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30 2.2 A matriz marxista O que antes de mais permite identificar o carécter de uma matriz te6rica a posigdio que adopta em relagiio ao problema que discutimos anteriormente, ¢ que é: que tipo de varidveis sio dominantes no processo hist6rico e social? As causas deterministas para além da voluntiriac livre intervengao humana? Ou a livre decisio e a criatividade humanas, intervenientes dircctas nesse processo social? ‘A matriz marxista, tendo como fonte teérica, entre outras, a visio hegeliana da Hist6ria, que procura inverter, reconhece 0 determinismo hist6rico no processo social, nao dando autonomia aos fenémenos politicos nem, naturalmente, & disciplina que os estuda, a ciéncia politica. Para Hegel (1770- 1831), a Historia resulta da uniao entre necessidade e liberdade, de acordo com um processo dialéctico em que 0 Espirito evolui segundo a necessidade € aliberdade se reduz 8 «consciente vontade do homem», nao significando esta a capacidade de alterar 0 curso da Histéria. Assim sendo, tal como 0 € para ‘Tolstoi (1828-1910), desconsidera-se o papel e a importiincia dos grandes homens na alteragéo do processo hist6rico, subordinado a uma necesséria evolucdo dialéctica. E o que sublinhac sintetiza o professor Adriano Moreira, relacionando a proposta de Comte de criar leis gerais evolutivas aplicéveis a0 género humano: Por isso a Histéria aparece como uma combinagio de liberdade e necessidade, porque, tendo na base a intervencao livre de cada homem, traduz-se numa resultante que no pode imputar-se & vontade de rnenhum. Aquilo que Hegel faz é atribuir um propésito a esta resultante, que assim aparece comandada pela Ideia Absoluta. Este problema da resultante, que nao 6 atribuivel & vontade de nenhum homem, ainda ‘que sejam livres as decistes de cada um, foi talvez 0 que levou Comte a relacionar a sua tentativa de racionalizar em leis gerais a evolugao do género humano, com 0 providencialismo anterior, isto para explicar ‘a mudanga de perspectiva mas no de objectivo (p. 40). {A proposta marxista encontra-se expressa inicialmente na obra Manifesto do Partido Comunista (1848), e mais tarde, em Para a Critica da Economia Politica, onde no prélogo Marx apresenta uma sintese do materialismo histérico, que passamos a reproduzir: Os homens, ao longo da sua vida, desenvolvem a producfo, dentro da sociedade, sob determinadas condigdes, necessirias e independentes da sua vontade, as condigées de producio, que correspondem a uma determinada fase de desenvolvimento das suas forgas materiais de produgdo. A totalidade dessas condigées de produgao constitui a “- Ee aeaRBReBBeEeEeeEe eee 2 eB estrutura cconémica da sociedade, a base real, sobre a qual se levanta uma superestrutura jurfdica e politica, ¢ a que correspondem determinadas formas de consciéncia social. 0 modo de produgio de vida material condiciona todos os processos vitais da sociedade, a politica ¢ 0 espirito. Ndo é a consciéncia dos homens que a determina, antes pelo contrério, sio elas que determinam a sua conscigncia. Num certo estadio do seu desenvolvimento, as forgas materiais de producdo da sociedade entram em conflito com as condigées de produgao existentes, oa % 0 que néo é seniio uma expressio juridica do mesmo 34 com as relagdes de propriedade no interior das quais se tinham contido até entiio. De formas evolutivas das forgas produtivas que cram, estas relagdes tornam-se entraves dessas forgas. Abre-se entio uma era de revolugio social, a mudanga que se produziu na base ‘econémica agita mais ou menos lentamente ou rapidamente toda a colossal superestrutura. Quando se observam tais agitagées, é necessario distinguir sempre entre a alteragio material das condig&es de produgio econémicas que devemos verificar fielmente com a ajuda das cigncias fisicas e naturais, e as formas juridicas, politicas, religiosas, artisticas ou filoséficas, numa palavra, as formas ideolégicas sob as quais os homens se tornam conscientes deste conflito e o levam até ao fim. Uma sociedade no desaparece nunca antes que se tenham desenvolvido todas as forgas produtivas que pode conter em si, € jamais novas e superiores relagGes de producio as substituem antes que as condigGes de existéncia material de tais relagdes tenham sido incnbadas no proprio seio da velha sociedade. 6 por esta razio que a humanidade nunca se coloca a si prépria sendio os problemas que pode resolver... (pp. 41-42) Este texto, que traduzem grande parte a interpretacio econémica da Hist6ria eapropriaesséncia da doutrina marxista, s6 faltando a esta os conceitos de classe e de luta de classes, revela uma posico cuja novidade se capta melhor confrontando-a com as respostas dadas aos mesmos problemas por Bossuet (1627-1704), Comte ¢ Hegel. Com efeito, todos eles consideram o género humano, ¢ no 0 homem individual, como objecto de andlise, como uma unidade de estudo hist6rico, Para além disso, todos identificam uma resultante (que difere em cada um dos autores) que marca cada 6poca hist6rica e que ndo pode atribuir-se & decisdo de ninguém, de nenhum individuo. No caso de Marx, essa resultante 6 explicada pela contradigdo entre as forgas produtivas ¢.as relagdes de produgiio, ou seja, as relagées juridicas de propriedade a distribuicdo dos rendimentos entre os individuos e grupos da colectividade. O professor Adriano Moreira elenca as implicagdes deste pressuposto marxista segundo a seguinte sequéncia: a) 0 movimento da Hist6ria apreende-se pelo exame das estruturas da sociedade, das forgas de produgio, ¢ das relagées que, em decorréncia causal necesséiria, se estabelecem entre os homens; 31 b)em qualquer sociedade, em qualquer tempo, distinguem-se a infra- estrutura econémica ¢ a superestrutura normativa valorativa, ideolégica; c)em momentos determinados do proceso histérico, as forgas de produgdo entram em conflito com as relagdes de produgao, isto é,com as relagdes de propriedade e a reparticao do rendimento nacional que é fungio das relagées de propriedade; quando surge 0 conflito, os homens que estio ligados aos beneficios das relagdes de produgfo entram em luta com aqueles que pretendem transformar essas relagdes em funcao do desenvolvimento alcancado elas forgas produtivas, desenvolvimento que por sua vez. depende do progresso tedrico, do avango cientifico e da prépria organizacao colectiva do trabalho: aqui surge o princfpio da luta de classes; €) as revolugées que resolvem essa contradicao das classes, brevemente identificadas como capitalista e proletaria, porque os primeiros sto ‘0s donos dos instrumentos de produgdo, ¢ os segundos apenas dispoem. do trabalho, sao acontecimentos necessérios sempre que 0 ponto de ruptura se dé entre as forgas de produgio e as relagdes de producao, precisamente quando a sociedade tem j4 os meios de resolver as problemas que a evolugio lhe coloca, e nfo antes; { aconsciéncia dos homens nao determina o processo social, 6 0 processo social que determina a consciéncia dos homens, pelo que a resolucdo dialéctica das contradigdes nio se di no espfrito, dé-se na realidade social; 22 hist6ria do género humano permitia nessa data distinguir quatro ‘modelos econémicos: antigo, feudal, burgués ¢ asiatico Da andlise dos referidos modelos econémicos resultava que: a) o regime politico, parte da superestrutura, € reflexo da luta de classes; 'b) as classes sfio definidas pelo sistema de produgio; c)o sistema de produgao depende essencialmente da evolugao das técnicas; do fenémeno politico é uma consequéncia das relagées de produgio, ¢ ‘no tem autonomia no processo causal; a sua interferénciano proceso resulta apenas do fendmeno de interacgao de todas as variéveis. Dagui se confirma, aplicando o critério as trés etapas da Histéria Ocidental, que o modo de produgao antigo é caracterizado pela escravatura; o feudal, 32 d pela servidao; e o burgués pelo salariado. Modelos conduzidos 4 extingSo por motivo da evolugio técnica. Seria também 0 caso do modelo capitalista, contemporineo de Marx, que, como consequéncia do progresso técnico ¢ industrial gerador de contradig6es internas, levaria 4 supresstio da propriedade privada dos meios de produgdo c & sua substituigao pelo modo de produgio socialista, com um Estado socialista, o fim da luta de classes e, mais tarde, a extingao do Estado (sobre este ponto, veja-se figura 1.2). Mais tarde, na obra O Capital (1867), Marx desenvolve as teses expostas no ‘Manifesto. Mas seria Lenine (1870-1924) a formular 0 conceito operacional de classe. As classes sociais so, na perspectiva deste autor, «grandes agrupamentos humanos que se diferenciam pela sua posi¢o num sistema hist6rico determinado de produgao social, pelas suas relagdes (habitualmente definidas por lei) com os meios de producao, pela sua funcao na maneira de receber a sua parte da riqueza social, assim como pela proporgdo dessa parte recebida» (p. 44). Ora o modelo capitalista simplificou a diversidade dos antagonismos de classe, reduzindo-a a duas classes antagénicas, a burguesia © 0 proletariado. Prolctariado que s¢ vé obrigado a vender a sua forga de trabalho ao capitalista pelo minimo vital da sustentago (que varia conforme a conjuntura) ¢ o capitalista apropria-se da diferenca entre esse minimo (salétio) © 0 produto real do trabalho (mais-valia). O luero constitui o motor do modelo capitalista e Marx demonstra no terceiro volume de O Capital a inevitével faléncia desse modelo a partir da lei da baixa tendencial da taxa de juro.O professor Adriano Moreira d4-nos conta do raciocinio que preside a referida lei: ‘A taxa de lucro depende da composicZ0 organica do capital, isto é, da relagio entre o capital varidvel e © capital total; a modificagdo da composigao organica do capital 6 imposta pelo principio capitalista a concorréncia, que leva a reduzir o capital variével em relagio a0 capital constante; esta evolugdo inevitavel, provocando a baixa tendencial da taxa de Iucro, mata dialecticamente o préprio motor do sistema capitalista, que morre por dentro. Este desabar da estrutura, & revelia da vontade dos homens, reflecte-se, no dominio social, na insatisfagéo e célera crescentes dos proletérios e desemboca na revolugio que finalmente liquidard os antagonismos de classe pela modificago das relagBes de produgio (p. 45) ‘A matriz marxista suscitou diversas interpretagdes, entre as quais a que reconhece que a andlise marxista tem elementos valorativos e nao factuais, ¢ aceitam, como Mehring (1846-1919), a metodologia marxista mas recusam a sua doutrinagdo revolucionaria. Outros, como 0 caso de Lenine, especialmente na sua obra O Empirocriticismo (1909), sustentam que o homem recebe da realidade social e do provesso histérico simultaneamente os conceitos da sua interpretagdo c os quadros do pensamento. Antes de finalizarmos, convém 3 34 notarmos dois pontos em jeito de comentario critico. O primeiro é a que a abordagem marxista omite a anélise de um dos modelos de produgio considerados, no caso, o modelo asidtico de produgiio, caracterizado pela subordinagao de todos ao Estado, sem exploracdo e sem proprietiirios privados onde faltariam, por consequéncia, os pressupostos da Iuta de classes. Um segundo ponto tema ver como facto da sociologia maraista ortodoxa procurar descobrir as leis fundamentais da evolucdo da Historia, repetindo 0 determinismo econémico de Marx, os tipos sociais histéricos e o modo de passagem de um modelo a outro por ele propostos. Forge] Netweza | Proprsiade | Propiedade | Necstdndes determinantes | (necessidades | privada (usada | colectiva (usada humanas eee | pent benmeenss Geae baisicas) particular) |bem-estar geral)| psicol6gicas e cts) | Pass (Auto-suficitncia) Divisto do | Estatizagio dos | Independencia carctetsias |" famiar” fabao:sseaa] meior de | oot cecondioas fabs | proto oda | individu ¢ | planificagao | abundancia cate eae eee ae See Neil eae | Eee foie | | ocommdioks | wetoeen | sompliee |. mene coe ait tsesisar een eos cape | seanioe |) pyoe (ditadura do. ral) aipals | Elevada | Hlavada —]"Redurgn. | Supe de caracteristicas | desigualdade | desigualdade desigualdade: divisio de tae | Setads | taechin | bemomnes . Mike cake eae imetace |Pemaasale || mete vaesan frosts? || cxtusu een ieee ia me | individ Figura 1.2. — A sucessio dos modos de produgdo segundo Marx e Engels ~“”" BEE EREREREBEEEBREREREREBEBUBURB

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