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eres Tia ARMADO O PROFETA ARMADO © historiador, antes de tudo, tem de ser yeridico. A realidade dos fatos deve estar acima das tendéncias ideolégicas, po- liticas e partiddrias. Histéria mentirosa nao é histéria. Ela nao é o que se quer que ela seja e sim o que ela é. Um dos aspectos fundamentais da vida de Leon Trotski por Isaac Deutscher é a imparcia- lidade do bidgrafo. Deutscher nao escre- yeu uma biografia romantica. Nao fi © panegirico do homem que admirava. A admiragao por Trotski nao prejudicou o lado critico de sua Obra. Estéve sempre disposto a examinar seus erros e contra- digdes tanto de natureza politica como de natureza pessoal. Assim Isaac Deutscher pode trazer uma das maiores contribuigdes nao so a histéria da revolugao russa como também da época em que Trotski viveu O livro de Deutscher divide-se em trés partes — O Profeta Armado, O Profeta Desarmado e O Profeta Banido — for- mando um todo homogéneo. Isaac Deuts- cher levou pacientemente varios anos es- crevendo esta obra. Recorreu a tédas as fontes de documentos disponiveis: dos dossiers da policia tzarista, passando pela colegio dos jornais revoluciondrios clan- destinos antes de 1917, aos arquivos pes- soais de Trotski, em grande parte inéditos, que se acham na Houghton Library da Universidade de Harvard O Profeta Armado vai de 1879 a 1921. Do nascimento de Trotski 4 guerra civil, na Russia, apéds a tomada do poder pelos bolcheviques. No apéndice, encontram-se algumas notas preciosas sGbre os escritos militares de Trotski na guerra civil e na organizagao do Exército Vermelho onde se vé que o estrategista e 0 tatico, no campo militar, tem a mesma grandeza do tedrico marxista e do ativo dirigente da revolucio de 1905 e de 1917. O primeiro volume de Deutscher é dos tempos herdicos. Abrange a formagao dos partidos reyoluciondrios da Riissia, as grandes polémicas em térno da mecanica e da dinamica da revolugio, a acgao das massas operirias e camponesas que yao a rua para lutar contra a autocracia tzari ta. Neste volume, encontram-se a revolucaio de 1905, a revolucao de fevereiro e a revo- lugo de outubro de 1917, a formagaio do poder soviético, a guerra civil e a criagado do Exército Vermelho que deveriam con- solidar o regime de Lénin e Trotski. A teoria da revolugdo permanente & posta em pratica com a transformagio histérica da revolugao burguesa em revolugio ope- raria. Isaac Deutscher descreye a agao deci- siva de Trotski na tomada do poder pelos bolcheviques, ago que é confirmada pelos proprios inimigos: “Todo o trabalho — escreve Stilin — para a organizacao da insurreigio foi realizado sob a direcao ime- diata de Trotski, Presidente do Soviete de - Petrogrado. Pode-se dizer, com téda a certeza, que a répida passagem da guarni- ¢ao para o lado do Soviete e a habil orga- nizagao do Comité de Guerra revolucio- nario, o Partido o deve sobretudo ao camarada Trotski”. O livro de Deutscher nao se ocupa, ape- nas, da vida politica de Ocupa- se também de sua vida jntima, de seu temperamento, de suas reagdes psicoldgi- cas, apresentando o lado humano do revo- lucionario que sempre se dispds a morrer na defesa de sua causa, EDMUNDo Moniz Trotski — o Profeta Armado DOCUMENTOS DA HISTORIA CONTEMPORANEA Volume 41 ISAAC DEUTSCHER Trotski -o Profeta Armado 1879-1921 Traducdo de VALTENSIR DUTRA civilizagao brasileira Titulo do original em inglés: THE PROPHET ARMED Trotsky: 1879-1921 Copyright © by Oxford University Press, 1954 Desenho de capa: Marius LauritZEN BERN Diagramagado e Supervisdo gréfica: RoBeRTO PoNTUAL Direitos para a lingua portuguésa adquiridos pela EDITORA CIVILIZAGAO BRASILEIRA S.A, Rua 7 de Setembro, 97 Rio DE JANEIRO que se reserva a propriedade desta traducio. 1968 Impresso no Brasil! Printed in Brazil Indice Preficio J Agradecimentos 7 10 11 12 13 Lar e Escola 11 Em Busca de um Ideal 33 As Portas da Histéria 69 Uma Associacao Intelectual J1/ Trotski em 1905 131 A “Revolugio Permanente” 1/61 A Calmaria 193 A Guerra e a Internacional 23/ Trotski na Revolugdo de Outubro 27] O Comissério do Povo 347 O Drama de Brest Litovsk 369 Armando a Reptblica 431 Revolugaio e Conquista 477 Nota sébre os Escritos Militares de Trotski 506 Derrota na Vitéria 5/9 Bibliografia 557 Indice Remissivo 565 Prefacio @ ion PELA primeira vez pensei em escrever uma trilogia biografica dos lideres da Revolugio Russa, imaginei incluir nela um estudo sdbre Trotski no Exilio, nfo a sua biografia em grande escala. Os Ultimos anos de Trotski e o tr4gico desenlace de sua vida tocaram minha imaginacgio mais profundamente do que a parte inicial e mais atuante de sua histéria. Pensando melhor, porém, comecei a duvidar de que o Trotski no Exilio pudesse ser compreendido sem que fdsse contada a parte mais antiga de sua histéria. Foi ent&o que, examinando material histérico e fontes bio- graficas, algumas delas novas para mim, compreendi mais clara- mente como o drama dos tltimos anos de Trotski estava enraizado na fase anterior — ¢ até em outras bem mais anteriores — de sua carreira, Decidi, portanto, dedicar-Ihe dois volumes separados, mas interligados: O Profeta Armado e O Profeta Desarmado, 0 ptimeiro mostrando 0 que podemos classificar como a “ascensio” 1 de Trotski e 0 segundo, a sua “queda”. Abstive-me de usar ésses térmos convencionais porque nao acho que a ascensio de um homem ao poder seja necessariamente 0 ponto maximo de sua vida, ou que a perda désse poder possa ser considerada como sua queda. Os titulos déstes volumes me foram sugeridos pelo trecho de Maquiavel que tomei por epigrafe. O presente estudo ilustra a verdade do que esta escrito ali, mas também Ihe oferece um comentario de certa maneira irénico. A observagio de Maquiavel, de que “todos os profetas armados venceram e os desarmados foram destruidos” € decerto realista. O que pode provocar diivida ésea ingio entre o profeta armado e o desarmado e¢ a dife- renga entre a conquista e a destruigfo é sempre tio clara quanto parece ao autor de O Principe. Nas paginas seguintes veremos pri- meiramente Trotski vitorioso sem armas na maior revolugao de nossa época. Vemo-lo, depois, armado, vencedor e curvado ao péso de suas armas — 0 capitulo que o retrata no auge do poder tem © titulo “Derrota na Vitéria”. E logo apés, quando estudamos o Profeta Desarmado, é levantada a questio de se um forte ele- mento de vitéria nado estaria oculto em sua prépria derrota. Minha descrigéo do papel de Trotski na Revolugio Russa sera uma surprésa para algumas pessoas. Durante cérca de 30 anos as poderosas maquinas de propaganda do stalinismo trabalharam furiosamente com o objetivo de arrancar seu nome dos anais da revolugaio, ou deix4-lo ali apenas como o sinénimo de arquitraidor. Para a atual geragao soviética, e nfo apenas para ela, a histéria da vida de Trotski é quase como um antiga sepultura egipcia, onde sabemos que havia o corpo de um grande homem e a relagao, gravada em ouro, de seus feitos. Mas ladrées de timulos e vam- piros saquearam-na e a deixaram tao vazia e desolada que nio se encontra mais nenhum traco dos registros que conteve. No caso que tratamos, o trabalho dos violadores de timulo foi tao persis- tente que afetou fortemente até mesmo o ponto de vista dos his- toriadores e estudiosos ocidentais independentes. Apesar de tudo isso, a histéria da vida de Trotski continua intata, preservada em seus numerosos escritos, hoje em grande parte esquecidos, ¢ em seus arquivos; em numerosas memérias de contemporaneos, amigos e adversdrios; nos arquivos de jornais pu- blicados antes, durante e depois da Revolugio; nas atas do Comité Central; nos anais dos Congressos do Partido e dos sovietes. Quase tédas as fontes documentais acima podem ser encontradas em y bibliotecas ptiblicas do Ocidente, embora algumas sé possam ser consultadas em bibliotecas particulares. Pesquisei todas essas fontes. Juntamente com minha mulher, que me ajudou na pesquisa e co- laborou de muitas outras maneiras nesta obra, fiz um estudo es- pecial da rica colegio de jornais russos pré-revoluciondrios da Hoover Library, em Stanford, Califérnia, onde encontrei fontes pouco usadas anteriormente pelos historiadores do movimento re- voluciondrio russo. Juntamente com minha espésa, estudei também os Arquivos de Trotski, na Houghton Library, Harvard University, sem divida a mais importante colecéo de documentos originais sobre a histéria soviética existente fora da U.R.S.S. (Uma ré- pida descrigéo dos Arquivos é feita na bibliografia final déste volume). Sendo assim, nao tenho porque me queixar, como fiz no Prefacio do Stdlin, da pobreza de material biografico. Isto se deve principalmente ao contraste entre meus personagens, Trotski era tao comunicativo sébre sua vida e atividades quanto Stdlin era reservado. Permitia a estranhos penetrar livremente em quase todos os aspectos de sua vida. Ele préprio escreveu uma autobiografia e, o que € mais importante, um forte trago autobiografico inconscien- te impregna seus livros publicados, seus numerosos artigos e en- saios nao enfeixados em livro e alguns de seus escritos nfo pu- blicados. Onde quer que fdsse, Trotski deixava pegadas tao fortes que ninguém, posteriormente, podia apagd-las ou empand-las, nem éle, quando, em raras ocasides foi tentado a fazé-lo. Habitualmente, nfo se espera que um bidgrafo se desculpe por contar a vida de um lider politico que tenha escrito uma auto- biografia. Creio, porém, que o presente caso € uma excecio a regra, pois apés um exame minucioso e critico, continuo achando que Minha Vida, de Trotski, é tao escrupulosamente verdadeiro quanto a mais verdadeira das obras désse tipo. No entanto, permanece sendo uma apologia produzida no meio da batalha perdida que o autor travou com Stdlin. Em suas paginas, Trotski lutou contra os violadores de ttimulos. A completa difamacao stalinista respon- deu com um ato peculiar de defesa, que tinha um toque de auto- qorificagao. Nao explicou, nem podia explicar, satisfatdriamente, a mudanga no clima da Revolucio que tornou sua derrota possivel e inevitavel e a descrigao que faz das intrigas pelas quais uma burocracia de mentalidade estreita, “usurpadora” e maligna o des- tituiu do poder 6, evidentemente, inadequada. Surge entio uma pergunta de absorvente interésse para o bidgrafo: até que ponto 3 Trotski contribuiu para a propria derrota? Até que ponto foi com- pelido, pelas circunstancias criticas e por seu cardter, a preparar © terreno para Stélin? A resposta a estas perguntas revela a tra- gédia verdadeiramente clissica da vida de Trotski, ou melhor, uma reproducao da tragédia clissica nos térmos seculares da po- litica moderna. E Trotski teria sido sdbre-humano se fdsse capaz de mostrar isso. O biégrafo, por sua vez, vé Trotski no auge de sua realizagéo como sendo tao culpado, tao inocente e pronto a expiagio quanto um personagem do drama grego. Espero que esta abordagem, que pressupde simpatia e compreensio, esteja isenta tanto de dentincias como de apologias. Em Minha Vida Trotski tentou defender-se nos térmos im- postos por Stalin e pela situag&o ideolégica do bolchevismo na década de 1920, ou seja, nos térmos do culto leninista. Stalin denunciou-o como inveterado inimigo de Lénin e, conseqiiente- mente, Trotski estava ansioso para provar sua total dedicacio e concordancia com Lénin. Essa dedicagio foi, apéds 1917, indubi- tavelmente sincera e os pontos de concordfncia entre éles foram numerosos e importantes. Entretanto, Trotski tornou vagas as linhas precisas e a intensidade de suas dissensdes com Lénin, entre 1903 e 1917, bem como das posteriores. Mas outra conseqiiéncia, muito mais estranha, do fato de Trotski ter feito sua apologia em térmos do culto de Lénin foi que em alguns pontos cruciais diminuiu seu préprio papel, em comparacgio com o de Lénin, caso extrema- mente raro na literatura autobiogrdfica. Isto se aplica especialmen- te 4 descrig&o da parte que desempenhou na Revolugéo de Outubro e na criacgio do Exército Vermelho, quando reduziu os préprios méritos para n&o aparecer como detrator de Lénin. Nao tendo compromissos com qualquer culto, tentei restabelecer a verdade hist6rica. Finalmente, dediquei especial atengio a Trotski, o homem de letras, ao panfletério, ao escritor de assuntos militares e ao jornalista. A maior parte da obra literdria de Trotski est& agora enyélta no esquecimento e inacessivel ao grande ptiblico. Entre- tanto, foi um escritor do qual Bernard Shaw, que sé podia julgar suas qualidades literérias através de tradugées fracas, disse que “ultrapassava Junius e Burke”. “Como Lessing”, escreveu Shaw sdbre Trotski, “quando corta a cabega de seu oponente, ergue-a para que todos vejam que nao existe cérebro nela; mas poupa o carater privado de sua vitima... ... Deixa-a sem sombra de cré- 4 dito politico, mas com a honra intata”.! Lamento apenas que con- sideragdes de espaco e composigio nao me tenham permitido mos- trar mais detalhadamente ésse lado da personalidade de Trotski, mas espero voltar a0 assunto em O Profeta Desarmado, 1D. outubro de 1952 1 The Nation, Londres, 7 de janeiro de 1922. Agradecimentos IDEs MuITO, pela critica e estimulo amigo, ao Prof. E. H. Carr e 4 Sra. Barbara Ward-Jackson, que leram partes do original; e ao Sr. Donald Tyerman, que o leu todo. O Sr. Bernard Singer ajudou-me com seu fntimo conhecimento da vida russa. Ao Sr. D. M. Davin e membros do quadro editorial da Oxford Uni- versity Press sou grato pelas muitas sugest6es para melhorar o es- tilo. Os Srs. Hugo Dewar e Jon Kimche colaboraram gentilmente com material e livros, alguns dos quais agora raridades bibliogr4- ficas. Muito agradego ao Prof. Wm. A. Jackson e seus assistentes da Houghton Library, Harvard University, que ajudaram a minha mulher e a mim, a manusear as pastas dos Arquivos de Trotski. Agradego igualmente ao pessoal da Hoover Library, da London Library, do British Museum e da National Central Library. A generosidade da Oxford University Press e do Departa- mento de Humanidade da Fundagdo Rockefeller permitiram-nos, Li a minha mulher e a mim, passar muitos meses nos Estados Unidos e realizar a parte de nosso programa de pesquisas que dependia totalmente de acesso as bibliotecas americanas mencionadas acima. Minhas dividas para com outros autores sio assinaladas nas notas ao pé de paginas, 1D: ... ndo hd nada mais dificil de realizar, mais perigoso de conduzir ou de éxito mais incerto do que tomar a iniciativa na introdu- a0 de uma nova ordem de coisas. Porque © inovador tem como inimigo todos os que estavam bem nas condigdes antigas, e defen- sores pouco dispostos naqueles que talvez venham a ficar bem nas novas... “E necessdrio, portanto, se quisermos discutir ésse assunto exaustivamente, pergun: tar se ésses inovadores podem confiar em si mesmos, ou se tém de depender de outros; isto é, se para consumar sua emprésa tém de usar preces ou podem usar a férga? No pri- meiro caso, sempre se saem mal e jamais con- seguem coisa alguma; mas quando podem va- ler-se de si mesmos e usar a férca, entdo rara- mente correm perigo. Por isso, todos os pro- fetas armados venceram e os desarmados foram destruidos, Além das razées mencio- nadas, a natureza do povo é varidvel, e em- bora seja facil persuadi-lo, é dificil manter-lhe as conviccées. Assim, é necessdrio tomar me- didas que, quando o povo jd nao acreditar, possam forgd-lo a acreditar. “Se Moisés, Ciro, Teseu e Rémulo es- tivessem desarmados, nao poderiam ter im- posto suas constituigées por tanto tempo — como aconteceu, em nossa época, a Girolamo Savonarola, arruinado em sua nova ordem de coisas ta0 logo a multiddo deixou de acre- ditar néle, pois nado dispunha de meios para manter fiéis os que acreditavam ou de fazer com que os incréus acreditassem”. MaquiaveL, O Principe, Capitulo VI. 9 Lar e Escola O REINADO do tzar Alexandre II (1855-81) chegava ao seu sombrio fim. O governante cujas primeiras reformas desper- taram as mais ardentes esperangas ma sociedade russa e mesmo entre Os revoluciondrios exilados, 0 governante que libertara 0 cam- ponés russo da servidao e ganhara o titulo de Emancipador, pas- sava seus Ultimos anos no desespéro — cagado como um animal pelos revolucionérios e escondendo-se de suas bombas e revélve- res em paldcios imperiais. O tzar estava pagando o preco da frustragéo das esperangas que despertara: decepcionara as expectativas de quase tddas as classes da sociedade. Aos olhos dos senhores de terras era a propria subversio, coroada e vestida das roupagens imperiais. Nunca o perdoaram pela reforma de 1861, que privou os proprietarios de seu dominio feudal sdbre os camponeses. Quanto a éstes, liber- 11 tara-os do jugo da servidio apenas para deixé-los esmagados pela pobreza e pelas dividas: com a emancipagao, os ex-servos foram obrigados a ceder & pequena nobreza grande parte da terra que tinham cultivado e a pagar uma pesada hipoteca sobre a terra que conservaram. Ainda consideravam o tzar como seu benfeitor e amigo, acreditando ser contra suas intencSes que a pequena no- breza Ihes usurpava os beneficios da emancipagio. Mas a fome pela terra j4 despertara na classe camponesa, aquela grande fome que por mais de meio século sacudiria a Rtissia e a contaminaria com uma terrivel febre, de corpo e alma. A pequena nobreza e os camponeses ainda eram as principais classes da sociedade russa. A classe média urbana ainda cresci muito lentamente. Ao contrério da burguesia européia, nao tinha nenhuma ascendéncia social, nenhuma tradig&o, nenhuma menta- lidade propria, confianga ou influéncia. Uma parte minima da classe camponesa se desligava do campo e comecava a formar uma classe proletéria industrial, Embora a wltima década do reinado de Alexandre tivesse visto as primeiras greves significativas do proletariado industrial, a classe operdria urbana era vista simples- mente como um ramo deslocado do campesinato. Nenhuma dessas classes poderia constituir uma ameaca ime- diata ao trono, Elas esperavam que seus apelos fdssem ouvidos e que suas dificuldades féssem sanadas pelo préprio monarca. De qualquer forma, nenhuma delas estava em posigio de difundir suas queixas e fazer com que suas exigéncias féssem bem conhecidas, Nenhuma delas podia reunir seus membros e concentrar sua forga em qualquer instituigéo representativa ou partido politico. Estes simplesmente nao existiam. O Estado e a Igreja eram os tnicos a possuir uma organizagio nacional, mas sua fungio, que deter- minara sua forma e constituigio, era reprimir e nao exprimir 0 descontentamento social. Apenas um grupo, a intelectualidade, ergueu-se para desafiar a dinastia. Pessoas instruidas, de tédas as classes sociais, especial- mente as nio-absorvidas pelo funcionalismo, tinham tanta razio quanto os camponeses de estarem desapontadas com o tzar — 0 Emancipador, Este despertara, para depois frustrar, sua Ansia de liberdade, assim como despertara e frustrara a fome de terra dos mujiques. Alexandre nao tinha, como seu predecessor Nicolau I, castigado a intelectualidade com agoites, mas ainda continuava a espanci-la. Suas reformas na imprensa e na educagio foram in- significantes e feitas de mé-vontade: a vida espiritual da nagio 12 continuava sob a tutela da policia, da censura e do Santo Sinodo, Oferecendo aos instruidos um simulacro de liberdade, tornava a negativa da verdadeira liberdade ainda mais dolorosa e humilhante. A intelectualidade buscou yingar suas esperangas trafdas; 0 tzar lutou para dominar-lhe o espirito inquieto. Assim, as reformas se- miliberais deram lugar & repressio, e esta fomentou a rebelido. Numéricamente, a intelectualidade era muito fraca. Os revo- lucionarios ativos entre ela eram apenas um punhado, Se descre- véssemos sua luta contra 0 governante de noventa milhdes de st- ditos como um duelo entre David e Golias, ainda assim exagera- riamos a sua férca. Durante téda a década de 1870, a década clissica da rebeliio da intelectualidade, no maximo alguns milhares de pessoas participaram da fase pacifica, “educacional e propagan- dista do movimento narodnik (populista) e em sua fase final e terrorista, menos de duas dezenas de homens e mulheres tiveram atuagao direta. Essas duas dezenas fizeram do tzar um fugitivo em seu proprio reino, e mantiveram em xeque todo o poderio de seu império. Sdmente contra o pano de fundo de uma nagio des- contente, mas muda, poderia um grupo tao pequeno adquirir uma estatura tao gigantesca. Ao contrério das classes basicas da socie- dade, a intelectualidade sabia expressar-se; tinha o preparo indis- pensivel para uma anialise dos males que infestavam a nacao; e formulava os programas que deveriam sanar tais males. Dificil- mente teria desafiado o poder dominante se julgasse que falava apenas por si, Seus membros foram inspirados, a principio, pela grande ilusio de serem os porta-vozes da nacio, especialmente dos camponeses. Em seus pensamentos, a prépria necessidade que sen- tiam de liberdade se misturava com a fome de terra do camponés, e les deram & sua organizagio revolucionaria o nome de Zemlya i Volya — Terra e Liberdade. Absorveram ansiosamente as idéias do socialismo europeu e lutaram para ajustd-las & situagao russa. Nao o trabalhador industrial, mas o camponés, seria o pilar da nova sociedade de seus sonhos. Nao a fabrica industrial de pro- priedade ptiblica, mas a comuna rural de propriedade coletiva — o velho mir, que sobrevivera na Rtssia — seria a célula basica dessa sociedade. Os “homens da década de 1870” estavam condenados como precursores da revolucio. Nenhuma classe social estava, na ver- dade, preparada para apoié-los. No curso da década, éles gradual- mente descobriram seu préprio isolamento, livraram-se de uma série de ilusdes apenas para adotar outras, e tentaram resolver 13; dilemas — alguns peculiares ao seu pais e geragao, outros ine- rentes a todo movimento revolucionério, A principio tentaram levar os camponeses A acio, seja esclarecendo os mujiques sébre os males da autocracia, como fizeram os seguidores de Lavrov, seja incitando-os contra o tzar, como Bakunin, Duas vézes, du- rante essa década, homens e mulheres da intelectualidade abando- naram seu lar e profissdo e tentaram viver como camponeses entre camponeses, a fim de conseguir compreender-lhes a mentalidade. “Téda uma legido de socialistas”, escreveu um general da policia, Cuja ocupagdo era vigiar ésse éxodo, “empenhou-se nessa tarefa com uma energia e um espfrito de auto-sacrificio que nio tem paralelo na histéria de qualquer sociedade secreta da Europa”. O sacrificio foi infrutifero, pois os camponeses e a intelectualidade tinham finalidades diferentes. O mujique ainda acreditava no tzar, o Emancipador, e recebeu com desconfiada indiferenga ou hosti- lidade clara as palavras de “esclarecimento” ou “incitamento” narodniks. A Policia prendeu os idealistas que “haviam procurado © povo” e os tribunais os condenaram a longas penas, a trabalhos forgados e & deportagio. A idéia de uma revolugio através do povo foi substituida gra- dualmente pela idéia de uma conspiragdo a ser planejada e executa- da por uma minoria disposta, entre a intelectualidade, As formas do movimento modificaram, de acérdo com essa concepcio. O éxodo dos intelectuais para 0 campo féra espontaneo, sem diregio de nenhum centro. A nova conspiracgao exigia uma organizagiio ri- gorosamente clandestina, coesa, de lideranga forte e disciplina ri- gida. Seus lideres — Zeliabov, Kibalchich, Sofia Perovskaia, Vera Figner — e outros — nio se inclinavam, a principio, para a agio terrorista, mas a légica de sua po: € Os acontecimentos os fi- zeram seguir tal caminho. Em janeiro de 1878 uma jovem, Vera Zasulich — que viria a influenciar 0 nosso principal personagem — assassinou o general Trepov, chefe da gendarmerie de Peters- burgo, em protesto contra Os maus-tratos e humilhagées de um prisioneiro politico. Durante seu julgamento, os abusos terriveis que eram cometidos pela policia foram revelados, O jiiri ficou tao perplexo com as revelagdes e ao mesmo tempo tio comovido com o idealismo .sincero da acusada que a absolveu. Quando a policia tentou prendé-la fora do tribunal, uma multidao de simpatizantes protegeu-a, permitindo que fugisse. O tzar ordenou que a partir de ent&o os tribunais militares, ¢ nao o juri, julgassem os crimes politicos. 14 O ato nio premeditado de Zasulich e a reagiéo que provocou indicaram um caminho para os conspiradores. Em 1879, ano em que tem inicio esta narrativa, o partido da Terra e Liberdade di’ diu-se. Um grupo de membros, favordvel as atividades terroristas até a derrubada da autocracia, constituiu-se num néyo agrupamen- to, Narodnaia Vélia, a Liberdade do Povo.t Seu ndévo programa dava muito maior énfase as liberdades civis do que 4 reforma agréria. Outro grupo menos influente, que nao dava maior im- portancia ao terrorismo, desligou-se para defender a Divisio Negra (Chornii Peredel) — uma distribuigio igualitaria da terra. (Désse grupo, chefiado por Plekanov, que emigrara para a Suiga, viria a primeira mensagem marxista e social-democratica para os revo- lucionarios da Russia.) O ano de 1879 trouxe uma rdpida sucesso de atentados ter- roristas espetaculares. Em fevereiro 0 principe Kropotkin, gover- nador de Karkov, foi morto. Em margo, houve um atentado contra a vida do general Drenteln, chefe da policia politica. Durante o ano, 0 proprio tzar escapou a dois atentados: em marco, um re- voluciondrio disparou cinco tiros contra éle e no verao, quando yoltava de sua residéncia na Criméia, varias minas explodiram sob seu trem. Prisdes em massa, enforcamentos e deportagées foram as conseqiiéncias. Mas, em 1.° de margo de 1881, os conspiradores conseguiram assassinar © tzar. O regime tzarista apresentava, ao mundo, uma fachada bri- Ihante de grandeza e poderio. Mas em abril de 1879 Karl Marx, em carta escrita de Londres a um amigo russO, mostrou a desinte- gracio da sociedade russa, oculta atrés daquela fachada; compa- rou as condigdes da Russia em fins do reinado de Alexandre com as da Franga sob Luis XV.2 E, na verdade, foi na witima década daquele reinado que nasceram os futuros chefes da Revolugio Russa. Muito longe do local onde se desenrolava essa luta sombria, na pacifica estepe do sul da Ucrinia, cheia de sol, na provincia de Kerson, perto da pequena cidade de Bobrinetz, David Leon- 1 Esta expressiio é freqiientemente traduzida como Vontade do Povo. Vélia na realidade signs tanto “vyontade” como “liberdade”, e pode ser traduzida de ambas as maneiras. 2 Perepiska K. Marxa i F. Engelsa s Russkimi Politicheskimi Deiatelami, pig. 84. Is tievich Bronstein se instalava — no ano de 1879 — numa fazenda que comprara do coronel Yanovski, e que por isso tinha o nome de Yanovka. O coronel recebera a terra (cérca de 400 hectares) do tzar, em recompensa pelos servigos prestados. Nao teve éxito como fazendeiro e foi com satisfagio que vendeu 100 hectares e arrendou outros 160 a Bronstein. A transagio foi concluida em principios do ano. No verao, o névo proprietério e sua familia transferiram-se de uma aldeia préxima para a casa coberta de palha, que adquiriram junto com a fazenda. Os Bronsteins eram judeus. Era raro que um déles se dedi- casse agricultura. Cérca de duas dezenas de colénias agricolas judias, porém — um excedente dos superpopulosos guetos — se espalhavam pela estepe de Kerson. Os judeus nao podiam viver, na Russia, fora de limites préviamente demarcados, isto é, fora das cidades situadas principalmente nas provincias ocidentais ane- xadas da Polénia. Mas tinham permissio de residir em qualquer parte da estepe sul, préximo do Mar Negro. A Riissia conquistara aquela regio pouco povoada, mas fértil, em fins do século XVIII € os tzares estavam ansiosos para promover a sua colonizacao. Ali, como freqiientemente acontece, o imigrante estrangeiro e o paria foram os pioneiros. Servos, bilgaros, gregos e judeus foram encorajados a iniciar a colonizagéo. Até certo ponto, os colonos judeus viviam melhor ali. Deitaram raizes na regiio, gozavam de certos privilégios ¢ estavam livres da ameaca de expulsio e vio- Iéncia que sempre pairava sObre éles nas cidades. Nao se soube nunca, exatamente, até onde se estendiam as dreas em que podiam residir, Alexandre I permitira um pouco a sua ampliago. Nico- lau I, mal subiu ao trono, mandou que os judeus voltassem as residéncias primitivas. Em meados do século, expulsou-os nova- mente de Nikolaiev, Sebastopol, Poltava e das cidades em térno de Kiev. A maioria dos expulsos voltou a instalar-se dentro dos limites permitidos, agora menores e mais congestionados, mas alguns déles preferiram ir para a estepe.* Foi provavelmente durante uma dessas expulsdes, em_prin- cipios da década de 1850, que Leon Bronstein, pai do névo pro- prietirio de Yanovka, deixou, com a familia, uma pequena cidade judaica préximo de Poltava, na margem oriental do Dnieper, ins- talando-se na provincia de Kerson. Seus filhos e filhas, quando 3 S$. M. Dubnov, History of the Jews in Russia and Poland, I, pigs. 30-44 © passim. 16 cresceram, continuaram na terra. Apenas um, David, prosperou bastante para afastar-se da colénia judaica e instalar-se como fa- zendeiro independente em Yanovka. Em geral, os colonos vinham das camadas mais baixas da populagado judia. Os judeus eram, ha séculos, moradores das ci- dades € a agricultura era tao estranha ao seu modo de vida que pouquissimos entre 0s que conseguiam sobreviver mas cidades pen- sariam em se dedicar a ela. O comerciante, o artesio, o agiota, o intermedidrio, o estudioso do Talmude, todos preferiam viver dentro dos limites que Ihes eram fixados, numa comunidade ju- daica consolidada, embora miseravel. Desprezavam tanto a vida rural que em sua linguagem Am Haaretz, “o homem da terra”, também significava o ristico e vulgar, que nao tinha nenhum conhecimento das Escrituras. Os que foram para a estepe nada tinham a perder; na fio temiam o trabalho duro e pouco conhecido € nao os prendia quase nenhum lago com a Sinagoga. O névo proprietério de Yanovyka era sem divida considerado pelos outros judeus como um Am Haaretz: era analfabeto, indi- ferente A religiio e até mesmo um pouco hostil 4 Sinagoga. Em- bora fésse um agricultor apenas de segunda geracio, tinha em si tanto do camponés e do filho da natureza que parecia quase que totalmente n&o-judeu. Em sua casa nao se falava o fdiche, aquela mistura de alem&o antigo, hebraico e eslavénico, mas sim uma mistura de russo e ucraniano. Ao contrério da maioria dos mujiques, porém, os Bronsteins nado tinham recordagdes de servidao: ali, na estepe aberta, a servidao jamais se consolidara firmemente. David Bronstein era um agricultor livre e ambicioso, duro, trabalhador, um homem do tipo pioneiro. Estava decidido a transformar sua fazenda numa propriedade préspera, e para isso, trabalhava muito, obrigando seus empregados a fazer o mesmo. Tinha o futuro pela frente: quando se mudou para Yanovka, estava com trinta anos aproximadamente. Sua mulher, Ana, vinha de um ambiente diferente. Féra cria- da em Odessa e em, outra cidade do sul, e nao no campo. Era bastante instruida para ser assinante de uma biblioteca de emprés- timos e, ocasionalmente, ler um romance russo — poucas judias da época podiam fazer isso. Na casa de seus pais sofrera a in- fluéncia da tradigao judaica ortodoxa: tinha mais cuidado do que o marido em observar os ritos e nao viajava nem costurava no S4bado. Sua origem de classe média evidenciava-se num conven- cionalismo instintivo, misturado a um pouco de hipocrisia religiosa. 17 Em caso de necessidade, coseria aos sibados, mas tendo o cuidado de nao ser vista por nenhuma pessoa estranha. Nao se sabe ao certo como chegou a casar-se com o fazendeiro Bronstein; seu filho diz que ela se apaixonou pelo marido quando éste era jovem e bonito. Sua familia teve um desgésto e olhaya com superiori- dade o marido. Mas 0 casamento nao foi infeliz, A principio a jovem Sra. Bronstein impacientava-se com a vida rustica, mas aca- bou por se esforgar em esquecer os habitos urbanos e tornar-se uma camponesa. Antes de se mudarem para Yanovka, teve quatro filhos. Poucos meses depois de instalados na nova residéncia, em 26 de outubro de 1879, nascia-lhe o quinto, um menino. A crianga recebeu o nome de seu avd, Lev, ou Leao, o homem que deixara a cidade judaica préximo de Poltava para residir na estepe.* Por uma coincidéncia do destino, o dia em que o menino nasceu, 26 de outubro (ou 7 de novembro segundo o calendério névo) foi a mesma data em que, 38 anos depois, como Leon Trotski, chefiaria a insurreigio bolchevique em Petrogrado.® O menino passou seus primeiros nove anos em Yanovka. Sua infancia, como éle mesmo disse, nio foi “uma campina ensolarada” nem “um negro pogo de fome, violéncia e miséria’”. Os Bronsteins levavam uma vida dura, de trabalho e poupanga. “Todos os miis- culos eram usados, todo pensamento era voltado para o trabalho e a poupanga’. “A vida em Yanovka era totalmente governada pele ritmo do trabalho na fazenda. Nada mais importante, nada a nao ser o prego do trigo no mercado mundial”.® Naquele mo- mento, tal prego cafa rapidamente. Mas a preocupagio dos Brons- teins com o dinheiro nfo era maior que a da maioria dos agricul- tores; nao eram econémicos no que se relacionava com os filhos e esforgavam-se para lhes proporcionar um bom comégo de vida. Quando Liova? nasceu, os filhos mais velhos estavam na escola, na cidade. O bebé teve uma ama, luxo que poucos agricultores se podiam permitir. Mais tarde, haveria um professor de musica em Yanoyka e os meninos freqiientariam a universidade. Os pais es- tavam demasiado absorvidos pelo trabalho, para darem muito ca- 4 L. Trotski, Moia Zhizn, 1, capitulo Il. 5 No mesmo ano, mais de dois meses depois, nascia Joseph Djugashvili Stélin, na pequena cidade georgiana de Gori. 6 Trotski, op. cit. loc. cit. 7 Liova é 0 diminutivo de Lev ou Leon, 18 rinho ao filho mais méco; éste, porém, teve o cuidado afetuoso de suas duas irmis e da ama. Liova cresceu forte e sadio, divertindo os pais, irmas, criados e trabalhadores da fazenda com sua inteli- géncia e seu temperamento décil. Dentro dos padrées do ambiente, teve uma infancia confor- tavel. A residéncia dos Bronsteins era construida de barro e tinha cinco aposentos; alguns eram pequenos ¢ escuros, cobertos apenas de palha que deixava muitas goteiras em dias de chuva forte. Mas as familias camponesas moravam habitualmente em casebres de um ou dois aposentos. Durante a infancia de Liova, a importancia e a riqueza da familia aumentaram. As colheitas e os rebanhos cresceram, surgiram novas construgdes em volta da casa, Junto dela havia um grande barracio com uma Oficina, a cozinha e os quartos dos empregados. Atrés, ficavam varias construgées com © celeiro, estdbulos, currais, chiqueiros e outras. Mais distante, num morro além de um tanque, havia um grande moinho, provavel- mente o tinico na regiao. No verao, mujiques de aldeias préximas e distantes vinham moer os cereais. Durante semanas esperavam, em filas, dormiam nos campos quando o tempo estava séco ou no moinho quando chovia, e pagavam ao dono uma pequena taxa em mercadoria pela moagem e debulhagem. A principio, David Bronstein negociava com os comercantes locais, mas quando sua riqueza aumentou, passou a vender sua producio através de um atacadista em Nikolaiev, o porto de trigo que crescia ripidamente no Mar Negro. Depois de alguns anos em Yanovka, poderia fa- cilmente ter adquirido muito mais terra, se nado fésse pelo névo ucasse de 1881, proibindo aos judeus comprar terras até mesmo na estepe. Agora, podia apenas arrendd-las dos vizinhos, e o féz em grande es: Esses vizinhos pertenciam 4 pequena nobreza polonesa e russa “degradada”, que dissipara levianamente sua for- tuna e estava mergulhada em dividas, embora ainda vivessem em excelentes casas no campo. Foi ali que o menino viu, pela primeira vez, uma classe social decadente. “A quintesséncia da ruina aristocrdtica era a familia Gertopanoy. Uma grande aldeia e téda a regiao eram chamadas, outrora, pelo scu nome. Todo o distrito Ihes pertencera. Agora, o velho Gertopanoy tinha apenas 400 hectares, repetidamente hi- potecados. Meu pai arrendou-lhe terras e pagava os arrendamentos ao banco. Gertopanov vivia de escrever petigdes, reclamagées e cartas para os camponeses. Quando nos vinha visitar, escondia ha- bitualmente fumo e torrdes de agticar nos bolsos, Sua mulher fazia 19 a mesma coisa. Contava-nos histérias sébre sua juventude, sdbre os criados, pianos, sédas e perfumes que possuira. Seus dois filhos cresceram quase analfabetos. O mais jovem, Wictor, trabalhava como aprendiz em nossa oficina’.’ E facil imaginar como os Bronsteins compreendiam a sua competéncia e dignidade, quando se comparavam com tais vizinhos. Muita dessa confianga e dessa dedicagdo otimista ao trabalho conseguiram transmitir aos filhos. Pais e irmfs tentavam manter o pequeno Liova dentro de casa ou perto dela, mas a agitagao e o barulho da fazenda eram uma atracio demasiado forte para @le, exceto durante os tran- qiiilos e monétonos meses de inverno, quando a vida da familia se centralizava na sala de jantar. A magia da oficina préxima en- cantava o menino: ali Iva Vassilievich Grebien, mecanico-chefe, © iniciou no uso das ferramentas ¢ dos materiais. Iva Vassilievich era também 0 confidente da familia, almogava e jantava com ela, na mesa do patréo, coisa quase inimagindvel numa casa judia comum. Os truques e as pilhérias do mecdnico, e seu temperamento jovial cativaram Liova: em Minha Vida éle 0 recorda como a prin- cipal influéncia de sua infancia. Mas na oficina o menino conheceu também, algumas vézes, uma explosdo de intrigante mau-humor da parte dos outros trabalhadores. Repetidamente, ouvia palavras duras contra seus pais, palavras que o espantavam, faziam pensar © se gravavam em sua mente. Da oficina perambulava até as cocheiras e estabulos, brin- cava e se escondia nos sdétios sombrios, familiarizava-se com homens e animais, e com as grandes extensGes dos campos. Apren- deu o alfabeto com a irma e teve a primeira percepgdo da impor- tancia dos niimeros ao ver o pai e os camponeses discutindo, no moinho, sObre trigo e dinheiro, Espantou-se com as cenas de po- breza, crueldade e rebeliao sem esperancas e observou as greves dos trabalhadores famintos, em meio 4 colheita. “Os trabalhadores deixaram os campos e reuniram-se no patio. Deitaram-se & sombra dos celeiros, com o rosto para a terra, e balangavam os pés nus © rachados, esperando para ver 0 que aconteceria. Meu pai dava- Ihes um pouco de coalhada, melancia ou mesmo meio saco de peixe defumado. Voltavam imediatamente para 0 trabalho, as vézes cantando”.® Outra cena de que se recordaria foi a de um grupo de trabalhadores que vinha do campo ao entardecer, com passos 8 L. Trotski, Moia Zhizn, vol. I, pags. 46-47, 9 Idem, ibidem, pig. 42. 20 inseguros e as mos estendidas para a frente — vitimas da cegueira noturna, provocada pela subalimentagio. Um inspetor de satide visitou Yanovka, mas nao encontrou nada de errado: os Bronsteins tratavam seus trabalhadores da mesma forma que os outros patrées; a comida, sopa e kasha, nao era inferior 4 servida em qualquer outra fazenda. A impressio que tudo isso deixou na crianga nao deve ser exagerada. Muitos viram cenas semelhantes, e piores, em sua infancia sem se tornarem revolucionérios mais tarde. Outras influéncias, mais complexas, foram necessfrias para despertar em Liova a indignacao contra a injustica social e para colocd-lo contra a ordem existente. Mas quando tais influéncias surgiram, fizeram- Ihe lembrar, com nitidez, os quadros e cenas gravados em sua memoria, e estas se fizeram sentir com mais vigor em sua cons- ciéncia. A crianga recebia naturalmente o ambiente que encon- trava. Sdmente quando perturbado por uma manifestagio extrema de impiedade do pai, explodia em lagrimas e escondia o rosto nas almofadas do sofa, na sala de jantar. Tinha sete anos quando os pais o enviaram para a escola em Gromolka, colénia judaico-alema a poucos quilémetros de Ya- novka. Ficou residindo com parentes. A escola pode ser classificada como um kheder, estabelecimento de ensino religioso particular, tendo como idioma o idiche. O menino aprenderia ali a ler a Biblia e a traduzi-la do hebraico para o idiche. O curriculo incluia tam- bém, como matérias menos importantes, a leitura em russo e um pouco de aritmética. Nao sabendo fdiche, nio podia compreender seu professor nem acompanhar seus companheiros. A escola era, sem dtivida, um lugar fétido e sujo, desagradavel ao menino ha- bituado aos campos. Os costumes dos adultos também eram mo- tivo de espanto, Viu, certa vez, os judeus de Gromolka arrasta- rem uma mulher de maus costumes pela principal rua da aldeia, humilhando-a impiedosamente e gritando-lhe palavrdes. Em outra ocasigo, os colonos impuseram um castigo rigoroso a um ladrio de cavalos, Notou também um estranho contraste: de um lado da aldeia ficavam os casebres miserdveis dos colonos judeus; do outro, brilhavam as casas limpas e arrumadas dos colonos alemies. Sen- tia-se naturalmente atraido para a zona mais bonita. Sua permanéncia em Gromolka foi breve; apds alguns meses os Bronsteins, yendo que o menino nfo estava satisfeito, resolve- ram levé-lo de volta para casa. Assim, disse adeus as Escrituras © aos companheiros que continuavam traduzindo, numa cantilena estranha, versiculos do hebraico incompreensivel para o fdiche 21 também incompreensivel.!? Mas durante seus poucos meses em Gromolka aprendera a ler e escrever em russo e ao voltar para Yanovka copiava, infatigavelmente, trechos dos poucos livros ao seu alcance e mais tarde escrevia composigdes, recitava versos ¢€ fazia poesias. Comegou a ajudar o pai nas contas e na escrituragio dos livros. Com freqiiéncia 0 exibiam as visitas, para que recitasse versos © mostrasse scus desenhos. A principio fugia, envergonhado, mas dentro em pouco habituou-se a receber a admiragiio, e até a@ procurava. Aproximadamente um ano depois de ter deixado a escola ju- daica chegava a Yanovka um visitante que teria influéncia deci- siva sébre 0 menino e o adolescente: era Moissei Filipovich Spen- tzer, sobrinho do Sr. Bronstein, do remoto ramo da familia que morava na cidade e pertencia a classe média. “Um pouco jorna- lista e um pouco estatfstico” vivia em Odessa, fora tocado pela fermentagio liberal de idéias ¢ fora expulso da Universidade por um motivo politico de menor importincia. Durante sua perma- néncia em Yanovka, que durou todo o verio — viera para re- cuperar a satide — dedicou grande parte do tempo ao cagula in- teligente, mas pouco instrufdo. Ofereceu-se, depois, para levd-lo para Odessa e cuidar de sua educagio. Os Bronsteins concordaram e assim, no outono de 1888, equipado com um uniforme escolar novinho em folha, cheio de embrulhos contendo todos os quitutes que a cozinha da fazenda podia produzir, e entre lagrimas de tris- teza e alegria, Liova partiu. O porto de Odessa, no Mar Vermelho, era a Marselha da Riissia, apenas muito mais jovem do que Marselha, ensolarada e alegre, multinacional, aberta a muitos ventos e influéncias. A efer- vescéncia meridional, o amor ao espetacular, 0 emocional calido, predominayam no temperamento do povo de Odessa, Durante os sete anos, aproximadamente, de sua estada ali, no foi tanto a cidade e seu temperamento, porém, e sim o lar dos Spentzers, que modelou a mente e o caréter de Liova. Dificilmente poderia ter ido morar com uma familia que contrastasse mais com a sua. A principio, os Spentzers nao dispunham de boa situagio: 0 préprio Spentzer fora prejudicado pela sua expulsio da universidade e na época a sua mulher, diretora de uma escola secular para meninas judias, era a principal mantenedora da familia. Mais tarde, chegou 10 Mais tarde, durante sua permanéncia em Odessa, voltou a tomar li- gGes de hebraico, mas os resultados nfio foram muito melhores. 22 a ser eminente editor liberal. Max Eastman, autor americano que conheceu 0 casal cérca de 40 anos depois, o descreveu como “bon- doso, calmo, inteligente”.!1 Comegaram a ensinar o menino a falar bem o russo, em lugar da mistura de ucraniano e russo a que estava habituado; melhoraram suas maneiras e sua proniincia, Ele era impressionaével e estava ansioso por se transformar de um jovem rdstico num estudante apresentdvel. Novos interésses e novos prazeres se abriam & sua frente. A noite, os Spentzers liam em voz alta poetas classicos russos — Puskin, Lermontov e 0 fa- vorito, Nekrasov, 0 cidadao-poeta, cujos versos eram um protesto contra as misérias do tzarismo. Liova ouvia, encantado, e objetava ser obrigado a descer das nuvens douradas da poesia para a cama. Ouviu de Spentzer, pela primeira vez, a histéria de Fausto e Gretchen; comoyeu-se até as lagrimas com o Oliver Twist e leu furtivamente a drdstica e sombria pega de Tolst6i, O Poder das Trevas, que a censura proibira e constituia o assunto de conversas em voz baixa entre os adultos. Os Spentzers escolheram uma escola para éle, mas Liova era demasiado jovem. Essa dificuldade foi superada, porém, quando © cartério de sua terra natal Ihe deu uma certidio de nascimento dizendo-o muito mais velho do que na realidade. Obstéculo maior foi o fato de que no ano anterior, 1887, 0 govérno baixara o mal- fadado ucasse s6bre o numerus clausus, segundo 0 qual o ingresso de judeus na escola secundaria ficava tao limitado que nao podiam exceder a 10% e, em alguns lugares, a 5 ou 3% de todos os alunos. Os candidatos judeus tinham de submeter-se a um exame de sele- ao. Liova, que nao freqiientara escola priméria, nao conseguiu passar. Durante um ano, freqiientou o curso preparatério da mesma escola, pois ali os alunos judeus eram admitidos a primeira série com prioridade sdbre os candidatos judeus que vinham de fora. Na Realschule de Sio Paulo — era ésse o nome da escola — nao se ensinava grego nem latim, mas os alunos recebiam melhor preparo do que no gindsio comum, em ciéncia, matemitica, linguas modernas, alemao e francés. Para a intelectualidade pro- gressista, tal curriculo parecia o melhor para dar aos seus filhos uma educacao racional e pratica. Sio Paulo fora fundada pela pardquia luterana alema de Odessa, mas n@o escapara A russifica- ¢a0. Quando Liova nela ingressou, 0 ensino era ministrado em Trusso, mas alunos e professéres eram de origem alem&, russa, po- 11 Max Eastman, Leon Trotsky: The Protrait of a Youth, pag. 14, 23 lonesa e suiga — gregos ortodoxos, luteranos, catdélicos romanos e judeus. Essa variedade de nacionalidades e crengas resultou num grau de liberalismo incomum nas escolas russas. Nao predominava nenhuma nacionalidade e nenhuma religido, nem mesmo o grego ortodoxo, Na pior hipétese, um professor russo perseguiria disfar- cadamente um aluno polonés, ou um padre catdlico romano abor- receria, com uma malicia contida, um aluno judeu. Mas nao havia discriminacgao aberta, nem perseguicio, para dar uma sensacio de inferioridade aos alunos nfo-russos. Na verdade, a discriminagao era inerente ao fato de ter sido o russo impésto como linguagem oficial, mas apenas pais ¢ filhos alemfes poderiam ressentir-se disso, E apesar do numerus clausus, 0 aluno judeu, uma yez admitido, era tratado com justiga. De certo modo, Sao Paulo proporcionou a Liova sua primeira experiéncia de cosmopolitismo. Tornou-se imediatamente o primeiro aluno de sua classe. “Ninguém precisava preocupar-se com o seu preparo, ninguém tinha de ocupar-se de suas ligGes. Sempre f&z mais do que se es- perava déle”.12 Seus professéres prontamente Ihe reconheceram os dons e a aplicagfo e dentro em pouco éle se tornava popular entre os alunos das séries mais adiantadas. Era, porém, indiferente aos esportes e ao exercicio fisico e durante seus sete anos de Mar Negro jamais saiu a pescar, remar ou nadar. Sua indiferenga talvez fosse conseqiiéncia de um acidente ocorrido durante uma travessu- ra, tempos atrds, quando caiu de uma escada e feriu-se gravemente, tendo sido obrigado a “arrastar-se no chio como um verme”, e também ao seu sentimento de que o lugar indicado para o exer- cicio ao ar livre era Yanovka: “a cidade era para o estudo € o trabalho”. Sua exceléncia na sala de aula bastava-Ihe para assegurar a confianga em si mesmo. Durante os sete anos de Realschule participou de algumas agitagdes escolares, nenhuma das quais terminou muito mal. Pu- blicou certa vez uma revista, quase téda escrita por éle mesmo, mas como tais publicagSes foram proibidas pelo Ministério da Educagio, o professor a quem a mostrou aconselhou-o a desistir. Liova ouviu o conselho, Na segunda série, um grupo de rapazes, inclusive le, vaiou um professor de quem nao gostava. O dire- tor deteve alguns dos manifestantes, mas deixou de lado o primeiro aluno, como estando fora de suspeita. Alguns dos rapazes presos “trairam”, entio, Liova. “O melhor aluno é um pd4ria moral”, disse 12 Max Eastman, Leon Trotsky: The Protrait of a Youth, pag. 17. 24 © professor insultado, apentando para o rapaz de quem se orgu- Ihara e o “paria” foi expulso. O choque foi amenizado pela com- Ppreensio e simpatia que os Spentzers mostraram ao seu pupilo ¢ pela indulgéncia do pai, para quem o incidente foi motivo mais de riso do que de indignagao. No ano seguinte Liova foi readmitido, depois de prestar exame e voltou a tornar-se o favorito e o orgulho da escola, tomando, porém, cuidado para nao envolver-se em novas complicagGes, em- bora numa das séries superiores se tivesse recusado, junto com outros colegas, a preparar uma composic¢éo para um professor negligente, que mio corrigia nem devolvia os cadernos de exer- cicios; dessa vez, porém, nao houve qualquer castigo. Na autobio- grafia éle descreve, num tom pouco indulgente para consigo mesmo, éste comentirio sébre sua expulsio: “Foi minha primeira prova politica, por assim dizer. A classe passou, desde entio, a dividir-se em grupos distintos: os intrigantes e invejosos, de um lado, Os corajosos e francos, de outro, e os neutros e vacilantes no meio. Esses trés grupos jamais desapareceram totalmente, mesmo nos anos posteriores. Eu os encontraria repetidamente em minha vida...”1% Nesta reminiscéncia a segunda série da escola de Odessa se parece ao protétipo do Partido Comunista na década de 1920, com suas divisGes a favor e contra Trotski. A aparéncia e o cardter do rapaz se consolidavam. Era atraen- te, com feicdes definidas e bem proporcionadas, olhos miopes e brilhantes por tras dos dculos, cabelos prétos e abundantes, sempre bem penteados. Tinha cuidados especiais com sua aparéncia: limpo e bem vestido, parecia “um burgués”.14 Era alegre, vivo, mas obe- diente e de boas manciras. Como muitos jovens talentosos, preo- cupava-se muito consigo mesmo ¢ empenhava-se em brilhar, Ci- tando suas préprias palavras, éle “sentia que podia fazer mais do que Os outros. Os rapazes que se tornavam seus amigos reconhe- ciam-Ihe a superioridade. Isto nao podia deixar de afetar-Ihe o carater.5 Max Eastman, seu admirador e critico, fala désse acen- tuado e precoce instinto de rivalidade, comparando-o com um co- nhecido instinto em cavalos de corrida. “Faz com que éles, mesmo quando vao a passo lento, mantenham. pelo menos um dlho no caminho j4 percorrido, para ver se algum outro animal ali se con- 13 -L. Trotski, Moia Zhizn, I, pig. 94. 14M. Eastman, Leon Trotski: The Portrait of a Youth, pags. 15, 31. 15 L, Trotski, op. cit., I, pag. iii. 25 sidera como seu igual. Envolve uma consciéncia alerta do eu, e no todo constitui um traco muito desagradavel — especialmente quando surge nos cavalos nao destinados 4 corrida”.!6 Embora Liova tivesse muitos amigos entre seus colegas de escola, nenhum déles tornou-se seu amigo intimo. Na escola nfo sofreu nenhuma influéncia significativa. Seus professéres, cuja personalidade descreve tio vivamente na autobio- grafia, eram heterogéneos: alguns razoaivelmente bons, outros excén- tricos, ou conhecidos por se deixarem subornar. Até mesmo os melhores eram demasiado mediocres para estimulé-lo. Seu cardter e imaginagao foram formados no lar dos Spentzers, onde era ama- do e admirado, correspondendo com amizade e gratid’o. De suas primeiras semanas ali, quando observava 0 bebé da familia, deli- ciando-se com os seus primeiros sorrisos, até os Ultimos dias de sua permanéncia, nada enevoou a relagSo cordial. A tinica his- téria discordante que seus mentores contariam, muitos anos depois, foi como, no infcio de sua permanéncia, Liova vendeu alguns dos livros mais preciosos da casa para comprar doces. Ao crescer, compreendeu cada vez melhor a boa sorte que tivera em encontrar guias tfo excelentes e partilhava, de forma crescente, de seus in- terésses intelectuais. Diretores de jornais liberais locais e homens de letras eram visitantes freqiientes, Liova sentia-se fascinado pelas suas conversas ¢ pela sua simples presenga. Para éle, “escritores, jornalistas e artistas sempre representaram um mundo mais atraen- te do que qualquer outro, aberto apenas aos eleitos’,!7 e vio tal mundo com uma emogio sé conhecida daqueles que nasceram es- critores, quando pela primeira vez entram em contato com os ho- mens e as coisas da profissio a que esto predestinados. Odessa era um dos centros literdrios mais importantes, ou mais movimentados; os gigantes da literatura russa nao se contavam entre os amigos dos Spentzers, mas de qualquer modo, 0 menino de 15 ou 16 anos inclinou-se com reveréncia no umbral do templo, mesmo que nado visse nenhum dos sumo-sacerdotes no altar, A imprensa liberal local, muito molestada pela censura, tinha seus jornalistas corajosos e habeis, como V. M. Doroshevich, o mestre daquele ensaio semiliterdrio e semijornalistico em que o prdprio Bronstein viria, um dia, a brilhar. Os folhetins de Doroshevich eram a leitura favorita de Liova e de seus tutéres. Depois que 16 Max Eastman, op. cit, pig. 19. 37 -L, Trotski, Moia Zhisn, I, pig. 86. 26 Spentzer se iniciou no negécio editorial, a casa estava sempre cheia de livros, manuscritos e provas, que Liova examinava com curio- sidade devoradora. Agitava-o ver os livros em processo de con- feccio, e inalava com satisfagdo o cheiro de palavra recém-im- pressa, pelo qual conservava certa fraqueza, até mesmo nos anos em que dirigia vastas operacdes revolucionarias e militares. Apai- xonou-se ardentemente pelas palavras, e ali ouviu pela primeira vez um verdadeiro escritor, uma autoridade local em Shakespeare, que lera uma das suas composig6es, expressar grande admiragio pela forma com que manobrava com as palavras. Liova sentiu-se também enfeitigado pelo teatro. “... Desenvol- vi o gésto pela dpera italiana, que era o orgulho de Odessa... .+. Dei até mesmo ligdes para ganhar dinheiro das entradas para © teatro. Durante varios meses sofri em siléncio um amor pelo soprano que tinha o misterioso nome de Giuseppina Uget, e que me parecia ter descido diretamente dos céus para os palcos de Odessa”.18 A embriagués com o teatro, com sua ribalta, costumes, miascaras € com suas paixdes e conflitos, esté de acérdo com a adolescéncia de um homem que desempenharia seu papel com um sentimento intenso do dramiatico, e de cuja vida se poderia real- mente dizer que teve a férca e a estrutura da tragédia classica. De Odessa, Liova voltava a Yanovka para as férias de verao e o Natal, ou por vézes por quest6es de satide. A cada retérno, via sinais evidentes de crescente prosperidade. Deixara a casa de um agricultor mais ou menos abastado, e a casa para a qual vol- tava parecia-se, cada vez mais, 4 propriedade de um senhor de terras. Os Bronsteins estavam construindo uma grande casa para sua residéncia, mas ainda viviam e trabalhavam como antes. O pai ainda passava seus dias no moinho, negociando os sacos de farinha com mujiques, inspecionando os currais, observando os trabalhadores na colheita e manobrando ocasionalmente a foice. A agéncia postal e a estagio ferrovidria mais préximas estayam ainda a uns trinta quilémetros de distancia, Ninguém lia jornais, ali — no maximo, sua mie lia, lenta e trabalhosamente, um velho romance, seguindo as linhas com o dedo desgastado pelos trabalhos. Essas visitas ao lar despertavam em Liova sentimentos dife- rentes. Continuava sendo bastante alde&o para sentir-se limitado na cidade e para gostar da estepe ampla e aberta, Ali se libertava, 18 L, Trotski, op. cit, I, pag. 85. brincava, andava e montava. Mas a cada retérno também experi- mentava a sensacio de ser, mais e mais, um estranho em Yanovka. As atividades de seus pais Ihe pareciam insuportavelmente estreitas, suas maneiras rudes, e seu modo de vida sem objetivo, Comegou a ver quanta crueldade para com os trabalhadores e mujiques im- plicava a prosperidade de um fazendeiro, mesmo que tal crueldade fésse, como parecia ter sido em Yanovka, minorada pela beneyo- Iéncia patriarcal. De férias, ajudava na escrituragao dos livros e no célculo dos saldrios e por vézes pai e filho discutiam, especial- mente quando os célculos pareciam ao velho Bronstein indevida- mente favoraveis aos empregados. As brigas no escapavam aos trabalhadores e isso exasperava o fazendeiro. O comportamento do menino nfo era discreto e seu espirito de contradigio era for- talecido por um sentimento de superioridade, nao raro no filho educado de um camponés analfabeto. A vida rural em geral pa- recia-Ihe repulsiva e brutal. Tentou certa vez, iniitilmente, pro- testar contra a violéncia de um policial que viera banir dois tra- balhadores porque seus papéis nao estavam perfeitamente em ordem. Viu também a crueldade selvagem com que os préprios pobres se tratam mfituamente. Sentia uma simpatia vaga pelos opri- midos ¢ um remorso ainda mais vago pela sua posig&o privilegiada. Igualmente forte, ou talvez ainda mais forte, era seu amor-préprio ofendido. Sofria ao ver-se como o filho de um avarento, de um arrivista analfabeto, o filho — poder-se-ia dizer — de um kulak. Sua estada em Odessa terminou em 1896. Uma Realschule tinha normalmente sete séries, mas a de Sao Paulo contava apenas com seis — por isso, teve de freqiientar uma escola semelhante em Nikolaiev para matricular-se. Tinha, entao, quase 17 anos, mas nenhuma idéia politica exercera qualquer atragao sébre éle. No ano anterior morrera Friedrich Engels e o acontecimento nao foi percebido pelo futuro revolucionério — nem mesmo 0 nome de Karl Marx Ihe chegara ainda aos ouvidos. Estava, segundo suas proprias palavras, “mal-equipado politicamente para um rapaz de 17 anos, naquela época”. Sentia-se atraido pela literatura e prepa- rava-se para um curso universitario de matematica pura. Essas duas abordagens da vida — a imaginativa e a abstrata — atraiam-no: mais tarde, lutaria para uni-las em seus escritos, No momento, porém, a politica nfo exercia qualquer influéncia. Examinou as perspectivas de uma carreira académica, para desapontamento do pai, que teria preferido uma ocupagio mais pratica. E teria sido incapaz de imaginar-se um revolucionario. 28 O espirito da época revelava-se nessa atitude, sem diivida. Em outras épocas, os jovens, “freqiientemente, mergulhavam em grupos revoluciondrios clandestinos imediatamente depois de deixar a escola. Isso aconteceu quando ésses grupos fermentavam com idéias novas, eram animados de grandes esperangas e, naturalmen- te, expansivos. Durante a década de 1880 e principios da década de 1890, 0 movimento revoluciondrio estava em seu nadir. Ao assassinar Alexandre II, a Liberdade do Povo cometera suicidio. Seus lideres esperavam que tal feito constituisse o sinal para uma rebelifio nacional, mas nfo conseguiram provocar nenhuma reagio © O pais manteve-se em siléncio. Os que estavam direta e indireta- mente ligados & conspiragaéo morreram na férca e nao apareceram sucessores imediatos para continuar o movimento. Evidenciava-se mais uma vez que, apesar de seu descontentamento, os campo- neses nao estavam com um estado de espirito revolucionaério: para Ges, o assassinato de Alexandre II foi a vinganga da pequena no- breza rural contra o benfeitor dos camponeses. O névo tzar, Alexandre II, revogou a maioria das reformas semiliberais de seu predecessor. Seu principal inspirador foi Po- bedonostsev, seu tutor e Procurador do Santo Sinodo, em cuja mente sombria e arguta estavam encerrados todos os reccios de revolugaéo experimentados pela classe dominante. Pobedonostsev incitou © tzar a restabelecer o total “dominio do pai sébre a fami- lia, do dono da terra sébre suas propriedades e do monarca sdbre toda a Rissia”. Tornou-se uma ofensa louvar o tzar anterior pela aboligéo da servidaio. A jurisdic&o da nobreza rural sdbre os cam- poneses foi restabelecida. As universidades foram fechadas aos jovens de classes inferiores; os periddicos literdrios radicais foram fechados; a nacido, inclusive a intelectualidade, foi colocada de ndvo na sujeicao. O terrorismo revolucionaério mostrou-se impotente ¢ com isso dissipou-se uma outra ilusio narodnik, Uma tentativa de assassinar Alexandre II — Alexander Ulianoy, o ir mais velho de Lénin, participou dela — fracassou. Os sobreviventes da Liberdade do Povo mofavam nas pris6es ¢ no exilio, alimentando suas lembran- gas e perdidos na confusio. Caracteristico da época foi o arrepen- dimento de um dos lideres narodniks, Tikomirov, que divulgou, na Europa ocidental, uma confissao intitulada “Por que deixei de ser revolucionario?”, Alguns ex-rebeldes encontraram um escoadouro para suas energias e talentos na indtstria e comércio, que se ex- pandiam em ritmo muito mais intensivo do que antes. Muitos 29 encontraram seu profeta em Leo Tolstéi, que repudiou com vigor os males da autocracia, mas foi contra a resisténcia pela forga. A doutrina de Tolstéi parecia dar uma sancgio moral a inércia desiludida da intelectualidade. Em Minha Vida, Trotski atribui sua indiferenga politica a ésse estado de espfrito generalizado. A explicagao sé é correta em parte. A verdade é que muito antes de 1896, ano em que deixou Odessa, se iniciara uma renovacio no movimento revolucionario subterraneo. Os marxistas expunham néyo programa e novos mé- todos de aco e grupos de estudantes e operdrios, que se conside- ravam social-democratas, cresciam ripidamente. Através de um re- latério russo contemporaneo & Internacional Socialista sabemos que em meados da década ésses grupos agiam ativamente em Odessa.19 O jovem Bronstein nao conhecia sua existéncia. Evidentemente, nao havia qualquer circulo socialista entre os alunos de Sao Paulo, pois se houvesse teria atraido o mais popular e talentoso aluno da escola. Nem ésse névo movimento encontrou qualquer eco no lar préspero e bem protegido dos Spentzers. Eles pertenciam ao circulo de pessoas nas quais o fracasso narodnik causara uma pro- funda impressio, Afastavam os assuntos realmente perigosos ou falavam déles em voz abafada. Seu radicalismo reduziu-se a um liberalismo amplo, mas timido, que sem dtivida se opunha implici- tamente 4 monarquia. Isso, porém, era muito pouco para impres- sionar seu pupilo. SOmente as idéias claras, ousadas e expostas de forma explicita podem eptusiasmar as inteligéncias e os coracdes jovens. Quando em 1895 Nicolau II subiu ao trono e disse cla- ramente aos Zemstvos de um liberalismo muito moderado que es- quecessem “sonhos absurdos”, 0 coragio de Liova ficou com os “sonhadores”. Mas, como os Spentzers, considerava ser muito qui- xotesco lutar por qualquer modificagio no sistema de govérno existente, i Nesse estado de espirito indefinido, passivamente liberal, uma emocio era sentida com muita intensidade: um anseio pela Eu- ropa e sua civilizagao, pelo Ocidente em geral e suas liberdades. £sse Ocidente era como uma visado da terra prometida — propor- cionava compensacio e conférto para a triste e sérdida realidade da Rtssia. Especialmente entre a intelectualidade judia, aquela 19 Doklad Russkikh Sots. Demokratov Vtoromu Internatsionalu (Gene- bra, 1896) afirma que em Odessa ésses grupos era mais ativos do que no sul da Russia. Ver também P. A. Garvi, Vospominania Sotsialdemo- krata, pigs. 20-1. 30 parte do mundo que nao conhecia pogroms, barreiras e numerus clausus, exercia imensa fascinagiio. Também para uma grande parte da intelectualidade gentia, o Ocidente era a antitese de tudo © que detestavam em sua patria: o Santo Sinodo, a censura, o knout e katorga.*® Muitos dos russos educados se aproximaram do Ocidente pela primeira vez com aquela reveréncia exaltada com que o jovem Herzen o vira antes de desiludir-se com o conhecimen- to préximo do liberalismo burgués. Nos anos posteriores também Liova, como socialista, adquiriria consciéncia das limitagdes da Europa liberal e se voltaria contra ela; mas um pouco de seu en- tusiasmo juvenil pelo Ocidente sobreviveria e daria cér ao seu pensamento, por téda a vida. Foi ésse, portanto, 0 estado de espirito em que deixou Odessa, “a cidade mais policiada numa Russia cheia de policiais”. Sua unica lembranga politica clara da cidade foi uma cena de rua co- minada pelo governador local, almirante Zelendi, homem que exer- cia “poder absoluto com um temperamento incontrolado”. “Vi-o apenas uma vez, ¢ de costas. Mas isso me bastou. Ele estava de pé Na sua carruagem, ereto, e amaldigoava com sua voz aspera, sa- cudindo o punho. Policiais faziam-lhe continéncia e servidores, com o gorro na mao, desfilavam 4 sua frente; atrés das cortinas das janelas, rostos assustados olhavam discretamente. Ajustei_ meu saco de escola e corri para casa”.*1 A centelha da rebeliio ainda nao se acendera no jovem que observava o sitrapa — Cle simplesmente afastou-se com horror do poder dominante e seguiu seu caminho, como se cumprisse o preceito tolstoiano da nao-resisténcia. Katorga: trabalhos forcados. L. Trotski, Moia Zhizn, vol. I, pig. 79. 31 2 Em Busca de um Ideal F oI UMA influéncia casual que colocou o jovem Bronstein em seu caminho revoluciondrio. No verao de 1896, chegava a Ni- kolaiev para completar seus estudos secundarios. Hospedou-se com uma familia cujos filhos j4 haviam entrado em contato com as idéias socialistas, e que discutiram com éle, tentando transmitir-lhe suas opinides. Durante varios meses, pareciam nao conseguir qual- quer progresso. Rejeitou, com superioridade, a sua “Utopia Socia- lista”. Envolvido pelos argumentos, 0 jovem adotaya uma posi mais ou menos conservadora, nao destituida de simpatia pelo povo, mas desconfiando da “ideologia da multidio”, e do “govérno da multidao”. Sua paixio era a matematica pura e nfo tinha tempo, nem gosto, pela politica, Sua anfitrioa, preocupada com as idéias perigosas dos filhos, ficou contente com o bom senso de Bronstein e tentou conyencé-los a imité-lo. Tudo isso nao durou muito. As 33 conversas sébre as injustigas sociais ¢ sdbre a necessidade de mo- dificar 0 modo de vida do pais j4 fermentavam em seus pensamen- tos. Os argumentos socialistas destacavam e se focalizavam nas cenas de pobreza e exploracio que, desde a infancia, estavam guardadas na sua lembranga. Fizeram-no sentir como cra sufo- cante o ar que respirava e conquistaram-Ihe a mente pela novidade e pela magnanimidade ousada. Mesmo assim, continuou resistindo. Quanto mais forte a atrago das novas idéias, mais desesperada- mente se apegava ao conservantismo e a sua indiferenga para com a politica. Seu espfrito de contradigio e seu desejo de vencer na discussio nao lhe permitiam ceder com facilidade. Mas suas defe- sas e vaidade tiveram de recuar. Em meados do ano letivo, reco- nheceu sibitamente a sua “derrota” e imediatamente comegou a argumentar em defesa do socialismo, com um ardor ¢ uma pre- cisio que espantou os seus conversores. Veremos, repetidamente, ésse mecanismo psicolégico funcio- nando néle: frente a uma idéia, em favor da qual est4 condicio- nado a reagir até certo ponto, a principio resiste com uma arro- gancia teimosa; sua resisténcia cresce com a atragio, domina ac dtividas ¢ hesitagio incipientes. E entdo, suas defesas interiores se desmoronam, sua confianga comega a desaparecer, mas ainda é demasiado orgulhoso, ou ainda n&o est4 bem convencido para re- velar qualquer sinal de recuo. Nao ha ainda nenhum indicio exte- rior da luta que se processa em seu cérebro. De repente a nova convic¢ao se consolida néle e, como num tinico momento, supera seu espirito de contradigfio e sua vaidade. Surpreende aos seus antigos adversirios nado apenas pela rendic&o total e desinteressada. mas pelo entusiasmo com que abraga a nova causa e por vézes pelas conclusdes, inesperadas e de grande alcance, a que chega através dos argumentos de seus antigos adversarios. A causa a que acabava de aderir estava confusa em sua mente. Abraga antes um estado de espirito do que uma idéia, Ficaria “com os oprimidos”. Mas quem era o oprimido? Como se tornaya oprimido? E 0 que se devia fazer? Ninguém podia proporcionar-lhe orientagio. Nenhum grupo ou organizagio socialista de impor- cia existia em Nikolaiev. Imediatamente seu socialismo se evi- denciou num novo interésse pelos assuntos sociais e politicos e pelo correspondente enfraquecimento de sua paixio pela matem tica. Comegou a procurar aquéles que tinham opinides e interésses semelhantes, mas com isso afastou-se, desde logo, do ambiente bem protegido onde passara a infancia e adolescéncia. 34

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