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Winnicott: uma Psicandalise nao-edipiana* Zeljko Loparic**, Sao Paulo O presente artigo parte da tese de que o problema basico a partir do qual foi constituida a psicandlise freudiana é o do complexo de Edipo e que todas as outras dimensées da teoria psicanalitica tradicional remetem a esse “com- plexo nuclear”. Em seguida, o artigo tenta demonstrar que o problema cen- tral da psicanélise winnicottiana nao é do “andarilho na cama da mae”, mas o do “bebé no colo da mae’, para concluir que a psicandlise desenvolvida por Winnicott nao é mais edipiana. No final, 6 apresentada uma avaliagao hist6- rica e epistemoldgica desse desenvolvimento. * Verso corrigida e ligeiramente ampliada do texto originariamente publicado em Percurso, ano IX, n® 17, pp. 41-48. +» Professor-Titular de Histéria da Filosofia na UNIGAMP, professor visitante na PUCISP, Revista de Psicandlise, Vol. IV, N°2, outubro 1997 a 375, Zeljko Loparic 4. A descoberta do Edipo e o surgimento da psicanalise Na formulacio inicial do complexo de Edipo, a diferenga de sexos desempe- nha o papel fundamental: 0 menino gosta da ma e 6 rival do pai, ou seja, tem desejos de incesto ¢ de assassinato. A menina, por seu turno, gosta do pai e rivaliza com a mie (Freud, 1900, p. situagio é conflituosa e, por isso, gera angiistia, cuja forma bisica é a castragdo. A angtistia, bem como os desejos que constituem a situa- ao edipica, passam em geral desapercebidos, embora possam reaparecer na forma de sonhos ¢ de sintomas neuréticos, analisdveis e compreensiveis em termos da logi- ca dessa mesma situagio. Com o Edipo, Freud descobriu, ao mesmo tempo, a sexua- lidade infantil, o inconsciente reprimido, 0 conflito que causa as neuroses e 0 método de seu tratamento. Foi a partir dai que Freud formulou a teoria psicanalitica. Como observa Bion com muita propriedade, 0 complexo de Edipo, reconhecido no material clinico, bem como o mito de Edipo e a sua versio em Séfocles serviram a Freud de “instrumento para descobrir a psicandlise”. Por essa razo, a psicandlise freudiana pode ser chama da de “edipiana”. Sobre esse ponto, também, Bion disse palavras decisivas: “Freud afirmou que um dos critérios segundo os quais um psicanalista deveria ser avaliado era o grau da sua fidelidade intelectual & teoria do complexo de Edipo. Ele demons- trou, assim, a importancia que atributa a essa teoria...". Bion nao deixou dividas quanto a sua pessoal lealdade & teoria canGnica de Freud. O passar do tempo, diz ele, trouxe nenhuma indicagtio de que Freud esta na a errado por fazer uma superesti- maciio da importincia do famoso complexo; a evidéncia do complexo “nunca estd ausente, embora possa nao ser observada”* (Bion, 1963, p.92 ¢ 1967, pp.49-50). 2. A teoria freudiana da situagao edipica Quando se discute o Edipo na psicanilise, convém distinguir entre a situagao © 0 complexo propriamente dito. O complexo de Edipo € 0 efeito, sobre 0 sujeito, do conflito entre as forgas que controlam a situacdo edipica. A situagio edipica pode ser descrita como a de um sujeito dotado de uma constituigao inata. A constituico inata do sujeito edipico é caracterizada por mec nismos mentais, forgas psiquicas (elementos dindmicos e, além disso, energéticos, divisiveis em componentes) ¢ forgas bioldgicas, de natureza fisico-quimica, li uma organi gadas a elo corpérea (zonas de excitagdo por meio dessas forcas: a zona oral * Bion afirma, ainda, que a teoria do Edipo faz parte do “equipamento de observagao" padrao do material linico e the concede a condigao de “pré-concep¢ao" do tipo D4. 376 0 Revista de Psicandlise, Vol. IV, N? 2, outubro 1997 ‘Winnicott: uma Psicandlise nao-edipiana anal e genital), Os mecanismos mentais t@m a capacidade de produzir representagdes de obje- tos e de transformar representagdes. As forgas psiquicas sao representantes psiquicos de forgas fisico-quimicas que, ao lado dos mecanismos mentais, se encontram embu- tidos num aparelho psiquico. A idéia de uma tal constituigdo do sujeito humano nao foi inventada por Freud. Os seus momentos basicos, mecanismos mentais e forgas foram introduzidos no sé- culo XVII por Leibniz, pensador que faz parte da tradigao cartesiana da filosofia ocidental. As ménadas leibnizianas sio caraterizadas pelo representatio e appetitus (Heidegger, 1961, I, p.551). O que Freud acrescenta, sob a influéncia de Darwin, é a corporeidade bioldgica que se faz valer, seja diretamente, seja representada pelos mecanismos mentais (em particular, a fantasia). A importincia decisiva desse acréscimo para a psicandlise tradicional diz res- peito as relacGes de objeto do sujeito assim constituido. Essas relagdes so ou dina- mico-energéticas (as bioldgicas e as sexuais) ou mentais. As biol6gicas sao primari- as. Isso significa que 0 funcionamento do aparelho corpéreo determina todos os ou- tros modos de relacionamento com o objeto, a natureza e a escolha dos objetos, as metas € a evolugio ou a histéria do relacionamento (Klein, 1988, pp. 51, 52-3). Esse funcionamento € 0 protétipo para os desejos ¢ as fantasias de incorporagao ou iden- tificagiio que determinam representacionalmente as relages objetais. “No seio de todas as relagées do sujeito com 0 mundo” ,escrevem, com propriedade, Laplanche e Pontalis, “estdo as metdforas da incorporagdo ¢ a forma como esta se reencontra como significagao e como fantasma predominante” (Lapanche e Pontalis, 1967, p.406). 3. A psicanalise edipiana que acabamos de dizer explica o papel central do complexo de Edipo na teoria psicanalitica tradicional (Freud, Klein, Lacan, Bion), Em primeiro lugar, ele 6 0 fendmeno principal da vida sexual, por isso elemen- to essencial da explicaciio da vida sexual. Toda a teoria da fungio sexual é concebida como preparagao ou como decorréncia da situagao edipica. Em segundo lugar, a es- trutura do sujeito é concebida em termos de antecedentes ou de derivagdes do com- plexo, Em terceiro lugar, 0 complexo de Edipo é o complexo nuclear das neuroses e, de modo geral, das doengas psiquicas. Em quarto lugar, 0 complexo de Edipo esta na origem da ordem cultural, isto é, da religidio, da moral, da socialidade, da historicida- de, da arte, da ordem humana em geral Revista de Psicandlise, Vol. IV, N°2, outubro 1997 3 377. Zeljko Loparic Por esse motivo, a teoria da situagio edipica e dos seus efeitos pode ser cha- mada de paradigma, no seguinte sentido: 0 problema do Edipo é 0 problema central ¢ asolugao exemplar desse problema, a parte principal da psicandlise tradicional, um paradigma* tedrico, tanto para a andlise individual como para o desenvolvimento e para a institucionalizagao da teoria psicanalitica. O paradigma edipiano foi aplicado a um grande mimero de problemas nos quatro dominios assinalados, em geral com sucesso estrondoso. Logo surgiram, po- rém, problemas que ele, em principio, deveria resolver, mas que se revelavam nio- sohiiveis, isto 6, andmalos. Alguns deles foram anotados por Freud ele mesmo: a dificuldade de demonstrar 0 caréter empirico da cena primitiva (1914), de dar uma explicagiio do luto e da dor da transitoriedade (1917), 0 cardter aberrante da Teagao terapéutica negativa (1920) e o problema da relacdo origindria exclusiva da menina coma mae (1925). Freud desenvolveu, diante desses problemas, varias estratégias de preserva- go do cardter central do Edipo e da psicanilise edipiana, Entre essas constam uma melhor articulagao interna da teoria, sua reformulagéo também interna e a sua exten- sdo por meio de hipdteses, sejam empiricas sejam especulativas. 4. Um exemplo de revisao do paradigma edipiano Explicitarei essas estratégias freudianas através do tiltimo problema acima mencionado, problema da relagdo origindria exclusiva da menina com a mae. Uma razio adicional para a escolha desse exemplo é que ele traz um material que se cons- tituird na base do desacordo revoluciondrio entre Freud e Winnicot: segundo o psi- canalista inglés, a relagio inicial exclusiva, nflo s6 das meninas, mas dos bebés dos dois sexos, com a mae, nao pode ser tratada em termos de precursores do m edipico. Em 1925, muito tardiamente, portanto, Freud reconheceu que, nas eriangas de ambos 0s sexos, a mie € 0 primeiro objeto (Freud, 1925, p.259). Isso implica, diz Freud, na existéncia de um problema adicional para a formagio do complexo de Edipo nas meninas: além de trocarem de meta (essa passa a ser genital, como no caso dos meninos), elas também tém que trocar de objeto da pulsio sexual infantil, ou seja, a mae pelo pai Freud indicou claramente que se trata de um problema especial. 0 reconheci- mento de um tempo pré-edfpico da menina foi uma surpresa, diz. Freud, “semelhante jaterial * Utilizo 0 termo “paradigma" no sentido de Th. S. Kuhn, 378.9 Revista de Psicanalise, Vol. IV, N° 2, outubro 1997 Winnicott: uma Psicanalise nao-edipiana a descoberta, num outro dominio, da cultura minGico-micénica por tras da grega” (Freud, 1931, p.276). Essa comparacio é reveladora. Freud parece sugerir ter topado com um estrato da vida humana anterior e diferente do edfpico, assim como a civili- zaciio de Micenas é anterior e diferente da civilizagio de Tebas. Em seguida, ele descreve a sua surpresa sem diferenciar entre as meninas e os meninos: “Tudo no domtnio dessa primeira ligagdo com a mde parece-me dificil de ser compreendido analiticamente, por ser tdo cinzento de velho, to cheto de sombras, por tao dificil- mente poder ser vivenciado de novo, como se tivesse sido submetido a wm recalque particularmente inexordvel” (Freud, 1931, p.276). A relagio micénica com a mie seria uma relagdo de objeto nao apenas mais antiga e diferente, como também mais profunda — jé que objeto de um recalque mais severo e precoce ~ do que a edipica, grega. Estarfamos aqui diante de uma dimensio nao simplesmente pré-edipica, mas propriamente ndo edipica da vida humana? O problema é mais sério do que se pode pensar a primeira vista. Por ser exclu- siva e, portant, dual, a relagio inicial com a mae nao parece depender, de modo algum, da situagao edfpica definida por relagdes triangulares. Por ser precoce, ela nao parece conter um momento falico e ainda menos genital. No caso especifico da menina, a questo complica-se ainda mais devido ao fato de que, na ética da teoria tradicional, as meninas jd nascem castradas. Por todos e: momentos, 0 caso pare- ce escapar ao dominio da sexualidade infantil. Como, além disso, a relagiio exclusiva com a mie pode, segundo 0 préprio Freud, dar lugar a todas as fixagdes e recalques que sao necessarios para a formagio de neuroses, parece inevitavel concluir que é preciso rejeitar a tese de que 0 complexo de Edipo se constitui no complexo nuclear das patologias psiquicas Deverfamos abandonar 0 paradigma da situagdo edipica como a chave univer- sal para a compreensio € 0 tratamento das neuroses? Nao, responde Freud. O para- digma edipiano pode ainda ser defendido, diz ele, de duas maneiras. Primeiro, dando a0 complexo “um conteiido mais amplo, de modo que passe a incluir todas as rela- Ges das criangas com ambos os pais”. Segundo, dizendo que a menina chega a situa- Jo edipica positiva superando um tempo anterior dominado pelo complexo negati- yo. Vemos as estratégias empregadas por Freud: rearticular, reformular, estender os conceitos da psicanilise edipiana para evitar a sua rejeigao Em 1925, Freud optou pela reformulagdo que diz que, no caso das meninas, 0 complexo de Edipo é secundério, nao possibilitador e, sim, possibilitado pelo com- plexo de castragao. Ele admite que a relagao com a mae é pré-edipica, mas apenas no sentido de fazer parte da “pré-hist6ria” da situagiio edipica plena. A relacao da meni- na com a mie resulta de pulsdes bioldgicas e sexuais, embora essas tiltimas nao tenham atingido ainda a fase falica ou genital. Revista de Psicandlise, Vol. IV, N° 2, outubro 1997 9 379 Zeljko Loparic Nos anos seguintes, Freud viu-se forgado a introduzir outras mudangas na teoria tradicional. Jé em 1926, ele propde uma “pequena modificagdo” na condi¢ao do desenvolvimento da angtistia das meninas: essa nao nasce da falta, real ou imagi- naria, de um objeto, real ou imagindrio, mas da perda do amor por parte do objeto. No caso da histeria feminina, por exemplo, a perda do amor desempenharia um papel andlogo 2 ameaca de castracio nas fobias masculinas (Freud, 1926, p.283). Nos anos trinta, Freud ensaiou uma explicagiio mais de acordo com a ortodo- xia edipiana. Ele diz observar, nas meninas, 0 desejo de gerar uma crianga da mae, como também 0 desejo de Ihe fazer uma crianga, ambos pertencentes, enfatiza Freud, a “fase failica”. Estamos muito préximos do Edipo pleno: fazer um filho na mie im- plica em ser também o pai; ter um filho da mae implica em que a mae seja também o pai. Além desses desejos, no material relativo a esse caso, Freud encontra ainda uma fantasia de sedugao semelhante aquela da qual derivam os sintomas histéricos ¢ que deu origem (erroneamente interpretada como fato real) & descoberta do Edipo. $6 que, nesse caso, a sedutora é a mie e a sedugdo tem um fundo de realidade, ja que, efetivamente, a mie, pelos seus cuidados fisicos, “deve ter provocado, talvez até mesmo despertado, as sensagdes de prazer no érgdo genital” (S. Freud, 1933, p.551) Freud parece sentir que est4 forgando os conceitos e levanta, ele mesmo, a objeciio de que elementos libidinais de ligagao ndo sdo observados na relacao inicial das meninas com a mie. Freud responde: “Muitas coisas podem ser observadas nas criangas, quando se sabe observar” (Freud, 1933, p.552). O que Freud quer dizer & que o paradigma edipiano permite ver o que, sem esse paradigma, permaneceria im- perceptivel. 5.0 E 0 precoce de M. Klein Entre os que praticaram rearticulagdes ¢ revisdes do paradigma edipiano, um lugar de destaque ocupa M. Klein, Em Freud, os sentimentos de culpa, de persegui- Gao ¢ de angtistia so considerados derivados do complexo de Edipo. Klein notou que tais sentimentos, associados & agressividade, surgem jé nas fases pré-edipicas, em particular na relagdo supostamente exclusiva A mie, observada por Freud, Concluiu da que a situagao edfpica, sob pena de ser inaplicavel a tais fendmenos, deve possuir uma forma precoce, desconhecida por Freud. . Como € possivel que criangas muito pequenas, antes mesmo do complexo de. Edipo formado, tenham sentimentos de culpa? Klein explica: criangas de ambos os sexos, em virtude da sua constituigio pulsional e mental, tam, desde o inicio da vid: desejos genitais (fall a, s) dirigidos tanto para a mae como parao pai. Além disso, elas 380.0 Revista de Psicandlise, Vol. IV, N° 2, outubro 1997 - Winnicott: ima Psicanalise ndo-edipiana querem, desde a fase oral, aniquilar o objeto libidinal primario, o seio da mae. Daf 0 sentimento de culpa. A agressividade aqui envolvida decorre, em tiltima instancia, da pulsao de morte e nao, como em Freud, da frustrago causada pela perda do objeto ou do amor e da proteciio do objeto (Klein, 1988, p.41; cf. ibid., pp.2, 27, 44, 50). Em que medida a anguistia assim gerada tem um sentido edipico? Na medida em que, para as criangas de ambos os sexos, 0 pénis do pai esta contido no seio da mie, de acordo com a equagio simbilica: seio = pénis (Klein, 1988, pp.78-9, 197). Por conseguinte, 0 ataque contra 0 seio equivale & castragiio do pai Klein sabe da objegio de Fenichel, formulada em 1930 e parcialmente aceita por Freud em 1931, contra o seu Edipo precoce: a idéia do Edipo precoce altera todas as outras relagdes produzidas durante o desenvolvimento, além de nao ser compati- vel com a existéncia da ligagaio materna, pré-edipica, de longa durago e excl siva observada por Freud. Essa implica em que a relagio inicial com a mae seja a dois e nao a trés e que, portanto, ndo pode ser afirmado que nela existam “tendéncias edipi- cas”, Qual é a resposta de Klein? Ela afirma que, para salvar o Edipo, as relagdes produzidas durante o desenvolvimento precisam de fato ser reformuladas, mas que essa reformulaciio nao implica em rejeitar as suposigGes basicas da psicaniilise tradi- cional. O problema essencial é 0 de mostrar que a relagao de criangas de ambos os sexos com a mie &, desde inicio, de fato, uma relagiio a trés. O que torna e relagio trididica e assim edipica, é o fato de que toda crianga possui um saber inato sobre os assuntos relativos & estrutura da situagao edipica. Munida desses argumen- tos, Klein poderd dizer que a sua teoria do Edipo precoce nao contraria, no essencial, as afirmagoes do “professor Freud” (Klein, 1988, p.197). A estratégia “revisionista” usada por Klein, para salvar 0 complexo de Edipo e garantir a aplicabilidade dos conceitos que o definem além do dominio inicial, consiste, portanto, em proceder a uma rearticulagao da teoria do complexo (nova relagGes entre objetos parciais definidas por meio de equagdes simbélicas), além de introduzir novas hipéteses relativas & constituigdo inata do sujeito (aos contetidos especificos do saber inato). 6. As anomalias descobertas por Winnicott Essa estratégia 6, sem diivida, engenhosa, mas ela tem 0 seu custo: 0 significa- do dos conceitos deixa de ser acessfvel & experiéncia tanto dos analistas como da crianga Nem todos os psicanalistas se mostraram dispostos a pagar esse prego. Nos Revista de Psicandlise, Vol. IV, N? 2, outubro 1997 9 381 G 221) Zeljko Loparic anos trinta, quando 0 complexo de Edipo ainda era geralmente aceito como nuclear, Winnicott notow a existéncia de mtiltiplas formas de distirbios, acompanhadas de angiistias que nfo pareciam poder ser enquadradas como “regressdes aos pontos de fixagdo pré-genitais”, ligados 4 “dindmica proveniente do conflito do complexo de Edipo plenamente desenvolvido”. Winnicott concluiu que algo estava errado em al- gum lugar (Winnicott, 1965, p.172). Por um tempo, Winnicott trabalhou com as modificagées do paradigma tradi- cional introduzidas pela teoria kleiniana da posigao depressiva. Pouco a pouco, ele percebeu que nem mesmo 0 conceito de complexo de Edipo precoce, de Klein, pode ser usado para dar conta dos seus problemas Mas 0 fator decisivo para o surgimento da psicandlise winnicottiana foi a sua crescente convicgao de que existem problemas iniciais da vida humana que podem ser claramente identificados ¢ descritos e que nao so soltiveis por meio dos elemen- tos da teoria da situacio edipica e do complexo de Edipo. Ele chamara mas de angtistias ou agonias impensdveis Que angtistias sfio essas? As anguistias diante de varias ameacas ao existir humano, tais como o medo de retorno a um estado de ndo-integragio (e, nesse senti- do, de aniquilagdo e de quebra da linha do ser), 0 medo da perda de contato com a realidade, da desorientacaio no espaco, do desalojamento do préprio corpo, panico num ambiente fisico imprevisivel, etc.” Por que io chamadas de impensiveis? Porque ndo sdo defini veis em termos de relagdes pulsionais de objeto, baseadas em relagdes representacio- nais de objeto (percepgiio, fantasia, simbolizagdio). Uma caracteristica basica das an= gtistias impensaveis € 0 fato de se darem, por muito precoce: es proble- ssas angtistias s ntes que exista um individuo capaz de experiencia -las. Isso significa que os estados que dao or anguistias impenséveis acontecem antes do inicio da atividade relativa a mecanismos mentais ¢ a forgas instintuais. O que constitui as agonias como. impensiveis e, assim, como anomatias para a psicanzlise tradicional, é que elas niio podem, em principio, ser entendidas, pensadas, em termos do conflito gerado na situagao edipica Como, entao, surgem as angiistias winnicottianas? Por que as angiistias im- pensiveis deveriam ser levadas em conta pela psicandlise? Como tratar delas? igem as 7. Uma psicanalise nao centrada no Edipo A obra winnicottiana pode ser interpretada como sei / e ndo, no essencial, uma tentativa de responder a essas trés perguntas. A sua Tespo! tentativa de responder a sta a primeira delas & a * Lembro aqui a hesitagdo do Femard Pessoa enti tudo vale a pena e nada vale a pena 382.4 Revista de Psicandlise, Vol. IV, N° 2, outubro 1997 ee Winnicott: uma Psicanalise nao-edipiana seguinte: aquelas angiistias dilo-se diante do encontro com o mundo, inesperado e incompreensivel para o bebé, num determinado estdgio de amadurecimento. Essa resposta implica, portanto, numa teoria do amadurecimento humano. O ser humano, diz Winnicott, é uma amostra temporal da natureza humana (Winnicott, 1988, p.11). A tinica heranga do homem € 0 processo inato de amadure- cimento (Winnicott, 1989, p.89). A sua vida ocupa um intervalo entre dois “estados” de ndo-vida, estados que fazem parte da estrutura do individuo. Esse intervalo surge do nao-ser inicial sem razio alguma e vai-se estendendo até o nao ser terminal, até a “segunda morte”, como diz Winnicott, unicamente devido ao concernimento do in- dividuo pela continuidade do seu ser. Apesar desse concernimento, a continuidade nao pode ser assegurada pelo individuo ele mesmo. Ela depende essencialmente de um meio facilitador. A condi- do inicial do homem nao é a de ser um Edipo em potencial, mas ade um ser humano. fragil, insuperavelmente finito, que precisa do um outro ser humano para continuar existindo, E essencial notar que a relagao de dependéncia ndo é uma relagdo de objeto entre um sujeito e um objeto numa situacio conflituosa a trés, Examinemos essa afirmagéio ponto por ponto. No comego da vida, 0 bebé no é um sujeito leibniziano, movido a forcas internas para ele coisas tao externas quanto os fenémenos naturais, fendmenos que nio o movem, mas 0 ameagam. O motor do bebé € o préprio fato de ele estar vivo. O bebé nfio se relaciona com o seio em termos de prototipos bioldgicos e filogenéticos. Em particular, o bebé nao quer comer a mie, diz Winnicott, nem, menos ainda, castrar 0 pai (Winnicott, 1987, p.109). Ele quer a presenga segura da mae que the inspire a fé em si mesmo € no mundo. O bebé s6 adquire a capacidade de usar os seus mecanis ‘mos mentais se 0 seu contato com a mae-ambiente for satisfatério (se © seio-técnica funcionar). Por isso mesmo, o bebé niio pode ter citime de objeto algum, ele nao pode nem mesmo ter inveja da mie, ja que nao sabe o que é possuir algo diferente dele: a capacidade de possuir é ela mesma constitufda na relago satisfat6ria com a mae. O seio da mae de que o bebé winnicottiano depende no é um objeto interno ou externo, bom ou mau. O seio bom & o nome dado a uma “técnica”, a técnica que realiza trés metas: maternagem suficientemente boa (isto é, 0 holding, 0 manuseio e introdugao do bebé no mundo), a alimentagao satisfatéria e, por fim, a unidio das dua primeiras coisas no ambiente e, depois, na mente do bebé (Winnicott, 1989, p.453), A telagao de dependéncia nao é uma relagio a tré: relagdo a dois, j4 que 0 beb& como tal nao existe. Ela é generis, anterior & oposi¢ao entre 0 eu e o na capaz de usar seus mecanismos mentais. No inicio, as forgas instintuais so la nfio é nem mesmo uma ntes um dois-em-um, sui -eu, entre o dentro e o fora, entre o meu Rovista de Psicandlise, Vol. IV, N° 2, outubro 1997 0 383 Zeljko Loparic € 0 nao-meu, entre o antes e o depois cronolégicos. Por fim, 0 espaco inicial do bebé dependente nao é uma situagdo caracterizada por relacdes externas e internas, mas um mundo subjetivo, anterior a qualquer distin- ¢Ao entre o interno ¢ o externo, Numa “situag’o” dessas, nio pode ainda haver ata- ques ao objeto externo, nem conflito interno. E da condigdo de dependéncia de outrem que surgem, para o bebé, as suas necessidades (needs) e problemas fundamentais, como 0 de nascer, de se sentir real, de ter contato com a realidade, de assegurar a sua integragao do ser no tempo ¢ no espago (isto é, num mundo), de criar a distingdo entre a realidade interna e externa, de criar a capacidade de uso das coisas e a de ser ele mesmo. E também a partir da condigao de dependéncia do bebé que Winnicott explica a origem das anguistias impensdveis. Elas surgem de falhas no relacionamento da mée-ambiente com o bebé, antes mesmo que esse possa dar conta dessas falhas. F: Ihas de que tipo? Falhas que ameacam a solugio de tarefas impostas ao bebé nos estdgios do processo de amadurecimento e de integragiio progressiva em que se en- contra sucessivamente. O ambiente falha nao por frustrar ou por ameagar (isto é, por revidar, em termos da lei do talido, aos ataques do bebé), mas por nao ser confiavel ¢ suficiente para assegurar o crescimento e a evolugio pessoal do ser humano. Agora € possivel responder a nossa segunda pergunta sobre a relevancia das angiistias winnicottianas para a psicandlise. A resposta é simples: e diretamente relevantes para a etiologia e 0 tratamento das psicoses. Winnicott explica: “A psicose ndo fica atribuida a uma reacdo & anguistia associada com 0 complexo de Edipo, ou a uma regressdo a um ponto de fixag nem é ligada especificamente a uma posigdo no processo de desenvolvimento instintivo do individuo” (Winnicott, 1965, p.128). O quadro da compreensio das psicoses nao € a teoria da evolugao da fungo sexual, mas a teoria geral da “tendéncia inata” em diregio da independéncia e da autonomia. A teoria tradicional da progressio das zonas erdgenas perde o status de teoria fundante e fica redescrita em termos da teoria do amadurecimento da pessoa humana. A idgia norteadora dessa redescrigao diz. que s6 em certos estagios do amadu- recimento, como o do concernimento ¢ 0 do Edipo, os problemas princip: natureza sexual ¢ pedem solugées, sejam reais, sejam fantasmaticas, tis saio de . de tipo sexual (Winnicott, 1988, parte IL ¢ 111). Um ponto central dessa redescrigdo diz, ser possivel que 0 individuo jamais atinja o grau de satide psfquica em que 0 complexo de Edipo faga sentido (Winnicott, 1965, p.131). Dependendo do proceso de amadurecimento, © complexo de Edipo pode nem mesmo se formar, 0 que implica que ele nao é uma necessidade empirica, nem um a priori, seja filogenético, seja formal, da existéncia ou do pensamento humanos 384.9 Revista de Psicandlise, Vol. IV, N° 2, outubro 1997 _ Winnicott: uma Psicanalise nao-edipiana Finalmente, como tratar dessas angtistias? Para tanto é preciso, em primeiro lugar, distinguir entre dois tipos do inconsciente: o inconsciente reprimido, desco- berto por Freud no complexo de Edipo, juntamente com a sexualidade infantil, e 0 inconsciente constituido de interrupcGes ou colapsos da integragao progressiva; em segundo lugar, considerar dois tipos de regressao, a regressdo ao inconsciente repri- mido e a regressiio a dependéncia em que se deu o colapso traumatizante; em terceiro lugar, deixar de praticar apenas a “caga as bruxas”, isto é, as mogGes pulsionais blo- queadas, a fim de interpreté-las, para permitir aos analisandos refazerem, eles mes- mos, a comunicagio perdida com o ambiente e criarem o sentimento de confiabilida- de (Winnicott, 1989, p.196) Em resumo, na teoria de Winnicott do amadurecimento humano, alteram-se todos os elementos tedricos com que foi descrita a situagio edfpica pela psicandlise tradicional: no lugar do sujeito com a constituicao biolgico-dindmico-mental, o bebé, que tem como tinica heranga 0 processo de amadurecimento (que nao é nem biolégi- co, nem dinimico, nem mental); no lugar da mae-objeto pulsional, a mae-ambiente; no lugar da experiéncia de satisfagio instintual, as necessidades oriundas do préprio existir; no lugar da sexualidade infantil, a dependéncia; no lugar da mie libidinal, a mie da preocupagao primaria; no lugar da situagdo intramundana determinante a trés, o bebé num mundo subjetivo de dois-em-um, préximo do estado de nao ser. No essencial, a teoria da progressiio programada das zonas erdgenas fica substitufda pelo processo sempre incerto e instavel de integragio progressiva do individuo, Como avaliar essa contribuicio a psicandlise? Creio que se possa dizer, do ponto de vista da teoria da ciéncia, que a teoria de Winnicott constitui uma revolucdo cientifica que substitui o paradigma de psicandlise tradicional por um novo. Em pri- meiro lugar, 0 antigo problema central, o do andaritho na cama da mae, cede o lugar um novo: 0 do bebé no colo da mae. E, em segundo lugar, 0 papel de solugiio exemplar, paradigmitica, passa a ser desempenhado pela teoria do amadurecimento pessoal e nio mais pela (eoria da hist6ria natural da fungio sexual A influéncia de Winnicott sobre a psicandlise atual é mais profunda do que pode parecer, fazendo-se sentir também no Brasil. Depois do psicanalista inglés, Heinz Kohut retomou a tese de que o complexo de Edipo nao é “wma necessidade matura- tiva basica, mas apenas o resultado freqiiente de falhas de ocorréncia freqiiente por parte de pais” (Kohut, 1988, p.184). O mesmo Kohut reafirmou, com énfase, a insu~ ficiéncia do paradigma da psicanilise edipiana. “A teoria classica”, escreve Kohut, “ndo pode elucidar a esséncia da existéncia humana fraturada, debilitada, descon- tinua. (.) A metapsicologia dindmico-estrutural néo faz justica a esses problemas * Etimologicamente, “Edipo” quer dizer “Pés-inchados”. Revista de Psicanalise, Vol. IV, N° 2, outubro 1997 385 Zeljko Loparic do homem, nao pode abranger os problemas do homem tragico"* (Kohut, 1988, p.190). ; Que fazer desse desenvolvimento que vai da psicandlise edipiana i maturacio- nal de Freud e Klein a Winnicott? Nao terfamos aqui, talvez, 0 eixo central da psi nélise do século? O que significaria isso para o futuro da psicandlise? Eu quis apenas trazer a puiblico essas perguntas. Creio que elas ndo podem mais ser ignoradas, CV Summary The present article is based on the thesis that the fundamental problem which gave rise to the constitution of Freudian psychoanalysis is the Oedipus complex, and at all other dimensions of the traditional psychoanalytic theory are related to this “nuclear complex”. The article then attempts to show that the central problem of Winnicottian psychoanalysis is not “the tramp in mother’s bed” but the “baby on mother’s lap”, to conclude that the psychoanalysis developed by Winnicott is no longer Oedipal. Finally, a historical and epistemological evaluation of this development is presented. Referéncias BION, W.R, 1963. Elements of Psychoanalysis. Londres: Karnac. ——. (1967). Transformations. Londres: Karnac. FREUD, S. (1900): “A interpretagdo dos sonhos”, in Studienaugabe I, p. 262. ——. 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V, NP 2, outubro 1997 Winnicott: uma Psicanalise néo-edipiana KLEIN, M. (1988). Envy and Gratinude and Other Works. Londres: Virago Press. 0°» KOHUT, H. (1988). A resiauragdo do self. Rio de Janeiro, Imago. LAPANCHE, J. e PONTALIS, J.-B. (1967). Vocabulaire de la psychanalyse. Paris: PUP. WINNICOTT, D.W. (1965). Maturational Processes and Facilitating Environment, Londres: Hogarth Press ___. (1987). The Spontaneous Gesture. Londres: Harvard University Press. ____.. (1988). Human Nature. Londres: Free Association Books. ____. (1989). Psychoanalytic Explorations. Londres: Karnac Books. Zeljko Loparic Rua Jogo Ramalho, 145 0508-000 — Siio Paulo ~ SP - Brasil © Revista de Psicandlise ~ SPPA Revista de Psicandlise, Vol. IV, N° 2, outubro 1997 0 387,

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