conectados nesta com-
partir de sua perspectiva temporal, já que en- plexa teia de imbricação entre múltiplas es-
volve profundas transformações ao longo da calas8.
história. Desse modo, tomando como refe-
rência as temporalidades de curta e longa UMA NOVA TERRITORIALIDADE
duração tal como definidas por Femand Brau- POSSÍVEL: O TERRITÓRIO-MUNDO
del, temos desde os territórios episódicos ou Entre as novas territorialidades em gestação,
conjunturais, que podem mudar ou mesmo talvez a mais surpreendente seja aquela que en-
desaparecer em questão de horas (como os volve a escala-mundo. É a sua existência, afinal,
territórios da prostituição em certas áreas das que de diversas maneiras coroaria os processos
grandes cidades (RIBEIRO e MATTOS, de globalização, de certa forma legitimando-os,
1996)), até os territórios de mais longa dura- na medida em que a dimensão política da globa-
ção (como muitos Estados-nações), estrutu- lização, o controle político dos fluxos (especial-
rais a uma sociedade. Com relação à tempo- mente de capitais), é a menos evidente. Simboli-
ralidade, devemos considerar também o ca- camente, territórios como aqueles das reservas
ráter perm- - ciciico ou circunstancial do naturais e patrimônios da humanidade podem
território. ajudar na consolidação de uma identidade-mun-

Geo UERJ Revista do Departamento de Geografia, UERJ, RJ, n. 5, p. 7-19, 1° semestre de 1999
do, capaz de unir numa mesma rede-território afirma que "o homem em geral não tem maior
toda a civilização planetária, que pela primeira significação hoje do que no passado; mas a gene-
vez (desde a Segunda Grande Guerra) coloca em ralidade dos homens ganha sentido" (LÉVY,
risco sua própria existência na superficie da Terra. p.214). O novo padrão que tenta moldar a soci-
Estaríamos vivenciando um processo radical- edade vai gradativamente diminuindo as distân-
mente novo de territorialização, pelo menos no cias em nível planetário, ao ponto de, na socie-
que diz respeito à escala planetária, com a for- dade-mundo de Jacques Lévy, termos uma dis-
mação de uma nova identidade territorial, um tância nula, pois "todos os pontos da Terra perten-
novo espaço a controlar (e preservar) de maneira cem a uma mesma sociedade" (LÉVY, p.23) atra-
conjunta, a Terra em sua totalidade (ou a Terra vés de redes sincronizadas.
pátria, no dizer de MORIN e KERN, 1993)? Essa afirmação em nosso ver é hipotética -
Esta possibilidade de uma sociedade global no só valerá, se é que a sociedade-mundo está de
sentido positivo, e não apenas negativo de opres- fato se estruturando, para um grupo social
são e controle (do Grande Irmão planetário, muito seleto. Talvez esteja se moldando assim,
como diria George Orwell), coloca pela primei- hoje, uma nova concepção de território: um
ra vez na história a possibilidade de uma socie- território que, acoplando inúmeras redes, po-
dade-mundo (LÉVY, 1992) onde valores como deria dar-lhes uma unidade e incorporá-las,
a democracia, a autonomia e os direitos huma- integrando-as num grande lugar, o TERRITÓ-
nos seriam de fato universalizados. Para isso, di- RIO-MUNDO. Vide a polêmica teoria de
ríamos que uma nova identidade sócio-territori- Gaia, da Terra como um grande ser unitário,
al, também planetária, torna-se imprescindível. que, apesar de todas as críticas e do naturalis-
Neste sentido, a consciência global dos proble- mo (ou mesmo, por outro lado, do espiritua-
mas (ecológicos, político-militares, econômicos, lismo) a que está propensa, pode ter um im-
médico-sanitários...) pode constituir um passo portante papel ao demonstrar a necessidade
muito importante. dessa identidade-mundo, reunindo de manei-
Lévy, numa visão a partir do contexto euro- ra indissociável, num mesmo continuum só-
peu, identifica como "problemas mundiais" con- cio-espacial, a natureza e a sociedade. O pro-
temporâneos aqueles relacionados ao meio-am- blema é distinguir que grupos a utilizam/ma-
biente, às questões demográficas, médicas (Aids, nipulam e que níveis de autonomia e em que
cólera...), ao tráfico de drogas e ao armamentis- escala estão realmente dispostos a difundí-la.
mo. Ressalta que "a questão é saber se, para um
problema mundial, há também um tratamento NOTAS
mundial" (p.22), ou, em nossa opinião, se se tra- Professores do Departamento de Geografia da UFF
tam de questões que estimulam a integração (para - Niterói. Os autores agradecem as observações e
sua resolução) ou se, por manifestarem uma si- contribuições de Rainer Randolph e Jorge Luiz
tuação de crise, evidenciam muito mais uma di- Barbosa na elaboração de algumas idéias aqui vei-
nâmica de fragmentação do que de globalização. culadas.
O surgimento de uma opinião pública inter- Muitos autores preferem privilegiar a dimensão po-
lítica ao definirem território. Souza (1995), por
nacional (com uma mídia globalizada) e de uma
exemplo, enfatiza o caráter especificamente político
política mundial (com entidades e instituições (p. 84) do território, definindo-o como "um cam-
mundiais como a ONU, o Grupo dos Sete, o po de forças, as relações de poder espacialmente deli-
FMI .e as ONGs) são respostas ainda tímidas, mitadas e operando, destarte, sobre um substrato re-
ou exclusivamente a serviço das grandes redes ferencial" (p. 97, grifos do autor).
moldadas pela elite planetária. Em síntese, Lévy Grifo do autor.

Geo UERJ Revista do Departamento de Geografia, UERJ, RJ, n. 5, p. 7-19,1° semestre de 1999
Pautamo-nos aqui na distinção feita por Lefebvre BADIE, B. La fin eles territoires. Paris: Fayard, 1995.
(1986) entre domínio e apropriação do espaço. BENKO, G. Economia, espaço e globalização na aurora do
Vide por exemplo o caso de Brasília, típica cidade século XXI São Paulo: HUCITEC, 1996.
fitncional moderna, construída visando ao mesmo BERQUE, A. Les raisons du paysage. Paris: Hazan, 1995.
tempo a funcionalidade no zoneamento estrito do BONNEMAISON, J. Voyage autour du territoire. L'espace
uso do solo e na livre circulação de veículos e o géographique, Paris: n.4, 1981.
simbolismo do poder, da capital da nação, através CASTELLS, M. The rise of the network society (Infirmational
da imponência do seu urbanismo e da sua arquite- Age I). Malden e Oxford: Blackwell, 1996.
tura.
DELEUZE, G. e GUATTARI, E L'Anti-Edipe. Paris: Editi-
Neste sentido, Moreira (1997), interpretando as ons de Minuit, 1972.
noções de verticalidades e horizontalidades de Mil-
GIDDENS, A. As conseqüências da modernidade. São Paulo:
ton Santos, afirma que o lugar é ao mesmo tempo
EdUNESP, 1991.
horizontalidade e verticalidade; por parte da pri-
TUAN, Y. Topofilia. São Paulo: DIFEL, 1980.
meira, ele "tem a capacidade de aglutinar numa
Espaço é. Lugar. São Paulo: DIFEL, 1983.
unidade regional os elementos contíguos", enquan-
HAESBAERT, R. (org.) Globalização e fragmentação no
to por parte da segunda, temos "a capacidade des-
mundo contemporâneo. Niterói: EdUFE 1998a.
ses elementos aglutinados de se inserirem no fluxo
vital das informações, que são o alimento e a razão Des-conexão urbana e regional na periferia da
mesma da rede" (p. 4). periferia de um mundo em globalização. Livro de Resu-
Embora o primeiro parque nacional tenha sido cri- mos, Encontro Internacional Redes e Sistemas: ensinando
ado ainda no século XIX (Yellowstone, nos Esta- sobre o urbano e o regional (uma homenagem a Michel
dos Unidos), áreas de preservação natural só se di- Rochefort). São Paulo: USE 19986.
fundiram efetivamente em nível global a partir das HENDERSON e CASTELLS, M. (ed.) Global restructu-
décadas de 1950 e 1960. ring and territorial development. Beverly Hills: Sage, 1987.
Isto se deu tanto através de manobras políticas re- LEFEBVRE, H. La production de l'espace. Paris: Anthropos,
lacionadas aos direitos de sucessão real (caso da Es- 1987.
cócia anexada ao Reino Unido), como por acordos LÉVY, J. A-t-on encore (vraiment) besoin du territoire? Es-
político-econômicos (caso da unificação da Alema- pacesTemps. Paris, n. 51/52, 1993.
nha no século XIX através da ação de Bismarck), LIMONAD, E. Cidades: do lugar ao território. Campi-
lutas de unificação do território (caso da Itália) ou nas: III seminário de história da cidade e do urbanis-
ainda pela coerção e força (países balcânicos que cons- mo. FAU - Pontifícia Universidade Católica de Cam-
tituíam a antiga Iugoslávia) e pela definição arbitrá- pinas, 1998.
ria de espaços coloniais de dominação (vide a pro- MOREIRA, R. Da região à rede e ao lugar (a nova realidade
pósto a partilha da África no início do século XX) - e o novo olhar geográfico sobre o mundo). Ciência
estes, hoje, com fortes tendências ao esfacelamento Geográfica.Bauru, AGB, n.6, 1997.
a partir de conflitos de fundo étnico-territorial.
MORIN, E. e KERN, A.B. Terra pátria. Porto Alegre: Suli-
Uma tentativa de apreender empiricamente estas
na, 1995.
complexas des-conexões, da qual resultou um ma-
ORTIZ, R. Mundialização e cultura. São Paulo: Brasiliense,
peamento de diferentes redes/escalas que perpas-
1994.
sam as cidades, incluindo-as ou excluindo-as dos
POULANTZAS, N. O estado, o poder, o socialismo. Rio de
circuitos externos à região (no caso, o leste para-
Janeiro: Graal, 1980.
guaio), é o trabalho, ainda em desenvolvimento,
resumido em Haesbaert, 1998b. RANDOLPH, R. Comunicação: redes e novas espacialida-
des. Rio de Janeiro: Workshop Internacional. comunica-
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: ção, espaço e novas firmas de trabalho. IPPUR/UFRJ e
ALLIÈS, P. rinvention du territoire.Grenoble: Presses Uni- CFCH/UFRJ, 1997.
versitaires, 1980. RIBEIRO, M.A. e MATTOS, R. B. Territórios da prosti-
APPADURAI, A. Soberania sem territorialidade: notas para tuição nos espaços públicos da área central do Rio de
uma Geografiz pi)--r=nzi. Rev. Novos Estudos CEBRAR Janeiro. Território. Rio de Janeiro: Relume Dumará, v. 1,
São Paulo, n. 49, nov. 1997. n. 1, 1996.

I Geo UERJ Revista do Departamento de Geografia, UERJ, RJ, n. 5, p. 7-19, 10 semestre de 1999 I
ROBERTSON, R. Glocalization: time-space and homoge- SUMMARY
neity-heterogeneity. In: Featherstone, M. et. al. (orgs.)
This text is an introduction to the
Global modernities. Londres: Sage, 1995.
SACK, R. Human territoriality: its theory and history. study of the new territorialities emerging
Cambridge: Cambridge University Press, 1986. in this end of century. We sintetize the
SANTOS, M. Espaço é- método. São Paulo: Nobel, 1985. main ways of interpretation present today
Técnica, espaço, tempo: globalização e meio técnico- about this concept (ar notion), including
científico informacional. São Paulo: HUCITEC, 1994.
the proposition for a characterization of
A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e
emoção. São Paulo: HUCITEC, 1996.
the multiple dimensions of territory,
SOUZA, M. O território: sobre espaço e poder, autono- veribing how new territorialities emerge,
mia e desenvolvimento. In: Castro, I. et. al. (orgs.) for instance, as the «world-territory"
Geografia: conceitos e temas. Rio de Janeiro: Bertrand involving the processes of globalization/
Brasil, 1995.
fragmentation.
STORPER, M. Territorialização numa economia global.
In: Lavinas, L. et. al. Integração, região e regionalis-
mo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1994.
KEYWORDS:
VELTZ, P. Mondialisation, villes et territoires: l'économie Globalization/Fragmentation; lerritory;
d'archipel. Paris: P.U.F, 1996. Territoriality; Network.

Geo UERJ Revista do Departamento de Geografia, UERJ, RJ, n. 5, p. 7-19, 10 semestre de 1999
2re:c

Você também pode gostar