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Resi pe HOSP Vor. € NOs ESCRITOS DE ANCHIETA, A ARQUITETURA DE UMA NAacAo The Architecture of a Nation in the Writings of Anchieta Resumo Este artigo & 0 resultado de uma re- leitura dos escritos histéricos de An- chieta, em particular de suas Cartas, no intuito de dar a conhecer a Pro- vincia Brasilica a partir do olhar € das experigncias do jesuita canarino. Extraimos dos registros histiricos, passando pelos Sermdes, dados da maior relevincia para delinear os primeiros retratos do Brasil, os cos- tumes indigenas dos primérdios da colonizagio e a implantagao do pro- jeto real de ensino e catequese para a ‘Terra de Santa Cruz, Detivemo-nos, com especial atengo, no relato das equenas iniciativas € na descrigao das agdes € celebragdes habituais que, nao obstante a normalidade, contribuiram para a formagio de uum substrato moral de valores intan- giveis e de paradigmas de compor- tamento sem os quais dificilmente chegariamos a ser 0 povo e a Nagao que somos. Palavras-chave: Literatura de In- formagio, Historia, Cristianismo. Antropologia. Maria ASCENCAO FERREIRA APOLONIA (s6cia titular do THGSP) Abstract This article is the result of another reading of Anchieta’s historical writings, mainly of his Letters, in order to make the Brazilian Indian Province known from the Canarian Jesuit’s view and experiences. Star- ting from the historical registers, and going over his Sermons, we took very relevant data to delineate the first portraits of Brazil, the Indian conventions in the early times of colonization, and the implementa- tion of the real project of education and catechesis for the Land of Santa Cruz. We were very attentive to both the report of little initiatives and the descriptions of habitual actions and celebrations that (despite the norma- lity) contributed to the formation of a moral substrate of intangible values, as well as of behavioral paradigms. Without such substrate and para- digms we would hardly be the people and the nation we are nowadays. Keywords: Information literature. History. Christianity, Anthropology. 113 Maui Asset Frias Anew ost Introdugio e Este artigo® é 0 resultado de uma nova leitura dos escritos historicos de Anchieta, em particular de suas Cartas, no intuito de dar a conhecer a Provincia Brasilica a partir do olhar e das experiéncias do jesuita canarino. Para levar a cabo a proposta, apresentaremos a partir dos registros historicos, passando pe- los Sermoes, dados da maior relevancia para delinear os primeiros retratos do Brasil, os costumes indigenas dos primérdios da colonizagao ¢ a implantago do projeto real de ensino e catequese para a Terra de Santa Cruz. Nés nos detere- ‘mos ainda no relato das pequenas iniciativas e na descrigdo das ages e celebra- ‘¢6es habituais dos jesuitas que, nao obstante a normalidade, contribuiram para a formagao de um substrato moral de valores intangiveis e de paradigmas de com- portamento sem os quais dificilmente chegariamos a ser 0 povo e a Nago que somos. A subdivisto das partes deste trabalho obedeceu a sequéneia de temas ‘meneionada, No fragmento sobre o ensino e a catequese, comentaremos alguns apontamentos de Anchieta sobre a adesao dos indigenas a formacio cist; eles evidenciam ser incongruente a proposicdo de que a catequese estaria at margem da cultura indigena, e nao viria ao encontro das aspiragdes dos brasis. Convém ainda ressaltar que a diltima parte (“4 formagdo do povo”) assume um caréter conclusivo, uma vez que os temas anteriores convergem para elucidar algumas das contingéncias histérico-culturais que propiciaram a alianga entre a unidade ea diversidade étnica do povo no proceso de construgio da Nagao brasileira Retratos do Brasil Nas paginas iniciais de “Informacdes” sobre a Provincia Brasilica (1584), José de Anchieta reine alguns dados sobre o niimero e a localizagao das pri- ‘meiras capitanias. Dé-nos, assim, uma visio de conjunto do povoamento e da deslocagao dos primeiros nicleos habitados, geralmente em razio das contin- géncias de defesa do territério e de atendimento aos portugueses e indigenas nas primeiras décadas da colonizagao: (..) Tem a Provincia do Brasil sete capitanias nomeadas, sci- licet: Pemambuco, Baia, IIhéus, Porto Seguro, Espirito Santo, Rio de Janeiro, Séo Vicente. (..) A Baia e Rio de Janeiro so d°El Rei * Comunicagao apresentada no Simp0sio Sto José de Anchieta, Apéstolo do Brasil e Artifice dda Nacionaidade, realizado no Rio de Janeiro, no dia 18 de margo de 2015, pelo Instituto Historico Geogritico Brasileiro pela Academia Fides et Ratio. Texto também ineluido em ATAS do Simpésio Séo José de Anchieta, Apéstolo do Brasil e Artifice da Nacionalidade, Rio de Janeiro: IHGB/AFR. 2016. 4 Revista bo IHGSP- Ver ve «€ cidades e todas as mais capitanias sto senhorio e vilas. De Per- ‘nambuco que é a primeira capitania, esta em oito graus, até Sio Vicente, que € a iltima ¢ esté no trépico de Capricémio quase em 24°, pode haver 350 Kéguas por costa correndo-se de Norte-Sul, Nordeste-Sudoeste, e de Sao Vicente até a lagoa dos Patos, onde comega a nago dos Carijés, que sempre foram da conquista de Castela, péde haver 90 léguas pelo mesmo rumo.* (p.310) Quando se reporta a Sto Vicente, cita a ilha de Santo Amaro, que foi po- voada por "sew capitdo e moradores e um engenho de agticar, mas com a per- segui¢do continua dos Tamoios, Indios do Rio de Janeiro, despovoou, nem tem Justiga particular, tudo se reputa por Sao Vicente’ (p. 309).Tendo como pano de fundo esse singelo mapeamento delineado pelo canarino, podemos nos ater as Cartas, que constituem 0 corpus mais relevante deste artigo sobre a arquitetura dda Nagao brasileira Na Caria X, de maio de 1560, dirigida ao Padre Geral Diogo Lainez, An- chieta obedece as expectativas dos irmaos jesuitas e de muitos europeus de- sejosos de conhecer 0 que no Brasil é “digno de admiracdo ou desconhecido nessa parte do mundo [Peninsula Ibérica]” (p. 113). Esse género de literatura, denominada de informagao, conheceu ampla difustio nos paises que tiveram a icativa dos descobrimentos e nas Cortes vizinhas, ansiosas por conhecer € explorar o Novo Mundo. Os difrios de bordo, as erénicas e os relatos sobre as regives antes desconhecidas circulavam e competiam, com crescente vantagem, com as novelas de cavalaria no interesse da sociedade quinhentista que, em pouco tempo, passou dos Mirabilia da Idade Média para a Literatura de Viagens e de Informagio. Anchieta, em suas diversas Cartas, revela os dotes de cronista e agudo ob- servador da natureza brasileira. A Carta X, tal como a missiva de Pero Vaz de Caminha, chama-nos a atengao pelo realismo € a riqueza de detalhes com que © jesuita caracteriza o clima e a localizagaio dos primitivos aldeamentos. Sua linguagem é conereta, concisa e flexivel; resultado do esforgo de extrair, dos parcos mecanismos de linguagem disponiveis, a expresso de realidades e cir- cunstincias ainda no experimentadas, de modo a se fazer compreender pelo interlocutor europeu. 5 trovées, no entanto, fazem tdo grande estampido, que cau- sam muito terror mas raramente arremessam raios; os relémpagos * Fscothemos, para estudo dos escritoshistricos de Anchieta, a edigo de Afrinio Peixoto com Posficio de Antdnio Alentara Machado, editada po Iatiaia e Edusp (1988), a partir das Car- ‘as Jesuticas I (1933), organizades por Caprstano de Abreu 115 Jangam tanta luz, que diminyem e ofuscam totalmente a vist recem disputar com o dia na claridade; a isto se ajuntam os, tose furiosos pegdes de vento, que sopra com impeto tao forte, que nos leva a ajuntarmo-nos alta noite e corrermos as armas da orago contra o assalto da tempestade, e a sairmos algumas vezes de casa por fugir a0 perigo de sua queda; vacilam as habitagdes abaladas pelos trovoes, caem as drvores e todos se aterram. (p. 114) Em poucas pinceladas, ele nos descreve o fendmeno das chuvas tropicais, alternando a plasticidade do cenério com uma rapida nota narrativa, para expri- mir paralelamente a violéneia da tempestade ¢ a consequente repercussfio do fendmeno nos religiosos. Em outro excerto, que poderfamos considerar cinematogrifico, delinei asso a passo a alteragao do vento e da cor das nuvens para relatar, com a viva cidade de quem testemunhou 0 acontecimento, a formagdo de uma tempestade devastadora em Sao Paulo: Nao hi muitos dias, estando nés em Piratininga, comegou de- pois do pdr do sol, o ar a turvar-se de repente, a enublar-se 0 eéu, a amiudarem-se 0s relampagos e trovdes, levantando-se entio 0 vento sul a envolver, pouco a pouco a terra, até que, chegando 20 Nordeste de onde quase sempre costuma vir a tempestade, caiu com tanta violéncia que parecia ameagar-nos o Senhor com a des- truigao (..).(p.114-5) Importa destacar que Anchieta, homem & altura das transformagdes da Idade Moderna, esti também impregnado da mentalidade dos navegadores e cronistas do século XVI, que buscaram empiricamente transcrever 0 que viam ¢ observa- vam; alguns sem toda a consciéncia do valor historico do seu registro, em que se abriam amplos e novos caminhos para o conhecimento cientific. Para completar 0 quadro, ¢ fiel ao objetivo de divulgar tudo o que causaria impacto aos olhos do Velho Mundo, Anchieta descreve os efeitos aterradores da tempestade, a0 lado da reagao, para ele inusitada, dos indios: (...)arrebatou telhados e derribou as matas; a érvores de colos- sal altura arrancou pelas raizes, partiu pelo meio outras menores, despedagou outras, de tal maneira que ficaram obstruidas as estra- das e nenhuma passagem havia pelos bosques: era para admirar quantos estragos de casa e arvores produziu no espago de m hora (pois ndo durou mais do que isso). (..) 0 que, porém, no meio de tudo isso, se tornou mais digno de admirago, é que os indios, 116 visra pe HHGSP = Won C= ‘que nessa ocasido se compraziam em bebidas e cantares (como costumam), no se aterraram com tanta confusio de cousas, nem deixaram de dangar ¢ beber, como se tudo estivesse em completa ‘ranquilidade. (p.115) Por meio da gradagao ¢ da ripida sequéncia de verbos de agdo, Anchieta imprime a frase um ritmo rapido, tenso e vibrante, que reflete a dramaticidade da experiéncia vivida. Com efeito, 0 religioso agrega & narragio o ingrediente subjetivo de quem softeu o assombro de presenciar, provavelmente pela pri- meira vez, a destruigao desencadeada em pouco tempo pela chuva tropical; em contraste com a serenidade dos indios, certamente habituados as devastagdes do verio brasileiro, Depois dos registros geogrificos e climatoligicos, em especial, de So Pau- Jo e Sto Vicente, 0 prosador expde uma lista, bastante exaustiva para o carta, dos animais, das plantas, das ervas ¢ raizes com propriedades medic Acompanhemos a forma cuidadosa como delimita, para o interlocutor europeu, © tamanho, a cor ea serventia do peixe-boi; muitas vezes, fazendo uso de com- paragdes para descrever o desconhecido: HA um certo peixe a que chamamos boi-marinho, os indios o denominam iguaragu, frequente na capitania do Espirito Santo ‘em outras localidades para 0 Norte, onde o frio ou ndo ¢ tio rigo- 1030, ou € algo tanto diminuto e menos que entre nés; este peixe de lum tamanho imenso; alimenta-se de ervas como indicam as gra- ‘mas mastigadas presas nas rochas banhadas por mangues. Excede a0 boi na corpuléneia: é coberto de uma pele dura assemelhando-se na cor & do elefante; tem junto aos peitos, uns como dois bragos, com que nada, ¢ embaixo deles tetas com que aleita os proprios filhos; tem a boca inteiramente semelhante A do boi. (p.117-8) Atentemos para o rigor proprio do naturalista que nao s6 fornece as infor- mages sobre a alimentagdo do peixe-boi, mas ainda acrescenta as circunstin- cias que o levaram a inferir que o animal se alimentava de ervas. Em seguida, servindo-se de sta condigao de missiondrio, em luta pela sobrevivéncia e bem adaptado aos costumes da terra, tece consideragdes sobre a utilidade do peixe- boi, enaltecendo as propriedades do animal brasileiro ao confronté-las com a manteiga da Peninsula Ibéric E, excelente para comer-se, no saberias, porém discernir se deve ser considerado como came ou antes como peixe: da sua gor- dura, que esta inerente & pele e mormente em tomo da cauda, leva- 7 Mars ASCE SC 40 Friktiky Armin da ao fogo faz-se um molho, que pode bem comparar-se & mantei- ‘ga e no sei se a excederd; 6 seu dleo serve para temperar todas as ccomidas: todo seu corpo & cheio de ossos sdlidos e durissimos. tais ‘que podem fazer as vezes de marfim. (p. 118) Em alguns parigrafos ¢ possivel surpreender o deslumbramento daquele olhar originario que acompanha 0 crescimento ¢ a transformagao das aves, ¢ que se deixa fascinar pela exuberancia de cores e formas que compdem a fauna tropical: Ha ainda uma ave marinha, por nome *guaré’, igual ao mer- gulhdo, porém de pernas mais compridas, de pescogo igualmente alongado, de bico comprido ¢ adunco; alimenta-se de caranguejos ‘¢ é muito voraz. Passa por uma metamorfose, como que perpétua, pois na primeira idade cobre-se de penas brancas, que depois se transformam em cor de cinza, ¢, passado algum tempo, tornam-se segunda vez brancas, de menos alvura todavia das da primeira; por fim omam-se de uma cor purpiirea lindissima; estas penas so de ‘grande estimagdo, entre os indios, que usam delas para enfeitar os ccabelos ¢ bragos em suas festas. (p. 134) E, sem diivida, um desafio descrever a fauna e a flora brasileiras para quem ‘nunca as contemplou em sua superabundancia de espécies e variagdes. José de Anchieta vé-se obrigado a recorrer a um leque de analogias para que o leitor, a tio grande distdncia fisica e intelectual, possa ter uma ideia aproximada da variedade de arvores e frutos que enriquecem o retrato do Brasil. Eis a caracte- rizagdo da jacapucaia*: Na povoagio que se chama Espirito Santo & muito comum uma certa drvore muito alta, cujo fruto & admiravel. Este é semelhante a uma panela, cuja tampa, como que trabalhada a tomo, com que esta pendente da arvore, se abre por si mesma quando esté maduro: aparecem enti dentro muitos frutos semelhantes a castanhas, sepa radas por delgadas tiras como interpostos septos, muitissimo agra-

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