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LUGAR DE NEGRO, LUGAR DE BRANCO? Esboco para uma critica d metafisica racial Douglas Rodrigues Barros Gc pds Are Oni has hedra © 4 So Paulo_2019 > Lugar de negro, lugar de branco? busca desmistificar a natualizagio 4o lugar da rca na discussio moderna ede sua forca instiuinte: a escrav- ‘dio moderna. Com forte alicerce em uma leitura critica de Frantz Fanon, ‘0 ensaio repensa o identitarismo, que ganha espago nas militincias, 0 ‘elacionéle& procura mistca de uma Africa que, historicamente, ¢indis- sociivel do processo de producio capitalista. Ao transpor o problema da aga edo signficante negro para um novo patamar,olivrolanca novas hi- ppteses para o movimento negro e aponta para sua poténcia em superar as relagbes mercantilizadas nos tr6picos. Douglas Rodrigues Barros ¢ um jovem escritor, Arualmente esté con- ‘luindo doutorado em filosofia. f ex-operitio, experiéncia que talhou rofundamente sua escrita e pensamento. Para homenagear Marighella, sta de se referr asi como “apenas um mulato cearense”, apesar deen tender que “mulato” € um substantivo carregado de adjtivagio racsta. Publicou em 2016 Cartas estas pela editora Multfoco em 2017 Oster. ruritas pela editora Urutau. Apresentaio, ports Aver. « Uma conversa com o hipotéicoeitor FANON CONTRA 0 MISTICISMO. ‘Nem Casa Grande, nem senzala...« Onioserqueé. +++ Entre Luzes e Sombras .. ‘A patologia da identidace« Ba cienca,estipido! | Apermanéncia de uma noo 0s significados da dialética .... 6... Weltanschauung do negro . 6... ++ "Sartre e a dialética espanada . . “Aradicalidade do pensamento de Fanon . © MOVIMENTO NEGRO E 0 MISTICISMO Os limites do problema. Contra 0 mistcsmo do trabalho Hbertador Aor d mies sas eum po Em busca da Africa perdida? . . “Vans ito necesiia contra um mio perigoo Ao pédo muro... 25.465 BEESEuee APENDICE 43 Contra o retorno as raizes: identidade ¢ identitarismo no centro do debate .... sack wad 45 {indice onomastico [ere 159 ara Douglas Belchior e Adervaldo José dos Santos pelo compromisso com a luta antirracista Apresentacao Tales Ab’Saber Douglas Rodrigues Barros é um escritor que atua tanto na esfera da ficcio e do romance quanto da teoria e do pen- samento critico. Com formagio em humanidades ¢ filoso- fia na nova Universidade brasileira - exatamente a que re- cebeu o influxo reparador social minimo da tardia politica de cotas brasileira, hoje sobre o ataque degradante do neo- -obscurantismo anticritico e anticientifico que grita alto no Brasil, configurando o real devir negro de toda uma institui- <¢io social e seus sujeitos... seu trabalho mantém constante Contato, enriquecido pela experiéncia e com a experiéncia a critica, com o mundo popular e 0 percurso histérico da classe trabalhadora urbana de Sio Paulo, da qual néo oculta fazer parte e se posiciona como narrador emancipado, ‘Sem perder 0 contato com as mazelas da violencia brasi- leira sobre a vida do trabalho, buscando investigar mentali dades e modos possiveis de pensar as condigdes de existén- cia histéricas que sio franqueadas a classe em seus roman- ‘ces recentes, ele também assumiu e dedicou importante t alho ao excedente de violencia e sentido patol6gico da vida social que é 0 circuito de simbolos, priticas e subjetivagées que envolvem os descaminhos da clivagem racial, e sua pré- pria racializacio da vida, estratégia torpe do poder que du- plica e aprofunda a histéria de recusas dos direitos negados dos pobres, dos pobres negros, em nosso capitalismo, de ori gem colonial, escravista e antissocial. Este livro, que também é um debate, apresenta o traba: Iho critico do autor junto a uma das suas comunidades poli ticas, pondo em questao as hipéteses de fundo que movem agdes do movimento negro contemporineo no Brasil es- larecendo uma diferenga significativa sobre o modo e a di- namica do pensamento desde uma perspectiva fundamen- talmente critica do problema, ou da solucio, negra. O livro também é a enunciagio de uma politica da leitura das po- tencias sociais e das energias conceituais que envolvem a ‘obra de um grande autor. Ao acatar com precisio 0 impacto do trabalho teérico de um autor fundamental do campo cri- tico contemporineo, Frantz Fanon, que disparou um sem niimero de movimentos e modalidades de engajamento em todo mundo pés-colonial, e ao reafirmar a constante instabi- lidade do seu trabalho forte pela superacio de toda posica de violencia, implicada em seu desmonte dialético da racia- lizacdo, que s6 pode ser anticapitalista, Douglas Rodrigues Barros nos mostra como toda uma tradi¢io de compromisso intelectual e critica opera: aumentando a energia radical dos conceitos para a transformagio social necessaria, Confiando na universalidade negativa da razio, que deve pesar igualmente, entre a configuracio do objeto e a do pré- prio sujeito no objeto, podemos observar como, para Fanon, de modo muito diferente das fixagdes imagindrias e *misti- as", como diz Douglas, de parte do movimento antirracista definidor das politicas para os negros de hoje, a fragilidade das falsificagdes do racismo branco ocidental implica a cri- tica da falsa integridade da identidade negra, ela também realizada em algum momento neste processo social de dis- torcio e mistificacao de tudo. Demonstrando com clareza, em conjunto com as intensi- dades subjetivas pessoais do estilo, o modo radical de Fanon ‘encaminhar seu pensamento, constantemente em balango movimento que critica a subjetivagio racista situando a ex- periéncia negra como 0 outro negativo da falécia da integri- dade branca, assim revelada, no mesmo movimento que © tica 0 apego de entificagao fixada da propria condigao negra, para também ser livre dela, Lugar de negro, lugar de branco? repde em cena a ordem moderna de uma razio em trabalho, tinica universalidade virtual que no cede diante do terror. Este trabalho sem pouso da critica s6 pode se resolver apés desmontar e suspender as camadas de violéncias e dis- positivos ideol6gicos que deram destino 4 necropolitica co- Yonial e a autoimagem alucinada de superioridade da Eu- ropa branca moderna, bem como os seus efeitos dialéticos na ideia moderna do negro. Assim, a0 se suspender o lugar histérico falsificado da violencia branca, a sua autoimagem, deve-se chegar & suspensio do lugar determinado desde af das violéncias incorporadas & ideia de alguma identidade ne- gra. Seria este 0 projeto da superacio hist6rica da violéncia racial, e seus sujeitos e assujeitados, determinada pela pré- pria histéria do vinculo de capitalismo colonial escravista mercantil e a formagio do presente, Sem temer a vida crf tica da razio, tal trabalho nao teme a prépria cor, e seu lugar sem lugar na ordem branca, evitando qualquer virtual pol tica da paranoia, acentuando 0 horizonte de emancipacio pOs-capitalista da empreitada, Assim, implicado humanamente e pessoalmente na in- tensidade do debate que poe em cena, Lugar de negro, lugar de branco? é contribuigio renovadora e esperangosa, sem con cesses, para a desalienagio mais radical ao redor de uma questio premente da contemporaneidade dos iiltimos 500 anos do processo de terror da expansio mundial do Capital. Uma conversa com o hipotético-leitor Este curto ensaio foi atropelado pela ordem, Quando escrevia ‘parte final, me vi a amontoar tantos conceitos e pintélos tal como pede nosso contexto, que fui derrubado pela terri: vvel noticia do assassinato de Marielle Franco e Anderson Go- mes, ocorrido em 14 de margo de 2018, data do nascimento de Castro Alves, de Carolina Maria de Jesus, de Abdias do Nascimento e, por contingéncia, do proprio autor. Eu nio conhecia Marielle Franco, porém seu assassinato foi sentido em minha pele. Choramos sua morte. O seu sangue era o nosso. Erro seria crer que o grande dissfdio que nesses Ultimos tempos se estabeleceu no seio da esquerda se assentasse numa diferenca estratégica e que o martirio de uma valorosa companheira pudesse fundamentar uma outra pritica que ousasse, se nao reverter 0 descalabro do pais, pelo menos defender aqueles que se prontificam a estar em suas fileiras. Desde entio tudo mudou, mas nada saiu do lugar. Seria muito importante que qualquer militante e critico de esquerda nao fosse mais o mesmo depois dessa morte. As poucas ilusdes com a politica oligarquica brasileira de- yeriam ser desfeitas pelos tiros dados em Marielle e no seu motorista. f uma politica de morte que funciona sob pres- supostos rentaveis e significante colonizado. Nés sabiamos disso? Talvez, mas até entdo duvidévamos. Hoje nao se pode duvidar mais. Essas mortes, sem chivida, tém 0 peso do nosso fracasso. Devemos nos responsabilizar por elas e por outras tantas que ocorrem longe da segunda ‘maior cidade do pais. $6 assim podleremos dar um basta. 'Nés desconfiamos do entusiasmo”,' assim se expressa Fanon na introdugao de sua obra como quem cita uma ver- dade licida desperta pelos sinais daqueles que nao tiveram irmandade com as coisas e foram esmagados por fileiras de carruagens atadas as costas, Entusiasmarse € tornarse im- potente? Com alguns farelos recentemente cafdos da mesa da elite econ6mica, durante um curto intervalo de tempo.? entre- tanto, a esquerda e grandes setores do movimento negro pare- ciam se entusiasmar e abandonaram qualquer principio que no o de se inctuir no jogo. Tornar-se colaborador,* no entanto, tem um preco a ser pago: a elevacio do mito a verdade, o abandono e até a acu- sag contra qualquer posicdo que pense para além das miu. 1. RANON, F Pele negra, mascarasbrancs. Tradusio de Renato da Silveira Salvador: sburRA, 2008. 2.0 entusiasmo para Fanon tem 0 mesmo sentido de catarse para Brecht, «ual seja:impossibilidade de critica dada as condig&es de acetagio prest midas nele 3. Trata-se do tempo das vacas gordas em que a crise mundial propiciou um forte investimento e crescimento nas importagoes de commnadiic, © superdvit primdrio passou de 37% para 4.5%. Com iso, houve a captura de grande parte da esquerda tanto material quanto espiritualmente. 4. Colaborador como colaboracionista(remetendo aos anos hitleristas) implica executar um trabalho independente de suas sequelas. A esse res peito, mas nio no sentido aqui exposto, Cf. aRANTS, PEO novo tempo do mundo: e outros estudos sobre aera da emergéncia, Sio Paulo: Boitempo, 2014 p.10H140, dezas e misérias cotidianas sob a égide do mundo da merca- doria. Competiu, desse modo, a parte da esquerda - ou me: Thor, a esquerda hegeménica ~ realizar o trabalho sujo com zelo:? se se matam milhares de jovens anualmente, a maio ria negros, que importa? Pensemos em nosso préximo can didato... Na rede social. agora convertida em Areépago, desfilam mail génios consagrados is verdades provis6rias em busca de likes e comentarios. 0 Facebook, separando cada um no seu nicho proprio, construiu a maquina do mundo que procura nao 86 a implicagio como a mobilizagdo total de seus usuarios. A subordinacio e organizacio “do e para o” trabalho agora ppassam por essa “ferramenta", que alterou radicalmente as relagbes de sociabilidade das pessoas comuns Por outro lado, ainda ser necessério refletir sobre a in- sensibilidade social e a invisibilidade do massacre cotidiano 5. Trabalho muito bem demonstrado por Francisco de Oliveira. “indice tos de trabalhadores do setor privado também jd esto organizando seus [proprios fundos de previdéncia complementar na esteira daqueles das es- {atais,Ironicamente oj assim que a Forca Sindical conquistou o sindicato {a entio Siderirgica Nacional, que era ligado & cur, formando um “clube fe investimento™ para financiar a privatizacio da empresa; ninguém per ipuntou depois que aconteceu com as agSes dos trabalhadores, que ou vi fam pé ou foram agambarcadas pelo grupo Vicunha, que contolaa Side irgca £ sso que explica recentes convergencias pragmaticas entre o #re {0 rsDH,o aparente paradoxo de que 0 governo de Lula realiza0 programa ie tic, radicalizando-o: nto se trata de equivoco, mas de uma verdadeira ova classe social, que se estrurura sobre, de um lado, écnicos e intelect fis doutés de bangueitos, nicleo duro do psDe, e operirios transformados fem operadores de fundos de previdéncia, ncleo duro do pr. A identidade {dos dois casos reside no controle do acesto3os fundos pablices, no conhe- tdmento do ‘mapa da mina". (Cf ouiverna, F. Critica a razdodualtal0 orn forrinco Sdo Paulo: Boitempo, 2003, p. 146) que se perpetua aqui desde que o colonizador chegou.* Se ntes a came negra era a mais barata e rentavel do mercado, agora, é necessario dizimar o seu excesso. Entre passado e presente, a infamia que atende pelo nome de racism. 0 pasado, porém, ¢ licio para se meditar, nio para re- produzir, dizia Mario de Andrade,’ e conquanto nao esteja mos dispostos a ruir sob os maus auspicios de um roman- tismo estéril, devemos perguntar 0 que é ser negro atual- ‘mente, sem cair na cilada de uma identificacio remota com um pasado inexistente. A identificagao € a forma de ligagdo emocional mais pro- funda e, com ela, dificilmente se ultrapassam as limitagdes que forjam a experiéncia concreta na formacio do eu com omundo.® E nessas ligdes de Freud que temos um grande aprendizado sobre o funcionamento da psicologia das massas. Psicologia que hoje em dia foi capturada pelo gozo escépico do narcisismo autorreferenciado das redes sociais? Sendo assim, o que governa a identificagio é a simpatia que impée nio somente a imitagao de caracteristicas em co- mum, como também sua defesa acritica. £ pela caracteris- tica afetiva da identificacao que a ligacao miitua entre indi- viduos da massa é produzida. Essa se encontra por vezes numa qualidade particular em comum, numa cor em co- ‘mum, num fenétipo em comum e numa historia mitica em comum. 6.0 que em todo caso nfo faremos aqui 7. ANDRADE. M. Paulie desvatrada Barueri: Ciranda Cultural 2016, p. 18 8. paEUD. . Psicologia das masses e anise do eu, Porto Alegre: Let, 2017 8. ssa nogio me foi passada pelo grandioso artigo de Patricia do Prado Ferreira Lemos: Entre ooo eo olka: 0 goz0 esc6pico no Facebook B daf que a multiplicidade que constitui o eu particular eixa de importar: 0 que importa ¢ aquilo no seu eu exterior ‘que se parece comigo: um cabelo em comum, uma roupa ‘em comum, um hébito em comum, por fim, uma raga, ‘Tanto a identificagio com o branco quanto a identifica- glo com o negro eliminam de si qualquer capacidade refle- Alva mais profunda. Ser igual no infortiinio ou no privilégio Aignifica que alguma coisa sustenta essa condigao. Sabemos oqueé. Nesse sentido, Fanon segue sendo o arsenal critico con- ra aleviandade e preguiga daqueles que falam em seu nome que se tornaram reles colaboracionistas.” Isto impde uma Teflexio critica sobre a hegemonizacao de um determinado fetor do movimento negro que impés uma pauta na qual Alguns temas sio francamente reacionérios. Atualmente, ‘essa hegemoniza¢io impossibilita qualquer horizonte para além das formas impostas socialmente pelo modo de socia- Dilidade capitalista e, portanto, nosso arsenal se voltard con- tra essa mesma hegemonia. Urge imaginarmos um mundo no qual a mercadoria nao dé as referéncias vitais, urge lutarmos por outras formas de sociabilidade, urge criarmos outra dinamica de vida em que 10, H diferencas entre os colaboracionistas e os francamente fascstas fue podem ser resumidas grosseiramente da seguinte manelra: 08 fascs: ziam e sabiam o que faziam, tinham clareza das ordens que seguiam (onde queriam chegar. a0 passo que os colaboracionistas s6estavam ten: fando trabalhar e seguir a Vida normalmente sem se envolver com algo pra além do que o limite impunha, ou sea, “eles faziam, mas nlo sablam que faxiam” Essa matéria pode ser melhor estudada no ensaio de Palo Arantes (2014, p. 101-41) Sale Bult no liv jf citado, ainda, em Hannah ‘Arendt (Cf areor, H. Hchmann em jerusalem. Um relato sobre banalidade {dormal, io Paulo: Cia das Letras, 199) © componente racial nio seja decisivo na escotha de quem deve morrer. A utopia nio é acreditar que 0 capitalismo, ji apodrecido, necessita morrer, utopia € acreditar que um dia sua forma de reproducio social deixara de criar identifi cagOes, espacos demarcados de sociabilidade mediados pelo dinheiro, pela mercadoria, e deixar de fomentaro racismo, que Ihe é constitutivo e inerente. Este curto ensaio foi atropelado pela ordem, mas nao es- moreceu diante daquilo que era sua tarefa: desiludir-nos com 0s misticismos para enfrentar a barbie imposta, 0 que tenho a oferecer como trabalho de Iuto. Um trabalho que espero possibilite o amadurecimento de nossa hata, O autor FANON CONTRA 0 MISTICISMO Bu Ihe dei: ¢ 0 meio, 6a sociedade que é responsivel pela sua mistificaclo, Isto dito, o resto Vird por sis6.E sabemos do que se trata. Do fim do ‘mundo, (Fanon) Nem Casa Grande Nem senzala Seria absurdo dizer que as condigées em que se conduziu a facializacio no Brasil nao foram determinantes para a pro- ucio e reproducdo do capital e, com ele, sua modema di- isio do trabalho. A parte o misticismo da diferenca racial, ‘que imprimiu nos corpos negros uma tentativa de subordi- hago e que faz dessa diferenca a inconfessavel politica de fexcecio naturalizada em todas as cabecas brasileiras, existe Wessa crenca, essa crenca pegajosa em relacio a cor, em re Jigio a todo um continente epistémico criado para nadificar Aqueles que sempre estiveram no interior da producio, pro Wuzindo riquezas, mas foram dela alijados. Foi a criacdo de um consenso — na ciéncia, na filosofia, a arte, na espiritualidade ou na religiéo - como linha divi © Séria e pritica, a partir da qual se nutrem as formas de orga izagao do Estado como poder soberano sobre a decisio de Morte.’ Uma sacada pragmatica que convoca a onipresenca “Wa seguranca estatal, 0 aparato despético que marcaré, de Tima vez por todas, o inimigo a ser combatido. Assim cami- Wiha a grande festa da Repiiblica, cautelosa, naturalizada e istorcida, que nunca termina de contorcer 0 chamado “di J, MEME, A. Nerpoitica. So Paulo: #4 Edigbes, 2017, reito democrético” e, a cada segundo, se vé ameacada por alguma nova “diferenca” por ela mesma superficialmente criada ‘Se aquele “animal preto, que possui li sobre a cabeca, ca- minha sobre duas patas",? como dizia 0 cafona do Voltaire, encontrou agora a possibilidade de se repensar a si mesmo, & porque abandonou o corpo debilitado € os fcones do res- sentimento em que se apegava. Longe de qualquer movi- mento fascistéide que repinta orgulhoso o brasdo da raciali- dade, corpo negro, marcado e identificado como inimigo, se ergue na luta que "sempre teve como meta a abertura para um mundo verdadeiramente comum".* Que ele tenha se erguido, com esforgo, ao posto de reflexividade, de me- diagdo, de consciéncia-de-si, muda tudo. Nao € 0 apego por uum mundo putrefato em vias de ser ultrapassado que Ihe dé 4nimo, mas sim o vigor da experimentacio, de um olhar em que do ndo-ser possa brotar 0 novo. Fora daquela ilusio socialmente necessaria, marcada por um conservadorismo de verniz nacionalista, se distingue outro tipo de posicio po- litica em que um acontecimento de verdade esta prestes a abrochar e advir como efetividade. £ ele que estabelece a continuidade existencial, nem secreta, nem dbvia, dos cor- pos negros como portadores de uma comunidade efetiva ¢ vindoura. Que sela o destino do proletariado, ou melhor, toma seu sentido clissico; ndo como redutora classe oper ria, mas como a universal classe dos Condenados da terra. ‘Aengrenagem trepida... A bruma neva... pouco importa que 0s corpos reduzidos a diferenca racial encontrem ou 2. vourains. Trad de metafsia. Slo Paulo: Abril 1978. p62 23 wnunenk. A. Crea da razdo negra, Lisboa: Antigona, 205, p. 297. 2 Milo motivos conscientes para resistir 8 ordem existente; ve- {ios claramente que os corpos reduzidos pela racialidade se fornaram um excedente populacional que em fins de capi- Aalismo tardio precisa ser identificado, controlado, categori- Jado, separado, cercado por muros, por Unidades de Policia Pacificadoras e, por fim, extirpado. O mesmo odor de merda {lie exala da Casa Grande em seu halito mortal e necrop. Heo! O controle dos corpos negros, ou mais além, dos corpos Midomdveis, certamente nao é uma va medida coercitiva da Vida em suas limitaces burguesas. E a luta incessante do Aparato repressor do Estado/Capital na va tentativa de im- Pedir-o desejo de criar algo vertiginoso. Quando a dialética {Ghsa Grande/Senzala finalmente for suprimida, ento com Wa serio suprimidas as diferencas raciais superficialmente Wladas para controle universal dos corpos ¢ territorial dos eapacos. Onio-ser que € ‘Como uma ficcéo ganha forga material, molda a apreensio de um mundo e torna-se motor do real? Como a realidade reduzida a aparéncia torna-se ela prépria s6 0 aparente que ppor trés de si nada oculta sendo seu vazio constitutivo? Se os adjetivos passam e os substantivos ficam”,! 0 adjetivo ne- gro dado aos individuos que viviam no antigamente conhe ido “continente sombrio”? rapidamente foi substantivado e nao apenas se limitou a substituir o real pelo aparente, como desmistificou compulsoriamente e demonstrou que 0 real é a propria aparéncia. ‘A visio de conjunto sobre essas operagbes magicas em curso histéricofilos6fico permitiu considerarmos que ser € ‘ndo-ser so complementos do real, como diria 0 velho Sartre, 4 maneira da sombra e da luz”? Nao ha movimento con- ceitual sem uma linguagem capaz de exprimir, simultanea- ‘mente, a condigio historica e sua fissura constitutiva, Entio, se concordamos com Mbembe que a grande violencia colo- nialista foi ter reduzido o individuo africano ao adjetivo ne- ‘g70, isto &, ter reduzido o individu a aparéncia, igualmente 7. Machado de Assis, Diario do Rio de Janeiro, Balas de etl, 16/5/1885, 2. Para os antigos,a Africa era uma espécie de porta para @ mundo dos mottos P.O.ser eo nada: ensao de ontologia fenomenologica. Pets: polis, nj: Vozes, 2009, p53 concordamos que a aparéncia é 0 proprio motor que subjaz ‘num espirito cientifico guiado pelo Entendimento e suas li itacées empirico-descritivas. A critica d invengio do Negro impae esse ponto de partida. ‘Ainda levaré um tempo para que nés compreendamos como essa posigio do negro - como ndo-ser que é~ estrutura 1nio sé a realidade existencial do branco como ainda possibi- lita a abertura para 0 advento do novo. Antes disso, porém, se faz necessério elucidar, na base de um bom combate epis- temol6gico, como o pensamento moderno|cientifico foi res- ponsével pela construcdo ficticia das racas que, no intimo de ‘uma abstragio real guiada pela valorizagio do capital, sus- tentou e deu legitimidade, pelo discurso de “verdade”, a um modo de sociabilidade exploradora e predatéria que atende pelo nome de capitalismo. Entre Luzes e Sombras ‘Toda consciéncia ocidental esté reunida neste idedrio; “o en- tendimento que vence a supersticdo deve imperar sobre a natureza desencantada”. Reside na incrivel estranheza do homem ocidental em relagio ao novo mundo, estranheza ‘que exige, pelo poder da ciéncia, que ele se faga dono dos individuos e controlador da natureza, o impulso temerério Por aquilo que nio se limita as limitagdes de sua sociedade e de seus costumes. Ao se subtrair ao existente, a investida cientifica fornecida pelas Luzes, 0 ilustrado nao desfez.a fo- ia ante os inexplicéveis fendmenos, mas passou a descrevé- los ¢ desvirtué-los para melhor controlélos: “O saber que poder no conhece barreira alguma, nem na escravizacio da criatura, nem na complacéncia em face dos senhores do mundo.” , portanto, a fobia o principal componente dessa proto- sidentidade europeia. Esse perfil sombrio, mecinico, hostil, absurdo, tentou, de forma vulgar, encantar seu processo de dominacio sobre os povos colonizados por meio da tolern- ia. £ dbvio que esse conceito oculta uma normatividade da apropriacio do excedente, enquanto busca 0 controle da margem admissivel em relagio 4 propria medida euro- 4. aDORNO e HoRKHEIMER.Dlaléia do eclaredmento: fragmentosflosOf- cos. Rio de janeiro: Zahar, 2006, p. 18 peia, Quando Diderot, Buffon e Voltaire buscaram afash- re da metafisica apenas descrevendo os fendmenos “natty vais", acabaram por instituir, ainda que a contragosto, uma das mais admirdveis ilusGes: a neutralidade cientifica como componente de dominacio. ‘A patologia da identidade ‘Aautoficcio da identidade europeia - uma autocontempla- ode si mesmo que enclausura a potencialidade da diferenca ~tornou entio hiperidentificat6rio o significado de Negro. ‘© branco é o simbolo da divindade ou de Deus. ‘Onegro é 0 simbolo do espirito do mal e do [demonio. © branco € o simbolo da luz. (O negro é o simbolo das trevas, € as trevas {exprimem simbolicamente 0 mal. 0 branco é 0 emblema da harmonia. (O negro, o emblema do Caos.! ‘A novidade de uma condigio alheia aquele mundo, con- digio que durava mais do que a imaginacio europeia pode: ria suporitar) e da qual nao se conseguiu aprender toda 2 significacao - que ultrapassa o espoliar dos povos ¢ impul fiona a acumulacdo primitiva do capital ~, ameacou desde sempre e repetidamente a consolidacio do prosaico mundo Dburgués. Houve, a principio, a fantasia selvagem das gran- des narrativas de aventureiros que foram lidas vorazmente hnas alcovas reqiuintadas da decadente nobreza. SC SL wonranenr, JN. P.Traté complet dela pit 9 vos (aris). Delon. uno vl 7 pp. 422-3 Keratry, Annuaire de VEcle. Fy 0s europeus, cuja educagio ¢ civilidade nunca combina- ram com neutralidade epistémica, no podliam entéo acre- ditar que uma organizacio social vinda das selvas entranha- das no *Continente noturno” pudesse amadurecer a ponto de atingir qualquer nocio de liberdade. Com todo o rancor de sua relagdo normativa com a vida, eles se sentiam viva- ‘mente atingidos; 0s costumes narrados dos povos de Africa ‘eram distorcidos e retorcidos: comiam carne crua, bebiam demasiadamente e faziam sexo a vontade, Um horror para a imaginagao europeia que perdura até hoje! Sob o signo do exético, a aparigio do termo Negro no dici- ‘onério modeno foi paralela a um projeto de conhecimento ede governanca que se instaura a partir do desenvolvimento da propria modernidade. Raca e Negro, produzidos pelo ad- vento do moderno nas suas formas de controle e segregacio fazem parte de um delirio manipulatério, como evidencia Mbembe. Que o signo raga guarde suas contradigées inerentes im- pondo uma dialética forcosa nao nos ¢ algo indiferente; que a dialética do Esclarecimento, fechada sob as limitagdes do capital, tenha criado suas 4reas sombrias, ou melhor, ne- ras, com “a presenca da dominacio dentro do proprio pen- samento como natureza nao reconciliada’? € algo sentido nos prdprios corpos; que a denominacio Negro passou a tra- duzir “o ser-outro fortemente trabalhado pelo vazio, ¢ cujo negativo acabava por penetrar todos os momentos da exis- téncia”? algo ainda por ser aprofundado. Mbembe, que € 2. aoRNO e HoRkHsnMsx.Dinétia do esdarecimento:fragmentosflos6fi- cos. Rio de Janeiro: Zahar, 2006, p. 45. ‘3 aREMBE, A. Critica da ranio nega, Lisboa: Antigona, 2015, p. 32. inigualavel em demonstrar 0 que importa, enterrou a nogio de igualdade europeia com uma impactante férmula: “o ne- {gro no existe enquanto tal. £ constantemente produzido, Produzir 0 negro é produzir um vinculo social de submis- ‘sdo ¢ um corpo de exploragio"* Também Fanon em algum ponto de Peles negras € categérico: & o branco que ctia 0 ne- ‘gro. Em todo caso o fundamento da identidade negra foi con- comitante com o delirio narcisico branco e europeu. (Ora, se Diderot foi um digno mediador do que a situagio a nova ideia de homem continha de universalista ¢ desafi- adora, por outro lado, Voltaire. mas nao s6 ele, introduzi nas Luzes a particularizacao identificatéria que estamos bus- cando: a divisio de subespécies de homens, Por subespé- ies, o ilustrado designava o principio da identidade e o da diferenciacio, em que as desigualdades de desenvolvimen- tos seriam determinadas entre si pela natureza das supostas ‘espécies humanas. Se a descricdo substitui a explicacao por medo compulsivo da metafisica, bastava entdo descrever as ‘estruturas corporais das diferentes subespécies para empre- ender sua divisio e apreender suas diferengas constitutivas que reverberavam no “progresso” de set desenvolvimento. ‘A ficgio titil do termo raga e do termo negro sera lenha na fogueira das animadas controvérsias entre monogenistas poligenistas® que ainda tém no séc. xvitt um horizonte de 4 unenns, ides, p. 33. '5 Segundo Gislene Aparecida dos Santos: “..| 0s monogenistas conti- ‘am apoiando-se nos argumentos climitios, geogrificos,culturals para ‘explicar as dterencas entre os homens e os poigenistas,remetendosse 3s frigens separadas” saNtOs, G. A A inven dose negro: um percurso das elas que naturaizaram a inferioridade dos negros. Rio de Janeiro: Pallas, 2006. p47. busca da igualdade. No alvorecer de 1800, com a entrada da nogio de evolucao darwinista na discussio entre as diferen- tes escolas, contraditoriamente. os significantes negro e raga tomam-se @histéricos e imutaveis, fomentando a justifica- tiva da exploragio e das desigualdades imperantes no entio recémmnascido modo de sociabilidade capitalista, momento em que a realidade racial superou a igualdade cidada do di- reito. Fundase af a produgio do Negro, cujo vinculo social de submissao e exploracio Ihe é inerente. O negro torna-se um corpo no qual se realizou a mais absoluta violéncia expro- priadora; certamente, isto € 0 que fundamenta a visio de mundo, nao s6 das vitimas dessa reduugio ontol6gica,® como do corpo social diferenciado por este significante identitario redutor. Em nenhum momento pode-se afirmar que essa re- ducdo de individuos ao corpo é uma anomalia pertencente ao passado, mas é, sim, a forga motora oculta da moder- nidade capitalista, 0 lugar do espago s6cio-politico no qual ainda vivemos e que produz diferenciagio racial e muros as- seguradores nacionais. 0 delirio da diferenciacio racial encontraria entio na Let- tred madame de Graffigny de Turgot a justificacio plausivel da exploracio europeia: “a desigualdade social radical se ini- cia na natureza fisica desigual dos ‘diferentes’ humanos.” Sendo 0 branco europeu mais préximo da racionalidade e desenvolvido tecnicamente, naturalmente sua posicio seria ade comando. O delitio seria assim um exercicio de expur- 6.Ainda como diz Mbembe (op. ci. p. 399: “O negro nio existe enquanto tal. constantemente produzido.Produzir 0 negro é produit um vinculo social de submaissio ¢ tum corpo de que nés chamamos de estado de raca Corresponde, atsim o cremos, a um estado de degradacio ontolégica”. ‘garas aces passionais e encontrar uma desculpa para o pre- enchimento de um vazio constitutive. Um vazio que cons- tituiu a modernidade ¢ sua exploracio capitalista. O negro, portanto, ¢ colocado nesse nao-lugar do delirio, que ora tem astro de libertacao libidinal, ora de regressio violenta. Negro ¢ raga constituem assim os polos convergentes de ‘um mesmo delirio europeu: a redugio do corpo e do ser vivo uma questio de aparéncia, Como tal, elimina-se de sia nogao de reconhecimento das diferencas como constitutivo do Eu europeu; hé, portanto, aquilo que Mbembe chamou de alterocidio, ou seja, 0 Outro como objeto ameacador que precisa ser extinguido. Ba ciéncia, esttipido! Nascia, em um mesmo movimento, a concepgio de raga, ainda nao de todo determinada, ¢ a nocio esvaziada - e por {sso ideolégica - de neutratidade cientffica. O reverso da mo- eda iluminista - enriquecida com 0 comércio negreiro, com a col6nia de plantation ~ apresenta o progresso que alguns ‘homens (dominantes) teriam realizado em relagio aos infe- riores (dominados). Estamos diante da fase embrionéria da autoidentificacdo alucinatéria que encontraria sua verdade ‘ha praxis colonialista; a espécie humana torna-se doravante ‘um corpo fragmentado. Arrazio, sobrepondose a hierarquia, é aquela que, para- doxalmente, justificard essa mesma hierarquia por meio da diferenca dos corpos; a autoidentificacdo alucinatéria euro- ppeia tomou o nés reduzido a territorialidade e a partir daf a ‘universalidade tornou-se, paradoxalmente, restrita. O deli- rio da diferenca que serviria para justificar as teorias racia- listas acabard por ser formulado por aquilo que agia silencio- samente por trés das costas dos bons teéricos; a colonizacao que permitiu a riqueza europeia precisaria também encon- ‘rar justificacio espiritual, Foi Hegel quem demonstrou esse cinismo constitutive do paradoxo formulado pela era das Luzes; preparado o cenério Ihierdrquico ~ a subespécie humana - faltava apenas a més- ‘eara menos inadequada de desresponsabilizagio tensionado pelo modo de exploracio radical da escravizacio dos povos nio-europeus. Foi quando o discurso racional moderno, a0 ‘mesmo tempo que previa uma universalizacio ideal, fomen- tou a diferenciagio hierdrquica concreta através da constru- io do significante raga. Foi quando a patologia da identi dade foi inaugurada para o controle dos corpos excedentes. Foi quando se percebeu que o Bentinho de Machado de Assis, ‘com sua violéncia e frivolidade, em todo caso ilustrada, nlo é monopélio sé da elite brasileira, mas uma figura universal das teses morais da Europa. Foi quando “a epistemologia, campo filos6fico profundo da justificacao da ética tecnocré- tica, se sobressaiu e representot,, no discurso ideolégico, a tunidimensionalidade da atividade cientifica”." Paradoxalmente, o novo discurso da “verdade” cientifica foi o que possibilitou amalgamar sob o signo da liberdade a utilidade prética da mao-de-obra livre e suas benesses se comparadas com o trabalho executado “por escravos bocais ¢e preguigosos”, “Eu desejaria", diz candidamente José Bont ficio, “para bem seu, que 0 possuidores de grandes escra- ‘vaturas conhecessem que a proibigao do trafico de carne hu- ‘mana os fara mais ricos"? Em todo caso a diferenca radical {6 havia sido produzida e naturalizada. 4. Devo essa nocio a Luiz Ben Hassanal Machado daSilva. 2 Sousa, 0.7.0 petsamento vivo de José Bonin. do Paulo: Martins Fontes, 1965, p. 37. A permanéncia de uma nocao Quatrocentos anos depois, quando eles ja celebravam 0 es- quecimento de um pasado, no qual “o tempero do mar foi agrima de preto" e quando seus elementos dissociativos ‘ais definidos pareciam se integrar suavemente as institui- ‘gBes democriticas, novos ecos do mesmo racismo chegavam com a morte de refuugiadlos em suas praias. 0s ecos do racismo mostramse agora mais confusos, as ‘yezes porque a pacificacao prometida jé nio dava conta da ‘nova guerra em que, todavia, estavam envolvidos, ¢ tam- ém porque a nova espoliacdo prometida para a manuten- ‘¢ao da vida capitalista impunha uma nova condicdo a maior parte da populacio do globo, isto é, a condicio negra, ou aquilo que Mbembe certeiramente chamou de o devir negro do mundo. Erguiamos um pouco a cabeca por curiosidade, para depois aprender nossa repetida formulacio social que passa, decididamente, por uma continua acumulagio primi- tiva violenta dos povos ditos “inferiores” e antidemocraticos que no lado sul do globo continuam a se revoltar quando as reas centrais do capital ja comemoram o fim da histéria. ‘Yoltamos entio a assumir uma posicdo de denunciar as rafzes da dita “inferioridade”, a criacio da racialidade, sua 4. ancipa, Boa Esperanca. Slo Paulo: Sobre Criancas, Quadris, esadelos leLigbes de Casa... 2015 verdade no racismo ¢ outras verdades da “velha filosofia”, ‘Assim, deixamos de evitar 0 olhar que, na Tlustragio, desfaz ‘0 enigma ao apontar que as Luzes nao ocultam mais suas sombras constitutivas. Debaixo do terrivel axioma de tole- tincia, promovido pelo pedante Voltaire, jé se ocultava toda a impossibilidade de reconhecimento dado aos “povos pri mitivos". * de mim”, ¢ assim os ilustrados forjaram uma nogio de ho- mem restrito aos limites europeus Certamente a emergéncia dessa descoberta conferiria 20s ilustrados, de hoje e de ontem, um sentimento desagra- ‘davel de historia imediata. Resguardando a beleza da tole- Hancia, e da razio como meio de sua prética, se confirmava, entio, a certeza de que essa “descoberta” se podia guardar Tonge das vistas, principalmente se se pudesse manter tm pensamento da envergadura do de Fanon distante das aca- demias latinas. ‘Todavia, em troca de um reconhecimento institucional incerto ~ incerto em virtude da impossibilidade l6gica de uma desidentificagio no interior do capitalismo - os abolici- onistas e, posteriormente, os defensores dos direitos huma- nos se engajaram em garantir a paz social ao Capital funda- ‘mentando um direito & exclusio, isto é, 0 direito que jé no garante “direitos”. “O direito é, portanto, neste caso, uma ‘maneira de fundar juridicamente uma certa ideia de Huma- nidade enquanto estiver dividida entre uma raga de conquis- tadores e uma raga de servos.”* ‘A cada época, a forma de aparigio do corpo negro se re- define em fungio da configuragéo geral da dominacio, e, tolero aquilo que nao reconhego como parte 2 nen, op. p11 ‘enquanto persistirem os findamentos socioeconomi riaram as diferencas raciais nao se superard o significante redutor. 0 estado de degradacao do termo raga, que hoje re- ‘ai atualmente sobre os palestinos e muculmanos, ja aden- tra o espaco territorial europett colocando 0 excedente de desempregados na condicao negra; 0 axioma € 0 seguinte: 6 preciso identificar, taxar e controlar todos e, principal- ‘mente, o refugiado. Os antropélogos discutem se a primeira aparigio do termo negro deve ser identificada no Ocidente Clissico, ou deve ser investigada a partir da fundamentacio da divisio da espécie humana pela raca recentemente criada do ponto de vista histérico: o que importa, aqui, é que em ambos os casos se trata de um olhar retroativo que visa desnudar a fundamentacio de uma diferenca utilizada para a organi- zagio estatal, cuja forma de controle tornou-se um poder soberano capaz de decidir quem vive e quem morre, Isto é cua decisio de quem tem ou nao o status de cidadao passa pela cor ou pelo costume. Quem pode decidir que o status de cidadao passa pela cor ou pelo costume? (Ora, sea questio é assim formulada, sua resposta s6 pode indicar que é no berco do capital, nas relagdes coloniais e imperialistas, que a diferenciagdo de raca se tornou possivel: ‘€aso contrério, haveria o risco de cair num essencialismo banal. A mais lamentavel confusio em relacio a isso diz respeito ao fetiche identificat6rio que racializa a politica no ‘momento em que novamente o regresso as interpretagées Dioldgicas visam fundamentar distingoes raciais e explicar (8 atrasos econdmicos de paises subdesenvolvidos. & contra ‘esse pano de fundo que a centralidade nas ideias de Fanon se apresenta. Linguagem e identidade | Hica evidente que investigar Fanon € colocar-se um pro- lea importante: O que o presente significa para Fanon? ‘Alinguagem é o leitmotiv de suas descobertas. Atribuir im- ‘portincia a linguagem em sua relagdo com a psique implica s¢ por sob a perspectiva socialmente construida e desconsi- derar o critério de refletir sobre as limitagdes que as formas da linguagem impdem, especialmente por ser a linguagem_ formadora da consciéncia. ‘Assentar esse problema implica tomar posicdo. Nao deve importar a originalidade dos novos termos ~conceitos de il tima hora fundados na “conjuntura” dos tiltimos dias, nem fas “novas epistemologias” que nao criticam profundamente aquilo que possibilita a manutengio do racismo e, principal- ‘mente, possibilita o rebaixamento da teoria em nome de um suposto célculo de acesso ao texto por meio de uma lingua- gem publicitéria. i preciso dizer que o campo do saber contém em si um elemento de poder e, portanto, de disputa. Essa disputa, [para nés~criticos e militantes antirracistas -, no deve sera ©. Untitizamos aqui a mesma ironia de Adorno na abertura de seu "Skotei- ‘hos® que invertea questio:o que Hegel significa para o presente para o que ‘presente significa para Hegel. aDORN,T, W. Tes estudas sobre Hegel. S30 | Palo: Editora Unesp, 2013, p. 71. da tentativa de tornar a teoria popular, senio a de fazer com que o popular se torne tedrico. Basta de petitnégre.? como se no fossemos capazes de entender Kant. Ora, entender a posigio de estruturagio evanescente da identidade implica apreender 0 modo pelo qual ela se des: dobra historicamente em sua relagio com a linguagem € 0 solo social que a produz. De saida, a fiegio daquele Eu=Eu estanque perpassa uma inumerabilidade de coisas ¢ Eus. € ento, a partir dessa negatividade ao EuEu que, por fim, Eu pode porse a si e se conhecer provisoriamente. Esta posicio advém do momento em que uma consciéncia se vé negada por outra consciéncia igualmente determinada. Da-se a luta entre iguais que acaba por fundamentar uma de- sigualdade na relagao, ao mesmo tempo que presume uma igualdade buscada como fundamento social em contraposi- ‘gio A desigualdade objetivada tanto simbolicamente quanto socialmente? 2. Petitnégre & um modo supostamente “cordial” e redutor da subjetivi- «ade do individ negro analisido por Fanon, que fiz una ampla critica a0 rebaixamento da linguagem por parte dos colonizadores que inconsciente- ‘mente utilizam diminutvos, giriase mutacoes na propria maneira de falar para se tornarem inteligiveis a0 negro. Naturalmente, essa é uma forma 6e reduzir 0 negro, como se para ele houvesse um empecilho natural li ‘do sua biologia e ao carter, para entender concetos palavras no re- Correntes no set vocabulirio supostamente infantil. A velha frase tornada ‘senso comum durante bea parte do século xx: “por serum negro, voct es ‘eveffala muito bem” é também naturalizada pelos individuos negros que tomam o petitnégre como um componente proprio. Assim, a0 invés de se ‘poralheioa linguagem da metrépole. ou do Império ~fugas em gitiase par ‘ewlarismos locais~ Fanon se lanca ao cerme dessa linguagem para demons ‘rar os mecanismos de dominacio existentes nas teoras eao demonstios ‘expor sua imitagao e a subversio possvel que daf advem. "S Fazendo grosso modo uma arqueologia dessa nogio de incompletude ‘do Eu-Eu, podemos observar que essa forma de abordar aformagio da indi- vidualidade, do sujeito moderno, acompanha a fundamentagio da propria 2 Mas, e quando a posiglo dessa desigualdade dada pelo Outro no é sequer formulada? Quer dizer, quando nio ha Sequer uma estruturagio da disputa entre um Eu e o Outro? Demarca-se com isso uma limitagio que impée uma invisi- bilidade, um no reconhecimento peremptério de um nio- Outro inexistente, um nada, E exatamente por isso que a elevacao da identidade ndo-relacional implica uma subordi- nagio colonizada: porque elide as contradigbes da ficcaio de ‘um Eu sempre em transformagio € se coloca no elemento ‘conservador de um olhar hegeménico que ignora e coisifica aquele que nio é tido como um Outro. O negro tornou-se, dessa maneira, 0 nada.* Isso porque a condicao propria da ‘modernidade. Jé esté presente no cota cartesiano,e seu desdobramento passa por Kant, Ficht e atinge seu ponto de fundamentacio social em He- ‘gel. quando analisa a assim chamada dialtica do Senhor e Escravo, de- Ionstrando as relagbes de dominagio e poder envoltas na luta entre as ‘consciéncias. Mais tarde essa posicio tednca serd absorvida, com suns di ferencas constiutivas, pela psicanalise freudiana, que capta a impossibil- ade de complecude do sueito modero, Na Fran de Fanon, teremes um Aamplo debate sobre essa forma de abordagem da individualidade no exis {encilismo de Sarre, que inluenclard sobremaneira a teoria psicanalitica do préprio Fanon. Por iso, remontel a fundamentacio da individualidade ‘aqui para também questionar o mito sociologco segundo o qual houve um ‘momento do século xx em que a identidade pode repousar numa identif- ‘eaglo com 0 Estado nacional, ou coma clase. Ora, a meu ver, o que man- ‘nth um afistamento da nogio de identidade nao era © pertencimento 20 Bstado Nacional, oa a identidade de classe ~ mesmo porque a classe é uma esidentificacio subjetiva que propicia uma identifcacio objetiva guiada [por um objetivo em comum, que nada tem em comum com os anseios de ‘uma identidade, 4. Como disse Mbembe: “20 reduzi o corpo €o ser vivo a uma questio de aparéncia, de pele ou decor, outorgando pele eA coro estatuto de wana fic- {lo de cariz bioldgico, os mundos euroamericanos em particular fizeram do Negro e da raca duas verses de uma nica e mesma figura, ada loucura ‘otificada" em que valham os pesos dessa construgio simblica, a constri- ‘@lode “raga” possibilitou indmeras catastrofes durante a modernidade (Cf. DEME, A. Crt drazdo negra. Lisboa: Antigona, 2044, p. 11, existéncia se efetiva enquanto um olhar do Outro e uma compreensio entregue a nés por esse Outro, que ocorre no chao social ‘A construcio da identidade € com efeito um processo ‘em devir, algo que jamais pode atingir um ponto de estabili- dade; torna-se uma tarefa instvel que, possibilitando ques- tionar os habitos e tradigies, pode também chafurdar no lamacal da identificacao estanque € narcisica, O que que- ‘remos salientar com isso é que aquela identidade unificada e estdvel é iluséria, patologica: 0 processo de identificagio, por meio do qual se firma uma suposta identidade cultu- ral, nunca repousou na falta de movimento, sendo na conse- ‘quente mudanca ininterrupta do Ser com relagio ao mundo a0 Outro? Nascidas como ficcdo, dizia Bauman.* as contradicdes inerentes da identidade ganham, contudo, grande relevan- ia quando a sensacao de pertencimento, seja o de uma classe ‘ott ode um Estado-nagio, entrou em declinio. Naturalmente essa nocdo elimina da fundamentagio social a possibilidade de anilise critica; é como se houvesse um determinado mo- ‘mento histérico na modernidade em que uma harmonia do sujeito consigo mesmo fosse possivel e fornecida pelas con- digdes de um Estado forte, isto é, dos trinta gloriosos anos de Welfare State, o que em todo caso é uma quimera. Claro que esta posicéo mais reforca o mito do que 0 desvenda. Desde {que a modernidade se instaurou com 0 capital gestado na '5. Para concluir com Stuart Hall: “A identidade plenamente unificada, ‘completa segura ecoerente€uma fantasia” (Cf. Hatt,S.A dentidade cata tna posmodernade, Rio de Janeiro: DP&A, 201, p13) Peequwan, Z. ldetdade entrevista a Benedetto Vecchi, Rio de Janeiro: abr, 2005, ‘escravidio, tudo que era sdlido e seguro se dissolve no ar. A propria nocio de sujeito traz.consigo a incompletude que re- forca 0 movimento social da mercadoria. Tanto € assim que ‘um dos nossos primeiros sujeitos plenamente modernos ¢ Dom Quixote! ssa crise que joga 0s individuos na busca de uma iden- tidade imével, portanto, € social, denota como as estrutu- ‘ras simbélicas que sustentavam um discurso sobre o Eu en- tram em colapso a partir do momento em que um sentido de formacio social - a modernidade - entra igualmente em colapso.” Noutras palavras, é como se o entrave na circula- (gio de mercadorias fundada por uma crise permanente im- ossibilitasse esse discurso de um sujeito capaz de guiar 0 proprio destino. As ligdes que se tiram disso sio: 4) No mundo dominado pela sociabilidade capitalista buscase reduzir 0 Fu a um produtor/consumidor de mercadorias; ‘b) A crise da modernidade nao podendo mais concluir © circuito de constante reposicéo da falta ~ quer dizer, ‘0 consumo realizado repde 0 desejo de mais mercado- rias — as segurangas de realizacdo desse individuo so solapadas e na busca de reafirmagio, desse Si impossi- bilitado, novos apegos simbélicos sao criados via iden- tidade; 7. nanvesD. The conto of ptr. Oxford: Oxford Univers Press, 1989. 7 ) Embora haja a tentativa de reducdo do Eu a um agente do circuito da mercadoria, é a abertura dada pela im- possibilidade de preenchimento desse Eu que permite 1a possibilidade de alteracao das coordenadas sociais comprimidas pelo capital. Em suma, nio existe possibilidade de pertencimento no capitalismo. Por isso, a afirmagio da diferenca de tratamento da lin- guagem entre um negro e um ndo-negro, ou entre um negro eum branco,* feita por Fanon, serve, assim, para dar uma sacudidela aos ossos da estrutura de uma diferenca de racas simbolicamente criada e ainda hoje naturalizada, E aqui é importante dizer que Fanon, em seu famoso livro, teve um. insight genuino que possibilita entendermos nio apenas es ses processos contradit6rios, como avancar para além deles. ‘A invengio da raca sob os pressupostos da exploracio co- onial impée ao negro uma realizacdo impossivel. Um Real impossivel, traumitico, em que a rede simbélica de reconhe- cimento miituo esta fechada, © modo simbélico da lingua ‘gem como resultado de uma contingente luta complexa pelo poder sociossimbélico ¢ abordado ai no sentido da exclusio que esse processo efetivou para o negro. negro, nesse sentido, nao é um Outro do branco em sua universalidade colonizadora, mas um inexistente numa universalidade que elide ao negro qualquer possibilidade de reconhecimento, Contraditoriamente, porém, 0 negro s6 18 FANON, F. Pee negra, masaras brancas,Tradugio de Renato da Silveira Salvador: EDUFBA, 2008 ‘existe em relagio a essa exclusio do dominio branco, Ultra- ppassar essas limitagdes ¢ o fim previsto na violencia clinica fanoniana. Talvez seja por isso que Fanon advirta desde o inicio que, fem se tratando de uma andlise psicolégica do negro, nao se devem esquecer os elementos que fundamentaram essa ‘ordem sociossimbélica, quer dizer: ndo podemos perder de vista a histéria socioecondmica que engendrou essa nogio de diferenciagio. Em termos simples, enquanto o branco algouse a condi- {glo de proto-sujeito, para o negro essa condigio esta vedada ppélos processos de colonizagao. Entretanto, ao contraio do ‘que parece sugerir, a condigio buscada na andlise de Fanon io é a resolucio pura e simples dessa condigdo de um nio- -Sujeito para a condi¢ao de um sujeito como ponto de sintese resolucio dos conflitos. Fanon de nenhuma forma poderia incidir nessa ingenui- dade, pois sabia que, independente dos espacos de simboliza- ‘ges, a lacuna e a castracao se mantém inalteradas. O negro ‘como um invisibilizado, como um inexistente que nao é um ‘nada, que é um ser nada, mas nao um nada ser, inexiste nas ‘condicdes de possibilidade de um mundo formatado pela co- lonizacio. Por isso, esmiucar as patologias sociais criadas pelo sis- ‘tema de linguagem dominante requer um desnudamento da elagio de sujeigio; se o negro é 0 nada gracas a sua invis Dilidade radical, deve tornar-se menos que nada, Essa praxi tebrica aponta o limite a ser ultrapassado. £ a neutralidade do marco simbélico da linguagem que esta em disputa ecom ela a propria nogio do que é ser negro Por isso, desde o inicio, o destino da identidade em si mesma estd selado. 0 paradoxo em questio € que 0 pré- prio fato de nio haver uma identidade hipostasiada, na qual se possa fundamentar ontologicamente o ser negro, € 0 que torna possivel a efetiva resisténcia negra a partir da implo- sio da estruturagio sociossimbélica. ‘A questio da linguagem, dese modo, determina ‘uma forma de ser no mundo, de estar ai em relagio a, fandamentando-se a partir dos processos sociais implica- dos no mundo concreto. Assim, se, por um lado, adotar a Jinguagem do colonizador implica uma desestruturagio da identidade, por outro, é a partir dela que o negrojcolonizado toma posigao contraria e se acerca dos seus limites. HA duas posigdes antinomicas que Fanon faz questio de evidenciar: 4) Aquela de superidentificacio com os mecanismos colo- nialistas, que adota e privilegia os aspectos dominan- tes da colénia, a branquitude, a europeizacao, ete. 1b) Aquela que, negando, busca um retorno a sie se redo- bra em defender suas origens. Ambas sio patologias mistificadoras. ‘Sao os processos implicados na aproximacio com a lin- guagem do colonizador que instauram a negacao de si para acatar acriticamente as formas da universalidade imposta. Ha uma questio de fundo que ressoa: a identificacio pura simples com a alteridade imposta do colonizador leva & ma- nutengio das relagées de subordinacio. ‘Assim, ao demonstrar a situagio de assimilado do mar- tinicano, Fanon deixa claro que o que regula seu processo psiquico é um desavim consigo mesmo, uma negagio de sua 4 hhumanidade, por ver no Outro colonizador a capacidade de sua realizacio. O que esta implicado nisso sio as condicbes de possibilidade nas quais 0 processo de colonizacio, e su- Dordinacio, se torna um processo autorreferente de reali: zacio. O processo ai é tao totalizador, quanto 0 comporta- ‘mento da mulher negra analisado por Fanon, em relacio a0 branco europeu, que evidencia os mecanismos de captura da subjetividade e de sua castragio egdica que vé no coloni- ‘zador, com suas caracteristicas fenotipicas, a possibilidade de realizacio do proprio ego. O resultado disso é que o pro- ‘ce5s0 de embranquecimento jé est4 todo articulado por uma posigio cuja antinomia negrofbranco esta naturalizada e & aceita no registro simbélico. Essa abstracio real da raca® - que ao mesmo tempo que fundamenta a relagio social funda sua forma categorial - é lum processo no qual a justificacdo excludente se dé no plano sociossimbélico. Isso passard a governar os destinos indivi- duais guiando-os para uma submissio frente Aquilo que apa- ece como o “bom”, f essa estruturacio da subjetividade co- Jonizada que importa a Fanon. ‘Tendo isso em vista chega-se a conclusiio de que 0 pro- ‘cesso entre acatar essa condicio ou fugir dela, em busca de ‘um retorno originério, se coloca como algo imediatamente interno ao processo, quer dizer: as duas posicdes so coni- ventes com 0s termos erguidos pelo colonizador. ‘Assim, a andlise empreendida dos romances Je suis Mar- tiniquaise, Nini e o de René Maran demonstra como no nivel _ simblico das personagens os resultados da colonizacio jé '9-Tomamos este termo emprestado de Marx, para quem capital uma abstract real ~ empregamos aqui no mesmo sentido, 4s estio postos. ff como se os romances em sua possibilidade de desnudamento de um etos fossem mais impregnados de verdade do que a empiria da vida do aqui e agora. ‘A incapacidade de Jean Veneuse ~ personagem de Maran comentado por Fanon - de concretizar sua relagao amorosa com uma europeia desnuda como 0 processo de inferiori- dade circunstanciada por uma psique abandénica ~ quer di- zer, aquela cujo trauma de abandono na inffincia impossi- bilita a realizagio de relacionamentos duradouros por uma autocomplacéncia inferiorizada ~ se efetiva a despeito da ca- ‘isa de forca dada pela racializagio, A busca de um retorno a patria, substancial e organica, s6 revela a impoténcia desse neurético se realizar por se agarrar nas definicdes impostas pelo modo de controle colonial.” Por isso, “Jean Veneuse nio representa um exemplo das relagdes negro/branco, mas ‘omodo como um neurético, acidentalmente negro, se com porta’."” A posigio de uma autoflagelacio, de uma autopi- edade, e de uma desconfianga geral com todo o diferente, ‘marca a postura desse Fiédor Karamazov negro e bondoso. ‘A questo é muito simples: de pronto, tenta-s justificar, pelo componente racial, a presenga do injustificado trauma de abandono na infincia. © paradoxo € que, sendo preto, nao posso ser amado; ¢ se for amado, e corresponder a esse amor, nada me garante que nao estou me aproveitando dele = "como os pretos que adoram carne branca” - por ser preto igual aos outros. Resultado, néo posso porque quero e nao ;posso porque posso e serei igual aos outros. Com isso, uma 10 Aids, como jf saientava Bauman (op. ct p. 35:70 anseio por identi- «dade vem do desejo de seguranca, ele prdprio um sentimento ambiguo 1. FANON, tem, p. 8 patologia ligada ao trauma infantil é ocultada pelas limita- ‘gdes impostas pela racializagao da propria subjetividade. Independente de sua forma, o que Fanon parece sugerit Equea légica interna do movimento da subjetividade dessas ppersonagens eivadas de preconceitos colonialistas se vé sola- pada quando passa de um extremo para o extremo oposto € Se funda numa unidade supostamente mais elevada: 0 em- branquecimento ou sua negagio em nome de um retorno as rigens nada mais é do que os limites impostos pela condi- ‘glo de desumanidade absurda na colénia. Se a primeira op¢ao dos oprimidos ¢ tentar se livrar da- ‘queles que os oprimem, enquanto a segunda é deles se apro- ximar negando-se a si mesmos, ambas fracassam quando os oprimidos nao percebem que a identidade de sua posicio ‘est mediada pelo Outro, de modo que para ultrapassar essa condicéo é necessério transformar substancialmente 0 con- tetido dessa propria posi ___Issonio significa querer se porno atual sistema de visibi lidade reivindicando uma representatividade limitante e li - mitada, mas transformar radicalmente esse préprio sistema de visibilidade cuja raiz.esté no sistema econdmico-social. f se para 0 negro restasse nao apenas a negaco de sua go imposta por um sistema de linguagem que o subor- fina ~negag3o que permanece em seus limites simbélicos -, ainda ¢ necessério negar o proprio espaco simbslico. A linguagem, com efeito, torna-se uma via de mio du- or um lado, ela langa o seu portador no mundo social, oF outro, no caso dos colonizados, ela subordina suas as- piracdes a0 império da metrépole. Assim, no registro de vi- dade colonizador, a suposta realizacao desse individuo do se dard quanto maior for sua proximidade com os modos dos “civilizados”, ou seja, quanto maior for seu em- branquecimento ou sua busca de uma ficticia negritude, Com efeito, a ideia que se faz do negro, enquanto uma categoria cuja constituigao € de subordinado ~ de um assu- jeitado sem ser sujeito ~ 0 reduz a caricatura ¢ 0 coloca em termos limitados e limitantes definidos pela propria lingua- gem. Por isso “Compreende-se[...] que a primeira reagio do negro seja a de dizer ndo aqueles que tentam definislo."" E dessa limitagdo que surge uma espécie de antinomia coloni- zadora, uma espécie de ou, ou: ot 0 negro se aproxima do ci- vilizado, ou o rejeita, estabelecendo uma fuga particularista. (© contra-argumento de Fanon, deixado de lado por grande parte daqueles que dizem seguio, é que os pré- prios mecanismos subordinadores abrem espago para a re- sisténcia na medida em que fundamentam uma espécie de excedente, de um ndolugar para 0 negro, que acaba por en- gendrar uma posicio politica. aradoxalmente, a referencia discursiva posta na lingua- gem da metropole confirma o negro como o fundamento es- tabelecido sobre o qual opera a linguagem do colonizador. Quando o negro surge como estrutura patol6gica, como 0 demBnio, o pecado, o mal o sexo abundante ~ uma identi- dade fantasmagérica e alheia a psique branca, - é porque a relagio da identidade branca jé esté implicada na identidade negra, Esta via de mio dupla também incide no proprio es- ‘morecimento da identidade cultural do branco. como reagdo & dominacio do colonizador, reagio fo- ‘mentada por um ndodugar e dominacio efetivada pelo pr6- prio negro, que a consciencia se transforma em vontade po- 12, FANON, dem, p48, grifo meu. Iitica ativa para afirmar sua identidade fantasmagérica. Fa- non revela que assim que se alcanca essa consciéncia, 0 indi- ‘viduo nio s6 se integrou ao universo do colonizador, como ‘agora é capaz. de implodi-lo. Quer dizer, a identidade fan- tasmagérica é um momento de integracdo que parte para a desintegracio da subjetividade colonizada. Em ambos os ca- 805, tanto a identidade branca quanto a negra forjam a mis- tificacio de um acesso direto a coisa, como se fosse possivel superar a alienagio constitutiva do sujeito pela identificagao ‘com os processos culturais de nossa identidade. Por isso, a ‘morte do colonialismo deve ser “real”, no registro de opera- {gbes sistémicas; e simbdlica, no registro linguistico que es- tmutura tais operagées. ‘Como é deliciosa a forma como Fanon posiciona o sis- tema de estrutura simbélica para demonstrat isso ao comen- taro livro de René Maran: “s6 sei de uma coisal” diz o critico itando o literato: “[...] que 0 preto é um homem igual aos outros, um homem como os outros, ¢ que sett coracio, que 6 parece simples aos ignorantes, é tio complexo quanto 0 do mais complexo dos europeus”." Est4 demonstrado, portanto, como a impossibilidade de reconhecimento impde para esse aquém de urs Outro (o negro) a tarefa de desnudar os limites que engendraram a impossi Dilidade de reconhecimento e, com isso, a tarefa de se colo- ‘ar para além da propria necessidade de reconhecimento a0 abolir as diferencas ficticias criadas socialmente pela exclu- ‘io, Noutros termos: explode-se o real absurdo ao desnudar ‘completamente o seu escindalo. 1B. FANON, ide, p. 71 Os significados da dialética TTemos visto até agora que a posicio critica de Fanon nao constitui um retomo magico a identidade, mas a demons- tracdo de seu descentramento contra a presuncio de uni- versalidade baseada na nocio de sujeto. O desnudamento do processo de subordinagio imperante na linguagem im- prime um primeiro movimento que nega a substincia so- cial da qual essa linguagem emerge, a0 mesmo tempo que ‘essa substincia social se transforma quando seus limites se tornam visiveis por essa particularidade. Nesse processo, a dentidade jé absorveu e reestruturou a concretude social. £ essa posicdo eminentemente dialética que permite a Fanon escapar de uma espécie de essencialismo do racismo ¢ ldentificé-o & sombra dos processos modemnos cujo cerne 6a economia, Assim, quando Fanon fala de estrutura, est falando dos processos econémico-sociais que engenéraram ‘io apenas a exclusio, como a concorréncia. Por isso, a0 rebater o essencialista Mannoni, expée 0 seguinte: Poderiamos retrucar que este desvio da agressividade do proletari- ‘ado branco na direcio do proletariado negro é, fundamentalmente, tuma consequéncia da estrutura economica da Africa do Sul. ‘Que € a Africa do Sul? Um caldeirdo onde 2530300 brancos ‘espancam 13000000 de negros. Se os brancos pobres odeiam os [pretos no é, como nos faz entender Mannoni, porque “oracismo é obra de pequenos comerciantes e de pequenos colonos que deram ‘quro durante muito tempo sem sucesso”, Nada disso, é porque a festrutura da Africa do Sul € uma estrutura racsta |}? 0s processos analisados por Fanon dizem respeito 8 16+ sgica do fracasso de colonizagao, que produz anomalias liga- as ao terreno hist6rico-social de onde emergem. Sua posi- Gio desnuda os processos subjetivos e objetivos socialmente Conduzidos pelas modernas forcas de producio ¢ reprod Glo social. Nao é toa que Fanon retruca as posicdes abstra- tas de seus contemporaneos: “Ao considerar abstratamente ‘2 estrutura de uma ou outra exploracio, mascara-se © Pro- plema capital, fundamental, que é repor o homem no seu lugar’? (0 feito de Fanon é combinar o carter constitutivo do ne- 0 em sta atividade no mundo com o viés patolégico da prépria nogio de negro; quando ambos sio pensaclos juntos, ‘como uma caracterfstica recfproca, entdo conseguimos cap- tar a propria patologia que constitui a realidade colonizada, “A inferiorizacdo é 0 correlato nativo da superiorizacio eu- ropeia. Precisamos ter a coragem de dizer: ¢0racista que cra 6 inferioriando."? Noutros termos, € 0 racista que cria a fan- tasmagoria do Negro. TEsses processos interobjetivos.* por assim dizer, deses- truturam todo o complexo social dos colonizados, solapam suas estruturas de identidade e recriam, & luz do processo, novas formas de sociabilidade. Uma vez desestruturada a identidade, 0 choque nio permite mais um retorno ao que 1. naNoN: dem, p86. 2 Ibider. 8 HANON. id p90 {f Este termo tome emprestado de Silvio Rosa Filho. foi anteriormente: “Uma ilha como Madagascar, invadida de ‘um dia para o outro pelos ‘pioneiros da civilizacao’, mesmo ‘que esses pioneiros tenham se comportado da melhor ma- neira possivel, sofreu uma desestruturacio."* Tais relacées, para Fanon, obviamente, nfo incidem ape nas na psique daquele que se vé invadido por um Outro hegador, mas na relacio, entre a consciéncia e o contexto social. £ na medida em que se efetiva a diferenciagio do Dprocesso discriminatério determinado pela colonizagio, ‘que se impde para mim a alteridade que tenho que assu- mirjdesempenhar. Fazer-me branco é uma tentativa iluséria de obrigar 0 branco a reconhecer a minha humanidade. ara essa situacdo patol6gica, que dé movimento aos pro- ‘cessos de colonizagio tanto material quanto espiritual, Fa- hon encontra uma via de superagio concreta: 0 complexo de inferioridade 86 surge numa sociedade patologizada em {que 0 racismo ¢ estrutural; s6 com a mudanca das estrutu- tas sociais é que se pode ultrapassar essa condigao inumana. Nio cabem ilusdes. ‘Abusca éa de tornar o sofredor “capaz de escolher a acio {ou a passividade) a respeito da verdadeira origem do con- flito, isto é, as estruturas sociais”® Com isso, Fanon torna- “nos cientes de que a forma de ultrapassar o estado posto pelo ‘modo de sociabilidade colonizado ¢ uma escolha que negue, concretamente, 0 Todo abstrato fundado por essa mesma so- Giabilidade. ‘Com isso, no hé esperancas de criar uma nova orem ‘orgiinica que tenha por fungio abolir a individualidade. £, 5, FANON. i, p. 93. 16 FANON. idem, . 96 pelo contrério, a afirmacio do individuo ¢ a negatividade abstrata impressa por uma identidade evanescente que faz com que 0 Todo concreto seja modificado em sua raiz.” Ai esta colocada uma reniincia a esperanca nostalgica de um retorno a patria perdida, & por isso que esto distantes dos ensinamentos de Fa- non tanto aqueles que defendem uma submissio voluntaria 2 aceitagio pelo individuo dos pressupostos colonialistas ~ tidos como a totalidade concreta -, quanto aqueles que afir ‘mam inexoravelmente um retorno as raizes pré- pro- prio nicleo da identidade. Ja que o negro nso éreconhecido é preciso que ele se faca conhecer. "A consciéncia do circulo infernal, que captura o neg reduzindoo, ¢ nadificando a sua existencia, €0 ave possibi: tia escapar desse circulo. Fanon no seu caminho 20 espa tessa fenomenologia do negro demonstra, porém, come ak guns caminhos estdo Kimitados a tornarem © NEES ‘um ob- {eto passivo. Sao eles: 2) Abusca do conhecimento como forma politica "Soo sugere Fanon: A raz contra a rracinalidade racista PO ‘hus ndusen, Nesse ponto, € importante lembrar = ainda {que para nossos objtivos isso nfo tenha tanta mPa Shncia ~ como Fanon estabelece uma relagio de edt jsar meu cabelo| Nto querol E vou les) que para evtarmos alg) ‘cota NEoxO) E cOmO ‘wEcRO NEGHO| NEGRO dade no infortiinio entre 0 negro € 0 judeu.” Isso néo se deve ao fato de que uma de suas fontes inspiradoras para pensar a condicéo do negro seja Sartre em Reflex ons sur la question juve, mas sim pela necessidade de de- ‘monstrar que o racismo se produz de diversas formas. Mesmo nos dedicando ao saber, se a estrutura socios- simbélica do capital em seu processo permanecer inal terada, os horizontes de mudancas estaraio fechados. Fracassado em sua busca da razio como forma de emancipagio, eis que surge 0 elemento da sensibili- dade: “0 sactificio tinha servido de meio termo entre mim e a criagio - nao encontrei mais as origens, mas a Origem. No entanto, era preciso desconfiar do ritmo, dda amizade Terra-Mie, deste casamento mistico, car nal, do grupo com o cosmos.”* Imersa na poesia de jum retorno mistico as origens, essa consciéncia que ‘se viu objetificada pelo colonialismo busca uma safda no elemento mitico. “Ambas as posigdes fracassam, mas sto constitutivas des- ‘consciéncias como ilusées necessdrias. Felizmente, porém, er 77.0 juden eeu: nko satisfeito em me racilizar por um acaso feliz eu me sr, Uniame ao judeu, meu irmlo de infortinio. Uma vergonhal mela vista, pode parece surpreendente que a aiude do antisemity Prmeirine 3 do negrotobo, Foi meu professor de losofia, de origem an- vr quer um da me chamou a tengo: “Quando voce ouvir falar ral ded, preste bern atengo, esto falando de voce” E eu pense qus cle ides Piimenterazi0, querendo com isso dizer que eu era responsé- vipela sorte reservada a meu imo, Depots compreendt secu simplemente diner m antssemita €seguramente Ur negro ANON, idem, . 112, gro meu) 115. ‘a consciéncia segue seu curso e, diante desse louvor de uma ‘unio mitica e sensivel com a mée-terra, desconfiada, repoe fem curso a duivida. Este € 0 movimento que Fanon faz dei- xando para tras as crencas que invadem hoje grandes setores do movimento negro. Essa unio mistica € s6 misticismo: Fiz caminhadas até os limites de minha esséncia; eles eram, sem ddgvida alguma, estreitos. Foi entZo que fiz a mais extraordinatia ‘das descobertas, lids, propriamente falando, uma redescoberta. Revirei vertiginosamente a antiguidade negra. O que descobri ine deixou ofegante, No seu livro Laboition de Vesdavage, Schoet ‘cher nos trouxe argumentos peremptérios. Em seguida Frobenius, Westermann, Delafosse, todos brancos, falaram em coro de Ségou, Djenné, cidades de mais de cem mil habitantes. Falaram dos dou: tores negros (doutores em teologia que iam a Meca discutir 0 Alco- vo), Tudo isto exumado, disposto,visceras a0 vento, permititrme Feencontrar uma categoria hist6rica valida. O branco estava engi: jpado, eu ndo era um primitive, nem tampouco um meio-homem, tu pertencia a uma raga que hat dois mil anos j traballsava 0 ouro eaprata? (0 que Fanon aponta com grande lucidez,é que a0 contré- io da loucura mitica, a hist6ria comprova que os negros si0 também agentes da razio e do intelecto ¢ que esse aspecto mistico-teligioso esté limitado pelo proprio pensamento co- onial. Razdo e Sensibtidade so momentos constitutivos para aprender 0 que & ser negro nos limites impostos pelo colo- nialismo, porém ultrapassar essa condigdo ¢ fundamental. esse percurso da consciéncia, a identidade esta sempre se desestruturando e repondo seu movimento. Da tentativa de agarrar a razio contra o irracionalismo até a tentativa de se 9 FANON, idem, p- 1189. agarrar a sensibilidade poética que estrutura uma espécie de rretorno as raizes culminando numa redescoberta dessas pré- _priasorigens que no sio aquelas miticas, mas slo as de um desenvolvimento hist6rico, 0 que esta apontado por Fanon 60 desdobramento da consciéncia do ser Negro rumo a sua “emancipacio efetiva. Sartre e a dialética espanada nessa espécie de paciéncia frente aos fracassos que Fanon arma seu arsenal critico disposto a demonstrar os proble- ‘mas que surgem ao nio se demorar nesses sintomas impos- tos por uma realidade totalmente patolégica. O modo como expressa essa relacdo desafortunada de um significante va- ‘io, evanescente ¢ contraditério, de uma subjetividade des- ‘trocada, molda a visio de mundo que o negro forma a partir de sua relacao com o proprio mundo. Nesse ponto ele esta fazendo um exercicio legado pelo Pensamento especulativo ou fenomenol6gico. Cada passo de sua formacio sao figuras neurdticas da consciéncia que tentam se firmar naquilo que acreditam ser a verdade de si mesmas. No entanto, as contradigdes e incertezas sio o re- sultado dessa experiéncia que passa de uma figura a outra sem poder se firmar mediante as contradicées emergentes de sua relacio com 0 mundo colonizado. Ai, tudo que é s6- lido se dissotve no ar. Quando Sartre entra em cena, e aqui podemos pensé-lo ‘como mais uma figura da consciéncia, ao tentar desbaratar © jogo utilizando o pensamento especulativo para, por fim, tomar claras as limitagdes do negro, o que faz é somente mais um exercicio que da com os burros n’dgua. Sartre torna-se uma figura da consciéncia de Fanon, Comentarei mais detalhadamente essa cena imperdivel: ‘Masa coisa poe ser mais séria ainda: o negro, nés o dissemos, cia para si um racismo antiracista, Ele no deseja de modo algum do mninar 0 mundo: ele quer a abotigto dos privilégios énicos, quais- quer que sejam eles ele firma sta soldariedade com os oprimidos de qualquer cor. De repente a nocio subjetva,existencial,étnica da negritude “passa, como diz Hegel, para aquela ~ objetiva po tiva, exata~do proletariado “Para Césire, diz Senghor,o“branco” simboliza o capital, como o negro o trabalho... a luta do proleta- fiado mundial que canta através dos homens de pele negra desta raga" mais ici dizer, menos facil pensar. Nao € por acaso que cos mais ardentes vates da negrtude so, a0 mesmo tempo, mil tantes marxistas. Mas isso nio impede que a nogio de raca no se confunda com a nogdo de classe: aquela € concreta e particular, esta universal e abstrata; uma vem do que Jaspers chama de com- preensio, e a outra, da inteleccio; a primeira € 0 produto de um Sincretismo psicobiolGgicoe a outra ¢ uma construsio metédica, a partir da experiéncia, De fat, a negritude aparece como o tempo fraco de uma progressio dialética: a afirmacio teérca e prica da supremacia do branco € a tese a posigdo da negrituce como valor amtitético €0 momento da negatividade, Mas este momento nega- tivo nfo € autosuficiente, e os negro que outilizam o sabem bem: sabem que ele visa a preparasao da sintese oa realizagao do hi ‘mano em uma sociedade sem racas. Assim. anegritude existe para se destruir;épassageme ponto de chegada, meioe ni fim dltimo” Se ha uma posicio relativa na agao dos negros tornada ra- ializada no proprio advento da modernidade, ela obedece a0 percurso nio determinado, na verdade totalmente contin- gente, da realidade histérica. f nisso que a passagem feita por Sartre de raga para classe se revela rpida demais por {L#ANON. 2008, p. 121, apd Jean-Paul Sartre. Orphée noi, prefcio dAntho- loge dela possi gre et malgache,p- Xt e ser uma posicio esquematica que suprime de si as particula- ridades constitutivas da compreensio de raga. A nogio algo esquematica de uma progressio dialética ‘como finalidade indiscutivel é aquilo que espana a prépria apreensio de dialética sartriana. Sartre se trai. A forga as andlises de Fanon reside no fato de que os extremos {negrofbranco) permanecem produzindo a cisdo € 0 tinico avanco obtido 6 compreensio do interior dessa lacuna. As- sim, 0 proprio racismo antirracista, embora seja um mo- ‘mento necessério, ainda atua no interior da limitagéo colo- nial. ‘Nao é simplesmente identificar mecanicamente o branco ‘com o capital - ainda que seja uma verdade factivel - mas ‘compreender que essa cisio é uma abstragio (metafisica) ‘que dinamiza a realidade. O verdadeiro significado esta no vazio de seu contetido, cujo sentido é gerado na medida em ‘que o movimento se revela, Dai a necessidade dos exercicios que Fanon nos legou. Exercicios que parecem nio ter tido precedentes.? A identidade de opostos nada tem em comum com a ideia de uma resolugio imposta que eleva a figura da conscién- ia para um estdgio superior ~ do tipo raca para classe -, ppelo contrério: a luta se firma no evanescer da experién- ‘cia que formula uma nova negatividade encarnada numa fi ‘gura singular e, portanto, numa nova experiéncia que rees- ‘ereve a passada. E é por isso que Fanon continua: “| hegelianonato esqueceu de que a consciéncia tem necessi- 2. Mesmo Mbembe no vai até as Gitimas consequéncias das ligbes dena {as por Fanon. dade de se perder na noite do absoluto, tinica condicao para chegar & consciéncia de si.” Perder-se na noite do absoluto indica que cada estégio é necessirio e, ao mesmo tempo, iniitil em si mesmo. S6 assim se pode chegar a consciéncia de si af que Sartre se trai de novo: Pouco importa: a cada época, sua poesia; a cada época as crcuns- tancias da historia elegem uma nagdo, uma raga, uma classe para reacendera chama, criando situages que 86 podem ser representa- ddas ou superadas pela poesia; ora 0 impulso poético coincide com ‘o impulso revolucionério, ora diverge. Saudemos, hoje. a oportur rnidade histérica que permite aos negros dar com tal determinagao ‘grande grito negro que abalara os assentamentos do mundo.” ‘Nessa posicdo sintomitica de um devir sem contingéncia, 0 espago para a liberdade é solapado. “Foi s6 a hist6ria que produziu a poesia, nao os homens?” ‘Com razio Fanon diz: “Pronto, nao foi eu quem criow um sentido para mim, este sentido (segundo Sartre) jé estava ld [uu] esperando-me”, € mais abaixo retruca: “contra o devir hist6rico, deveriamos opor a imprevisibilidade."* ‘Ora, o que Sartre exchui de sua formulagio é que se, por ‘um lado, nada é sabido que nao esteja na experiéncia, por ‘outro, o devir na histéria é marcado por uma finalidade cuja contingéncia ihe é constitutiva. f factivel a impossibilidade de se apropriar do futuro tendo em vista que nao se pode enquadrar a tessitura da historia. a {3 FANON, 2008, p 121, apd Sartre dem, p- XHV 4 FANON, 2008, p- 121 ‘A negatividade se alimenta da luta por essa apropriagio ‘como uma tentativa impulsionada pela consciéncia. Por isso {que Fanon diz no! De fato, Sartre esta correto quando afirma a universali- dade da classe em contraposicao & particularidade da raca, ‘contudo, perde de vista que a universalidade da classe € im- plicada pela particularidade, que nio apenas dinamiza essa ‘universalidade, como Ihe dé sentido, E esse sentido é for- mulado pela prépria condicdo do que ¢ ser negro, isto é, uma ‘condicio proletaria e em constante proletarizacao. Se Fanon afirma: “Eu tinha necessidade de me perder absolutamente na negritude. Talvez um dia, no seio desse romantismo doloroso...”,° é para demonstrar como as ilu- sBes necessirias formam e dio sentido ao estabelecimento da tuta e questionamento dos limites impostos pelo coloni- alismo. A abertura da continua atividade da consciéncia em ‘sua busca de se apropriar do futuro est aprisionada na retro- versio, na qual s6 a exposicio completa e objetiva da expe- riéncia demonstra seus percalcos ¢ suas ilusdes necessarias ‘para implodir as limitag6es coloniais. £ precisamente nesse passo que a questdo da liberdade ‘se efetiva; a liberdade, com relacdo as determinagées pressu- ‘postas, s6 pode ser efetiva contra esse pano de fundo, Niose [podem prever as consequéncias das nossas agdes tendo em _ vista que, se assim procedesse, a liberdade se reduziria & ne- ‘cessidade, Perderiamos a retroatividade que constitui nossa sncia e mantém a abertura para a contingéncia radi- cal. 5. tbiden. n Na luta contra essa contingéncia, ergue-se o “inico str porte possivel para a nocio de sujeito: um devir capaz de ventido dado pela experiéncia deste. Por isso, 0 negro, no exercicio de sua liberdade, mantém de pé a abertura ao ft ture, ‘Adialética que introduz a necessidade de um ponto de apoio Paras sninha liberdade expulsasme de mim proprio. Ela rompe minha Po- ‘ica irefltida, Sempre em termos de conscienca, a consciencia negra €imanentea si prépra. Nao sou uma potencaliade de 216 sou plenamente 0 que 00. Nao tenho de recorrer a0 universe), No ew peito nenhiuma probabilidade tem lugar. Minha consciéncia negra ndo se assume como aflta de algo. Ela é. Bla é aderente 2 si propria’ ‘Aqui Fanon demarca uma posicio a postura dialética ave cencerra um trauma & consciéncia negra, 0 fato é que diante da imposigio colonial que presume uma universalidade © Cludente, a consciéncia ja no pode ficar impassivel, ainda {que tenha razio. E néo pode porque ela jé ¢ inteirament®, fora dos termos de oposicio bindria (pretobranco), 0 estar tuto do inexistente se apresenta imediatamente. Essa re- stencia da consciéncia negra, que imediatamente é j# € ‘am si mesma a possibilidade do movimento dialético, 0 ser tum que existe como miltiplo. Tentarei explicar 0 porque: ‘Essa individualidade da consciéncia entendida como ne- gra, enquanto o Um, jé esté desdobrada em si mesma, quer ‘Timer € como se a individualidade aqui estivesse elencada ‘to universal imediatamente sem, contudo, dele necessitar ogo, o EueBu da consciéncia-de-si negra esté posto & prove de saida porque sua identidade jaz ligada ao todo concreto, & Cees 2 = 6, FANON. der, p. 122 imediacdo fundada pela impossibilidade de reconhecimento torna a consciéncia imediatamente ato, Como nos fez en- tender Fichte I atras, porém, entre o Eu=Bu da consciéncia ‘ha uma infinidade de determinagoes’ tendo em vista que é impossivel escapar das mediagBes sobrepostas, uma vez que ‘essa consciéncia é ser social. ‘A acio externa do mundo branco abala a calma organi- 2agio desse Eu em seu movimento. O que aparece como or- dem e harmonia de si para consigo tornase, através dessa aio exterior, uma transicio de opostos, em que cada qual se mostra como anulacio de si mesmo, Essa “anulagao de si mesmo” pressupée um corte radical imposto pela oposicio de duas tendéncias no interior de um mesmo plano simbé- ico (brancojnegro). Podemos intuir dai que hé dois universais abstratos que rnascem e precisam morrer juntos: 1) perda gerada a partir do movimento imposto pela oposicio (feita pelo branco); 2) oreconhecimento dessa propria perda. Desse ponto de vista, nao é possivel nenhum acordo; am- ‘bas as posicdes sio irredutiveis e, portanto, o conhecimento dessa resisténcia antagonica é a condicio de possibilidade da acdo em si, isto é, de implodir essa limitacdo simbélica, Por isso, a posigdo irredutivel defendida por Fanon é aquela capaz de reunir os cacos quebrados do que se tem ppor negritude e a partir dela implodir o mundo onde essa Inegritude foi concebida como diferenca/exclusio. Sartre, que embora avancou radicalmente nas contradicées col6- a ncure, J, A doirin da cia de 1794. raducio de Rubens Rodrigues ‘Torres Filho. ‘0s persadore. S30 Palo: Abril Cultural, 1984, p.35 176. ti i} niametrépole, deixou escapar que é a posicio irredutivel dessa particularidade que abala os findamentos simbélicos do mundo branco ¢ é nela que repousa o motor da luta de classes nas sociedades colonizadas. Passar tao logo as determinagies universalmente abstra- tas de classe é nao se dar conta das determinagdes raciais e da sua fundamentacio determinada igualmente pela explo- ragio do capital. Aquilo que é capaz de implodir 0 modo de sociabilidade baseado na exploracio e opressio é sua es- pecificidade, sua singularidade determinada e irredutivel. A universalidade da classe requer 0 seu negativo, isto é, a par- ticularidade que a compée e a estrutura, Necessariamente, a consciéncia de classe ¢ dependente da particularidade e da especificidade dos seus componentes, nao 0 contrario. Para citar ironicamente Sartre: “a existéncia precede a es- séncia”® £8. Nesse sentido a posigio de Fanon é mais sartreana que a do proprio Sartre, como vemos neste excerto: “Quanto a nds, queremos consti pre- cisamente 0 reino humano como umm conjunto de valores distintos do reino ‘material. Masa subjetividade que nds a atingimos a ttulo de verdade nao ‘uma subjetividade rigorosamente individual, porque demonstramos que no cogito n6s no descobrimos 56 a nés, mas também aos outros." (SAxTRE, P-Oexitenialismo é um humanismo, raducao de Vergilio Ferreira. ity (0s pesadores. Sto Paulo: Abril Cultural 1973, p. 21). 76 A radicalidade do pensamento de Fanon De novo o misticismo as cegas, sem responsabilidade ou ‘quase isso. Depois de mais de sessenta anos desde que Fa- ‘on nos legou sua obra, estamos as voltas com velhos pro- Dlemas: neorracismo! e busca do retorno as origens, 0 que naturalmente sio faces de uma mesma moeda. Por meio de muita arrogancia, pela primeira vez na his- 6ria, operacées de policia introjetada na psique dos potenci- ais descontentes se realizam na busca de condenar qualquer ‘Yor dissidente ao estabelecido, De 1952 a 2018 o capital se transformou, se amoldou as circunstancias. Cada crise ser- vviu para novo impulso. O negativo foi sua base de sustenta- Gio? 4. Aqui recorro a nogio de ftienne Balibar segundo 0 qual: “O racismo, {verdadeiro fenomeno social totalizador. se inscreve em pritica formas de Wiolencia, desprezo, intolerancia, humilhacio, exploracio), discursos e re- Dresentagdes que sio outros tantos desenvolvimentos intelectuais do fan- asta da profilaxia ou da segregacio (necessidade de purifcaro corpo so- Gil, de preserva a identidade do "eu", do “nbs”, mediante a qualquer pers [pectiva de promiscuidade, de mestigagem, de invasio), que se articulam fem torno de estigmas da alteridade (apelido, cor da pele, priticas religio 2s)” RALIBAR & wauLensrEIN, Race nation clase: les identités ambighes, a- Fis: La Découverte, 1988p. 31. 2. Retire essa ideia do importante ivr de Grespan: GRESPAN, J Onegatvo do capita o conceito de rise na politica de Marx. Sio Paulo: Hucite, 1998 a vor cinica j4 se engue: “Fanon nada tem mais a dizer precisamos nos ater s novas epistemotogias™. Novas Pitt jrologias? Defender a filosofia banto sem o muncdo banto? ‘Trata-se disso. Um escindalo, uma regressio! ‘Ainda estamos aqui e ainda estamos vivos. (O mundo que acreditava ter esvaziado de significacio seu entorno descobre de repente 0 cincer em suas entranhas. Sob o signo da catistrofe social, num horizonte francamen’e epressivo em que ~o tempo do fim (da Histéria) ¢ antes de tude uum (novo) tempo de guerra’,* de repente, ouvem se tetalos de chicote nas costas de centenas de pretos na Libia em plena era informatizada tim exército de defensores do tinico mundo possfvel de prontidlo se apresenta com os seus comunicados midiati: eee de uma vit6ria permanente. O épio do consumo parali- Sou a esquerda brasileira eas disputas intestinais reduzenr se a luta pela gestio da barbdrie. A morte de familias in- feiras naufragadas em uma balsa no Mediterraneo, junta- mente com criancas sendo revistadas por soldados no Rio de Janeiro, apresentam o coroamento da civilizagio. Nunca houve tanta violencia didria e, no entanto, nunca houve tanta apatia, Com o retomno das desigualdades 20s indices da era balzaquiana o mundo torna-se cada vez mals negro! ‘Transferencia macigas de fortunas para interesses privados, des possamento de uma parte crescente das iquezas que lita ante Powe nha arrancado ao capita, pagamento indefinido de divida Gcumulada, a violencia do capital afige agora inclusive, a PrOPH2 ropa, onde vem surgindo uma nova classe de homens ¢ de mr 2. ABANTES. 0p: iP 6 Iheres estruturalmente endividados [..] Mais caracteristica ainda da potencial fusio do capitalismo e do animismo é a possibilidade ‘muito distinta, de transformagaio dos seres humanos em coisas ani- rmadas, em dados digitais e em c6digos. Pela primeira vez na his- t6ria humana, o nome Negro deixa de remeter unicamente para ‘a condigdo atribuida aos genes de origem africana durante 0 pri ‘iro capitalismo [...Aeste novo cardcter descartavel e solivel, sua institucionalizacao enquanto padrio de vida e vida e A sua generali- zacio a0 mundo inteiro, chamamos o devirnegro do mundo.* Se isso nao é uma vantagem miraculosa ~ como cinica- ‘mente meu ex-mentor sugeriu numa entrevista® ~ pode ser fo estopim de uma nova forma de sociabilidade. Quando um, ‘ou outro estudante buscou refletir sobre Fanon, entio houve indicios de que seu pensamento sobreviveu aos rebaixamen- tos, desvirtuagdes ¢ manipulagies cinicas e nada ingénuas. ‘Quando uma parte do movimento negro renega Fanon para aceitar de bom grado a iiltima nota conceitual ela- Dorada nos pordes do neoliberalismo, isso sé demonstra gua atualidade. E se esta discussio nfo é somente para apresenté-o serve ao menos para Ihe fazer, ainda que mo- destamente, justiga. Por que Fanon? Por que agora?® Sao ier oma ites Mra to sano npr oa: nad eae ‘ge ONG. Segundo o Frei, ser negro agora é ter vantagem... ("Concur is [prefeitura de sr verifica cor da pele de cotistas aprovs z 8”, sc eistohade pen Se nen ER Peg ere rs um ot rs mo Hl 2 "ese (Douto "Silo Carlos, Sio Carlos, sp, 2015. ast ead questBes que ressoam no solo de wim mundo que se erz® i osigno da catéstrofe da escravido moderna e num pals ja estrutura escravistaesté entranhada nas instiuicbes Ie beraise, pior, na formacio psiquica dos individuos, Nunca tivemos uma democracia racial, € fato, mas tivemos uma “democracia racista”. Quando Fanon discute a linguagem ¢ se depara com 3 patologias envoltas da psique negra chega rapidamentt a Pinclusdo de que a patologia é da propria sociedade colo” ‘iizada, No campo da linguagem a “racionalidade univer” tal" demonstrouse justificadora da racializacdo da humani- dade para a manutencio ¢ encobrimento da exploracio <3 pitalista. Da biopolitica passourse & necropolitica: no Brasil pigmea se tratou de dominio dos corpos, mas sim das ¢sco- thas prementes de um estado de excecio que escolhe quem pode morrer ¢ ser invisibilizado. ‘Do mesino modo, os misticos sio s6 a cara da coroa de ‘uma mesma moeda no cofre do rentabilismo, Da Martinics ge thas Salomio, no ha um modo de sociabilidade que no esteja sob dominio do Império, Enquanto na Europa &°% pos identitirios voltam a reivindicar suas origens arianas, ho Brasil grupos débeis paulistas querem se separar do resto ‘do pais, Esses sintomas, porém, ndo bastaram para demons: trat para alguns setores do movimento negro 2 loucura Pi toldgica de reivindicar as origens... ou como disse Fanon. 2 Origem.. Depois de 60 anos de atraso em relacio ao formulado Por Fanon, poderia me perguntar: a figuras da consciéncla nio vangaram deste lado do Atlantica? Permanecemos imei ados? O desmoronamento do “bloco socialista" ndo deveria serentendido como a inelutablidade do proprio processo de 80 desmoronamento do sistema fundado pela escravidao mo- derma? 0 retorno folclérico das caricaturas histéricas no deu em farsas, sendo em comeédias intragaveis. ‘Accrise tornouse forma de governo. Se a filosofia banta ndo conhece a miséria metafisica da Europa, a miséria metafisica da Europa imps seu mundo. isso que Fanon quer demonstrar ao atacar as formas misticas eereacionérias que tentam reviver aquilo que foi me nio‘ser ¢ justamente porque sua sociedade é uma sociedade fechada e ainda nio tinha conhecido a violéncia da hist6ria Violéncia que se imp6s a ferro nos calcanhares ¢ for “nos peitos. Nao é em vao que antes de comentar a filosofia " banta, Fanon cite um longo trecho do desgracado mundo do "apartheid. Num outro texto desconhecido se Ié: “as ragas que dividiam a humanidade de forma irreversivel sobrepdem-se ‘gualdade dos cidadios das cidades. A realidade racial sw- pera qualquer teoria do direito, Desse modo, a cada ra ‘cabe um lugar no mundo",” i por esse motivo que a ee essa cadeia, dada por formas de vida que desapareceram com o choque colonial, sendo ingénua, é, contudo, ampla- ente aproveitvel por formas de mercado que em seu ni- 0 se abre para o afroempreendedorismo. ‘Alioune Diop, como representante maximo desse tipo posicionamento que tende ao universal sem mediacio, "srs, G. AA end er neg um pec — ne sere um prciro da els que natura infvondade do negro, Su Pato: ae Fapesp 2008.5. a uma busca regressiva das origens, ¢ ironizado: “O preto se universaliza, mas do Liceu Saint-Louis, em Paris, um deles foi expulso: teve a ousadia de ler Engels”;* e Fanon continua: “J4 adivinhamos Alioune Diop a perguntar-se qual sera a po- sigio do genio negro no concerto universal. Ora, afirmamos {que uma verdadeira cultura no pode nascer nas condicdes atuais.” E quais condigdes sio essas? De 1952 a 2018 eles dirao: ‘muita coisa mudou. Nés diremos; muitas coisas mudaram, ‘mas a exploragio, e sua consubstancial opressio, continua em escala ainda pior. ‘As novas coordenadas ideol6gicas efetivadas pelo ruir da modernidade a partir dos anos 1970 sio determinadas por dois pressupostos que arrasaram quarteirdes: por um lado, 8 direitos e valores tornaramse historicamente particula- res, nao podem ascender a universalidade: por outro, hi a suspeita universalizada que destitui qualquer nocio minima de corpo politico que nao aquela jé estruturada pelo jogo leitoral; qualquer nogio que esteja para além da ordem do dia é atacada como iluséria e oportunista ‘A loucura da busca da identidade hipostasiada s6 indica {que o mundo do trabalho ruiu. ‘A pergunta “Por que Fanon? Por que agora?” talvez, te- nha nisso sua resposta. J4 sabemos que tais pressupostos si0 antag6nicos a formulagao de Fanon. (0 mecanismo fundado pela ideologia em tempos de capi- talismo financeirizado e altamente manipulatério nao se ba- seia mais no engajamento do individuo como sujeito capaz 18 FANON. bide, de alterar as coordenadas pressupostas do esquema Ironica- ‘mente é como se todos ja estivessem naquela universalidade do naosser banto. liberalismo em tempos de financeirizagao propde uma espécie de direito neutro que escapa da determinagio social (a exemplo do que ja impde na economia); estamos agora na esfera de um direito livre ~ isto 6, sem a imposigao da populacio - que pode efetivar uma ordem politica desejada sem a necessidade de sujeitos politicos? Logo, as solugées certas sio reconhecidas pelo fato de que nao precisam ser escolhidas."” Nada melhor que um técnico para tirar as diividas; um governo dos mais capazes! Governar sem povo, porque o préprio povo se tornou nio apenas indiferente sendo inttil para o estabelecimento das ‘vias do sistema, parece ser uma prerrogativa acertada, pelo ‘menos para a elite econémica. Alids, tanto nos EUA quanto no Brasil essa “verdade” azeda o estOmago. Toda a questio das lutas ¢ reduzida a esfera da visibili dade e da representatividade, que tem seus lastros na pré- ria forma de uma democracia golpeada em época de um Eu-empresa que impde a concorréncia onde nao h4, ou nio deveria haver, A identidade sem relacio com 0 outro éa bola da vez, enriqueca-a e venda.a como produto por meio de um Yolumoso curriculo de ages solidarias. Quer dizer, aceita- “se de antemao a derrota para logo em seguida transformé-la em triunfo mercadol6gico, 8 Podemos concur que componente juice que se seg ‘Bo Brasil se serve dessa nocao. eee er 10. A esse renpeita ver RANCIBRE, JO odd demarada. So Pa pec J ci. So Palo: Bot (Ora, acima eu havia chamado a atengio para a nocio de identificagao agora, ela retorna em sua forma sintomatica para refletirmos sobre os dias atuais, Por um lado, 0 mer- cado aposta na identificacao dos grupos; nio precisa existir democracia se nossa identificagéo for guiada por lideres € técnicos capazes de fornecer 0 melhor para nés. Por outro, a tentativa de questionar tais pressupostos, ainda que tenha razio, de acordo com a ideologia dominante sempre acaba em assassinato, maior opressio desequilibrio social, que pode por tudo a perder. Por fim, 0 recado ¢ claro: a trans- formagio social internacional é uma utopia de assassinos se- dentos de poder. ‘A ideologia atual deixa evidente que as formas politicas capturadas pelo mercado so s6 uma alianga oligdrquica en- tre ciéncia e riqueza que exige todo o poder. Os discursos {que se voltam para os particularismos. inclusive em toda a sua caricatura (quem nio assistit as propagandas politicas de Hillary Clinton?), retomam 0 velho principio da filiacio em uma comunidade enraizada no sangue, na cor da pele, na religiio" e no respeito a todas, desde que elas nao se mis- turem. 1, Com esse diagnéstico da ideologia arual nto fica dificil entender por aque grandes setores da esquerda progresssta nacional receberam de Dragos Abertos um filme terivel e eacionario como Pantera Negra. O filme apre- Senta claramente qual seria 0 projeto que poderia fomentar um desenvol vimento téenico e econdmico sem precedentes — segundo a visio imper- lista, € caro: um Estado sem intervengio da democracia, Se 0 Negro até hoje viveu as margens da sociedade, ofertas a ele a adesio ao consenso eterno que repudia os confitosantigos e dobra-se as solugdes dos especia lstas que s6 podem discutilas com os representantes escolhidos pelos dew- ses que compéem a oligarqua. Atomizar as comunidades e individuos, apelar para a caracteristica particular, gerar identificagao so as premis- sas basicas do controle social exercido na era da emergéncia. Posso ter contato com outros grupos, mas sem estabelecer ‘com eles relacies, eis o pressuposto posto do controle atual. E como se estivéssemos na prisio do seriado de Orange {5 the New Black, cujos gestores fossem nossos governantes € cada um tivesse sua comunidade propria ¢ nao se mistu- rasse. Naturalmente, numa sociedade forcosamente miscige- ada como a nossa, tais imposigSes do mercado imperialista entrariam em curto-circuito. Espalhar essas ideias por aqui tem encontrado um terreno insélito cujo adubo é paradoxal- ‘mente fornecido pela classe média letrada, que, dentro de "seus confortaveis apartamentos, tornam 0 tour pela favela algo exdtico. Mas, alucidez ainda brada: “...]o problema negro nio se limita a0 dos negros que vivem entre os brancos, mas sim 20 dos negros explorados, escravizados, humilhados por uma sociedade capitalista, colonialista, apenas acidentalmente ‘branca."® Ao retirar o essencialismo e a cristalizacio categorial, Fa- hon permitiu pensarmos para além dos limites pressupostos 12. Seriado famosa que tee a laces de demonstrat em todas A Incapactantenocto Ge identdadesewtanquse nlovelacomas no ine “dades negra, latina, branca ereligioa sem deixar que elas se relacionem, O recado é bem claro: estamos todos numa prisio sendo conduzidos por jores da miséria,Falar sobre esse seriado, contudo, equivaleria a um ca- ulo& parte que fugiria de nosso tema, 3B. FANON, op. cit, P17 pelo jogo. Aradicalidade de seu pensamento ecoa ainda hoje coma lucidez que golpeia o misticismo ea obscuridade, que, infelizmente, grassa em grande parte do mundo contempo- © MOVIMENTO NEGRO E 0 MISTICISMO. [Assituagbes de vantagem ou desvantagem de uma ‘ou outra raga no sistema capitaista de paises especificos decorve de contextos histéricos. Razio ‘pela qual, para extinguir os males advindos do ‘capitalism, nf adianta querer “ienitarizas” © capitalism. (Bobby Sele) 0s limites do problema Este pequeno ensaio nao trata de uma pesquisa hist6rica, nem tampouco sociol6gica. 0 esforco aqui € 0 de esbocar ‘uma histéria do desenvolvimento das ideias para, com isso, desmistificar posigSes tedricas que se tornaram forga mate- rial e impregnaram as agbes de grande parte do Movimento Negro. ‘Mas, repetindo uma pengunta feita lé atrds por Lélia Gon zalez: ser possivel falar do Movimento Negro?! Sabemos que o Movimento Negro ¢ s6 uma abstragio para indicar lux tas que se baseiam na compreensio da estrutura racial do pais, ¢ nas formas ou de minimizar tais resultados ~ grande pparte dos setores - ou de superd:la ~ posigdes minoritérias Fle ¢ miltiplo e mais dindmico que nossas categorizagbes. ‘A posicio hegeménica, aquela de minimizacio dos resul- tados catastroficos de uma estrutura econdmico-social rack alizada, contribuiu para o desenvolvimento das lutas em dic vversas frentes, obtendo, no neguemos, alguns éxitos con ‘tra os resultados devastadores e assassinos do racismo bras Jeiro, Daf que a histéria do wavu (Movimento Negro Unificado) 4 necessariamente o filtro por onde as ideias hegeménicas ‘passaram. —C—T—— Eee TL Gonzauaz & wasewBAtc Lagarde negro. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1982.

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