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Jacques — Fontanille_ JACQuES FONTANILLE SEMIOTICA DO DISCURSO Traducao Jean Cristtus Portela Publicado com o titulo Sémiorique die Discours pela Presses Universitaires de Limoges (ruts) 39%, rue Camille Guerin F87031 Limoges cedex ~ Franga (Tel: 05 55 01 95 35 ~ Fax: 05 55 43 56 29) ‘wow pulim.unilim. fe ~ e-mail: pulim@unilim fe “Cet ouorage, publié dans le cadre du Programme dAide a la Publication Carle Drummond de Andrade de VAmbasade de France au Brbsil, benefice de rouion du Ministre frangas des Affaires Eerangires” “Exe livzo, publicado no Ambo do programa de participacio & publicagio Carlos Drummond de Andrade da Embaixada da Franga no Brasil, contou com o apoio do Ministétio francés das RelagSes Exteriores editoracontexto Copyright © 1999 e 2003 de Jacques Fontanille “Todos os direitos desta ediclo reservados & Edivora Contexto (Ediora Pinsky Leda) Capa Imagem de sintese criada por J. M. Dischler e D. Ghazanfarpour no MSL, Laboratério de Informética da Universidade de Limoges Diagramagio Gapp Design Revo de tradusio Daniela Marini Iwamoto Revisdo Fernanda Batista dos Santos Dados Internacionais de Catalogacio na Publicagio (CIP) (Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Fontnille, Jacques Semitica do discurso/ Jacques Fontanille; wadugdo de Jean Cristus Portela. — Séo Paulo : Contexto, 2007. Tieulo original: Sémiosique du discours. ISBN 978-85-7244-375-3 1. Anilise do discurso 2. Semiética 1. Tico. 167. CDD-401.41 fodices para cailogo sstemiico 1. Analise do discurso : Comunicagio Linguiscica 401.41 Epirors CoNTExTO: Direcor editorial: Jaime Pinsky Rua Dr, José Elias, 520 ~ Alto da Lapa (5083-030 ~ Sio Paulo ~ sp asx: (11) 3832 5838 contexto@editoracontexto.com.br ‘wwceditoracontexto.com.br 2007 Proibida a reproducio total ou parcial (Os infraores serio processados na forma da lei “[...] de todas as comparagGes que se poderiam imaginar, a mais demonstrativa é a que se estabeleceria entre 0 jogo da lingua e uma partida de xadrez. De um lado ¢ de outro, estamos na presenga de um sistema de valores ¢ assistimos ’s suas modificagées. Uma partida de xadrez é como uma realizacio artificial daquilo que a lingua nos apresenta sob forma natural.” Ferdinand de Saussure Sumario NOTAS DO TRADUTOR..... 7 PREFACIO A EDICAO BRASILEIRA .... PROLOGO.... Do SIGNO AO DISCURSO... 1. Signo e Significagio 1.1. A diversidade das abordagens sobre o sentido 1.2. As teorias do sign 2. Percepsio € Significagao . 2.1. Elementos para recordar 2.2. Os dois planos de uma linguagem 2.3. O sensivel e o inteligivel.... As ESTRUTURAS ELEMENTARES 1. As Estruturas Binérias 1.1. A oposicao privativa 1.2, A oposicao entre os contrario 2. O Quadrado Semistico .. 2.1, As relages constitutivas.... 2.2. A sintaxe elementar 2.3. A polarizacio axiolégica .. 2.4, Os termos de segunda geracio .. 3. A Estrutura Terndria .... 3.1. Os trés niveis de apreensio dos fenémenos 3.2. As propriedades dos trés niveis 3.3. Os modos de existénc: 4. A Estrutura Tensiva 4,1, Problemas em suspenso 4.2. Novas exigéncias .. 4.3. As dimensbes do sensivel... 4.4, A cortelagio entre as duas dimensies .. 4.5. Os dois tipos de correlagao 4.6, Das valéncias aos valores 4.7. Balango. O DISCURSO...... 1. Texto, Discurso, Narrativa .. 1,1. O texto .. 1.2. O discurso 1.3. A narrativa .... 1.4. Texto e discurso 1.5. Narrativa e discurso 2. A Instancia de Discurso 2.1. A tomada de posigao 2.2. A breagem .. 2.3. O campo posicional 3, Esquemas Discursivos 3.1. Os esquemas de tenséo 3.2. Esquemas candnicos 3.3. A sintaxe do discurso Os ACTANTES ... 1. Actantes e Atores . 1.1. Actantes e predicados.... 1.2. Percutsos da identidade, papéis ¢ atitudes 1.3. Actantes e atores da frase 2. Actantes Transformacionais e Actantes Posicionais 2.1. Transformacio e orientagao discursiva 2.2. Os actantes posicionaii 2.3. Os.actantes transformacionais 2.4. Campo posicional e cena predicati 3. As Modalidades 3.1. A modalidade como predicado .. 3.2. A modalizagio como imagindrio passional .. AGAO, PAIXAO, COGNICAO.... 1. A Agio 1.1. A reconstrugéo por pressuposicao A programagio da acéo ... 2. Paixio.. 2.1, A intensidade e a quantidade passionais .. 2.2. As figuras da dimensio passional do discurso 3. Cognicio.... 3.1. Saber e crer 3.2. Apreens6es racionalidades . 4, Interseccbes e Imbricamentos 4.1. Imbricamentos . 42. O sensivel ¢ inteligtvel A ENUNCIAGAO. 1, Recapitulagao 1.1. A instincia proprioceptiva .. 1.2. O campo de presenga.. 1.3. Os regimes discursivos 2. Confrontacdes 2.1, Enunciagio ¢ comunicagio 2.2. Enunciagéo subjetividade 2.3, Enunciacio e atos de linguagem 3. A Préxis Enunciativa 4, As Operacies da Praxis 4.1. As censdes existenciais 4.2. O devir existencial dos objetos semidtico: 4.3, O devir existencial da instancia de discurso 5. A Semiosfera O Autor... O TRADUTOR.... 275 275 277 279 282 287 287 Notas do tradutor 1. Semioticista, Tradutor O semioticista é, por vezes, considerado, nem sempre de forma elogiosa, rara avis da comunidade cientifica: singular, “exético” e, se j4 nao bastasse, insaciével. A alegada voracidade da semiética, ou melhor, das semidticas, parece residir em sua vocacio de pesquisa generalista, universalista e, a0 mesmo tempo, especifica, particularizante. Na sua busca pelo sentido, sem limitar seu campo de estudo a uma linguagem ou cédigo especificos, a semistica parte da observacao dos signos ¢ das redes de relages das quais eles participam e tenta flagrar algo, encontrar um vestigio de padrao, de permanéncia, de configuragao, “cacos” de estrutura nos quais ela imagina ver uma ordem, uma ldgica. Do micro ao macro, da parte para o todo, e vice-versa, ela procura conhecer mais sobre o sentido ou, simplesmente, fazer sentido — ou fazer signo, como diria J. Fontanille. O tradutor — semioticista A paisana — parece gozar de um estatuto e de uma fungdo semelhantes: partindo de uma lingua e de uma cultura que supdem 0 “todo”, a regra, a unidade, ele deve, no entanto, em seu oficio, lidar com a parte e o fragmento, enfrentar a aparente falta de sentido, significar a excecao, formular hipéteses de leitura, procurando integré-las ao “todo” por meio de uma boa medida, de uma justa proporgao. Semisticadodiscurso Notasdotradutor E af que a atividade do semioticista acha eco na atividade do tradutor ou que, ao contrério, o trabalho do tradutor solicita o trabalho do semioticista. Estando ambos interessados na transposig@o do sentido, um conjunto comum de preocupagées esboca-se em torno dessa convergéncia. Como fazer para, no proceso de sansposigéo, assegurar a conservagdo da materia transposta, sua acumulagao, descarte e distribuicao? Eis um verdadeiro desafio de “logistica” semidtica diante do qual aliados, e por vezes sincretizados em um mesmo sujeito, semioticistas e tradutores no podem. se dar ao luxo de recuar. 2. Tradutor, Semioticista Neste livro, este tradutor ou, para ser mais preciso, mas correndo 0 risco de ser redundante, este semioticista que traduz procurou jamais perder de vista o desafio suplementar que a tradugo de uma obra de cunho didético impée para além de sua aparente simplicidade. Sendo o texto didético ja uum tipo de tradugio de um discutso de base, traduzi-lo é sempre uma tarefa delicada que encerra um grande niimero de escolhas prévias. Assim, as questdes de forma ou, simplesmente, de consciéncia multiplicam-se na medida em que se devem administrar trés varidveis que esto indissociavelmente interligadas no texto didético: a teoria propriamente dita, 0 tedrico-didata e seu piiblico-leitor. Em nome do puiblico-leitor, ou melhor, de uma idéia que dele faco — e que, de certa forma, é idéia que fago de mim, de acordo com uma férmula semidtica jd consagrada —, fiz uma opcio clara pela simplicidade e pela legibilidade. Isso nao equivale a dizer que “pasteurizei” Jacques Fontanille, conhecido pela prosa elegante e, muitas vezes, de dificil acesso. Seu leitor contumaz notard que Semidtica do discurso é uma excegéo no conjunto de sua obra. Na verdade, tive o privilégio de traduzir um texto absolutamente econémico e objetivo, que pée em prética a maior parte das formas textuais, discursivas ¢ retdricas que chamamos didéticas (a explanacao progressiva, a reiteracio, a ilustracio, a adverténcia, a cumplicidade e a prudéncia sedutoras, a recapitulacéo, a sugestdo etc.). Sé fiz seguir as marcagées do autor, procurando recuperar seu tom e suas expectativas, para tentar obter um 12 texto que fosse suficientemente legfvel e que, assim, reencontrasse, a seu modo, 0 texto original. 3. Uso de Notas, Adaptacao de Exemplos, Agradecimentos Tanto quanto poss{vel, procurei poupar o leitor de notas de tradugao que, como se sabe, tém a fama (merecida?) de, em certos casos, dificultar ainda mais sua vida. Empreguei-as apenas quando julguei imprescindivel fazé-lo, sobretudo quando tive que comentar termos semiéticos que j4 possuem uma traducio corrente ou quando me vi levado a estabelecer, eu mesmo, uma primeira traducio de um termo. Procurei aclimatar, sempre que possivel (ou necessério), os exemplos empregados pelo autor & lingua e 4 cultura brasileiras, ilustrando os casos mais complexos por meio de notas de traducdo, para permitir que o leitor tivesse acesso tanto ao exemplo em lingua portuguesa quanto ao exemplo original. Quanto as referéncias literdrias, que so muitas e em sua maioria de autores franceses, privilegiei as tradugées brasileiras existentes dos textos citados e adotei um procedimento minimo de insergao de contextualizacao (nome do autor, género da obra, elemento do enredo etc.), na maior parte das vezes diretamente no texto para nao prejudicar a fluidez da leitura. Sem pretender fazer uma lista de agradecimentos exaustiva, fago, aqui, justiga a todos aqueles que contribufram para a realizacio desta tradugio ¢ que sao, sem diivida, os grandes responsdveis pelos acertos deste texto — sendo suas imperfeigdes de minha inteira responsabilidade. Primeiramente, gostaria de expressar minha gratidao a Jacques Fontanille, sempre pronto a responder as minhas questdes, a fornecer-me pistas e, sobretudo, a fazer concessdes quanto & traducao e 4 adaptacao de seu texto. Sou muitfssimo grato aos pesquisadores que, quer solucionando minhas dtividas, quer emprestando- me obras ou indicando-me referéncias bibliograficas, tiveram neste livro um. papel efetivo: Arlindo Machado, Arlindo Rebechi Jr., Arnaldo Cortina, Fernando Brandao dos Santos, Lucia Santaella, Maria Liicia Vissotto Paiva Diniz, Marcelo Carbone Carneiro, Marilena Chaui e Tae Suzuki. Agradeco também a Matheus Nogueira Schwartzmann pela paciéncia com que me ajudou a preparar os originais da tradugao, lendo meu texto e fazendo-me 13 Semi6ticadodiscurso sugest6es sempre acertadas. Seria preciso, ainda, registrar minha gratidao pelos colegas Oscar Quezada Macchiavello e Heidi Bostic, tradutores de Semiética do discurso, respectivamente, para o espanhol e para o inglés. Suas competentes verses da obra de Fontanille foram de grande utilidade, oferecendo-me o contraponto ideal de que nem sempre o tradutor dispée. Por fim, gostaria de agradecer também a Luciana Pinsky, bem como a toda a equipe da Editora Contexto, que, paciente gentilmente, acolheu a proposta inicial desta tradugao e orientou-me ao longo de todo o proceso editorial. Jean Cristtus Portela 14 Prefacio a edicao brasileira A publicacao da traducio brasileira de Semidtica do discurso, oito anos depois da primeira edigao francesa, é uma boa ocasido para se formular uma questo elementar: uma semidtica do discurso ainda € titil nos dias de hoje? Sentimo-nos no direito de formular tal questéo quando consultamos, por exemplo, o Diciondrio de andlise do discurso, de Charaudeau e ‘Maingueneau,! e descobrimos que a maior parte das nogées que orientam o campo da semidtica do discurso foram nele incluidas. Nesse diciondrio podemos encontrar, para citar somente algumas entradas do comego da obra, os seguintes verbetes: actante, ato de linguagem, ator, coeréncia e coesao, conotagdo, embreagem e debreagem, dialogismo, emogio, enunciagao etc, Se a andlise de discurso integrou os conceitos semidticos, haveria ainda um lugar para a semidtica do discurso? Obviamente, a resposta seria negativa se a andlise de discurso, constituindo-se como campo disciplinar emergente, houvesse também integrado 0 préprio projeto semidtico. Ora, sabe-se que nao & esse 0 caso, na medida em que a andlise de discurso trata da andlise em geral (sem que esse termo seja, de fato, definido) e nao especificamente da construgao da significagao discursiva. Recorrendo a apenas dois exemplos, os casos da embreagem/debreagem e da emogio, constata-se que a abordagem tpica Semisticadodiscurso da andlise de discurso concerne ao mesmo tempo, tanto em um caso como no outro, (1) ao inventétio das diferentes manifestag6es no plano da expressio € (2) &s diferentes fungdes que cada uma dessas manifestag6es ocupa na troca comunicacional. Diferentemente da semidtica, a andlise de discurso nao tem por objetivo especificamente, por exemplo, a compreensio e a interpretacdo das emogGes ¢ aquilo que hd de busca e construcao do sentido em sua manifestagéo discursiva. Portanto, a semidtica do discurso tem ainda um lugar no campo das ciéncias da linguagem, 0 que se deve téo-somente A preocupago seméntica que a caracteriza e a diferencia de todas as outras abordagens provenientes da anélise de discurso. Diante disso, ¢ preciso entio se perguntar sea. semiética do discurso algo mais do que uma semantica. O projeto de uma seméntica discursiva (e nao textual) j4 havia sido constituido, hé ndo muito tempo, por Benveniste, e € desse projeto que a obra de Jean-Claude Coquet nasceu e que uma parte da obra de Algirdas Julien Greimas tomou forma. Releiamos Benveniste: A linguagem reproduz a realidade. Isso deve entender-se da maneira mais literal: a realidade é produzida novamente por intermédio da linguagem. Aquele que fala faz renascer pelo seu discurso o acontecimento e a sua experiéncia do acontecimento. Aquele que 0 ouve apreende primeiro o discurso ¢, através desse discurso, 0 acontecimento reproduzido. Assim a situagio inerente a0 exercicio da linguagem, que é a da troca e do didlogo, confere ao ato de discurso dupla funco: para o locutor, representa a realidade; para o ouvinte, recria a realidade? Se o texto e seus constituintes ndo contraem relacéo de pertinéncia com a realidade, 0 mesmo nfo se dé com o discurso, ¢ a questo que surge, ent&o, consiste em saber se os processos significantes so os mesmos para um texto que ndo tem relacéo com a realidade e para um discurso cuja principal fungao é “te-produzir” e “re-criar” a realidade. Em outras palavras, estabelecendo um elo entre o acontecimento primeiro, a experiéncia que dele se originou e a experiéncia produzida pela reprodugdo desse acontecimento, o discurso adquire um “sentido” que nao pode ser reduzido as unidades lingiifsticas que ele emprega? A questo pode ainda ser reformulada deste modo: qual significacdo especifica se constréi ao longo 16 Prefacio a edigao brasileira desse processo de reconfiguragao da experiéncia, entre a experiéncia vivida, a.experiéncia manifestada no discurso ea experiéncia suscitada pelo discurso? E verdade que em Benveniste, quando se aborda o dominio do discurso, deixa-se 0 campo semidtico (aquele dos signos e da significagao) para entrar no campo da comunicacéo.3 No entanto, uma semantica desse novo dominio parece posstvel, uma semantica que nao se reduz apenas as fungSes que os enunciados lingiifsticos desempenham na troca e no didlogo. Quando Benveniste estuda, por exemplo, a “natureza dos pronomes”, ele esclarece que “o problema dos pronomes ¢ a0 mesmo tempo um problema de inguagem e um problema de linguas, ou melhor, [...] sé é um problema de linguas por ser, em primeiro lugar, um problema de linguagem [e de] ‘instancias de discurso’[ Se uma semintica dessas “instancias de discurso” é possivel, é justamente porque 0 ato de discurso ¢, em si mesmo, produtor de “significancia” (Benveniste reserva “significacéo” ao sentido das unidades da lingua). Este sentido discursivo é ativado na apropriagio da lingua pela enunciagio, nessa “gtualizacao” pela qual todas as novas articulacées significantes assim produzidas sero chamadas “atuais”. Em suma, pode-se apreender o sentido do discurso somente na atualidade que define o ato de discurso. O projeto da semidtica do discurso estd assim delimitado: a enunciagao carrega em si uma semiose em ato ¢ é dessa semiose que deve a semistica do discurso tratar. Para Benveniste, a semantica discursiva nao pode se reduzir a0 “quadro figurativo” da enunciagéo, ao qual, no entanto, ele consagrou a maior parte de suas contribuicées, pois o desafio é bem mais abrangente: € © desafio da “semantizacao da lingua’ > Portanto, a semidtica do discurso é uma semistica do particular, do atualizado e do individual. Todavia, ela ¢ também uma esquematizacéo que aspira & generalidade, ao menos por meio de seus conceitos ¢ métodos. E a grande dificuldade consiste em — ainda que as exigéncias da teoria e da metalinguagem levem a generalidade — nao esquuecer que esas generalidades dizem respeiro a fatos pariculares€ a discursos conereios. Eis por que o livro que € aqui proposto em tadugio foi concebido paralelamente a um outro, que o completa ¢ o poe em prética: Sémiotique et littérature (Semiética ¢ literatura], volume composto por uma série de 7 Semi6ticadodiscurso estudos concretos que tratam sobre algumas configuracées tipicas da semidtica do discurso e consagrado a obras ou fragmentos de obras literdrias. No entanto, apenas 0 interesse por andlises concretas nao é suficiente para ancorar definitivamente a semiose na atualidade do ato, nao mais do que os desenvolvimentos concernentes & enunciagio ¢ as trés principais dimensées sintagmaticas do discurso, a aco, a paixao ¢ a cognicao, que séo temas obrigatérios aos quais este livro, agora langado em traducio brasileira, confere toda a atengao necesséria. De acordo com as prescrigdes de Benveniste, a atualidade da semiose discursiva pode-se fundar somente sobre © exame atento dos procedimentos de conversao da experiéncia em linguagem e da linguagem em experiéncia. Desse modo, serd na experiéncia sensfvel, encarnada em um corpo enunciante, que os dois planos da linguagem, a expressio e o contetido, serao instaurados solidariamente a partir das primeiras impressdes significantes exteroceptivas ¢ interoceptivas, respectivamente. Todavia, a solidariedade entre esses dois tipos de impressGes e entre os dois planos da linguagem sé se deve @ um tnico principio: seu enraizamento comum em um terceito tipo de impress6es, as proprioceptivas, impresses do préprio corpo enquanto corpo sensivel. Desse primeiro gesto, assim como dessa solidariedade proprioceptiva entre os dois planos da semiose, vao se originar todos os outros, especialmente © controle tensivo imposto 4 formagio dos valores, da actancia,* das paixes ¢, de uma forma mais abrangente, da organizacao sintagmitica do discurso, de seus esquemas ritmicos, prosédicos e axiolégicos. Jacques Fontanille * NIT: (Nota de tradugio): No original, aceance. 18 Prefiicio a edigao brasileira Notas " R Charaudeau ¢ D. Maingueneau (orgs.), Dicionério de andlise do discurso, trad. Fabiana Komesu et al, 2. ed, Sio Paulo, Concexto, 2006. 2 E, Benveniste, Problemas de ling Pontes, 1995, p. 26. Idem, p. 139. + Idem, p. 277. +E. Benveniste, Problemas de lingistca geralt, trad. Eduardo Guimaraes ec al , Campinas, Pontes, 1989, p. 83. stca geral, trad. Maria da Gléria Novak e Maria Luisa Neri, 4. ed., Campinas, © J. Fontanille, Sémiotique et litératute: esais de méthode, Paris, UF, 1999. 19 Prélogo Este manual destina-se a estudantes de graduacdo e pés-graduagéo e também a todos aqueles que, jé um pouco informados a respeito das teorias € métodos préprios &s ciéncias da linguagem, se interessam pela teoria da significagZo. Este livro, na verdade, propde uma sintese das aquisigdes da pesquisa em semidtica. Outros manuais de semistica, concebidos e publicados ao longo dos anos 1970 e 1980, jé oferecem uma visio de conjunto da disciplina, na perspectiva da andlise estrucural de textos. Em resumo, 0 presente manual pretende apresentar “o que aconteceu” desde ento, nos anos 1980 1990, conservando como pano de fundo as aquisig6es anteriores. Essas diferentes pesquisas desenvolveram-se, certamente, em perspectivas quase sempre divergentes, por vezes até mesmo francamente polémicas. Considerar a possibilidade de fazer a sintese dessas diferencas significa, conseqiientemente, aceitar apagar em parte tais divergéncias para conservar somente as grandes linhas de convergéncia. E também deixar de levar em conta certas proposig&es mais dificeis de serem integradas. Cada uma das pesquisas aqui exploradas — especialmente as de Denis Bertrand, Jean-Frangois Bordron, de Jean-Claude Coquet, de Jean-Marie Floch, de Jacques Geninasca, de Claude Zilberberg — perderé em especificidade certamente, mas a disciplina Semidticadodiscurso no seu conjunto ganhard, assim esperamos, em “legibilidade”, como se diz hoje em dia. O que aconteceu afinal? Nos anos 1960, a Semidtica constituiu-se como um ramo das ciéncias da linguagem na confluéncia da lingiifstica, da antropologia da légica formal. Como todas as outras ciéncias da linguagem, a semidtica atravessou o periodo dito “estrutural”, do qual ela saiu dotada de uma teoria forte, de um método coerente... ede alguns problemas nao resolvidos. O periodo estruturalista ficou para trés, o que nao significa, entretanto, que as noc: Ges de “estrucura’ e de “sistema” nao tenham mais pertinéncia. O contexto no qual evoluem hoje as ciéncias da linguagem é completamente outro: as estruturas tornaram-se “dindmicas”, os sistemas se auto-organizam, as formas inscrevem-se em topologias ¢ 0 campo das pesquisas cognitivas ocupou, estejamos de acordo ou nao, o lugar do estruturalismo em sentido restrito. Em muitos aspectos, essa mudanga ainda é superficial, nao modificando profundamente as hipéteses e os métodos que, para além das modas intelectuais, definem em profundidade 0 espirito das ciéncias da linguagem. Todavia, solidéria a seus vizinhos mais préximos, a semiética encontrou, 20 longo dos quinze tiltimos anos, e ainda encontra hoje em dia novas questdes: ela descobre novos campos de investigacéo e desloca progressivamente seus centros de interesse. De um ponto de vista geral, uma episteme pode ser considerada como uma hierarquia de sistemas que organiza o campo do saber. Contudo, do ponto de vista de uma disciplina especifica, uma episteme é também um principio de selegdo e de regulacio do que se deve, em uma época dada, set considerado como pertinente ¢ “cientifico” para essa disciplina. Assim, a mudanga adquire, as vezes, 0 cardter de uma abertura das perspectivas, quando nao o de uma transgressao consensual das coergdes epistemolgicas. O que era proibido € entéo questionado ¢ torna-se novamente posstvel; o que era excluido volta a0 dominio das preocupacées. A “inovacao” teéricae metodoldgica é, freqiientemente, apenas um efeito de sentido do esquecimento ou de uma exclusio categérica anterior, Portanto, a prudéncia recomenda que evitemos, com afinco, decretar rupturas epistemolégicas ¢ mudangas de paradigmas quando estamos diante, simplesmente, de um “retorno do recalcado”. 7 iia 5 Prologo ©, Renovar nfo é, portanto, renegar. Por exemplo: o estruturalismo postulou como princfpio que somente os fenémenos descontinuos € as oposigées © chamadas “discretas” sao inteligiveis e pertinentes. Isso sem considerar os ~ processos de emergéncia e instalaco desses fendmenos ¢ dessas oposigbes, = processos 20 longo dos quais os fendmenos atravessam fases em que as modulagées continuas ¢ as tensdes graduais predominam. Do ponto de vista da lingua, concebida como um sistema abstrato e fechado, essas fases anteriores nao séo pertinentes. No entanto, o discurso e sua enunciagio nao sao 0 tinico reflexo da lingua ¢ de seu sistema: eles compreendem, antes de tudo, os processos de emergéncia ¢ de esquematizacao do sistema ¢, principalmente, os processos que o formam a partir da percep¢ao do mundo « sensivel. Hoje, portanto, relativizarfamos o propésito original e diriamos — © que, certamente, sé as descontinuidades sao inteligiveis, mas estas s6 0 sdo completamente se levarmos em conta os processos que conduzem a elas. discretas que deles resultam._ Um outro exemplo. A semiética estrutural, como as outras disciplinas de inspiracao estruturalista, fazia 0 elogio da formalizagio. O formalismo, que se apresenta, dentre outras maneiras, sob a forma de um sistema de notacéo simbédlica, explicita e codificada, traduz o caréter puramente conceitual, fixo e acabado das formas descritas. Mas, como dissemos anteriormente, essas formas acabadas passaram por outras fases, nas quais elas eram ainda instaveis e em devir. Além do mais, ao longo dessas fases anteriores, clas adquiriram propriedades “sensiveis” e “impressivas” que, em seguida, a formalizacao as faz perder. O formalismo simbélico nao é, portanto, mais adaptado a essas novas preocupacées. A “forma”, ¢ claro, permanece sendo 0 objetivo a ser alcancado, assim como sua descrigao tanto, nesse exercicio, a representagao topoldgica, por exemplo, | tomard vantajosamente o lugar da notagio simbélica. De uma maneira geral, € preferivel uma esquematizagao da significagao em devir do que uma formalizacao acabada. Todas as ciéncias da linguagem que buscaram dar conta, ao mesmo tempo, das formas e das operacées que as suscitam, que quiseram levar em consideracao as fases do processo tanto quanto seu resultado, foram obrigadas mais explicita possivel; no 23 Semi6ticadodiscurso a mudar. As posigdes em um espaco abstrato — deformével, mas controlado por parimetros conhecidos ~ substituem, a partir de agora, as seqiiéncias de simbolos ¢ seus correlatos terminolégicos. O que aconteceu nos anos 1980 e 1990 foi também, e acima de tudo, o aparecimento de novos temas de pesquisa que haviam sido antes quase sempre descartados. Sim, descartados, pois mesmo que dissessem respeito perfeitamente & semidtica como disciplina foram excluidos de seu campo de interesse em nome dos principios do escruturalismo. A objetividade cientifica proibia, por exemplo, o interesse pelo implicito e pelos subentendidos do discurso. No entanto, esses temas foram reintroduzidos 20 longo dos anos 1980, no movimento inspirado, de um lado, pela pragmética e, de outro, pela lingitistica da enunciacio. Isso néo contradiz o fato de que, desde os anos 1930, Bakhtin jé opunha & lingifstica formal 0 estatuto implicito ¢ subentendido do sentido preciso daquilo que ele chamava de “enunciado” da orientagao axiolégica e ideoldgica do discurso. Um dos pecados capitais da prética cientifica para o estruturalismo era 0“mentalismo”. Desse modo, encontravam-se excluidas do campo da reflexéo. cientifica a impressio subjetiva, a introspeccao, a psicologia intuitiva etc. ¢, conseqtientemente, tudo 0 que de perto ou de longe parecesse atestar esses erros do pensamento. Gustave Guillaume era, muitas vezes, rejeitado por inscrever no psiquismo do sujeito de linguagem 0 “tempo operativo”, necessétio, segundo ele, & formacio das realidades lingiiisticas, Noam Chomsky era tenazmente questionado por atribuir os julgamentos de gramaticalidade & intuicao dos sujeitos falantes ~ na verdade, & introspeccéo dos lingitistas profissionais. Gérard Genette recusava, por fim, a nocao de “ponto de vista” por ser dependente demais da psicologia da percepsio. Compreende-se, assim, por que a semiética levou algum tempo para redescobrir as emogdes e as paix6es, a percepcao ¢ seu papel na significacéo, as relagSes com o mundo sensivel esua conivéncia para com a fenomenologia. No entanto, ninguém duvida de que os discursos concretos encenem acontecimentos ¢ estados afetivos e que a percepcao organize as descricées € 08 ritmos textuais. A semiética levou algum tempo para abordar tais fendmenos, pois era preciso descobrir os meios para tratar todos esses temas como propriedades do dscurso, e nao como propriedades do “espifito”, como 24 sia I | i | | | | Prélogo temas préprios a uma teoria da significacio, e no a um ramo da psicologia cognitiva, Os fendmenos eram reconhecidos, faltava construl-los como objetos de conhecimento do ponto de vista da semidtica do discurso. Aparentemente, tais conquistas séo irrevogéveis: agora se pode falar de paixdes e de emogGes discursivas da mesma forma que se pode falar de enunciagéo do discurso ou de uma légica narrativa ou argumentativa do discurso. E isso sem, para tanto, reduzir 0 discurso ao estatuto de um simples sintoma, revelador de um estado psfquico que Ihe seria exterior. A semiética, que fez do discurso nao somente seu dominio de exploracéo, mas, melhor ainda, o objeto de seu projeto cientifico, tem hoje a capacidade de abordar essas novas quest6es sem renunciar, para tanto, o quea inaugura como uma disciplina auténoma. Nés nao insistiremos aqui por mais tempo sobre essas novas preocupacées: esses diferentes aspectos jé foram evocados em outros trabalhos ou seréo amplamente tratados mais adiante. Gostariamos somente de recordar duas dimenséesessenciais desse deslocamento de interes tensivas e graduais, © primeiro deslocamento conduz a uma sintaxe geral das operacées discursivas. Desse modo, considerar- iverso.da. significagéo mais como uma praxis do que como um amontoado estével de formas cristalizadas. O segundo deslocamento conduz a uma semantica das tensdes € das gradagées que é compativel, embora concorrente, com a semantica diferencial cldssica. Este livro é um manual, dizfamos nds. Ora, um manual deve obedecer a alguns princfpios de base que deveriam facilitar 0 acesso aos resultados apresentados: as aquisigdes da pesquisa devem aparecer sob uma forma sistemética e coerente, explicita ¢ operatéria. Entretanto, na maioria das vezes, deixa-se a0 tempo a responsabilidade do trabalho, e aos didatas ¢ pedagogos a missio de recolher os resultados dessa experiéncia. A conseqiiéncia direta desse fato é que, freqiientemente, as aquisicses da pesquisa so utilizadas no ensino somente dez ou quinze anos depois. ‘Aqui corremos o risco de nao esperar que o tempo trabalhe em nosso lugar. Realmente trata-se de um risco, pois 0 tempo valida ou invalida, 2 Semisticadodiscurso Prélogo conserva ou relega ao esquecimento, hipdteses € proposigées da pesquisa. O tempo filtra, tria e constréi pouco a pouco as condicées de uma coeréncia, de uma sistematicidade e de uma explicitago completa. Logo, precisaremos, nds também, filtrar, triar, conservar e rejeitar — ¢ organizar. Na falta do tempo, adotaremos, para tanto, um ponto de vista... a E a escolha de um ponto de vista de conjunto, sustentado com perseveranca, que conferird & nossa tentativa de s{ntese sua coeréncia, sua sistematicidade e seu cardter explicito. Esse ponto de vista serd o do discurso em ato, do discurso vivo, da significagao em devir. Essa escolha serd, inicialmente, apresentada e justificada no capitulo “Do signo ao discurso”. Escolher o ponto de vista do discurso em ato é, na verdade, mais do que observar e segmentar unidades minimas: € escolher observar a maneira pela qual a praxis semidtica esquematiza nossa experiéncia para fazer dela linguagens. A semidtica como nés a concebemos, na perspectiva definida por Greimas ha mais de trinta anos, é a dos conjuntos significantes, mas dos conjuntos significantes em construgao e em devir. Nossa escolha serd posta em pratica, em seguida, no que diz respeito as formas de base das quais toda teoria semidtica deve dotar-se: as estruturas elementares. Na verdade, se a unidade pertinente da semiética do discurso nao pode ser o signo, é porque ela esta & procura do sistema de valores que organiza cada “conjunto significante”. / Aqui esse sistema de valores assume a forma da estrutura tensiva, No capitulo “O discurso”, examinaremos todas as conseqiiéncias da escolha proposta. Também proporemos uma representa¢ao global do discurso como campo (uma forma topoldgica), bem como o exame de diferentes tipos e niveis de esquematizacao, esquemas de tensio e esquemas candnicos. Em “Os actantes” e “Acao, paixio, cognigio”, outras conseqiiéncias sero extraidas de nossa escolha inicial acerca de temas que jd sao clAssicos da teoria semidtica. Com relacio & teoria actancial, mostraremos que a concorréncia entre duas Idgicas, a légica dos lugares ¢ a ligica das forcas, leva-nos a distinguir os actantes posicionais do discurso ¢ os actantes transformacionais da narrativa, Acerca das grandes dimensoes do discurso, mostraremos em que a perspectiva do discurso em ato modifica as légicas respectivas da aco, da paixao e da cognicao. 26 | | | | Por fim, 0 capitulo de concluséo empenhar-se-4 em postular um lugar para o conceito de enunciagio. De fato, esse conceito nao conheceu poucos dissabores. Depois de ter sido “esquecido” pelo estrucuralismo, ele se tornou preponderante nas lingiifsticas pés-estruturais, Até mesmo as reflexdes de Guillaume converteram-se mais tarde em teoria enunciativa. Depois de ter sido bem pouco, a enunciacao seria “tudo” - tudo o que nao é redutivel a um sistema fechado e cristalizado. Assim, por vezes, 0 sujeito da enunciagéo 6 identificado estritamente com a instancia de discurso em geral. Explicar tudo, como bem se sabe, equivale a nada explicar. Eis por que, para concluir, seguindo sempre a perspectiva do discurso em ato, nés nos empenharemos em tornar mais preciso 0 conceito de enunciacio. 27 Do signo ao discurso Na histéria das teorias da significagao, ao final do século xix, com Peirce, € no comego do século xx, com Saussure, nasce uma nova disciplina, a semiética, que se ocupa da tipologia dos signos e dos sistemas de signos. Entretanto, hoje, essa disciplina orienta-se fortemente em diregéo a uma teoria do discurso e volta seu interesse para os conjuntos significantes. Este capitulo propde reexaminar as teorias do signo sob essa nova ética. O que se pode conservar das teorias da significagaio na perspectiva de uma semistica do discurso? O que acontece quando se coloca entre parénteses a questiio das unidades minimas da significagao? E quando se substituital questao pelo problema dos conjuntos significantes e dos atos que produzem os disoursos? Chega-se, ento, Aconclusdo de que a percepeao ea sensibilidade ressurgem nos estudos semidticos. 1. Steno € Sienricagho Na grande diversidade de concepgdes sobre o sentido, ao menos uma constante delineia-se: distingue-se quase sempre a significagao como produto, como relagao convencional ou ja estabelecida, da signiticagéo em ato, da significagao viva, que parece sempre ser mais dificil de apreender. Entretanto, apesar da dificuldade, é a segunda perspectiva que nés escolheremos, pois 0 campo de exercicio empirico da Semistica é 0 discurso, e nao o signo:a unidade de andlise é um texto, seja ele verbal ou ndo-verbal As teorias do signo, examinadas dessa perspectiva, fazem surgir quatro propriedades principais da significagao. De Saussure aproveitaremos somente, de um lado, a coexisténcia de dois ‘mundos', 0 mundo interior dos significados @ 0 mundo exterior dos significantes, e, de outro, a definigéo da significagao Semisticadodiscurso Dosignoaodiscurso como sistema de valores. Ademais 1 Signo e Significacao de Peirce, aproveitaremos, sobretudo, a primazia do interpretante, isto 6, do ponto de vista que orienta a visada* sobre 0 | sentido, ¢ a importancia do fundamento, que impée os limites de um dominio de pertinénciana apreenséo da significagao. LL A diversidade das abordagens sobre o sentido 2. PERCEPGAO E SiGNIFICAGAO. Os dois planos da linguagem substituem, a partirde agora, as duas faces do signo. Sejam quais forem os nomes que se lhes dé, os dois planos da linguagem sao separados por um corpo perceptive que toma posigéio no mundo do sentido, que define, gracas a essa tomada de posigo, a fronteira entre o que. seré da ordem da expresso (0 mundo exterior) e o que serd da ordem do contetido (o mundo interior). E também esse corpo que retine esses dois planos em uma mesma linguagem. Portanto, o sensivel e o inteligivel esto irremediavelmente ligados no ato ‘que reuine os dois planos da linguagem. A semistica do discurso, assim como as ciéncias cognitivas, nfo pode mais ignorar a interago do sensivel e do inteligivel. Na verdade, a formagao das categoriase a significacao em ato sao elas préprias. submetidas ao regime do sensivel. A semantica do protetipo ensina-nos, entre outras coisas, que pode haver “estlos" de categorizagao, e nés mostraremos que a diferenga entre esses diferentes estilos repousa sobre 0 peso que eles atribuem, respectivamente, ao sensivel e ao inteligivel. 11.1. SENTINO, SIGNIFICAGAO E SIGNIFICANCIA Dispée-se de trés termos para designar os fendémenos semidticos em geral: sentido, significacdo ¢ significancia, L111 O sentido O sentido é, em primeiro lugar, uma direpdo: dizer que um objeto ou uma situagéo tem um sentido é, na verdade, dizer que eles tendem a algo. Essa “endéncia a’ ¢ essa “direcao” muitas vezes foram interpretadas, erroneamente, como pertencentes a reféréncia, Na realidade, a referencia ¢ apenas uma das diregées do sentido. Outras diteges so posstveis. Por exemplo, um texto pode tender a sua propria coeréncia e € isso que nos faz compreender o seu sentido; ou, ainda, uma forma qualquer pode tender a uma forma tipica jé conhecida e € isso que nos permitiré atribuir-lhe um sentido. Portanto, 0 \ sentido designa um efeito de diregao e de tensio mais ou menos conhectvel, k produzido por um objeto, uma pratica ou uma situagéo quaisquer. O sentido é, afinal, a matéria amorfa da qual se ocupa a semidtica, que se esforca para organiz4-la e torné-la inteligivel. Tal “matéria” (purport, na obra de L. Hjelmslev em inglés) pode ser de natureza fisica, psicolégica, social ou cultural. Todavia essa matéria nao é nem inerte e nem somente submissa as leis do mundo fisico, psicoldgico ou social, jé que ela é trespassada por tensdes e direcdes que constituem, do mesmo modo, apelos a significacao, presses ou resisténcias para um interpretante. A condi¢éo mfnima para que uma “matéria” qualquer ido identificavel é, portanto, que ela possua o que nés chamaremos, daqui em diante, uma_ morfologia intencional. . * NIT: No decorrer de toda a obra, as tradugdes adoradas para “viser” (verbo), “vise(e)” (adj) e “visde” (oubs.) ; sero, respectivamente, “visar” (como verbo transitivo direto), “visado(a)” € “visada”, salvo nos casos em que 0 } ionific voctbulo “vise”, desprovid de sua epecifcidade mecalinglistica,venha ser empregade como expresdo covet 1112. A significagao = lingua, no ae cree ¢ = Por = = objee” Som io, a a a Sopesur ria | A significagéo é 0 produto organizado pela andlise. E 0 caso, por exemplo, esses termos, origindrios do vocabulirio da fenomenologia e muito feqUentes, sobretudo, nas radusdes Fancesas ‘ : a 5 i dde Edmund Husser e em alguns textos de Maurice Merleau-Ponty. : do contetido de sentido atribuido a uma expressao a partir do momento em 30 i) Semiéticadodiscurso que essa expressio foi isolada (por segmentacéo) ¢ que se verificou que esse contetido Ihe é especificamente inerente (por comutacéo). Portanto, a significacdo diz respeito a uma unidade, nao importa qual seja seu tamanho — Jembremos que para nés a unidade ideal é 0 discurso —, ¢ repousa na relagao entre um elemento da expresso ¢ um elemento do contetido. Por isso, fala-se sempre em “significagao de... algo”. Conseqiientemente, dir-se-4 que a significagdo, por oposigao ao sentido, é sempre articulada. De fato, na medida em que ela é somente reconhecivel apés sua segmentacao e comutagio, s6 se pode apreendé-la por meio das relacdes que a unidade isolada mantém com as outras unidades, ou que sua significagdo mantém com outras significagées disponiveis para a mesma unidade. Assim como a nogio de “direcao” € indissocidvel do sentido, a nogio de articulagao é, por definicéo, relacionada 2 significacao. Por muito tempo reduziu-se a nocio de articulagio & nocéo de diférenca e, até mesmo, de diferenca entre unidades descontinuas. Entretanto, esse é somente um dos casos possiveis. Por exemplo: uma categoria semantica como 0 calor é uma categoria gradual, e seus diferentes graus (isto &: friolgelado) distinguem-se sem necessariamente opor-se. Um exemplo mais preciso: se 0 gradiente é orientado, a significagao de alguns de seus graus, por exemplo, morno, seré diferente no caso de o gradiente ser orientado positivamente para 0 quente (morno é entdo pejorative) ou positivamente para o fio (moro € ento meliorativo). Vé-se que a significago depende da polarizagao de um gradiente, Além disso, segundo a cultura e a lingua, as vezes até mesmo de acordo com o discurso em questio, 2 posicio relativa do pélo frio ou quente muda. Desse modo, 0 grau morno apareceré como mais préximo do pélo frio ou do pélo quente. Se se percorre o gradiente no sentido de sua polaridade, do negativo para o positivo, encontra-se entéo um limiar que determina o surgimento do grau morno. Portanto, os tipos de articulagées significantes sio bem diversos: oposigées, hierarquias, graus, limiares e polatizacées. 1113.A significancia A significincia designa a globalidade dos efeitos de sentido em um conjunto estruturado, efeitos estes que ndo podem ser reduzidos aos das unidades que compéem o conjunto. Portanto, a significdincia nao é a soma das significagbes. Este termo teve numerosas acepgées, especialmente psicanaliticas, cujo valor operatério é dificilmente controlavel. Entretanto ele suscita principalmente 32 Dosignoaodiscurso uma questio de método: deve-se conduzir a andlise das unidades menores em diregdo as maiores ou 0 contrétio? O conceito de significacio, em sentido restrito, corresponderia & primeira opsao, ¢ 0 de significancia, & segunda opcao. O termo significdncia nfo & quase mais utilizado, pois ele pressupde uma hierarquia que no é mais pertinente hoje em dia. Na verdade, essa hierarquia se justificaria somente em um contexto cientifico no qual ainda se acreditasse que o sentido das unidades determina o sentido dos conjuntos mais amplos que as englobam. A escolha que fizemos, que foi por uma semidtica do discurso, obriga-nos a considerar que a significagio global, a do discurso, rege a significagio Tocal, a significagao das unidades que o compéem. Mostraremos, por exemplo, como a orientacao discursiva impoe- se 4 prépria sintaxe das frases. Isso nao significa, entretanto, que a microandlise ndéo tenha mais pertinéncia, mas que ela deve simplesmente permanecer sob o controle da macroanilise. Como hoje nao se acha mais muita gente que acredite que 0 “local” determina 0 “global”, o termo significagio adquiriu agora, na maior parte dos casos, uma acepc4o genérica, englobando o termo significdncia. E dessa forma que nés vamos empregé-lo. 1.1.2. SEMIOTICA E SEMANTICA Benv iste propunha distinguir duas dimensdes da significagéo: a dimensao das unidades da lingua, de tipo convencional, fixada pelo uso ou pelo sistema da lingua, ¢ a dimensao do discurso, isto é, das realizacoes lingiifsticas concretas, dos conjuntos significantes, produzidos por um ato de enunciagao. A dimensao semidtica corresponderia, segundo ele, & relacao_ convencional que liga o sentido das unidades da lingua e sua expresso morfolégica ou lexical, e a dimensao seméntica equivaleria & significagao_ < das -enunciagdes concretas, assumidas por “instincias de discurso”. de discurso”. Essa distingZo no foi adotada pela comunidade dos Tingilistas, que reservam a denominacao semdntico ao estudo dos contetidos em si, especialmente no dominio lingiifstico, e a denominacao semidtico a0 estudo dos processos significantes em geral. Contudo a questéo formulada é ainda atual: como se viu anteriormente, além das relagées entre 0 “local” €0 “global”, & a questéo das duas formas de abordagem da linguagem que surge neste 33 Semidticadodiscurso momento. De um lado, uma abordagem estética, que sb diz respeito as unidades institufdas, estocadas em uma meméria coletiva sob a forma de um sistema vireual; de outro, uma abordagem dindmica, isto é, sensivel aos atos € as operagGes e que diz respeito & significacéo “viva” produzida pelos discursos. A semidtica otigindtia dos trabalhos de Peirce também propés distinguir a seméntica (significagao das unidades), a sintaxe (as regras de combinagéo das unidades) e a pragmdtica (a manipulacéo das unidades e de suas combinacdes ‘por sujeitos ¢ para sujeitos individuais e coletivos em situacéo de comunicacio). A solucio € diferente, mas a questéo abordada é idéntica: o discurso € simplesmente uma “concretizagao”, uma “apropriagdo individual” das unidades insticufdas ¢ organizadas em sistemas ou, na verdade, ele comporta suas préprias regras € seus prdprios efeitos de sentido? No entanto, se adotamos 0 ponto de vista do discurso em ato, a distingao entre seméntica, sintaxe e pragmdtica revela- se pouco pertinente do ponto de vista do método. De fato, € preciso que, tendo considerado de perto as operagées enunciativas, possamos irradiar suas conseqiiéncias na sintaxe e na semantica do discurso. Poranto, nessa perspectiva, elas ndo podem ser tratadas separadamente. 113. Por QUE ESCOLHER? A solugao que consiste em separar a questo do sentido em duas ou trés dimensoes de significagao nao pode ser mais do que uma solugao proviséria, uma solugio historica necesséria, mas que se depara rapidamente com questdes que ela tem alguma dificuldade em resolver. Por exemplo: todos esto de acordo com a distingéo do “sentido na lingua” de uma unidade e de seu “sentido no discurso”. Essa distingio nao acarreta problemas insuperdveis enquanto o “sentido no discurso” for uma das acepg6es possiveis do “sentido na lingua’; dir-se-ia, entio, que o discurso seleciona uma das acep6es da palavra. No entanto, 0 que acontece quando as duas significagées néo coincidem mais? Evidentemente, um “sentido no discutso” que nao esté previsto na Iingua exige um esforgo de interpreta¢ao suplementar e um outro procedimento de interpretacao, diferente daquele que consiste somente em extrair interpretagGes de um estoque virtual, mas igualmente possivel ¢ legitimo. Muito freqiientemente, mas nao necessatiamente, essa nova acepgio € produzida por uma figura de retérica. Acontece até mesmo de algumas dessas acep¢ées retornarem & I{ngua, por exemplo, sob a forma de catacrese (0 bico da chaleira, a asa da xicara). 34 Dosignoaodiscurso Essa tiltima observacao indica claramente o nivel de pertinéncia das distingdes que mencionamos até agora: trata-se de procedimentos de codificagéo e decodificagao das linguagens, operagao facil ou dificil, automatizada ou mais elaborada, conforme o sentido das unidades seja ou nao conhecido. Contudo essas distinges, entre as varias modalidades de codificagao e decodificagao das linguagens, nao nos dizem nada sobre o processo de significacéo em si, como ele é concretizado pelos atos do discurso. Além do mais, 0 raciocinio néo deve, quanto a isso, embasar-se somente na linguagem verbal, que dispde de um vasto estoque de formas codificadas, pois, a partir do momento em que se consideram as linguagens nao-verbais — gestuais, visuais etc. —, realmente se é obrigado a admitir que nelas o papel da invengao, pelo discurso, das expresses e de sua significagao € bem maior, pois, do ponto de vista da organizacao das unidades no sistema, as linguagens esto longe de ser homogéneas. Se podemos estabelecer as “linguas” de uma linguagem verbal, estamos bem longe de fazer 0 mesmo no que diz respeito & pintura, 4 épera ou gestualidade em geral, que, no entanto, sao igualmente praticas significantes. A dtivida que resta € se esse inventdrio, que consistiria em estabelecer o sistema das unidades providas de sentido, tem alguma pertinéncia no caso das linguagens nao-verbais. E, mesmo assim, caso houvesse tal inventétio, seria preciso esperar ainda alguns séculos, se nao alguns milénios, antes que a necessidade de uma traducdo entre sistemas — como foi o caso do sistema oral e do sistema escrito — originasse uma segmentagio estavel das unidades e a producao de graméticas satisfatdrias. A abordagem dos fendmenos de significacao pelo vies dos signos (as unidades minimas) fez escola. Ela se revelou pouco operatéria, pois, uma vez as unidades- signos estabelecidas, era preciso inventar suas combinacdes ¢ especialmente a associacao entre canais sensoriais estranhos uns aos outros. Tal abordagem conduziu ao atomismo e também a vertiginosas classificagées (em uma carta a Lady Welby, Peirce comemora o fato de poder reduzir (!) as 59.049 classes de signos aritmeticamente calculdveis a 66 classes realmente pertinentes). Além iss0, essa abordagem é um fator de dispersao da disciplina e de seus métodos: sendo a integracao de todas as classes de signos em um sé discurso no momento da andlise particularmente ardua, os estudos semidticos tendem, nesse caso, a especializar-se segundo a classe de signos em questio (semistica literdria, semidtica pictural, semiética do cinema etc.) 7 Semiéticadodiscurso Por outro lado, as ciéncias da linguagem em seu conjunto orientam-se na diregdo de uma formalizacéo das operacées e dos processos, €a Semistica toma parte nesse movimento. A semiética peirciana, atualmente, dé mais énfase ao “percurso interpretativo” do que a classificagao dos signos. A semidtica do discurso caminha para a exploragéo dos atos fundamentais, especialmente a predicagfo e a assungao, mais do que para a classificagéo qualitativa ou estatistica dos predicados e dos substantivos correspondentes. Globalmente, essa nova preocupacio esté voltada para a prdxis, praxis semidtica ou praxis enunciativa. Apresentaremos a seguir, de maneira sucinta, as principais teorias do signo, tanto de Saussure quanto de Peirce, segundo a perspectiva que escolhemos, que €a de uma teoria do discurso, com a finalidade de chegar a uma teoria da significagao sintética que extrapolaria a simples segmentacao dos signos. 1.2. As teorias do signo 1.2.1 O siGNo saussuRIANO O signo é composto, segundo Saussure, por duas faces, 0 significante e 0 significado. O significante é definido como uma “imagem actistica” ¢ 0 significado, como uma “imagem conceitual”. O primeiro toma forma, enquanto expressao, a partir de uma substncia sensorial ou fisica; 0 segundo, enquanto contetido, forma-se a partir de uma substancia psiquica. No entanto, assim que so reunidos em um sé signo, eles adquirem tdo-somente um estatuto semidtico, e suas propriedades sensoriais, fisicas ¢ psiquicas nao so mais levadas em consideracao. A relacao entre as duas faces do signo é chamada de “necesséria” ou “convencional’, isto é, ela é fundada em uma pressuposigio légica, que néo & de modo algum, tributétia das suas propriedades substanciais originais. Além disso, essa relacio é totalmente determinada pelo “valor” do signo, ou seja, pelas diferentes oposicdes que seu significante e seu significado mantém com os outros significantes ¢ os outros significados da mesma lingua. Do ponto de vista sincrénico — em um determinado estado da lingua -, esse valor é imutdvel. Em contrapartida, do ponto de vista diacrdnico, isto é, do 36 | : | | | | | | I i | Dosignoaodiscurso ponto de vista da histéria dos diferentes estados da lingua, a ligacdo que contraem as duas faces do signo pode, até mesmo, desfazer-se completamente ao longo dessa evolucao. A nogao de sistema decorte diretamente da definigdo de “valor” lingiifstico, pois se o valor de um signo depende de uma rede de oposicées, ese essa rede de oposigées deve ser, para cada signo, sincronicamente estavel, isso significa que 0 conjunto da rede de oposigées de todos os signos forma uum sistema estavel. Ele s6 tem uma existéncia virtual, exceto nas gramaticas € nos diciondrios, mas esté & disposicéo dos usurios da Iingua a qualquer momento. Segundo Saussure, a lingiiistica tem, portanto, como misséo 0 estudo desse sistema de valores. De uma outra forma, Jean-Francois Bordron colocou em evidéncia, apés Saussure, a irredutivel dualidade dos valores: no Ambito econémico, por exemplo, o valor de um bem avalia-se ao mesmo tempo em relacdo ao conjunto de outros bens em circulacao em um dado momento e em relacéo aos diferentes momentos de sua histéria. Em lingiifstica, essa dualidade do valor conduz.a distingao entre os funcionamentos “sincrénico” ¢ “diacrénico” das linguas, Em semistica narrativa, o valor é tanto uma diferenca semantica quanto uma diferenca que, determinando a relagao entre os sujeitos ¢ os objetos narrativos, organiza a sintaxe da narrativa e 0 devir dos actantes. Falar em sistemas de valores é, portanto, invocar ao mesmo tempo as relagdes que definem os valores de cada unidade do sistema e as regras que determinam a evolucao global desse sistema, e, conseqiientemente, a evolucao do valor de cada uma de suas unidades. As nogies de sistema e de valor, as quais nao se podem separar da questo do signo em Saussure, impdem a exclusio do “referente”: a coisa real ou imaginéria maior parte das vezes, apresentada como uma decisio metodoldgica ¢ epistemolégica. Excluir o referente mundano é conferir & lingiistica um objeto préprio enquanto ciéncia - e sua autonomia enquanto disciplina. Todavia a posigio de Saussure a respeito do referente é, na verdade, uma conseqiiéncia de sua definicdo de signo, pois o mesmo se dé com todas as propriedades substanciais das duas faces do signo que sao, sem ter relagio com o referente, no entanto, excluidas da mesma maneira: de fato, o sistema de valores nfo pode nos dizer nada também sobre essas propriedades. A ligacio entre o signo ¢ seu referente € chamada arbitraria — poder-se-ia chamé-la, da mesma forma, contingente. Isso 37 Semisticadodiscurso significa que o sistema de valores no tem nenhuma explicacio satisfat6ria: assim, uma ligacao considerada ininteligivel ¢ dada como arbitréria. Ainda assim, notemos que a ligacao nao ¢ intrinsecamente ininteligivel, arbitréria e contingente, e que €0 ponto de vista adotado, nesse caso o ponto de vista do signo e do valor, que torna a referencia inapreensivel. Considerando, em seguida, estender sua reflexdo a outros tipos de signos que no somente os das Iinguas naturais, Saussure esboga o projeto de uma semiologia que englobaria a lingiistica propriamente dita. Nela, encontrar-se-ia no somente significantes cuja substancia fisica seria diferente daquela da linguagem verbal, mas também signos cuja relacdo fundadora no seria “necessétia” ou “convencional”, como, por exemplo, os sistemas de signos visuais. Nesse ponto, vé-se que, reservando-se um papel secundario & definicao € A delimitacao das unidades, a questio tratada por Saussure pode ser reduzida a dois pontos essenciai (1) @ relagdo entre a percepgdo e a significagdo. A partic de nossas percepgdes emergem significagdes; nossas percepgdes do mundo “exterior”, de suas formas fisicas e biolégicas, produzem significantes. A partir de nossas percepsées do mundo “interior”, conceitos, afetos, sensagdes ¢ impresses formam-se os significados; (2) a formagao de um sistema de valores. Os dois tipos de percepcoes entram em interagdo, e essa interacdo define um sistema de posigées diferenciais, sendo cada posigdo caracterizada segundo os dois regimes de percepcdo: o conjunto é chamado, entao, sistema de valores. Paralelamente & teoria do signo, uma teoria da significagao vem & tona em Saussure. Essa teoria, especialmente por meio da nogao de “imagem” (imagens actisticas, visuais, mentais ¢ psiquicas), estd enraizada na percep¢ao. O percurso que vai da substdincia 2 forma, do qual se reteve apenas 0 resultado final, é de fato, 0 percurso que vai do mundo sensfvel ao mundo significante. 12.2. O SIGNO PEIRCIANO Enquanto Saussure concebia 0 signo como pressuposicao reciproca entre duas faces distintas, Peirce o definia, desde o princfpio, por uma relagdo assimétrica: aquilo que, sob certo aspecto ou modo, representa algo para alguém. Geralmente se diz que o signo saussuriano é diddico (duas 38 [ I : t | Dosignoaodiscurso faces, um significante ¢ um significado) ¢ o signo peirciano, triddico. Contudo, examinando atentamente a definicao proposta pelo préprio Peirce, constata-se que ela contém, de fato, quatro elementos: (1) “aquilo” que representa (2) “algo” (3) para “alguém” e (4) sob “certo modo” ou “gspecto”. Correntemente se diz também que, enquanto Saussure excluiu o referente da definicao do signo e, por conseguinte, da lingitistica e da semiologia, Peirce reservaria ao referente um papel essencial. Essa citagao, muito breve, no nos permite avaliar bem a questéo. Olhemos mais de perto essa defini¢ao em sua totalidade: Um signo, ou representiimen, é aquilo que, sob certo aspecto ou modo, representa algo para alguém. Dirige-se a alguém, isto é, cria, na mente dessa pessoa, um signo equivalence, ou talvez um signo mais desenvolvido. Ao signo assim criado, denomino interpretante do primeiro signo. O signo representa alguma coisa, seu objeto, Representa esse objeto nao em todos os seus aspectos, mas com referéncia a um tipo de idéia que eu, por vezes, denominei findamento do representdmen. (2.228)* Fagamos as contas: (1) representamen, (2) objeto, (3) interpretante, (4) fundamento. Chegamos a quatro termos, aos quais, s vezes, se acrescentam a distingao entre objeto dindmico (o objeto como ele é visado pelo representamen) ¢ 0 objeto imediato (o que é selecionado no objeto pelo interpretante), o que resulta, por fim, em um total de cinco elementos. O funcionamento do signo pode ser resumido da seguinte forma: um objeto dindmico (objeto ou situacao percebidos em toda sua complexidade) entra em relagao com um representamen (aquilo que o representa), mas isso apenas de um certo ponto de vista (sob certo aspecto ou modo) designado aqui como fundamento. Esse ponto de vista, ou fundamento, seleciona no objeto dindmico um de seus aspectos pertinentes chamado objeto imediato, e a reuniao do representamen e do objeto imediato é feita “em nome de”, ou “para”, ou “gracas a” um quinto elemento, o interpretante. * N-T: Emprege-se, aqui, a traducio de José Teixcira Coelho Netto, publicada na coletanea Semidtica (Sto Paulo: Perspectiva, 1995). A indicagio "2.228" corresponde a “volume 2, pardgrafo 228”, sua localizagio nos Collected Papers of Charles Sanders Peirce (Cambridge: Harvard University Press, pp.1931-58). Ao contrdrio da tradugio de Teixeira Coelho, seguindo 0 que parece ser um consenso entre oscomentadores de Peirce no Brasil, rpresentamen serd grafado ao longo deste texto sem acento circunflexo.

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