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Paula Sibilia

O show do Eu
A intimidade como
espetáculo

Sibilia_ShowDoEu.indb 1 20/06/16 00:01


Sumário

Prefácio 9

1. EU, eu, eu... você e todos nós 13

2. EU narrador e a vida como relato 55

3. EU privado e o declínio do homem público 85

4. EU visível e o eclipse da interioridade 125

5. EU atual e a subjetividade instantânea 153

6. EU autor e o culto à personalidade 195

7. EU real e os abalos da ficção 247

8. EU personagem e o pânico da solidão 301

9. EU espetacular e a gestão de si como uma marca 345

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3. EU privado e o declínio do homem público

Cara Sophie, nada parecido com a nossa


história tem sido escrito... e nem será.
Pois jamais nos sentiríamos dispostos a
fazer do público o nosso confidente.
Nathaniel Hawthorne

Eu tenho meu diário na rede e o


torno público porque, precisamente,
não tenho nada a dizer.
Steven Rubio

No outono de 1928, Virginia Woolf foi convidada para ministrar


uma série de conferências sobre a mulher e o romance, em duas ins-
tituições universitárias for ladies – pois as outras, as consideradas
boas, na época ainda eram restritas aos gentlemen. A escritora apro-
veitou essa ocasião para tentar responder, longa e belamente, a uma
pergunta: por que as mulheres não tinham escrito, até então e salvo
pouquíssimas exceções, bons romances? Eis uma síntese da resposta:
porque não tinham um quarto próprio. Faltava-lhes um espaço pri-
vado, uma habitação exclusiva para elas, onde pudessem ficar a sós.
Se as dificuldades sempre foram grandes para todos aqueles que de-
cidissem criar uma obra literária, pelo menos até aquele momento
tudo tinha sido infinitamente mais complicado para as mulheres.
“Em primeiro lugar” porque para elas, “até o início do século XIX,
ter um quarto próprio, para não falar de um ambiente realmente
tranquilo e sem barulho, era inconcebível”.1
A resposta é justíssima. Contudo, o diagnóstico não deixava de ser
correto também para a maioria dos homens, pelo menos até algum

1 WOOLF, Virginia. Un cuarto propio y otros ensayos. Buenos Aires: A-Z Editora, 1993,
p. 72.

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tempo antes da data assinalada pela romancista inglesa. “No século
XVI era raro que alguém tivesse um quarto só para si”, explica Witold
Rybczynski em seu livro sobre a história da casa.2 Seria necessário
aguardar mais de cem anos ainda, até bem avançado o século XVII e
iniciado o XVIII, para que começassem a aparecer “os ambientes nos
quais era possível se retirar da visão do público”. Esses novos recintos
logo ganharam um adjetivo cada vez mais prezado: eram espaços pri-
vados. No entanto, a noção de que tais ambientes deviam ser confor-
táveis e silenciosos, ainda segundo Rybczynski, só apareceria no sécu-
lo XVIII. Pelo menos, para os homens mais afortunados.
De todo modo, a discrepância de gênero aludida por Virginia
Woolf implicou uma enorme desvantagem para as damas modernas,
pois o ambiente privado da casa – e, mais especificamente, desse va-
lioso quarto só para si – logo se impôs como um requisito fundamen-
tal para que o eu do morador pudesse ficar à vontade. Sozinha e a
sós consigo mesma, cada subjetividade podia se expandir sem reser-
vas e se autoafirmar em sua individualidade. Naqueles tempos em
que a escritora britânica erguia sua voz, tão inflamada como majes-
tosa, esse espaço da privacidade já tinha assumido um papel primor-
dial. Era necessário dispor de um local próprio, separado do âmbito
público e da intromissão de outrem por sólidos muros e portas fe-
chadas, não apenas para poder se tornar uma boa escritora, mas
também para poder ser alguém. Isto é, para se tornar um sujeito
moderno, para ter condições de produzir a própria subjetividade na-
quele momento histórico.
Além de constituir um requisito básico para desenvolver o eu, o
ambiente privado também era o cenário onde transcorria a intimida-
de. E era precisamente nesses espaços onde se engendravam, em pleno
auge da cultura burguesa, os relatos de si. Pois, além de pertencerem
aos gêneros autobiográficos, as cartas e os diários tradicionais são es-
critas íntimas. O estatuto dessas narrativas é ambíguo, sempre transi-
tando a frágil fronteira entre as belas artes textuais e o documento
extraliterário de valor meramente testemunhal, acerca de uma forma
de vida ou de algum episódio histórico. Tais escritos costumam ser

2 RYBCZYNSKI, Witold. La casa: historia de una idea. Buenos Aires: Emece, 1991, p. 29.

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catalogados como pertencentes a um gênero menor em termos estéti-
cos; ou, no mínimo, como formas não canônicas do literário. Mas
algo parece estar mudando também nesse terreno: a curiosidade des-
pertada pela vida cotidiana das pessoas consideradas comuns tem au-
mentado muito nos últimos anos, fazendo com que esses depoimentos
pessoais sejam cada vez mais valorizados em certas regiões do saber,
que neles se debruçam à procura de preciosos tesouros de sentido. É o
que alguns autores, como a ensaísta argentina Beatriz Sarlo, vêm estu-
dando como parte de uma certa guinada ou virada subjetiva.3
Além disso, nestes tempos em que impera a reprodutibilidade digi-
tal estimulada pelo mercado, tem se incrementado também o interesse
por aquelas raríssimas relíquias que ainda conservam – ou parecem
conservar – uma espécie de aura, nem que seja porque nelas palpitam
alguns vestígios da presença única de seu perpetrador. Mesmo que se
trate de qualquer um: pessoas como eu, você e todos nós. As escritas
desse tipo, íntimas e confessionais, exigem – ou, pelo menos, exigiam
– a solidão do autor no momento de criá-las. Em seus tempos áureos
demandavam, também, uma distância espacial e temporal com rela-
ção ao destinatário das cartas e aos eventuais leitores dos diários. Estes
últimos, aliás, só teriam acesso a tais páginas secretas após a morte de
quem as assinara, caso ele fosse alguma figura célebre por ter realizado
algo excepcional, capaz de despertar o interesse póstumo dos possíveis
leitores. As versões cibernéticas dessas escritas de si, por sua vez, tam-
bém costumam ser práticas solitárias, embora seu estatuto seja bem
mais ambíguo porque elas se instalam no limiar da publicidade total.
A tela de nossos computadores não é tão sólida e opaca como os mu-
ros dos antigos quartos próprios; em vez disso, parecem janelas aber-
tas ao público. Por outro lado, a distância espacial e temporal com
relação aos leitores ou espectadores tem encolhido sensivelmente.
Para ilustrar essas mudanças, vale citar algumas passagens das
Cartas de uma verdadeira fundadora do gênero epistolar, Madame
de Sevigné. “Estamos cada uma num extremo do mundo”, escrevia a
nobre senhora no final do século XVII, de férias na região da Breta-

3 SARLO, Beatriz. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva. São Paulo:
Companhia das Letras, 2007.

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nha, no norte da França, em carta à filha que se encontrava no sul
daquele mesmo país. Certamente, o tamanho do mundo era, então,
bem maior do que hoje. Em outra ocasião, a espirituosa marquesa
surpreendia-se assim: “não podemos deixar de admirar a diligência e
a fidelidade dos serviços postais; recebi no dia 18 a tua carta do dia
9; são apenas nove dias, não se pode pedir mais!”.4 Hoje, trezentos
anos após tais epístolas terem sido escritas – com caneta de pluma,
tinteiro e mata-borrão –, ambas as asseverações ostentam um tenro
anacronismo. Não apenas as distâncias eram abissalmente maiores
naquelas eras já bem remotas, mas o tempo ainda não tinha passado
pela crescente aceleração despontada na modernidade.
A elaboração de cartas e diários, de fato, remete aos ritmos ca-
denciados e ao tempo esticado de outras épocas, hoje flagrantemente
perdidos. Tempos idos, atropelados pela agitação da vida contempo-
rânea e também pela eficácia inegável de tecnologias como os telefo-
nes, os e-mails, os computadores portáteis e as redes sociais da inter-
net. Com uma rapidez inusitada e também imprevista, os dispositivos
digitais interconectados através das redes informáticas de abrangên-
cia planetária se converteram em poderosos meios de comunicação.
Por essas veias globais circulam infinitos textos nas mais diversas
línguas, que a qualquer hora são escritos e reescritos, lidos e relidos
– e também esquecidos ou ignorados – por milhões de usuários do
mundo inteiro. Entre eles prosperam, com incrível força, as novas
modalidades de escritas íntimas ou éxtimas que estão no foco deste
ensaio. Uma das grandes novidades que esse fenômeno traz é que
agora tudo acontece em tempo real: na velocidade do instante, que é
simultâneo para todos os usuários do planeta.
À primeira vista, parece óbvio que essas novas formas de expres-
são e comunicação têm deflagrado um inesperado renascer das ve-
lhas escritas de si. Cabe indagar, porém, se entre aqueles textos de
outrora e estes que hoje proliferam as diferenças são meramente
quantitativas, restritas à dimensão dos prazos e dos trechos, ou se
existe entre ambos um abismo qualitativo que possa ser significativo.

4 SEVIGNÉ, Madame de. Cartas. Buenos Aires: Biblioteca Básica Universal, 1982,
p. vii e 68.

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A lógica da velocidade e do instantâneo que rege as tecnologias in-
formáticas e as telecomunicações, com sua vocação devoradora de
tempos e espaços ignorando todos os antigos limites, sugere profun-
das implicações na experiência cotidiana, na construção das subjeti-
vidades e nos relacionamentos sociais e afetivos. Ao observar ambos
os fenômenos com maior cuidado, ainda – o de hoje e o daqueles
tempos em que vigoravam os contatos puramente analógicos –, há
sinais que sugerem se tratar de dois universos radicalmente distantes,
com outros objetivos e apoiados em premissas bem diferentes.
“A facilidade de escrever cartas deve ter trazido ao mundo uma
terrível perturbação das almas”, escreveu Franz Kafka em sua última
carta a Milena, “porque é uma relação com fantasmas; e não só com
o fantasma do destinatário, mas também com o próprio.” O escritor
tcheco foi um dos mais ávidos e lúcidos autores de cartas e diários
íntimos que o mercado editorial tenha dado a conhecer. De fato, esse
caráter enigmático e espectral é inerente à comunicação epistolar.
Para ilustrar isso, basta evocar a história de Cyrano de Bergerac,
célebre personagem do drama de Edmond Rostand. Graças aos sor-
tilégios de sua bela escrita, um homem cuja aparência física não era
das mais charmosas conseguia acender a paixão de sua jovem ama-
da. O coração da moça, porém, batia por um fantasma, pois ela
acreditava que o remetente das refinadas cartas era outro: um jovem
bonito mas um tanto insosso. É possível imaginar, nos recantos do
ciberespaço, múltiplas versões atualizadas de Cyranos de todas as
procedências, gêneros e estilos, digitando ardentes epístolas na tela.
No entanto, se a comparação ainda é válida, também é inegável que
não é pouco o que mudou daquele longínquo ano de 1897, no qual
a peça de Rostand foi escrita, até os dias de hoje.
Quanto aos diários íntimos, poder-se-ia afirmar que é indiferente
o fato de agora eles serem publicados na internet? É apenas um deta-
lhe sem muita importância, essa exposição aberta das próprias miu-
dezas e grandezas cotidianas aos olhos do mundo inteiro? Não pare-
ce que assim seja; ou, pelo menos, essa exibição pública daquilo que
antes se considerava a intimidade – e que, portanto, era destinado ao
pudico segredo da privacidade – não é algo que mereça ser menos-
prezado. A interação com os leitores ou espectadores, por exemplo,

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apresenta-se como um componente primordial dos textos da blogos-
fera, bem como das infinitas selfies publicadas nas redes sociais e dos
inúmeros vídeos confessionais lançados diariamente ao ar. Além dis-
so, as margens desses relatos estão cravejadas de links que abrem
janelas para outros blogs e fotologs, para os perfis dos amigos ou
para mais vídeos semelhantes, transformando cada uma dessas ma-
nifestações num nó de uma rede hipermídia virtualmente infinita.
Com todas essas diferenças, a sua condição de diário íntimo no
sentido tradicional, portanto, é sem dúvida alterada. Os relatos au-
tobiográficos da internet se mostram abertamente ao mundo inteiro,
enquanto os outros eram zelosamente preservados no cerne da inti-
midade individual. Essa diferença é incontestável, mesmo admitindo
que aquelas formas ancestrais também possuíam um leitor ideal ao
qual o autor se dirigia, porque na maior parte dos casos se tratava de
uma entidade meramente imaginária ou implícita. “Do ponto de vis-
ta de como nasce um texto”, declarou outra prolífica autora de cartas
e diários, a poeta Ana Cristina César, “o impulso básico é mobilizar
alguém, mas você não sabe direito quem é esse alguém; se você escre-
ve uma carta, sabe; se escreve um diário, sabe menos.”5 Na imensa
maioria dos textos analógicos desse tipo escritos na era moderna,
porém, o mais provável é que esse misterioso alguém fosse apenas
alguma faceta do obscuro eu de cada autor-narrador-personagem.
Os relacionamentos que se tecem constantemente na internet,
construídos em torno a toneladas de palavras e imagens, costumam
prescindir do contato imediato com os corpos físicos dos interlocuto-
res. Mas isso não impede que nessas trocas sejam criados fortes laços
afetivos, como é óbvio. Entretanto, a inusitada proliferação dessas
práticas insinua que estão se multiplicando até o infinito não apenas
aquele “sabe menos” mencionado pela escritora brasileira (a quem se
dirige o autor de um blog?), mas também aquelas relações com fan-
tasmas que assombravam as cartas kafkianas e que o drama de Cyra-
no graciosamente evoca. Como ocorreu com quase tudo, Kafka pro-

5 CESAR, Ana Cristina. “Escritos no Rio”. Apud: REZENDE, Beatriz. “Ah, eu quero
receber cartas”. In: Apontamentos de crítica cultural. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2002,
p. 111.

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nunciou um veredicto bastante sombrio sobre esse assunto, e é bem
provável que tampouco aqui ele tenha se enganado – condenado,
como viveu, “a ver o mundo com tão ofuscante clareza que o consi-
derou insuportável”, como resumiu a própria Milena Jesenská em seu
necrológio. “Depois do correio, a humanidade inventou o telégrafo,
o telefone, a telegrafia sem fio”, escreveu Kafka ainda naquela última
carta à sua mais famosa namorada; “os fantasmas não irão morrer de
fome, mas nós sucumbiremos”. Esse duro presságio se ergue, de fato,
na última epístola que circulou entre eles, datada em 1923.
Quase um século depois, poderíamos complementar com vários
outros elementos aquela enumeração fatídica – cartas, telégrafo, te-
lefone – que palpitava na sentida carta do ficcionista tcheco. Sem
dúvida, deveríamos acrescentar tanto o já quase antigo e-mail como
toda a parafernália das mídias interativas que hoje emaranham o
planeta, incluindo aí a enorme contribuição dos telefones celulares
que permitem transmitir não apenas voz mas também pequenos tex-
tos, ícones, fotos e vídeos desde qualquer lugar e para toda parte.
Assimilando a perspectiva kafkiana, não é difícil constatar que o sé-
culo XXI nos encontrou fatalmente devorados pelos fantasmas da
virtualidade informática. Ou, então, neles convertidos. Nesse senti-
do, é inquietante o que sugere o termo ghosting, outro neologismo
recente que se usa para nomear uma prática em ascensão. Trata-se
do súbito emudecimento de alguém com que se tinha uma relação
afetiva, que de repente decide terminar toda comunicação sem dar
explicações, simplesmente deixando de responder às mensagens rece-
bidas pelas diversas redes, aproveitando essa funcionalidade dos ca-
nais pelos quais tais afetos costumam fluir.
Porém, se pousarmos um olhar genealógico sobre essa imagem
espectral, será preciso levar em conta um elemento importante: a
separação entre os âmbitos público e privado da existência é uma
invenção histórica e datada, uma convenção que em outras culturas
não existe ou se configura de modos diferentes. Inclusive entre nós,
essa distinção é bastante recente: a esfera da privacidade só ganhou
consistência na Europa dos séculos XVIII e XIX, ecoando o desen-
volvimento das sociedades industriais modernas e das formas de vida
urbanas. Foi precisamente nessa época que um certo espaço de refú-

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gio para o indivíduo e a família nuclear começou a ser criado, no seio
do mundo burguês, fornecendo a esses novos sujeitos aquilo que tan-
to almejavam: um território a salvo das exigências e dos perigos do
meio público, ou seja, daquele espaço exterior ao lar que começava
a ganhar um tom cada vez mais ameaçador.
Em seu livro O declínio do homem público, o sociólogo Richard
Sennett examina esse processo de estigmatização da vida pública,
ocorrido ao longo do século XIX, e a compensação desse esvaziamen-
to graças ao inchaço do campo privado. O autor mostra de que modo
o quadro foi se alterando: um século antes, a esfera pública brilhara
intensamente nas metrópoles europeias em expansão, sobretudo Paris
e Londres, em cujas ruas ocorria uma valorização positiva das con-
venções e, portanto, uma certa teatralização primava nos contatos
sociais impessoais. Já no despontar oitocentista, grandes mudanças
afetaram tanto as regras de sociabilidade como as formas de temati-
zação e construção do eu, impondo-se aquilo que Sennett denominou
“regime da autenticidade”.6 Uma das consequências dessas transfor-
mações históricas é que a própria personalidade passou a ser viven-
ciada como um tesouro interior altamente expressivo, cujos eflúvios
era preciso controlar e dissimular nas apresentações públicas.
Fortalecia-se, assim, um eu interiorizado e opulento, excessiva-
mente significante, que não bastava ocultar sob uma falsa máscara
nas interações com estranhos. Esse precioso cerne pessoal – por vezes
monstruoso e quase sempre indomável, aliás – devia ser protegido na
privacidade do lar, com todos os cuidados que merecia a sutil verda-
de nele latejante. Desse modo, passou-se de um antigo “regime da
máscara” que se afirmava como tal – na legitimidade do artifício
demandado pelo theatrum mundi das ruas no século XVIII – para
um modo de vida em que tais disfarces se tornaram mentirosos e,
portanto, desprezíveis. Sua falta era grave pois, além de fingir, as
máscaras não conseguiam esconder o rosto delicadamente autêntico
que pulsava por detrás, e que poderia até fenecer se fosse exposto às
violentas rudezas do meio público.

6 SENNETT, Richard. O declínio do homem público: tiranias da intimidade. São Paulo:


Companhia das Letras, 1999.

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Assim foram se consolidando as “tiranias da intimidade”, que
compreendem tanto uma atitude de passividade e indiferença com
relação aos assuntos públicos quanto uma crescente concentração no
espaço privado e nos conflitos íntimos. Esse refúgio na privacidade
não exprime apenas uma preocupação exclusiva com as pequenas
histórias e com as emoções particulares que afligem cada indivíduo,
mas também uma avaliação da ação política – considerada exterior
e pública – somente a partir do que esta sugere acerca da personali-
dade de quem a realiza – ou seja, algo considerado interior e privado.
Num contexto como esse, em pleno apogeu da era burguesa, a ação
objetiva passou a ser desvalorizada: aquilo que se faz perdeu terreno,
em proveito de uma valorização excessiva da personalidade e dos
estados emocionais subjetivos, aquilo que cada um é.
Ainda de acordo com a tese do sociólogo estadunidense, tanto esse
intenso desejo de legitimar a si mesmo mostrando uma personalidade
autêntica – isto é, sintonizada com aquilo que realmente se era – como
essa dupla tendência de abandono do espaço público e inflação do
âmbito privado obedeceram a interesses políticos e econômicos especí-
ficos do capitalismo industrial. As forças que impulsionaram tais mu-
danças históricas se propunham a instaurar essa forma de organização
social, que se expandia com grande ímpeto naquela época, acompa-
nhando a ascensão das camadas médias da burguesia e a irrupção do
consumo de massa nas grandes cidades modernas. Assim é como se
implantaria, de modo gradual porém muito decidido, um modo de
vida que, de alguma maneira, iria se beneficiar com essa nova “incivili-
dade” do intimismo, uma tendência que então ainda era criticada por
alguns como um novo tipo de barbárie bem-educada.
Não há dúvidas de que o aconchego do lar é o cenário mais ade-
quado para hospedar o mundo íntimo, seja ele visto como algo ti-
rânico ou não. Mas se é possível asseverar que a ideia de intimi-
dade é uma invenção burguesa, o historiador da arquitetura antes
mencionado, Witold Rybczynski, lembra que algo semelhante ocor-
re com outras duas noções associadas a esse termo: domesticidade
e conforto. Todos esses conceitos estavam ausentes das habitações
medievais, por exemplo, com suas moradias nas quais todos com-
partilhavam quase tudo. Tanto a necessidade como a valorização

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do espaço íntimo – aquele destinado a cada sujeito e somente a cada
um – foram se consolidando ao longo dos últimos quatrocentos anos
da história ocidental, e muito especialmente a partir do início do
século XIX, como bem mostrara Virginia Woolf em seu pleito pelo
direito ao quarto próprio. Entre os estímulos para criar essa cisão
público-privado, e para a gradativa expansão deste último âmbito
em detrimento do primeiro, figuram vários fatores: a instituição da
família nuclear, a separação entre o espaço-tempo do trabalho e o da
vida cotidiana, além desses novos ideais de domesticidade, conforto
e intimidade. É significativo que quase todos esses elementos hoje
estejam em crise e, provavelmente, também em mutação.
Mas foi uma daquelas tendências – a paulatina aparição de um
“mundo interno” próprio de cada indivíduo, tanto do eu como dos
outros – o detonante primordial para que o lar se tornasse um local
privilegiado para o acolhimento dessa vida interior, que já há tempos
brotava com vigor e que logo iria florescer em todo seu esplendor.
Assim, as casas foram se tornando lugares privados e, como explica
Rybczynski, “junto com essa privatização do lar surgiu um sentido
cada vez maior de intimidade, de identificar a casa exclusivamente
com a vida familiar”. Para que pudessem cumprir da melhor forma
possível tão ansiadas metas, nesses prédios foram se definindo fun-
ções específicas e fixas para os diversos cômodos: a sala de estar, a
cozinha, os banheiros, os dormitórios para o casal e para as crianças.
Assim foi como apareceu, inclusive, nas residências mais abastadas,
“um quarto mais íntimo para atividades privadas como a escrita”;
muito especialmente, é claro, a escrita de cartas e diários.
Outro historiador da experiência burguesa, Peter Gay, também ates-
ta a importância que começou a ganhar essa nova ambição do século
XIX: o desejo de se ter um quarto próprio. Com todas as conotações
woolfianas da expressão, esse recinto devia ser um espaço privado e
gloriosamente individual, no qual o mundo interior do ocupante pu-
desse ficar a seu bel-prazer para se expressar; entre outras formas, atra-
vés da escrita e da leitura.7 De preferência, esse aposento estaria situado

7 GAY, Peter. “Fortificación para el yo”. In: La experiencia burguesa, de Victoria a


Freud, v. 1. México: FCE, 1992, p. 374-426.

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no coração de uma confortável casa burguesa; contudo, seu caráter não
mudaria se fosse um pequeno quarto alugado numa pensão qualquer.
Como frisara a própria Virginia Woolf, o importante era que se tratasse
de “um alojamento independente, por miserável que ele for”. Pois so-
mente nesse cubículo fechado e isolado do resto do mundo seu mora-
dor poderia se sentir protegido não apenas do barulho, dos perigos e
das tentações das ruas, mas também “das cobranças e tiranias de suas
famílias”, podendo então se concentrar no que realmente importava.
Isto é, em sua obra – caso se tratasse de um artista, como um escritor
ou uma escritora – e, fundamentalmente, em seu eu.
Assim, em contraposição aos protocolos hostis e enganosos da
vida pública, o lar foi se transformando no território da autenticida-
de e da verdade: um refúgio onde o eu se sentia resguardado, um
abrigo onde era permitido ser si mesmo. A solidão, que na Idade
Média tinha sido um estado raro e não necessariamente apetecível,
converteu-se num verdadeiro objeto de desejo. Apenas entre essas
quatro paredes próprias era possível desdobrar um conjunto de pra-
zeres até então inéditos e agora vitais, ao resguardo dos olhares in-
trusos e sob o império austero do decoro burguês. Somente nesse
espaço era possível desfrutar do deleite – e do árduo labor – de estar
consigo mesmo. Foi assim como se configuraram, no despontar da
Modernidade, dois âmbitos claramente delimitados: o espaço públi-
co e o privado, cada um com suas funções, regras e rituais que de-
viam ser prudentemente respeitados.
Os cadernos de notas de um homem público que viveu nesse am-
plo e riquíssimo período, Ludwig Wittgenstein, oferecem um exem-
plo bastante interessante dessa demarcação que então era tão rígida
e precisa. Escritos na primeira metade do século XX e publicados de
maneira póstuma na década de 1990, contrariando a vontade explí-
cita do autor, esses diários replicam tal cisão de maneira exemplar.
Nas páginas pares, o filósofo austríaco vertia suas vivências e refle-
xões íntimas numa linguagem codificada, só para ele mesmo, en-
quanto nas páginas ímpares anotava seus pensamentos públicos em
perfeito e claríssimo alemão. No entanto, os editores conseguiram
publicar a versão completa dos diários após uma longa batalha judi-
cial contra os herdeiros do autor, falecido em 1951. Um combate que

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os primeiros venceram, conquistando assim a possibilidade de “res-
gatar para todos nós estes cadernos vivos e patéticos”.
Na contracapa do livro assinado por Wittgenstein, significativa-
mente intitulado Diários secretos, apresenta-se uma explicação dos
motivos da recusa dos herdeiros, de acordo com o veredicto triunfan-
te dos editores. Um depoimento bem ao tom, aliás, dos tempos atuais:
a resistência familiar teria sido “uma tentativa falsamente piedosa
de nos ocultar o personagem real, com seus medos, suas angústias,
seu elitismo e sua homossexualidade”.8 Em tempos mais respeitosos
das fronteiras, o espaço público era tudo aquilo que ficava do lado
de fora quando a porta de casa se fechava – e que, sem dúvida, me-
recia ficar lá fora. Já o espaço privado era aquele universo infindável
que remanescia do lado de dentro, onde era permitido ser “vivo e
patético” à vontade, pois somente entre essas acolhedoras paredes
era possível deixar fluir livremente os próprios medos, as angústias,
os desejos e outras emoções e patetismos considerados estritamente
íntimos – e, portanto, realmente secretos ou inconfessáveis.
Aqueles ambientes privados, que conheceram seu mais agudo clí-
max na cultura burguesa do século XIX, eram um convite à introspec-
ção. Nesses recintos impregnados de solidão e privacidade, o sujeito
moderno podia mergulhar em sua obscura vida interior, embarcando
em fascinantes ou pavorosas viagens autoexploratórias que, muitas
vezes, eram vertidas no papel. Como constatam Alain Corbin e Mi-
chelle Perrot na passagem de sua História da vida privada relativa a
esse período de intenso “deciframento de si”, o “furor de escrever”
tomou conta não só dos homens daqueles tempos, mas também de
inúmeras mulheres e crianças. Todos escreviam para firmar seu eu,
para se autoconhecerem e se cultivarem, imbuídos tanto pelo espírito
iluminista de conhecimento racional do que se era, como pelo ímpeto
romântico de mergulho nos mistérios mais insondáveis da alma.
Nessa busca individual generalizada, esse tipo de escrita de si tor-
nou-se uma prática habitual, que daria à luz uma infinidade de tex-

8 WITTGENSTEIN, Ludwig. Diários secretos. Madri: Alianza, 1991. Sobre a cisão des-
tes diários em duas seções irreconciliáveis, e outras informações a respeito da querela
pela publicação, cf. ARFUCH, Leonor. El espacio biográfico: dilemas de la subjetividad
contemporánea. Buenos Aires: FCE, 2002, p. 53.

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tos introspectivos com o selo daquela época. Tratava-se de uma mo-
dalidade inovadora de se relatar, fundando um gênero discursivo que
se afincava na autorreflexão para a autoconstrução, e que foi se con-
solidando em diálogo intenso com a literatura de ficção. Porque es-
sas narrativas de si tinham como espelho os romances e contos que
então imperavam, e que eram lidos com uma fruição apenas compa-
rável à da escrita íntima, configurando um campo imenso no qual se
destacavam os folhetins realistas, um dos grandes fervores daquele
século. Todos esses textos conformavam uma poderosa fonte de ins-
piração, cujas vertentes impregnavam as formas subjetivas a partir
de uma miríade de personagens tecidos com palavras.
As cartas, por sua vez, também vivenciaram seu apogeu no final
do século XVIII e ao longo do XIX, chegando a impregnar também
as primeiras décadas do XX. Um marco crucial nessa história foi o
ano de 1774, quando Goethe publicou seu romance Os sofrimentos
do jovem Werther, que recorria ao formato epistolar para narrar
uma história de amor romântico e trágico. O livro obteve um sucesso
tão imediato como fulminante. A identificação dos leitores (e das
leitoras!) com os personagens foi tão intensa, que não motivou ape-
nas a imitação do estilo em milhares de correspondências de enamo-
rados anônimos; além disso, muitos emularam o malfadado prota-
gonista até as últimas consequências. Uma onda de suicídios por
amores não correspondidos sacudiu a Europa enfeitiçada pela paixão
de Werther, e todos os corpos eram encontrados junto à imprescindí-
vel e arrebatada carta derradeira. Não por acaso, diz-se que Goethe
ensinou seus contemporâneos a se apaixonar, seguindo a escola do
movimento romântico, como uma parte imprescindível do que signi-
ficava ser alguém naquele universo. No mesmo período, outro ro-
mance epistolar partilhava um sucesso semelhante: Júlia ou a Nova
Heloísa, de Rousseau. Mas são inúmeras as obras que exploraram as
virtudes desse gênero: de As relações perigosas, de Laclos, e O ho-
mem de areia, de Hoffmann, aos populares Drácula e Frankenstein,
para citar apenas alguns exemplos ainda famosos.
Assim como os diários íntimos, esse tipo de escrita possuía um
vínculo evidente com a sensibilidade da época. Por isso, a ficção li-
terária não vampirizou apenas a forma epistolar para seduzir seus

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ávidos leitores, mas também copiou e recriou até a exaustão toda a
retórica da confissão íntima e cotidiana. Assim, uma verdadeira le-
gião de personagens foi transbordando das páginas dos romances
para influenciar fortemente a produção das subjetividades moder-
nas. Esse frondoso universo de palavras se converteu num manan-
cial de roteiros de subjetivação para os indivíduos daqueles tempos,
semeando um vasto campo de identificações. Foi assim que germi-
nou uma forma subjetiva particular, dotada de um atributo muito
especial: interioridade psicológica.
Do que se trata? De um espaço considerado “interior”, como
uma versão atualizada e laica da velha alma cristã, vagamente etéreo
e localizado “dentro” de cada um, onde fermentava toda sorte de
pensamentos, emoções, lembranças e sentimentos privados. O reper-
tório afetivo dessa esfera íntima devia ser cultivado, agasalhado,
sondado e enriquecido constantemente por cada indivíduo. Nascia e
se fortalecia, assim, um tipo de sujeito que se tornaria objeto de uma
disciplina científica de vital importância na conformação da subjeti-
vidade moderna: a psicologia. É por isso que alguns estudiosos se
referem a essa criatura como homo psychologicus. Outra forma de
nomear o indivíduo moderno, enfatizando esta característica funda-
mental: alguém que, como afirma o psicanalista Benilton Bezerra Jr.,
“aprendeu a organizar sua experiência em torno de um eixo situado
no centro de sua vida interior”.9
Recorrendo a um arcabouço teórico e metodológico bem diferente,
por sua vez, o sociólogo estadunidense David Riesman chega a con-
clusões semelhantes. Em seu livro A multidão solitária, publicado em
meados dos anos 1950, ele delineou o seu conceito de personalidades
introdirigidas, um tipo de subjetividade igualmente voltada para dentro
de si, que teve vigência no ápice da era moderna. Nesse célebre estudo,
o autor analisa as mudanças acarretadas pelos avanços da alfabetização
ao longo dos séculos XIX e XX, graças aos quais uma quantidade cres-
cente de cidadãos ganhou acesso ao “refúgio impresso”. Isto é, aquele
dispositivo mágico que se apresentava sob a forma de páginas literárias

9 BEZERRA, Benilton. “O ocaso da interioridade e suas repercussões sobre a clínica”.


In: PLASTINO (org.). Transgressões. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2002, p. 229-239.

98 Paula Sibilia

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encadernadas, e que permitia o acesso a uma infinidade de universos
ficcionais nos quais cada leitor moderno podia se perder a sós para se
encontrar com aquele personagem fundamental: ele mesmo.
A expressão não é exagerada, como mostra Marcel Proust em seu
ensaio intitulado Sobre a leitura, ao descrever a sofreguidão com que
ele próprio se entregava a esse “prazer divino”, a leitura de ficções.
Especialmente delicioso era o abandono nas manhãs da infância, du-
rante os plácidos dias de férias, quando todos saíam para passear
pelo campo e o pequeno leitor ficava enfim sozinho, disponível para
se debruçar por inteiro no livro do momento. Nessas horas ele des-
frutava da afável companhia do pêndulo e do fogo, “que falam sem-
pre sem exigir resposta e cujos doces propósitos vazios de sentido
não vêm, como as palavras dos homens, a substituir o das palavras
que se leem”.10 Comparável a esse depoimento lavrado na França de
1905 é o gozo descrito por outra escritora moderna, Clarice Lispec-
tor, no Brasil de 1971. Trata-se de seu famoso conto Felicidade clan-
destina, que relata a sua versão dessa fantástica descoberta: a delei-
tosa possibilidade de ficar a sós lendo um livro.
Naqueles tempos definitivamente remotos, nos quais a literatura
podia se tornar uma espécie de vício capaz de empurrar suas vítimas
rumo à evasão do mundo real pelos suaves caminhos da ficção, cum-
pre esclarecer que nem todos os livros contavam com o prestígio que
hoje possuem pelo mero fato de serem material de leitura. Ao longo do
século XIX, a deglutição de folhetins e “romances baratos” costumava
ser um hábito muito criticado, especialmente no que tangia às moças
de boa família. Em 1806, um médico inglês alertava contra o “excesso
de estimulação” provocado pela leitura de ficções cor-de-rosa, que po-
dia “afetar os órgãos do corpo e relaxar a tonicidade dos nervos”,
enquanto em 1867 outro especialista advertia que “ler na cama impli-
ca ferir os olhos, danificar o cérebro, o sistema nervoso e o intelecto”.11
Mesmo assim, esses “romancezinhos duvidosos” eram um grande ne-
gócio: alguns títulos podiam vender tiragens de milhões de exemplares
em poucos anos. E quem os comprava, sem dúvida, também os lia.

10 PROUST, Marcel. Sobre la lectura. Buenos Aires: Libros del Zorzal, 2003, p. 10.
11 PRICE, Leah. “You are what you read”. The New York Times, Nova York, 23 dez. 2007.

O show do Eu 99

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Eis um dos motivos, justamente, pelos quais se tornaram alvo
de críticas por parte dos defensores da alta cultura e dos bons mo-
dos: não só porque propiciavam uma fuga com relação às tarefas
importantes do mundo real, mas também por serem uma espécie
de narcótico capaz de infeccionar as mentes de múltiplas Emmas
Bovaries em potencial. Porém, independentemente da qualidade das
obras, para as personalidades introdirigidas desses leitores de outro-
ra que se refugiavam naqueles universos de ficção, a literatura não
constituía apenas uma via para se evadirem de seus cotidianos reais
e anódinos. Ao mesmo tempo, essas leituras invadiam as suas vidas,
enriquecendo o acervo de suas interioridades e alimentando a sua
autoconstrução – fosse pelo bom caminho da virtude ou pela via das
fantasias consideradas perigosas.
Não só a leitura de ficções chegou a ser vista como um ato vician-
te e vergonhoso, cujo abuso devia ser evitado: a escrita de romances
também era, em certos casos, condenável – especialmente, de novo,
em se tratando de jovens honradas e de boa procedência. Foi nesse
clima cultural, nos primórdios do século XIX, que a britânica Jane
Austen escreveu sua obra Orgulho e preconceito, nos raros momen-
tos de tranquilidade e solidão que ela encontrava na sala de sua casa
familiar. Não era nada fácil: além disso, a jovem escritora devia ocul-
tar os manuscritos sempre que alguém aparecia, para que não des-
confiassem de qual era a sua ocupação nas horas vagas. Como cons-
tatou Virginia Woolf, o fato de ter conseguido concluir o romance
nessas condições – e que o resultado tenha sido tão bom – só pode
ser descrito como um verdadeiro milagre.
Esse drama não era sofrido apenas pelas raras escritoras de con-
tos e romances. Em muitos casos era preciso esconder, também, o
caderninho dos diários íntimos, cuja prática estava amplamente dis-
seminada embora tivesse conotações “masturbatórias”, sempre de
acordo com os médicos e moralistas da época. Hoje sabemos que
pelo menos uma famosa representante do gênero, a também jovem
Eugénie de Guérin, mantinha em segredo seu pequeno vício privado,
escrevendo apenas à noite sob a luz das estrelas, para dissimular in-
clusive diante de seu querido pai. Mas, com certeza, ela não foi a
única; aliás, devem ter sido inúmeras as donzelas que encontraram

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na escrita do diário íntimo “um meio de desabafo” para as agruras
da rígida vida oitocentista.12
De todo modo, seja caindo no vício ou não, seja escrevendo ou
lendo, parece evidente que estar a sós com um caderno ou um livro
era “estar só de um jeito novo”, como resumiu o mencionado David
Riesman. Talvez porque a nova solidão não consistia exatamente em
estar sozinho. No ato da leitura não se estava apenas na companhia
virtual e em diálogo com o autor do livro, para evocar as conversas
de Descartes com os amigos que dormem nas prateleiras e as cartas
aos amigos do presente e do futuro aludidas pelo romântico Jean
Paul. Além de dialogar em silêncio com o autor, ao ler sempre se es-
tava – sobretudo e principalmente – consigo mesmo, o que remete
àquele monólogo interior referido por Theodor Adorno. A socióloga
Helena Béjar, autora de um amplo estudo sobre a história das noções
de intimidade e privacidade, também considera de vital importância
esta questão: saber ler, e mais especificamente estar alfabetizado no
novo hábito de ler sem oralizar, foi uma “condição necessária para
que surgissem as novas práticas que contribuiriam para desenvolver
uma intimidade individual”.13
Esse livro que acompanhava a nova solidão do leitor era, na gran-
de maioria das vezes, um romance. Bom ou ruim, mas o isolamento
que demandava para a leitura – e, obviamente, para a escrita – cons-
titui uma peça-chave rumo à compreensão do fenômeno focalizado
neste ensaio. Quando Walter Benjamin se refere à morte do narrador
e à extinção das velhas artes de contar histórias – atividades partilha-
das que sedimentavam a experiência coletiva, típicas do universo
pré-moderno – comenta as mudanças ocorridas com o advento dos
modos de vida modernos. O indivíduo burguês dos séculos XIX e
XX, enclausurado no silêncio e na solidão de seu lar e seu quarto
privado, numa tentativa de se proteger do desamparo do ambiente
urbano, converte-se no herói solitário do romance moderno. Esse

12 CORBIN, Alain; PERROT, Michelle. “El secreto del individuo”. In: ARIÈS, Philippe;
DUBY, Georges. Historia de la vida privada, v. 8. Madri: Taurus, 1991, p. 161-162.
13 BÉJAR, Helena. El ámbito íntimo: privacidad, individualismo y modernidad. Madri:
Alianza Universidad, 1988, p. 168.

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indivíduo lê e escreve sozinho, concentrado e ensimesmado num am-
biente livre de ruídos e outras intromissões, atividades que se torna-
riam essenciais para a formação de sua peculiar subjetividade.
Mas existe uma distância gigantesca entre o autor desse tipo de
texto e aquele narrador de outrora. Aliás, sempre segundo Benjamin,
o auge do romance foi um dos primeiros indícios da agonia do nar-
rador. Pois não se trata apenas do abandono da oralidade em provei-
to do meio impresso – embora isso também seja fundamental, pois o
romance só é possível se for publicado em forma de livro, fixo e es-
tável, jamais como um relato oral –, mas de tudo o que vem junto
com essa mudança na materialidade do seu suporte. Há uma busca
de sentido que é constitutiva do romance, e que está alegremente
ausente nas narrativas populares de outrora. Não por acaso, o leitor
de romances é um sujeito que lê em silêncio, apenas só com ele mes-
mo ou absorto na imensa companhia silenciosa de sua vida interior,
portanto não se trata de uma experiência comunitária como a que
rodeava a atividade do narrador. Por isso não surpreende que o su-
jeito moderno procurasse desesperadamente, nesses textos que lia
com tanta avidez, o sentido que os velhos narradores e seus ouvintes
não precisavam buscar em lugar algum, pois estava implícito em sua
tradição partilhada e em sua experiência coletiva.
“O romancista segrega-se”, constatou Benjamin num dos ensaios
antes referidos, para logo acrescentar: “a origem do romance é o in-
divíduo isolado que não pode mais falar exemplarmente sobre suas
preocupações e que não recebe conselhos nem sabe dá-los”.14 As-
sim, em vez de serem abertos e fluidos como as velhas narrativas,
os romances devem ser fechados e orientados em direção a um fim.
Esse ponto final seria, aliás, seu objetivo primordial por definição.
“O romance anuncia a profunda perplexidade de quem vive”, pois
seu protagonista é um herói desorientado, condenado a buscar – e,
sobretudo, a se buscar. Assim como acontece com os seus persona-
gens, o leitor do romance “busca assiduamente na leitura o que já
não encontra na sociedade moderna: um sentido explícito e reconhe-
cido”. Eis a condenação perpétua que paira sobre o homo psycholo-

14 BENJAMIN, Walter. “O narrador”. In: op. cit., p. 201.

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gicus ou as subjetividades introdirigidas, fecundadas na intimidade
do silêncio e na solidão do quarto próprio burguês: buscar-se, raste-
jar dentro de si um sentido fatalmente perdido.
“Nada facilita mais a memorização das narrativas que aquela
sóbria concisão que as salva da análise psicológica”, esclarece ainda
Benjamin. Tudo o que falta no romance moderno, justamente. Pois
os textos mais paradigmáticos desse gênero não pretendem propi-
ciar a memorização de um conjunto de relatos populares que con-
cluem delineando uma edificante moral da história; ao contrário,
promovem um mergulho incessante no mistério singular de cada
experiência subjetiva. Nada melhor para ilustrar esse propósito do
romance moderno do que a técnica do “fluir da consciência”, algo
comparável à associação livre de ideias da psicanálise freudiana. As-
sim batizado pelo psicólogo e filósofo estadunidense Williams Ja-
mes em 1892, o método discursivo do stream of consciousness foi
adotado por seu irmão Henry James em suas próprias ficções literá-
rias. Mas não foi só ele, é claro. Muitos grandes escritores da pri-
meira metade do século XX – de Virginia Woolf a James Joyce, de
Marcel Proust a Gertrude Stein – retomaram essa técnica narrativa
para edificar suas obras literárias, forçando os limites da introspec-
ção a fim de convertê-la numa verdadeira arte, sob os moldes daqui-
lo que a crítica enquadraria numa categoria importantíssima: o ro-
mance psicológico moderno.
E hoje em dia, o que ocorre? Não há dúvidas de que aqui, entre
nós, a mítica singularidade do eu – assim como a de você! – conserva
a sua força. Essa mística avança, nutrida por uma cultura do indivi-
dualismo cada vez mais apurada, embora também atravessada pelos
ditames identitários do mercado, que costumam ser tão sedutores
como tirânicos e onipresentes. Cultuado e cultivado sem cessar, o eu
atual não demanda apenas atenção e cuidados; além disso, deve ser
exposto da forma mais atraente possível para convocar sedentos
olhares e conquistar todos os aplausos possíveis. Definitivamente
longe, então, do narrador benjaminiano, também nos distanciamos
daqueles insaciáveis leitores e escritores do século XIX e início do
XX, que precisavam se resguardar zelosamente na intimidade de
suas paredes e seus pudores para poder se autoconstruir.

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Isso, apesar do surpreendente renascer das escritas de si, impulsio-
nado pelas mídias sociais da internet. Pois não é necessário se remon-
tar muito longe no passado para notar que os relatos autobiográficos,
especialmente as diversas formas de diário íntimo, tiveram sua morte
anunciada e confirmada efusivamente nas últimas décadas do século
XX, sem que ninguém previsse seu repentino renascer nos ambientes
globais das redes eletrônicas. Uma das especialistas mais reconhecidas
da área é Elizabeth W. Bruss, autora de vários livros sobre o assunto,
que há apenas quatro décadas diagnosticara a iminente desaparição
do gênero. Uma previsão que era muito sensata naqueles tempos nem
tão distantes assim, devido às profundas transformações com relação
à época que vivenciou o apogeu de tais práticas. Mas ninguém podia
prever, há apenas quarenta anos, que a explosão da internet daria va-
zão à imensa “virada subjetiva” já então em gestação. Resta saber,
entretanto, se os sentidos destas novas práticas curiosamente ressusci-
tadas continuam idênticos aos que propulsaram os diários íntimos tra-
dicionais – algo que, certamente, não parece ser o caso.
Numa peculiar atualização dos fluxos de consciência, hoje, na
internet, pessoas desconhecidas costumam acompanhar o relato mi-
nucioso de uma vida qualquer, com todas as suas peripécias registra-
das por seu protagonista enquanto vão ocorrendo. Várias vidas,
aliás, em alguns casos são muitíssimas vidas cujas aventuras são se-
guidas por qualquer um, com diversos graus de fruição ou apatia.
Dia após dia, de hora em hora, minuto a minuto, com o imediatismo
do tempo real, os fatos reais são relatados por um eu real através de
córregos de palavras que, de maneira instantânea, podem aparecer
nas telas de todos os cantos do planeta. Esses textos são complemen-
tados com fotografias, sons ou imagens de vídeo, tudo transmitido
ao vivo e sem interrupção. É assim como se desdobra, nas telas inter-
conectadas pelas redes digitais, todo o fascínio – e às vezes também
o tédio ou a irrelevância – de “a vida como ela é”.
É grande a tentação de compreender essas novas modalidades de
expressão centradas no eu como um ressurgimento da antiga prática
introspectiva de exploração e conhecimento de si, porém adaptadas
ao contexto contemporâneo e aproveitando as possibilidades que as
novas tecnologias oferecem. Como se sabe, a internet permite que

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qualquer usuário possa publicar o que quiser, com pouco esforço e a
baixo custo, para uma audiência potencial de milhões de pessoas do
mundo inteiro. Isso concede aos “diários íntimos” contemporâneos
uma projeção que seus ancestrais pré-digitais nunca teriam podido
conseguir, ou sequer imaginar. Entretanto, é bem provável que a
maioria dos autores daqueles escritos privados da era analógica ja-
mais teria almejado atingir essa divulgação; para muitos, inclusive, a
mera possibilidade de um tal escancaro teria sido um horrível pesa-
delo. Pois aqueles textos cresciam envolvidos na mística do segredo,
eram tratados como cartas dirigidas ao remetente e somente a ele,
sem nenhuma ambição de exibicionismo ou de obter uma repercus-
são pública, mas todo o contrário.
De modo semelhante, os seguidores dos blogs e os fãs dos youtu-
bers, assim como qualquer um que costume navegar pelas redes so-
ciais pulando de um perfil para outro, poderiam ser comparados
com os leitores de antigamente: aqueles que, nesse ato, se identifica-
vam com os personagens literários e construíam suas subjetividades
em diálogo com esses jogos de espelhos. Tal é, sem dúvida, uma ex-
plicação possível embora parcial, pois deixa sem elucidar algumas de
suas especificidades mais significativas: justamente aquelas que este
ensaio pretende explorar. Em primeiro lugar, as complexas fronteiras
entre realidade e ficção ficam cada vez mais embaçadas nesses jogos,
pois as telas interconectadas parecem cenários muito adequados
para que cada um realize a performance de si mesmo. Entre outras
ferramentas usadas para essa mise-en-scène, destacam-se os testemu-
nhos em primeira pessoa, que de algum modo remetem a outro re-
curso antigo: a “técnica da confissão”.
Esse eficaz instrumento para a produção de verdades sobre os
sujeitos tem sido utilizado há vários séculos no Ocidente, e sua ge-
nealogia foi traçada por Michel Foucault em seu livro A vontade de
saber. Com esse texto, publicado originalmente em 1976, o filósofo
francês iniciou a série denominada História da sexualidade. Nesse
primeiro volume, ele se dedicou a desmontar a popular “hipótese
repressiva”, que enxerga nos últimos séculos da sociedade ocidental
uma sistemática repressão da sexualidade. Ainda hoje é habitual
considerar que esse território da atividade humana teria se tornado

O show do Eu 105

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um tabu no período vitoriano: aquilo sobre o qual não se devia falar.
No entanto, e de forma aparentemente paradoxal, nessa mesma épo-
ca registrou-se uma persistente incitação a falar desse assunto supos-
tamente amordaçado. “O discurso sobre o sexo, já há três séculos,
tem-se multiplicado em vez de rarefeito”, confirma Foucault.15 E as
confissões, nesse sentido, tornaram-se fundamentais.
Se essa nova disposição no que se refere à sexualidade na era mo-
derna “trouxe consigo interditos e proibições”, de acordo com o fi-
lósofo francês, ela também “garantiu mais fundamentalmente a soli-
dificação e a implantação de todo um despropósito sexual”. Nas
escolas, nos hospitais, nos tratados científicos, por toda parte, essa
sociedade supostamente tão repressiva falava e incitava a falar de
sexo, acumulando “uma imensa pirâmide de observações e prontuá-
rios”. Em vez de habitar um universo mudo ou silencioso, que evita
tocar nesse assunto, os sujeitos modernos descobriram que falavam
daquilo até mesmo quando não falavam, ou inclusive quando pre-
tendiam falar de outras coisas. Foi assim como se constituiu “uma
sociedade singularmente confessanda”, composta pelos pudicos in-
divíduos introdirigidos da era disciplinar, ora definidos por Foucault
como “animais confidentes”.
O autor conclui seu instigante estudo afirmando que esse parado-
xo entre repressão da sexualidade e excesso de fala a respeito dela,
na realidade não seria tal, mas apenas uma ilustração do complexo
funcionamento dos mecanismos de poder que agiram sobre as subje-
tividades na sociedade moderna. Não é somente a censura que opera
com toda a força de coação do fazer calar, um mecanismo por de-
mais evidente e inegável, até mesmo grosseiro em suas formas e ob-
jetivos; mas haveria também uma violência peculiar nesse persistente
fazer falar. Uma pressão mais sutil, menos óbvia e possivelmente
também mais efetiva, que pulsa nesse inabalável convite constante à
confissão. Ao verbalizar uma confidência, os indivíduos costumam
experimentar uma espécie de libertação; às vezes, falar de si implica
se esvaziar de um peso morto, gerando um alívio aparentado com a

15 FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: A vontade de saber. Rio de Janeiro:


Graal, 1980.

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emancipação. No entanto, além de gerar essa sorte de conforto liber-
tador, em muitos casos o efeito seria também o oposto: agindo desse
modo, ao responder com suas próprias vozes às demandas de falar
de si e da própria sexualidade, os sujeitos estariam alimentando as
vorazes engrenagens da sociedade industrial, que precisa saber para
aperfeiçoar seus mecanismos de sujeição.
Antes de refletir sobre os desdobramentos mais atuais desse ritual
da confissão, cabe lembrar que não se trata de uma invenção moder-
na. Nascido no âmbito eclesiástico dos inícios do século XII, logo foi
apropriado por outros campos da atividade humana como uma técni-
ca privilegiada para produzir verdades sobre os sujeitos. Na justiça, na
medicina e na pedagogia, nas relações familiares e afetivas, a confissão
se difundiu por toda parte. Tanto no mais solene protocolo público
como na mais recôndita intimidade, conforme constatou Foucault:
“tanto a ternura mais desarmada quanto os mais sangrentos poderes
têm necessidade de confissão”. Ainda hoje, essas cerimônias se encon-
tram tão profundamente inscritas em nossos hábitos, que por vezes
nem as percebemos como manifestações de um dispositivo de poder.
Trata-se, no entanto, de um formidável dispositivo de sujeição dos
seres humanos, tendente à sua constituição como sujeitos compatíveis
com um determinado projeto histórico de sociedade.
Se essa foi, bem resumidamente, a sua trajetória nos últimos nove
séculos de história ocidental, como se apresenta hoje essa sujeição
confessanda que tem marcado com tanta força a nossa tradição?
A técnica da confissão foi transvasando os âmbitos eclesiásticos e
jurídicos para impregnar também os campos médicos e pedagógicos;
e, agora, ela aparece com toda a sua pompa nas telas midiáticas. Em
2016, a bem-sucedida autora de blogs (e blooks) Lola Copacabana
afirmava o seguinte: “vivo, constantemente, fazendo o esforço para
que não existam na minha vida coisas inconfessáveis”.16 Gilles De-
leuze teria desconfiado que, talvez, a jovem escritora argentina nem
suspeitasse a que estava sendo levada a servir, mas o fato é que casos
pioneiros como o dela fizeram imensa escola nas redes sociais como

16 COPACABANA, Lola. Apud: VALLE, Agustín. “Los blooks y el cambio histórico en la


escritura”. In: Debate, n. 198. Buenos Aires, 29/12/2006, p. 50-51.

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Facebook e Twitter, que logo se tornariam extremamente populares
para desaguar uma infinidade de testemunhos em primeira pessoa.
Mas não se trata apenas da internet: o fenômeno também invadiu
as mídias mais tradicionais – a televisão, o rádio, os jornais e as re-
vistas – bem como todas as modalidades artísticas, incluindo o cine-
ma, as artes plásticas e a literatura. Como um exemplo entre milha-
res, embora bastante sintomático, cabe mencionar uma nova geração
de livros recentemente surgidos mas que já constituem quase um
subgênero, com títulos como Meu segredo, Confissões extraordiná-
rias de vidas ordinárias, Uma vida de segredos, As vidas secretas de
homens e mulheres. Alguns deles são sequelas impressas do que
acontece em sites da internet como o PostSecret, onde qualquer um
pode divulgar seus segredos supostamente mais inconfessáveis. Se-
jam revelações anônimas ou demasiadamente assinadas, elas sempre
se referem à intimidade considerada mais recôndita de cada um, que
assim se extravasa para se tornar extremamente pública.
À luz desses casos, o que estamos vivendo hoje em dia parece
constituir um novo degrau nessa fecunda genealogia da confissão
ocidental. No contexto contemporâneo, aquelas tiranias da intimi-
dade denunciadas por Richard Sennett crescem até um ponto certa-
mente inimaginável na época em que esse estudo foi publicado, já faz
mais de quarenta anos. Aliás, o ensaio de Sennett é contemporâneo
do livro de Foucault recém-citado; ambos foram concebidos e publi-
cados em meados da década de 1970, quando a “sociedade do espe-
táculo” começava a se erguer. Aliás, as teses de Debord, por sua vez,
são de 1967. Trata-se, portanto, de um momento que marcou uma
clivagem na história, anunciando mutações que logo se plasmariam
em todos os âmbitos. Sem abandonar o fértil terreno da velha intimi-
dade, porém, as tiranias que atualmente nos incitam à exibição dri-
blam os pudores para ultrapassar aqueles muros que antes protegiam
a esfera privada e a separavam do espaço público.
Estende-se, assim, uma imensa colcha de retalhos de confissões
multimídia, costurando uma multidão de pequenos falatórios e ima-
gens cotidianas sobre a extimidade de qualquer um, que ameaça co-
brir todos os recantos do antigo âmbito público. Essa estridente rede
confessanda tem a capacidade de asfixiá-lo sob o seu peso, anulando

108 Paula Sibilia

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com tanto despudor as características que antes se esperava encon-
trar na digna esfera pública. Isso é o que parece pensar o romancista
Jonathan Franzen, espantado com a inusitada vitalidade dos movi-
mentos de defesa da privacidade no mundo contemporâneo, mas
preocupado com a saúde do flagelado espaço público. O planeta não
se converteu numa aldeia, mas numa gigantesca alcova global, com
cada um de nós assistindo pela televisão ou pela internet, conforta-
velmente instalados em nossos quartos próprios, a um show de inti-
midades alheias. Por isso, conforme propõe o escritor estadunidense,
agora precisamos mesmo é de algo que brilha por sua ausência: uma
enérgica defesa do sufocado âmbito público.
Num diagnóstico semelhante ao de Sennett – embora bem mais
recente, publicado num ensaio de 2003 –, Franzen percebe um alar-
gamento desmesurado da privacidade e da intimidade, que no final
do século XX e início do XXI se dedicaram a “invadir brutalmente o
mais público dos espaços”. Esses movimentos parecem promover a
definitiva extinção daquele homem público que já tinha sido grave-
mente acuado pela subjetividade burguesa do século XIX. É nesse
sentido que a privacidade também estaria ameaçada hoje em dia, de
acordo com a perspectiva do romancista. Pois neste “mundo de fes-
tas em pijama”, a intimidade perderá fatalmente seu valor ao deixar
de se definir por oposição àquele outro espaço onde deveria vigorar
seu contrário: o não-íntimo, isto é, o lugar onde acontecem as trocas
com os outros e a ação pública. Contudo, ele próprio se pergunta,
com certo desassossego: “quem tem tempo e energia para defender a
esfera pública?”, e mais ainda, “qual retórica poderá concorrer com
o amor estadunidense pela intimidade?”.17
Independentemente da quantidade de leitores ou espectadores
que de fato consigam recrutar, os adeptos das mídias sociais costu-
mam pensar que seu presunçoso eu tem o direito de possuir uma
audiência, e a ela se dirigem como autores, narradores e protagonis-
tas de todos esses relatos, fotos e vídeos autobiográficos. Não é ne-
cessário citar as inúmeras pesquisas que o atestam para perceber que

17 FRANZEN, Jonathan. “Dormitorio imperial”. In: Como estar solo. Buenos Aires: Seix
Barral, 2003, p. 49-66.

O show do Eu 109

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os sujeitos contemporâneos – sobretudo, os mais jovens – publicam
suas informações, fotos e vídeos na internet, por exemplo, sem ne-
nhuma inquietude com relação à defesa da própria privacidade, e
nem com a de seus amigos, inimigos, parentes e colegas que também
costumam habitar suas confissões transmidiáticas. Assim, num apa-
rente retorno aos modos de vida nas zonas rurais ou nos pequenos
vilarejos prévios à urbanização do Ocidente, nesta intimista aldeia
– ou alcova – global do século XXI, é impossível preservar os segre-
dos. Mas agora o anonimato tampouco parece desejável; ao contrá-
rio, inclusive, pois neste quadro, a mera possibilidade de passar des-
percebido pode se converter no pior dos pesadelos.
Por isso, se de fato estamos diante de mais um capítulo da longa
história da nossa disposição confessanda e confidente, também não há
dúvidas de que se trata de uma nova torção desse eficaz dispositivo de
poder para produzir verdades. Cabe esclarecer que o fenômeno das
confissões na internet é muito complexo e rico, marcado pela varieda-
de, pela diversidade e pelas mudanças velozes. Em anos recentes, as
mídias sociais têm sido usadas para compartilhar, também, testemu-
nhos íntimos bastante dolorosos, cujo objetivo não consiste apenas em
se autoestilizar de modo performático diante do olhar alheio; mas, so-
bretudo, em denunciar crimes sofridos na intimidade familiar. Há mu-
lheres que relatam os abusos sexuais que o marido perpetrou com os
filhos do casal, por exemplo, ou adolescentes que narram estupros. Em
casos como esses, além do conforto que se busca no apoio dos outros
ao compartilhar uma experiência difícil, a justificativa da exposição
pública é que a internet pode ser mais eficaz e rápida que a justiça
quando se trata de proteger as vítimas e punir os responsáveis. “A alta
exposição pode ter seus custos”, reconhece a mãe de uma criança abu-
sada durante anos pelo padrasto, que optou por denunciá-lo via Face-
book e Twitter, “mas sinceramente não creio que haja custos que não
esteja disposta a pagar para que se saiba a verdade”, acrescentou.18
Com toda a controvérsia que ainda suscitam por serem práticas
muito novas e desnorteantes, que brotam das ambiguidades introdu-

18 BARNI, Sara Carina. “La alta exposición tiene sus costos, pero estoy dispuesta a pa-
garlos”. In: La Nación, Buenos Aires, 07/05/2016.

110 Paula Sibilia

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zidas na dinâmica público-privado, esse tipo de atitudes parecem le-
var ao extremo a derrubada daquele antiquado provérbio de bom-
-tom burguês: “a roupa suja se lava em casa”. Os tempos mudaram
e os valores também, portanto estes novos recursos se apresentam
não apenas como um conjunto inovador de possibilidades comuni-
cativas, mas também como um grande laboratório para a criação
intersubjetiva, com incalculáveis efeitos socioculturais e inclusive po-
líticos. Um de seus traços mais perturbadores, porém, é essa peculiar
inscrição na fronteira entre o extremamente privado e o absoluta-
mente público. Isso pode ser muito útil quando se trata de uma de-
núncia como as acima citadas; que, mesmo sendo penosas porque
envolvem o âmago afetivo de seu autor – e polêmicas porque de al-
gum modo “condenam” o suspeito sem passar pelas instâncias jurí-
dicas ainda consideradas legais –, têm o objetivo de se fazer ouvir
pela maior quantidade possível de gente.
Mas ainda cabe a questão: quando o que se conta é algo que, em
princípio, não teria necessidade de virar de conhecimento público,
pois não se busca, com isso, acionar esse tipo de instituições ou “fa-
zer justiça”, por que se opta por postá-lo na rede? Em suma, como
explicar o curioso fato de que as novas modalidades de diários ínti-
mos sejam expostas diante dos milhões de olhos que têm acesso à
internet? De novo, então: essas práticas hoje tão habituais nada mais
são do que um upgrade tecnológico do velho costume de anotar toda
a minúcia cotidiana num caderninho de folhas amareladas, só que
neste contexto altamente midiatizado da sociedade contemporânea?
Refinando a pergunta central deste ensaio: essa exposição pública é
apenas um detalhe sem importância, que deixa intactas as caracterís-
ticas fundamentais dos antigos diários íntimos ao torná-los éxtimos?
Ou se trata, pelo contrário, de algo radicalmente novo, que responde
a outras premissas e tem objetivos bem diferentes?
Neste ponto do caminho, duas atitudes são possíveis. Como pri-
meira opção, poderíamos escolher a tese da continuidade para tentar
provar que as novas práticas nada mais são do que simples adaptações
atualizadas dos velhos costumes. Ou, então, como segunda opção,
caberia escolher a trilha mais arriscada: sublinhar a descontinuidade,
desvelando a especificidade do novo a fim de captar as implicações

O show do Eu 111

Sibilia_ShowDoEu.indb 111 20/06/16 00:01


de sua configuração no presente. Apesar das dificuldades, esta úl-
tima estratégia parece a mais promissora e instigante. No entanto,
são muito proveitosas as comparações com aquelas modalidades que
podem ser consideradas seus ancestrais, pois elas fornecem um pano
de fundo contra o qual é mais fácil enxergar as inovações. Embora
alguns hábitos pareçam sobreviver ao longo de períodos históricos
diversos, ganhando certo ar de eternidade, convém desconfiar dessas
permanências: muitas vezes as práticas culturais persistem, mas seus
sentidos mudam. Do contrário, corre-se o risco de naturalizar algo
que é uma mera invenção, perdendo a ocasião de compreender toda
a riqueza de sua especificidade histórica e seu sentido peculiar na
sociedade que a acolhe.
Este seria um bom exemplo desse equívoco: o fato de os novos
diários íntimos serem publicados na internet não é um detalhe menor,
pois o principal objetivo de tais estilizações do eu consiste precisamen-
te em conquistar a visibilidade. Em perfeita sintonia, aliás, com outros
fenômenos contemporâneos que se propõem a escancarar a minúcia
mais privada de todas as vidas ou de uma vida qualquer: dos reality-
-shows às revistas de celebridades, dos talk-shows na televisão à proli-
feração de documentários em primeira pessoa, do sucesso das biogra-
fias no mercado editorial e no cinema à crescente importância da
imagem cotidiana nos políticos e em outras figuras famosas.
Nada mais privado, porém, vale lembrar, que um diário íntimo
à moda antiga. Esses prezados objetos eram furtados à curiosidade
alheia, guardados em gavetas e esconderijos secretos, muitas vezes pro-
tegidos por meio de chaves, cadeados ou senhas ocultas. Chegavam a
se converter, inclusive, em atividades seriamente proibidas e persegui-
das por maridos, pais e outras figuras autoritárias. Enquanto isso, o
universo dos computadores e celulares ligados à internet, essa autêntica
rede de intrigas com seus pontos de fuga e seus inúmeros furos nas
nuvens virtuais, não parece um ambiente propício para a preservação
dos segredos. E talvez nem pretenda sê-lo, pelo menos nesse terreno das
confissões transmidiáticas, apesar dos escândalos que de vez em quan-
do estouram pelos ambíguos vazamentos de fotos, e-mails ou vídeos
éxtimos. O fenômeno, de fato, não é simples, e parece estar habitado
por várias contradições e paradoxos, além de ter mais de uma face.

112 Paula Sibilia

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Por um lado, a privacidade da correspondência epistolar e a invio-
labilidade dos envelopes lacrados ainda são protegidas por lei. Mas a
mesma coisa não ocorre com os dados transferidos pela internet ou
pelas redes de telefonia celular, que podem ser monitorados por em-
presas ou governos – e, mesmo ilegalmente, também por qualquer um
com certo domínio técnico. Por isso não surpreende que a proteção
da privacidade seja uma questão fartamente discutida hoje em dia,
um tema delicado cuja problematização é constante nos debates liga-
dos à tecnologia e ao mercado. A aparelhagem digital é altamente
intrusiva: suas teias cobrem a totalidade do globo, e todas as frontei-
ras – físicas ou morais – são facilmente ultrapassáveis para os olhares
eletrônicos mais habilidosos. Tudo é passível de ser monitorado;
então, é bem provável que tudo termine sendo interceptado. E não
apenas pelas autoridades governamentais ou pelas agências de publi-
cidade, mas também pelos familiares, namorados, amigos ou conhe-
cidos, como sabe qualquer usuário destes dispositivos e como sugere
a teoria de Gilles Deleuze sobre as sociedades de controle.
A lógica da empresa contemporânea funciona com base na infor-
mação: os dados pessoais dos consumidores potenciais – presumi-
velmente privados – são muito valiosos para os negócios orientados
a públicos classificados em segmentos de interesse, que têm no
marketing direcionado sua ferramenta fundamental. A noção de
privacidade da informação pessoal não pode deixar de sofrer sérios
abalos e fendas, nesse universo povoado de hackers, empresas ávidas,
ferramentas sofisticadas, muitos usuários obcecados pela segurança e
outros ainda dispostos a tirar proveito desses temores. A problemá-
tica promete se acentuar, pois estima-se que em breve não será mais
possível recorrer aos últimos refúgios do anonimato ainda viáveis,
tais como pagar algo em dinheiro ou mandar uma carta anônima, ou
seja, eventos analógicos impossíveis de serem rastreados.
Entretanto, embora todos concordem em que a privacidade hoje
se encontra gravemente ameaçada, a mesma palavra parece envolver
pelo menos duas questões diferentes. Por um lado, protegem-se cui-
dadosamente certos dados pessoais – especialmente bancários, finan-
ceiros e comerciais – contra possíveis invasões da privacidade. Por
outro lado, promove-se uma verdadeira evasão da privacidade em

O show do Eu 113

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campos que outrora concerniam à intimidade pessoal e que agora
viraram éxtimos. É neste último sentido que Jonathan Franzen cla-
mava por uma defesa do espaço público, pois muitos assuntos antes
considerados íntimos se evadiram do espaço privado e passaram a
invadir aquela esfera que ainda se nomeia pública, mas está sendo
asfixiada por essa enxurrada de extimidades.
Quanto aos supostos perigos da invasão, que os discursos jorna-
lísticos costumam apresentar de modo sensacionalista, explorando o
medo desse risco iminente que representa o “roubo de identidades”,
por exemplo – algo que pode afetar subitamente qualquer um –,
apesar da expressão medonha, o mais habitual é que se refiram ape-
nas aos dados comerciais e financeiros. Assim, por exemplo, uma
dessas reportagens publicadas na imprensa exprimia o receio de que,
em virtude dos avanços tecnológicos, “a vida cotidiana de cada pes-
soa irá se converter num dia de Bloom”, aludindo a Leopold Bloom,
protagonista do romance Ulisses, de James Joyce. Ou seja, um coti-
diano “registrado com todo o luxo de detalhes e reproduzível com
alguns cliques do mouse”. No entanto, o mais provável é que esse
minucioso registro se limite a uma lista de compras e preferências de
consumo: um luxo de detalhes bastante distante dos fluxos de cons-
ciência que compunham a vida e o eu daquele personagem literário
inventado pelo romancista irlandês. Bem diferente é também a eva-
são da intimidade; ou seja, a própria exposição voluntária na visibi-
lidade das telas globais. Nesse caso, que quase todos praticam coti-
dianamente, o que se busca é outra coisa: mostrar-se com o melhor
perfil, inclusive contando e exibindo muitos detalhes do próprio dia
a dia a fim de receber um bom número de likes.
Portanto, as tendências de exibição da intimidade que proliferam
hoje em dia – não apenas na internet, mas em todos os meios artísticos
e de comunicação, bem como na mais modesta espetacularização
diária da vida cotidiana – não evidenciam uma mera invasão da
antiga privacidade, mas um fenômeno completamente novo. Em
algum sentido é comparável ao papel da censura na hipótese
repressiva, antes comentada e desmentida por Foucault no campo da
sexualidade vitoriana. Ou seja: em vez de se ressentir por temor a
uma irrupção indevida na privacidade – ou melhor: além disso –, as

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novas práticas dão conta de um desejo de evasão da própria intimi-
dade, uma vontade de se exibir e falar de si. Em termos foucaultianos:
um desejo de exercer a técnica da confissão, a fim de saciar os vora-
zes dispositivos que têm “vontade de saber”. Assim, desafiando o
medo diante de uma eventual invasão, fortes ânsias de forçar volun-
tariamente os limites do espaço privado para mostrar a extimidade,
para tornar público e visível esse eu desenvolvido no âmbito outrora
íntimo. Nesse gesto, essa legião de confessandos e confidentes que
invadiu as redes para se tornar a personalidade do momento vai ao
encontro e promete satisfazer uma outra vontade geral do público
contemporâneo: a avidez de bisbilhotar e consumir vidas alheias.
Por todos esses motivos, os muros que costumavam proteger a
privacidade individual estão sofrendo sérias rachaduras. Junto com
os velhos pudores, também as paredes daqueles lares burgueses e dos
quartos próprios que abrigavam o delicado eu do homo psychologi-
cus hoje parecem estar desabando. Como ocorrera com todas as ins-
tituições de confinamento típicas da sociedade industrial – escolas,
prisões, fábricas, hospitais –, aqueles muros outrora opacos e intrans-
poníveis subitamente se tornam translúcidos. A função das paredes
do lar consistia, precisamente, em extrair o máximo proveito dessas
características: eram sólidas porque deviam proteger seu morador,
ocultando a sua intimidade dos curiosos olhos alheios. Agora, porém,
deixam-se infiltrar por palavras e olhares tecnicamente mediados ou
midiatizados, que flexibilizam e alargam os limites do que se pode
dizer e mostrar em seu exterior: no âmbito público. Com a ajuda de
toda essa parafernália digital – das câmeras embutidas nos celulares
de qualquer um até as dos paparazzi, dos blogs às redes como Face-
book ou Youtube, das câmeras de segurança aos reality-shows e talk-
-shows da telvisão –, a velha intimidade se transformou em outra
coisa. E, agora, convertida em extimidade, está à vista de todos.
Como entender estes processos? Podemos dizer, simplesmente,
que hoje o privado se tornou público e, por isso, a velha intimidade
está desaparecendo? A resposta se intui mais complexa, sugerindo
uma imbricação de ambos os espaços em alguns setores da velha
fronteira, capaz de reconfigurá-los e problematizar a distinção, em-
bora em seus extremos eles ainda continuem operando de modo bem

O show do Eu 115

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significativo. Mas todo esse processo está afetando intensamente a
produção de subjetividades, pois nesses ambientes metamorfoseados
germinam “modos de ser” cada vez mais distantes daquele caráter
introdirigido que definia ao homo psychologicus da era industrial.
Inauguram-se, assim, em meio a todos estes deslocamentos, outras
formas de consolidar a própria experiência e novos modos de auto-
tematização, outros regimes de constituição do eu e novas formas de
se relacionar tanto com o mundo como com os demais sujeitos.
Em seus ensaios dos anos 1930, Walter Benjamin apontou a emer-
gência de uma novidade que julgou significativa: as casas de vidro.
Completamente diferentes de tudo o que tinha se visto até então em
matéria arquitetônica, os novos prédios construídos pelas vanguar-
das modernistas prescindiam de qualquer ornamento. Apenas uma
montagem de superfícies planas e geométricas, uma síntese precisa
de peças ajustáveis e móveis que celebravam tanto a praticidade da
máquina como a economia da produção industrial. O vidro é um
material não apenas transparente, mas também duro e liso, “no qual
nada se fixa”, conforme ressaltava então Benjamin. Junto com o frio
do aço, o cristal das enormes janelas criava ambientes nos quais era
difícil deixar rastros. Nada mais oposto, portanto, às necessidades e
aos sonhos abrigados naqueles recintos privados de outrora, onde a
subjetividade introdirigida do morador podia repousar à vontade.
Naqueles ambientes longínquos, o eu protegido se permitia uma cer-
ta exteriorização, um melindroso afloramento no tempo e no espaço.
Pois deixar marcas nesse local privado, espalhando por toda parte os
próprios vestígios, fazia parte das regras implícitas daquele universo.
Algo que se torna inviável numa casa de vidro.
Por que essa alusão aqui? Porque as telas que agora tanto habita-
mos também são de vidro. “As coisas de vidro não têm nenhuma
aura”, verificava Benjamin já faz quase um século, “o vidro é em
geral inimigo do mistério”. Hoje, de fato, nós sabemos que a trans-
parência lisa e brilhosa da tela de um monitor conectado à internet
pode ser ainda mais inimiga do mistério, mais loquaz e indiscreta
que qualquer janela modernista. Nada mais afastado, portanto, da-
queles espaços recobertos de veludo e rendas que eram os clássicos
lares burgueses do século XIX, carregados de mobília, tapetes e bibe-

116 Paula Sibilia

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lôs. Benjamin evoca, inclusive, a “indignação grotesca” do morador
desses ambientes quando por acaso se quebrava algum daqueles pre-
ciosos objetos colecionados em cristaleiras e estantes. Mas esse de-
sespero tinha sentido: era a reação típica de alguém “cujos vestígios
sobre a terra estavam sendo abolidos”.19
Num mundo de pura transparência e visibilidade total, como aquele
com o qual se atreviam a sonhar as casas de vidro modernistas dos anos
1930, a opacidade era um problema a ser eliminado. Tanto a espessura
das paredes como a densidade dos infinitos ornamentos do salão bur-
guês causavam certo mal-estar. Mas também – e, talvez, sobretudo – o
que incomodava era a opacidade misteriosa do seu morador: o homo
psychologicus. Aquele sujeito ofuscado pela imensa bagagem de coisas
inconfessáveis que carregava consigo, aquele que buscava constante-
mente o sentido perdido dentro de sua própria escuridão interior.
“Cada coisa que possuo se torna opaca para mim”, escreveu André
Gide nas primeiras décadas do século XX, ecoando um mundo que já
então agonizava – ou, pelo menos, um mundo sobre cujo fim o olhar
aguçado de Walter Benjamin percebeu os primeiros sinais.
Cerca de meio século mais tarde, em 1975, Andy Warhol dispa-
rou a seguinte bomba: “deveríamos viver num grande espaço vazio”.
Para isso, o ícone da arte pop estadunidense recomendava as vanta-
gens de se livrar de todos os pertences: “você deveria comprar uma
caixa a cada mês, enfiar tudo dentro e, no final do mês, fechá-la”.
Depois de colar uma etiqueta com a data nessa caixa de papelão, o
conselho era enviá-la para Nova York e tentar seguir seu rastro. “Po-
rém, se você não conseguir e a caixa se perder, não importa, porque é
algo a menos no que pensar: você elimina outro peso da sua mente.”
Inspirado no costume japonês de “enrolar tudo e guardá-lo em ar-
mários”, Warhol afirmava que mais adequado ainda seria prescindir
inclusive da hipocrisia dos armários. Tudo o que costumamos pos-
suir em casa “deveria ter uma data de validade, como o leite, o pão,
as revistas e os jornais, e uma vez ultrapassada essa data, você deve-
ria jogar tudo fora”. O próprio artista jurava fazer isso regularmente
com seus próprios objetos e, como detestava a nostalgia, no fundo

19 BENJAMIN, Walter. “Experiência e pobreza”. In: op. cit., p. 115 e 118.

O show do Eu 117

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esperava que se perdessem todas as caixas despachadas na rotina
mensal, “para não ter que voltar a vê-las jamais”.20 Vale imaginar,
diante do ar levemente devasso dessas frases, o semblante atônito e a
indignação daquele caráter introdirigido do século XIX, evocado no
texto de Benjamin em seu salão cheio de bibelôs cuja fragilidade era
preciso preservar eternamente.
Alguns anos depois desses depoimentos, na década de 1980 e no
início dos anos 1990, épocas de abundância no consumo desenfreado
e desejos de distinção blasé, ganhou um ar chique esse desapego do
qual Andy Warhol debochava. Nascia, assim, junto com os lofts pós-
modernistas e as reciclagens arquitetônicas, uma extravagância do
luxo: o minimalismo. Espécie de anorexia da decoração, esse estilo
gera ambientes vazios, claros e muito limpos, dos quais exala uma
pureza inumana. Nesses espaços não há (nem pode haver) vestígio
algum, portanto parecem uma realização plena dos sonhos modernis-
tas das casas de vidro. Pelo menos na atitude e no estilo, pois esses
ambientes do final do século XX nasceram esvaziados da ideologia
antiburguesa que vinha aderida àqueles outros recintos bem mais sisu-
dos das propostas de vanguarda. Nestes, toda a ênfase repousa no
efeito visual de cenário clean, como relata o mencionado Rybczynski
ao descrever os interiores impecáveis das revistas de decoração daque-
la época, que parecem palcos imaculados nos quais “elimina-se labo-
riosamente todo vestígio de que são habitados por seres humanos”.
Nesses ambientes que brilharam no final do século XX e ainda des-
lumbram com sua luminosidade inerte, “todos os pertences pessoais
passam a ser inservíveis”, devendo esconder-se em armários dissimula-
dos nas paredes brancas – recriando aquela hipocrisia japonesa des-
prezada por Andy Warhol. Embora possa resultar pouco confortável
viver nessa severa perfeição tão cuidadosamente ensaiada, parece valer
a pena “em nome de um estilo de vida tão refinado”, de acordo com a
irônica apreciação do mencionado historiador da arquitetura residen-
cial. Ou, pelo menos, em nome de algo que assim pareça.
Seguindo essa tendência, uma das imagens do luxo extremo no
que tange às “máquinas para viver” mais desejáveis ainda hoje em

20 WARHOL, Andy. Mi Filosofía de A a B y de B a A. Barcelona: Tusquets, 1998, p. 155.

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dia, já nos alvores do século XXI, seria um grande apartamento va-
zio localizado num andar impossivelmente alto, com enormes janelas
que dão para o nada. Ou, então, cujos vidros deixam ver um longín-
quo mar urbano: vidros transparentes e limpíssimos, porém sempre
hermeticamente fechados. Tudo é translúcido, salvo o teto e o piso,
que costumam ser revestidos em tons claros. Em geral, trata-se de um
só ambiente indevassável, pulcramente iluminado e climatizado,
cujos únicos habitantes são uma multidão de telas planas de todos os
tamanhos, algumas delas gigantescas, cada vez maiores e cada vez
mais planas, nas quais é possível ver tudo, fazer tudo, mostrar tudo.
Porém, nesse requinte que “intimida e acusa ao mesmo tempo”, não
surpreende que “tudo deva desaparecer”. O que se suprime nesses
novos lares não é apenas a sufocante acumulação de ornamentos,
móveis recarregados e tapetes bordados, mas também “todos os in-
dícios de descuido e fragilidade humana”, conforme afirma Witold
Rybczynski ao concluir seu longo passeio pela história da casa.
Para completar este quadro, cabe mencionar uma série de proje-
tos arquitetônicos de moradias apresentados numa exposição no
Museu de Arte Moderna de Nova York, em 1999, significativamente
intitulada The un-private house. Os ambientes exibidos são contí-
nuos, fluidos e flexíveis. Essas novíssimas casas não-privadas tam-
bém usam e abusam da transparência do vidro, tanto nas paredes
como na onipresença de telas digitais que reproduzem uma paisagem
ou transmitem informações sem cessar, que facilitam o encontro com
visitantes virtuais ou permitem se auto-observar de todos os ângulos
possíveis. Tais espaços evidenciam um radical distanciamento daque-
la vida aconchegada entre opacas quatro paredes que outrora era
habitual; pois, de acordo com o curador da mostra, hoje a casa tende
a se tornar “uma estrutura permeável, apta a receber e a transmitir
imagens, sons, textos e informação em geral”. Por isso, ela “deve ser
vista como uma extensão dos eventos urbanos e como uma pausa
momentânea na transferência digital de informação”.21

21 RILEY, Terence, The un-private house, Nova York, The Museum of Modern Art
(MOMA), 1999. Apud: FRANCO FERRAZ, Maria Cristina. “Reconfiguracões do pú-
blico e do privado: mutações da sociedade tecnológica contemporânea”. In: Famecos.
Porto Alegre: PUC-RS, v. 15, ago. 2001, p. 29-43.

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O que resta, num contexto como esse, daquele refúgio do quarto
próprio e privado, onde o eu do seu habitante devia ser cuidadosa-
mente guarnecido entre seus pequenos tesouros, a salvo de toda in-
tromissão do espaço público e do olhar infernal dos outros? Como
lembra Benjamin, no típico ambiente burguês de finais do século
XIX, apesar de todo o aconchego que irradiava, tudo nele emitia
uma mensagem destinada ao intruso: “não tens nada a fazer aqui!”.
Pois nesses recintos não havia “um único ponto em que seu habitan-
te não tivesse deixado seus vestígios”. Eram espaços saturados do eu
do morador, cheios de marcas de sua história e com a sua interiori-
dade laboriosamente exteriorizada ali dentro. Nesses salões um tan-
to asfixiantes, porém, a tirania também era evidente: “o ‘interior’
obriga o habitante a adquirir o máximo possível de hábitos, que se
ajustam melhor a esse interior que a ele próprio”. Talvez seja uma
revolta contra essa injunção das paredes opacas, ou contra essa tira-
nia da interioridade, o que motivou a criação das casas de vidro da
primeira metade do século XX, fantasias em forma de prédios con-
cretizadas por arquitetos como Adolf Loos e Le Corbusier. Outros
ecos dessa rebeldia também se deixam ouvir na provocação de Andy
Warhol datada nos anos 1970. E, talvez, uma insurreição contra
tudo isso também esteja presente nas práticas de exibição da intimi-
dade que hoje ainda nos surpreendem.
Essa perspectiva pode ajudar a explicar a aparição de um novo
gênero que fez sucesso na televisão global do início do século XXI:
os reality-shows de transformação. Como compreender o fascínio
provocado por esses programas, nos quais alterações substanciais
são efetuadas não apenas no aspecto físico mas também nos ambien-
tes em que os voluntários moram? O programa Queer eye for the
straight guy, por exemplo, acompanhava cinco especialistas em suas
tarefas de transformação de uma casa e seu proprietário. Cada um
dos reformadores era responsável por um segmento da vida do sujeito
a ser transformado: aparência, cultura, moda, gastronomia e vinhos,
decoração de interiores. E os cinco “estão sempre correndo, literal-
mente, como se estivessem participando de uma gincana”, comenta
Ilana Feldman em seu estudo sobre o novo gênero televisivo. “Entram
nas casas apressados e ansiosos, colocando abaixo o que puderem –

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mobiliário, objetos pessoais, guarda-roupa –, enquanto fazem uso de
seu repertório de comentários ferinos, por vezes cruéis”.22
Se em alguma dessas residências por acaso houvesse bibelôs e cor-
tinados de veludo, sem dúvida eles seriam rapidamente descartados
com a oportuna indignação grotesca por parte desses agitados pro-
fissionais da transformação – como diria Benjamin a respeito daque-
le burguês de final do século XIX. Neste caso, porém, o proprietário
não afundará no desespero ao ver os cacos de seus objetos queridos
sumindo na lixeira; em vez disso, até poderá mostrar um sorriso de
aprovação e um arroubo da futura felicidade ao constatar que os
vestígios do que ele foi estavam sendo abolidos ou deletados. Porque
o final desses programas de TV é sempre feliz: os participantes agra-
decem pela nova vida que lhes foi concedida junto com a mudança
do visual pessoal e ambiental. Em todos os casos, propõem-se a es-
quecer quem foram para recomeçar do zero, numa nova casa e com
outra aparência física. Dir-se-ia que emergem libertados dessas mu-
tações: livres daqueles que eles foram até então, após ter trocado a
sua velha subjetividade-lixo por uma reluzente subjetividade-luxo,
como diria Suely Rolnik.23 Liberados, enfim, das aflições infringidas
por aqueles ambientes nos quais até então moravam e cujas paredes
os pressionavam, obrigando-os a adquirir o máximo possível de há-
bitos, como também desconfiara Benjamin.
Cabe, contudo, se perguntar: se esses sujeitos se sentiram liberta-
dos do encarceramento de seus velhos pertences e de tudo o que fo-
ram até então, foi para se tornarem o quê? Segundo Guy Debord, a
primeira fase da “dominação da economia sobre a vida social” en-
tranhou, na definição de toda realização humana, “uma evidente
degradação do ser em ter”. No capitalismo do século XIX e início do
XX, a capacidade de acumular bens e o fato de possuir determinados
pertences – seja bibelôs, mansões, carros ou tapetes bordados – po-
dia definir o que se era. De algum modo, aqueles objetos que acol-

22 FELDMAN, Ilana. “Reality show, reprogramação do corpo e produção de esqueci-


mento”. In: Trópico. São Paulo, nov. 2004.
23 ROLNIK, Suely. “A vida na berlinda: como a mídia aterroriza com o jogo entre subje-
tividade-lixo e subjetividade-luxo”. In: Trópico. São Paulo, 2007.

O show do Eu 121

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choavam a privacidade individual falavam da história e da espessura
do eu. Já no atual estágio de “colonização total da vida social pelos
resultados acumulados da economia”, na sociedade do espetáculo,
enfim, ocorre “um deslizamento geral do ter em parecer”. É precisa-
mente dessas aparências e dessa visibilidade que “todo real ter deve
extrair seu prestígio imediato e sua função última”, resumia De-
bord.24 A conclusão é simples: se não se mostra, se não aparecer à
vista de todos e os outros não o veem, então, de pouco servirá ter
seja lá o que for. Agora, portanto, o importante é parecer.
Curiosamente, ainda no modo de produção e consumo capitalista
em que continuamos imersos, o conceito de propriedade chega a per-
der boa parte de sua antiga nitidez. Essa noção também se metamor-
foseia, em proveito de formas mais flexíveis de apropriação e acesso
a diversas experiências, sensações e universos exclusivos. “A pro-
priedade é uma instituição lenta demais para se ajustar à nova velo-
cidade da nossa cultura”, assevera o economista Jeremy Rifkin, pois
se baseia na ideia de que possuir um ativo físico durante um longo
período de tempo é algo valioso.25 Entretanto, numa economia na
qual as mudanças são a única constante, numa sociedade para a qual
mudar se tornou uma sorte de obrigação permanente, verbos como
ter, guardar e acumular perdem boa parte de suas antigas conotações
positivas. Em compensação, enquanto a subjetividade insinua uma
possível libertação daquele vínculo fatal com os objetos empoeirados
que envelhecem sem nunca perecer, outros verbos se valorizam, tais
como parecer e acessar. E também outros substantivos: as aparên-
cias, a visibilidade e a celebridade.
Não surpreende, pois, neste contexto, que os lares estejam per-
dendo sua função prioritária de refúgio privado para proteger a inti-
midade de seus moradores, em espaços carregados com uma miríade
de objetos significantes que se amarravam às mais profundas raízes
de cada eu. Aos poucos, nossas casas se convertem em belos cenários
– de preferência, um décor mutante ou mutável – onde transcorrem

24 DEBORD, op. cit., tese 17.


25 RIFKIN, Jeremy. A era do acesso: a transição de mercados convencionais para net-
works e o nascimento de uma nova economia. São Paulo: Makron Books, 2001.

122 Paula Sibilia

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nossas extimidades visíveis como filmes de não-ficção. Somente nes-
se novo universo é possível entender o seguinte relato a propósito de
uma das casas não-privadas, aquelas expostas na mostra arquitetô-
nica do MoMA antes comentada. Um dos jovens proprietários co-
mentou que, por ocasião da primeira visita de seus pais, precisou
lhes explicar que “em vez de quartos, em sua nova casa só havia si-
tuações”. Se os lares são dispositivos arquitetônicos que tanto ex-
pressam como ajudam a produzir novos modos de subjetivação,
cabe sondar quais são os tipos de eu e as formas de sociabilidade que
tendem a se constituir nesses novos ambientes, que abandonam a
lógica do quarto próprio – algo tão desejado na era moderna – para
se tornarem cenários translúcidos.
Com o propósito de mergulhar nessa instigante questão, não é
necessário recorrer ao exemplo gritante da casa do programa Big
Brother, um reality-show que desde a virada do milênio faz sucesso
nos televisores de diversos países do mundo. Embora se trate de um
simulacro do típico lar burguês, seus muros são transparentes, e tudo
o que ocorre dentro deles é minuciosamente testemunhado por mi-
lhões de pessoas que assistem à televisão em seus próprios lares – se-
jam burgueses ou não. Apesar de ter menos ibope, tanto uma web-
cam caseira como a câmera embutida em qualquer celular podem
desenvolver idêntico papel: abrir uma janela virtual no aconchego da
própria casa, e mostrar uma versão do que acontece entre essas pa-
redes a quem quiser dar uma olhada. Rituais semelhantes são prati-
cados por aqueles que expõem sua extimidade num blog ou nas re-
des sociais da internet – ou seja, cada vez mais: eu, você e todos nós.
Vale, portanto, reiterar a pergunta ora reformulada: o que resta, en-
tão, daquele homo psychologicus com seu caráter introdirigido e
suas cerimônias de cotidiana introspecção, em que se converteu esse
velho homo privatus em evidente extinção?

O show do Eu 123

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