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Sinopse
Arrependido pelas equivocadas escolhas de sua última experiência
terrena, o Coronel Elpídio, que havia sido um fazendeiro cruel e
ganancioso, implora por uma encarnação de resgate.
Reencarnado no corpo de um aleijado, órfão e miserável,
perseguido pelos inimigos do além, procura ser obstinado o
bastante para cumprir tão importante missão.
Sem paradeiro certo, vive em constantes peregrinações e acaba se
reencontrando com o passado, onde a chance da reabilitação o
aguarda.
Seu drama nos mostra que a vida humana é a seqüência de uma
trilha que, embora nos projete sempre à frente, remete-nos
invariavelmente ao encontro do passado.
Roberto De Carvalho
Na Trilha do Passado
A obstinação de um Espírito penitente
Roberto de Carvalho
pelo Espírito Basílio
Sumário
Introdução................................................................
24 Epílogo ...........................................................
Introdução
O romance Na Trilha do Passado trata a questão das penas futuras
com base no esclarecimento de que o arrependimento, a expiação e
a reparação, constituem as três condições necessárias para apagar os
traços de uma falta e suas conseqüências.
Primeira parte
O arrependimento
l
Os credores
Pergunta: Todos os Espíritos experimentam, no mesmo grau e pelo mesmo tempo, a
perturbação que se segue à separação da alma e do corpo?
Resposta: Não; depende da elevação de cada um. Aquele que já está purificado se
reconhece quase imediatamente, porque se libertou da matéria durante a vida do
corpo, ao passo que o homem carnal, aquele cuja consciência não épura, guarda por
muito mais tempo a impressão da matéria.
Mas o coronel sabia que o sossego não duraria muito tempo e esta
expectativa não lhe permitia ter um segundo sequer de paz. Logo a
noite retornaria com a sua terrível escuridão e, juntamente com ela,
os insaciáveis bandoleiros para novamente o castigarem ali, na
solidão miserável do seu próprio aposento.
— Onde estão os meus capatazes que não vêem isto? Por que não
vêm me defender desses malditos? — perguntava-se inutilmente,
como a fazer coro às indagações de seus inimigos.
O coronel Elpídio estava morto, ou melhor, desencarnado, há
quinze anos e não ousava certificar-se desta realidade.
Completamente despreparado para encarar os desdobramentos da
vida pós-morte, negava-se a admitir a sua nova condição.
Este foi o último esforço físico por ele empregado, antes que a morte
viesse lhe arrebanhar para as esferas imponderáveis da
espiritualidade.
Por isso, durante todos aqueles anos, era somente ao diabo que ele
emitia seus pensamentos. Vivia preso àquele ciclo vicioso de más
vibrações, atraindo e trocando ondas fluídicas de ódio com os seus
desafetos. Era ele próprio quem cultivava aquele torvelinho de
horror e atraía para junto de si o bando de desordeiros impiedosos,
alimentados pelo ódio e pela sede de vingança. Esta era a razão pela
qual nunca o deixavam em paz. Era o próprio coronel que, de certo
modo, os convidava e os recepcionava na solidão sombria do seu
solitário aposento.
1
O amor maternal
Pergunta: O amor materno é uma virtude ou um sentimento instintivo, comum
aos homens e aos animais?
Resposta: É uma coisa e outra. A natureza deu à mãe o amor pelos filhos no
interesse da conservação deles. No animal, porém, esse amor é limitado às
necessidades materiais; cessa quando os cuidados se tornam inúteis. No homem,
persiste pela vida inteira e comporta um devotamento e uma abnegação que são
virtudes. Sobrevive mesmo à morte e acompanha o filho além do túmulo. Bem vedes
que há nele outra coisa a mais que no animal.
— Tem toda razão, minha querida! Por mais que a realidade nos
fira, temos de enfrentá-la e, apegados ao infinito amor de Deus,
contando com a sua benevolência, nos apresentarmos ao tribunal
divino, nos declararmos culpados e cumprirmos, com resignação, a
penitência auferida em nossas equivocadas escolhas.
— Sim. Porque é somente dessa forma que se dá a evolução
humana e não há como escaparmos dela, pois este é o plano do
Criador para todos nós, seus filhos.
— Tomara que você esteja certa, minha amiga. Assim, esta imensa
angústia que tanto lhe incomoda hoje, não terá mais razão de ser.
— Não tenha tanta certeza disso, Loreta.
— Por quê?
—Porque a minha responsabilidade sobre Elpídio ainda é a de uma
mãe para com o seu filho. E quando ele for socorrido e estiver
consciente de sua atual condição, certamente vai precisar de uma
encarnação de resgate o quanto antes e sou eu que vou estar com
ele, amparando-o e auxiliando-o nas suas maiores necessidades.
— Não pode ser outra pessoa?
— Você sabe que ele terá uma dolorosa encarnação de resgate e que
será uma tarefa muito difícil auxiliá-lo.
— Está bem, Santinha! Já que você tomou esta decisão, saiba que
estarei do seu lado, amparando-a e auxiliando-a sempre que você
precisar. Permanecerei no plano espiritual e guiarei os seus passos,
procurarei sempre lhe inspirar os melhores pensamentos e as
melhores decisões a serem tomadas — disse Loreta, abraçando a
amiga com grande emoção.
— Sim. Não seríamos nós mesmas, mas uma projeção daquilo que
nos propomos ser.
3
Arrependimento
Pergunta: Qual a conseqüência do arrependimento no estado espiritual?
Resposta: O desejo de uma nova encarnação para se purificar. O Espírito
compreende as imperfeições que o impedem de ser feliz e por isso aspira a uma nova
existência em que possa expiar suas faltas.
***
Após o assassinato de Vicente, um sofrimento imensurável bateu à
porta de sua jovem esposa. Inconformada com a precoce e
inesperada morte do marido, sentindo-se completamente
desamparada, coube a Lurdes enterrar o cadáver dele e retornar à
casa paterna, dois meses após haver se casado.
Mas estava inconsolável, chorava o tempo todo, não conseguia se
alimentar direito e quase não dormia. Ninguém conseguia tirá-la
daquele constante estado de apatia.
Acabou contraindo uma grave doença e faleceu menos de um ano
após o desencarne do marido.
Morreu de tristeza, diziam as pessoas.
Lurdes retornou à pátria espiritual em estado lastimável.
Completamente desequilibrada, precisou ser muito bem amparada,
passou por uma fase de adaptação, tratamento e esclarecimento.
Somente um bom tempo depois foi que pôde reencontrar-se com o
marido.
Vicente, Espírito bem mais evoluído, a ajudou a compreender a
complexidade da natureza humana e o funcionamento das leis que
regem o Universo e que, às vezes, devido à nossa limitada
compreensão, nos parecem tão incoerentes.
— Há pessoas para as quais a violência ainda é encarada com muita
naturalidade. Todos os seres humanos estão em estágio evolutivo e
o nível deste processo é bastante variável. Infelizmente, alguns ain-
da levarão muito tempo para saírem desse patamar e abraçarem a
lei do amor universal — disse ele.
— Mas não se pode fazer tanta maldade e ficar-se impune —
protestou Lurdes, inconformada.
— Ninguém fica impune das maldades que pratica, querida. A
cobrança vem sempre, através da lei de causa e efeito. Eu tenho
plena convicção de que nossos algozes pagarão pelo que fizeram,
mas não pretendo fazer justiça com as próprias mãos e, since-
ramente, não me sentirei bem quando este momento chegar para
eles. Lamento que alguns homens estejam em estágio tão atrasado e
tudo o que faço é pedir a Deus que os ajude a se elucidarem.
A felicidade proporcionada pelo reencontro do casal, na
espiritualidade, impediu que qualquer sentimento de revolta os
comprometesse. O amor que nutriam entre si era tão intenso e
verdadeiro, que não lhes permitiu cultivar qualquer negatividade
em seus corações. Juntos, perdoaram a maldade de seus algozes e,
acertadamente, deixaram nas mãos de Deus a cobrança da justiça a
ser feita no futuro. Concentraram-se em buscar o crescimento moral,
através do trabalho e dos estudos espirituais, preparando-se para
uma futura encarnação, onde trariam à Terra o seu grandioso exem-
plo de perdão e de indulgência para com o próximo.
Os dois estavam muito animados com um programa social que
pretendiam desenvolver em favor das crianças carentes em sua
próxima experiência encarnatória e andavam muito envolvidos com
este projeto.
***
Após um breve período de restabelecimento na pátria espiritual,
bastante consciente de seus erros e inteirado dos graves percalços
que sua próxima encarnação lhe reservava, Elpídio encontrava-se
impaciente para retornar à vida material. Ele sabia que era a única
maneira de se corrigir. Lamentava profundamente o desperdício da
experiência anterior, quando se deixara quedar pelas más
tendências, e tudo o que queria agora era iniciar a sua regeneração.
O seu reencontro com Santinha deu-se por um curto período de
tempo, já que, tendo assumido o compromisso de auxiliá-lo, ela
precisou reencarnar logo depois que ele retornou à pátria espiritual.
Mas a demonstração daquele amor incondicional o sensibilizou
profundamente. Elpídio achava que, por suas equivocadas atitudes,
não encontraria uma pessoa sequer na espiritualidade que o
quisesse bem. Mas estava enganado, pois Santinha provou-lhe o
contrário, demonstrando-lhe a invencível força de um amor
incondicional: o amor de mãe.
Outra situação que o deixou igualmente comovido, foi o perdão que
obteve de Vicente e Lurdes. Elpídio havia sido tomado de
verdadeiro pavor, quando se viu frente a frente com o casal que ele
havia destruído. Preparou-se para ser agredido, destratado e
humilhado, ajoelhou-se aos pés dos dois, mas teve uma grande
surpresa.
Vicente segurou-o carinhosamente pelos ombros e o ergueu. Depois
o encarou com os olhos translúcidos, no interior dos quais não havia
um resquício sequer de mágoa ou ódio, mas apenas um inequívoco
sentimento de carinho.
— Seja bem-vindo à espiritualidade, meu irmão! — disse-lhe o
rapaz, com um tom de voz calmo e seguro.
— Perdoem-me pelo mal que lhes fiz... — gaguejou Elpídio,
enormemente constrangido, chorando de arrependimento.
— Não precisa pedir perdão por nada — respondeu Lurdes. — Nós
já o perdoamos há muito tempo. Concentre-se agora na preparação
para a sua futura tarefa, procure aprender o máximo possível
durante a sua estada aqui. Reflita muito e tente inserir em seu inte-
rior tudo o que for positivo, pois este será o seu suprimento moral
para a próxima experiência terrena.
E seguiram tranqüilos, abraçados e sorridentes, deixando atrás um
Elpídio imerso em tristeza e remorso. As atitudes de Santinha,
Vicente e Lurdes moldaram nele uma nova mentalidade. Entendia,
enfim, que os homens foram criados por Deus para serem bons,
para se amarem incondicionalmente e se perdoarem infinitamente.
Todos os seus maus passos eram agora motivo de vergonha e de
arrependimento. Por isso, ele estava tão impaciente para retornar à
vida material e reparar os erros que pudessem ser reparados. Mas,
principalmente, para fazer diferente desta vez, angariar novos
valores, servir sempre, perdoar e amar. Estes seriam os genuínos
propósitos de sua nova encarnação.
Segunda Parte
A expiação
4
Encarnação de Leonor
Pergunta: A incerteza em que se acha quanto à eventualidade do seu triunfo nas
provas que vai suportar na vida, é para o Espírito uma causa de ansiedade antes da
sua encarnação?
Resposta: De uma ansiedade muito grande, pois as provas da sua existência o
retardarão ou o farão avançar, conforme as tiver bem ou mal suportado.
***
Da infância miserável e desventurada, Leonor não tinha muitas
lembranças que valessem a pena armazenar no arquivo da
memória. Vivera com as mãozinhas calejadas pelo cabo da enxada
ou da foice. Usara somente as roupas dos irmãos ou da mãe, porque
nunca possuíra as suas próprias vestimentas. Enquanto não tinha
idade ainda de se cuidar sozinha, andara maltrapilha, desleixada,
com sua cabeleira desgrenhada, seu corpo mal-cuidado, sujo, já que
o pai não permitia que Zefa dedicasse a ela qualquer tempo, por
mais exíguo que fosse, para cuidados ou mimos.
Anos depois, suas pernas e braços passaram a viver marcados pelos
vergões roxos das constantes surras de cipó que levava do genitor,
pelos motivos mais pueris.
Inicialmente, ao ser surrada, Leonor se derretia em lágrimas, mas
com o passar do tempo foi se acostumando e deixou de chorar
quando apanhava. Seu silêncio não era bem uma afronta, mas uma
espécie de conforto que ela acolhia dentro de si, acumulando
resistência e ao mesmo tempo resignação pelo que teria de
enfrentar. Afinal, para ela, a vida era daquele modo mesmo e nada
poderia ser feito para mudar tão dura realidade.
Uma das poucas lembranças que habitavam em sua memória,
ocorrera quando Leonor tinha nove anos de idade. Acontecera num
dia em que, após haver levado mais uma surra do pai, buscara
abrigo entre uma moita de capim que ficava nos fundos do quintal.
Estava distraída, assoprando os vergões das pernas e dos braços
para aliviar a dor, quando ouviu um ruído de chocalho e percebeu
que estava sentada bem próxima de uma enorme cascavel. Ficou
paralisada de medo, pois a cobra estava de bote armado, agitando a
ponta da cauda, de onde soava o barulho sinistro. Estava prestes a
atacá-la. Seu coraçãozinho começou a bater em descompasso, seus
músculos se retesaram e seus olhinhos ficaram congelados de
pavor, mirando o réptil ameaçador que também a fitava.
De repente, surgiu, não se sabe de onde, uma senhora de cabelos
grisalhos, iluminada por uma luz misteriosa e com um semblante
extremamente meigo. Trajava um longo vestido que, de tão branco,
chegava a ferir a vista. Aproximou-se em silêncio e se interpôs entre
a menina e a cobra. Os olhos de Leonor oscilavam agora entre uma
e outra, preocupada também com a segurança da recém-chegada.
Sem dizer uma única palavra, a mulher apontou o dedo indicador
para o mato, como se ordenasse que a cascavel se retirasse e foi
exatamente o que ela fez. Desarmando o bote, a cobra abandonou a
posição ofensiva e deslizou mato adentro, desaparecendo entre o
capinzal. A mulher sorriu para Leonor e disse mentalmente umas
palavras que ficaram gravadas na memória da menina para sempre:
— Seja forte, minha querida! Não se esqueça do compromisso
assumido. Faça a sua parte, que eu estarei sempre ao seu lado,
ajudando no que for possível.
Foi a primeira vez que Leonor se sentiu familiarmente ligada a
alguém. Ali, com certeza, estava um parente seu, alguém com quem
ela tinha uma afinidade sincera e leal. Coisa que não encontrava
entre os pais e os irmãos, dentro do seu próprio lar.
Aliviada, Leonor tentou dizer umas palavras de gratidão, mas sua
voz estava presa. Queria pedir também àquela mulher que a levasse
dali, que a livrasse do pesado fardo que a sua vida representava.
Mas ela desapareceu misteriosamente, tão logo a cobra se foi.
Pareceu evaporar-se no ar, e sua partida foi tão inesperada quanto
sua aparição.
Leonor nunca comentou aquela situação com ninguém, pois sabia
que a chamariam de mentirosa ou, pior, a considerariam louca.
No entanto, as meigas palavras daquela tão bondosa e misteriosa
mulher nunca mais lhe abandonaram o pensamento.
***
Mas, a pior lembrança que Leonor guardara daquela época, foi a
que fez a sua vida mudar completamente e ocorrera quando ela
contava quatorze anos de idade.
O tal Agnelo era um sujeito mal-encarado, beberrão e abusado. Para
piorar a sua fama, muita gente dizia que ele havia assassinado a
própria esposa, que, anos antes, tinha desaparecido, da noite para o
dia, sem qualquer explicação plausível.
Para justificar o sumiço da mulher, Agnelo dissera que ela o havia
abandonado. Como ninguém tivera curiosidade suficiente para
esclarecer a história, a coisa ficou por isso mesmo. Mas muitos
asseguravam que ele a havia matado e enterrado o corpo em algum
lugar, porque os dois bebiam muito e a cada pileque tomado,
brigavam feio, agredindo-se fisicamente. Mas a mulher,
naturalmente mais fraca, sempre levava a pior, vivendo cheia de
hematomas e escoriações pelo corpo.
Leonor morria de medo daquele homem, pois mal se tornou
mocinha, começou a notar a maneira maldosa com que o sujeito a
olhava. Não que passasse pela cabeça ingênua dela o que
significavam as libidinosas intenções daquele beberrão. Ela nem
imaginava o que representava aquilo, mas tinha medo, devido às
histórias que falavam a respeito dele. Acreditava que ele era mesmo
o assassino da esposa e por isso o temia tanto.
***
E Leonor não conseguiu dizer mais nada, pois sua vista escureceu, a
cabeça rodopiou vertiginosamente e ela caiu ali mesmo.
— Só que, agora, não sei mais o que fazer da vida. Estou vivendo
na estrada, passando fome, correndo perigo...
Leonor não conseguiu conter o pranto e as lágrimas grossas que lhe
afloraram dos olhos abriram duas veredas entre a poeira do rosto.
Odília a encarou com seriedade.
— Não se preocupe mais com isto, está bem? Você me parece ser
uma menina sincera e ajuizada, por isso vai ficar aqui o tempo que
quiser.
Leonor estava ainda chorando, com o rosto enfurnado entre as
mãos. Odília prosseguiu:
— Eu moro praticamente sozinha, sou viúva e meus filhos quase
nunca vêm me visitar. Esta casa é grande e eu preciso mesmo de
uma pessoa sacudida para me ajudar a mantê-la limpa e
organizada. Portanto, se você quiser, pode ficar morando comigo.
A moça não entendeu de imediato as palavras de Odília. Mas
quando se deu conta do convite que acabara de receber, não pôde
acreditar. Era bom demais para ser verdade.
— A senhora está me convidando pra morar aqui? — olhou em
volta. A casa era linda!
— Sobre o quê?
— Ora, que pergunta, Leonor! Sobre esta sua gravidez indesejada.
Afinal, é fruto de uma violência, filho de um monstro e você não
tem a menor obrigação de ter esta criança.
— Tirar?
- Não! Neste caso, não é. Deus não vai se zangar por você se recusar
a conceber o filho de um maníaco.
— Mas... Mas...
— E tem mais. Você vai ficar muito ocupada cuidando de sua cria.
Quem irá fazer o seu serviço? Ou você acha que vai ficar aqui como
hóspede, sem precisar trabalhar!
***
Apesar dos percalços que a vida nômade representava, Leonor
decidiu seguir o seu caminho, renunciando ao conforto que Odília
lhe oferecera. O direito à liberdade de escolha compensava as
dificuldades enfrentadas.
Por isso, ela seguiu em frente, retornando à sua peregrinação. A
única coisa que a incomodava um pouco era a gradativa
protuberância em seu ventre. A barriga ia ficando maior e mais
pesada a cada dia, mas ela não se queixava. Ao contrário, sentia um
indisfarçável orgulho pela sua condição. Estava grávida. Ia dar à luz
o filho do maníaco que a violentara, mas, e daí? Talvez, na sua
ingenuidade de quase menina, nem atinasse bem para o que aquilo
representava, mas não cultivava em si qualquer sentimento de
repulsa ou de mágoa. Aliás, a possibilidade de tomar-se mãe,
incutia em sua alma uma sensação de conforto, uma alegria que ela
não sabia bem de onde vinha. Mas estava convicta de que amava
muito aquela inocente e indefesa criança que germinava em seu
tenro útero.
Todos os seus passos, desde o momento em que tomara a decisão
de fugir da casa dos pais, estavam sendo seguidos bem de perto por
uma atenta e zelosa Loreta que inspirava nela os melhores
pensamentos e a protegia quando necessário, inserindo em sua alma
um renovado alento e a imorredoura esperança de que melhor sorte
a aguardava em algum lugar, e que era preciso estar bem atenta
para não desperdiçá-la, no momento em que esta oportunidade se
apresentasse.
E, como já foi dito, também os inimigos espirituais de Elpídio
estavam atentos, aproveitando-se de todas as oportunidades para
atacarem Leonor com suas negatividades, com seus maus
pensamentos, seus desânimos e suas mágoas.
6
O temido Peçonha
Resposta: São talvez provas que devam sofrer e que elas mesmas escolheram. Ainda
uma vez lançais à conta do destino o que muitas vezes é apenas conseqüência de
vossas próprias faltas. Nos males que vos afligem, tratai de conservar pura a
consciência e já vos sentireis bastante consolados.
Na cidade onde Anselmo vivia era muito comum que os pais, para
colocarem seus filhos na linha, usassem a bizarrice do infeliz como
ameaça.
— Criança que não come legume, fica aleijado feito o Peçonha.
E a criança devorava um prato cheio de abóbora, chuchu ou quiabo.
— Criança que não vai para a cama cedo, sonha com o Peçonha.
Nem raiva ele nutria pelos seus perseguidores. Não os xingava, não
desejava mal a eles, apenas chorava e, mesmo assim, não era um
choro de revolta e nem de autopiedade, era apenas uma maneira de
aliviar a tristeza de sua alma.
A mãe dizia:
— Reze, meu filhinho! Peça para Deus lhe amparar e lhe dar força e
paciência.
7
Revelações do passado
Pergunta: Podemos ter algumas revelações sobre as nossas existências anteriores?
Resposta: Nem sempre. Contudo, muitas pessoas sabem o que foram e o que faziam.
Se lhes fosse permitido dizê-lo abertamente, fariam extraordinárias revelações do
passado.
***
As palavras da velha cigana nunca mais saíram da cabeça de
Anselmo. Mas, se por um lado, não o deixaram, tiveram vida
efêmera na mente de Leonor, como se quisessem deixar claro que o
recado era para ele e não para ela.
— Mesmo que tenha acontecido, meu filho, não se pode dar crédito
a pessoas que vivem numa situação tão irregular. Esqueça isto e
cuide da sua vida.
— Mas, mãe. Por que é que eu fui nascer aleijado deste jeito?
— Porque Deus quis assim.
— Mas por que Ele quis assim?
— Porque tinha que ser.
— Mas por que tinha que ser?
— Eu já lhe disse, meu filho, você nasceu diferente porque Deus
quis assim. Eu não sei lhe explicar direito como estas coisas
funcionam, não tive uma formação religiosa e não conheço a bíblia,
porque não aprendi a ler, mas posso lhe garantir que Deus não é
injusto e que tudo o que nos acontece, seja de bom ou ruim, tem o
seu motivo. Deus não faz ninguém sofrer à toa. Ele é justo e bom,
creia nisto e não deixe a mágoa nem o desânimo tomarem conta do
seu coraçãozinho, está bem?
Anselmo sorria com seu jeitinho tímido e ingênuo, expondo os seus
dentinhos minúsculos, feito caroços de arroz cozido. Abraçava-se
fortemente à mãe.
— Está bem, mamãe! Eu não vou ficar chateado com Deus porque
ele me fez diferente das outras pessoas, não. Eu também sinto que
Ele é bonzinho.
8
Afeição mútua
Pergunta: Desde que tivemos muitas existências, o parentesco remonta às
anteriores?
Resposta: Não poderia ser de outra maneira. A sucessão das existências corpóreas
estabelece entre os Espíritos liames que remontam às existências anteriores: disso
decorrem freqüentemente as causas de simpatia entre vós e alguns Espíritos que vos
parecem estranhos.
L.E. - Questão 204
Xodós os percalços do mundo pareciam ter caído diretamente sobre
a cabeça do pobre Anselmo. Segundo lhe dizia a mãe, ele não tivera
pai nem mesmo para o ato de sua concepção.
— Você foi feito sem pai, meu filho. Lhe fiz sozinha e sozinha lhe
crio, não está bem assim?
A resposta que a mãe lhe dava, era suficiente para mitigar a
limitada curiosidade do menino, mas era também motivo de muita
galhofa entre os seus coleguinhas da escola.
Chamavam-no de "Filho de chocadeira" e pilheriavam com ele
dizendo que, ao deparar-se com a feiúra do filho recém-nascido, o
pai saíra em debandada e que, provavelmente, ainda não havia
parado de correr.
E davam largas gargalhadas sobre a desgraça do aleijadinho.
Não bastasse isto, havia a problemática do seu aleijão para piorar
ainda mais as coisas. Como se fosse pouco o desconforto e as dores
físicas provocadas pela instabilidade anatômica, todos queriam
saber porque sua perna direita era seca e curta; porque seu pé
direito era virado para trás; porque seu braço direito era pequenino
e os dedos de sua minúscula mão pareciam jabuticabas; porque seu
nariz era tão grande e a boca tão pequena...
Neste caso, a maldade alheia ultrapassava todos os limites do
escarninho e os insaciáveis zombeteiros lhe criavam outros
humilhantes apelidos: "Aborto da Natureza", "Mula-manca",
"Geringonça Humana", além da famosa alcunha que o perseguiu
por toda a vida: "Peçonha".
Anselmo procurava encarar com bom humor as pilhérias que suas
desditas inspiravam nos coleguinhas, mas por dentro entristecia-se.
Com o tempo, foi se afastando da escola e, porque Leonor, talvez
pressentindo e entendendo o motivo de sua deserção escolar, não
lhe exigisse coisa diferente, abandonou definitivamente os estudos,
tendo aprendido apenas os rudimentos de alfabetização.
Tornou-se um menino arredio, calado e solitário. Passava os dias
enfiado em seu pequeno mundo, ou seja, no quintal acanhado de
sua casa, soletrando alguns poucos livros que conseguia adquirir e
se divertindo com uns brinquedos improvisados que ele mesmo
confeccionava com pedaços de madeira.
Anselmo e Leonor eram muito apegados e viviam praticamente um
para o outro.
***
A vida de Leonor, tão repleta de sofrimentos, tornara-se menos
triste após o nascimento do menino. Ela sempre rememorava a
época difícil em que havia fugido de casa sem sequer se dar conta
de que estava grávida e se vira entregue à própria sina. Ganhara a
estrada, passara fome, frio e sofrera muitas humilhações. Mas
estava decidida a não recuar.
Lembrava-se também do episódio na casa de Odília, mas essas
lembranças não lhe inspiravam revolta ou tristeza. Eram coisas do
passado, estavam superadas e serviam apenas como aprendizado.
Leonor havia chegado àquela cidade, no dia exato do nascimento de
Anselmo. Acolhida com urgência no hospital público, após entrar
em trabalho de parto em plena rua, evitou dar informações que
pudessem conduzi-la de volta ao inóspito seio familiar. Quanto à
sua idade, alegou ser bem mais velha e isto não foi contestado, já
que sua aparência, tão desgastada pela rudeza da vida nômade,
denotava realmente uma idade bem superior à que de fato possuía.
Pressentindo, às vezes, que uma força invisível a auxiliava, Leonor
via que certas situações, que inicialmente lhe pareciam negativas,
acabavam se revertendo em seu benefício. Ao ver que o filho
nascera com graves deficiências físicas, ela não demonstrara
grandes preocupações, encarando aquilo tudo de maneira muito
natural, como se dentro de si algo já a houvesse alertado de que
seria assim mesmo, como seja estivesse preparada de antemão para
enfrentar aquele momento.
9
Trabalho e dignidade
Pergunta: Não há homens que se encontram impossibilitados de trabalhar no que
quer que seja e cuja existência é inútil?
Resposta: Deus e justo e só condena aquele que voluntariamente tornou inútil a sua
existência, pois esse vive à custa do trabalho dos outros. Ele quer que cada um seja
útil, de acordo com as suas faculdades.
Mas nada do que fizera até então poderia ser comparado à perfeição
das peças espetaculares esculpidas por aquele homem que ali se
encontrava. E, tanto Anselmo observou o escultor, que acabou lhe
conquistando a simpatia.
— De que jeito?
— Posso mesmo?
***
No último dia de trabalho, Anselmo foi para casa todo feliz, com
uns trocados no bolso e uma pequena imagem de Santo Antônio,
que Plínio lhe dera de presente.
Mas, por maiores que fossem os elogios e por mais que insistissem
em pagar além dos baixos preços que ele cobrava, Anselmo não
aceitava um centavo a mais. Se o cliente o mandasse ficar com o
troco, ele imediatamente retrucava:
— Mãezinha?
— Oi, meu filho! — respondeu a enferma com um fio de voz.
— Tenho uma boa notícia — disse ele, esforçando-se para controlar
a emoção. — Comprei todos os seus remédios e bastante comida pra
nós, chega de passar fome nesta casa.
—Ah, meu filho! — suspirou a mulher. — Você andou pedindo?
Anselmo aproximou-se. Olhou-a bem de perto e disse com a voz
trêmula de orgulho.
— Não, mãe! Esta vergonha eu não lhe faria passar. Arrumei
dinheiro com o suor do meu trabalho, mãe. Vendi as minhas
esculturas todas e já estou com um monte de encomendas pra
entregar na semana que vem. Eles gostaram, mãe! Adoraram os
santinhos que o Plínio me ensinou a fazer! A partir de hoje, acabou
a fome e a falta de remédio pra senhora, mãe!
Leonor ficou com os olhos banhados de lágrimas diante da
empolgação do seu rapazinho.
— Oh, meu filho querido! Estou tão orgulhosa de você!
E, sem dizer mais nada, Anselmo a abraçou carinhosamente, e aí foi
a vez de o filho aconchegar a genitora em seu colo e retribuir-lhe a
carícia amorosa que tantas vezes ela lhe ofertara, aliviando-lhe a
tristeza e o sofrimento.
10
Missão cumprida
Pergunta: A perda dos entes que nos são caros não nos causa dor tanto mais
legítima quanto é irreparávelé independente da nossa vontade?
Resposta: Essa causa de sofrimento atinge tanto o rico quanto o pobre: representa
uma prova, ou expiação, e a lei é comum para todos. Mas, já é um consolo poderdes
comunicar-vos com os vossos amigos pelos meios que vos estão ao alcance, enquanto
não dispondes de outros meios mais diretos e mais acessíveis aos vossos sentidos.
Para Anselmo não havia dúvida. Teria que sair dali, pegar estrada,
viajar o quanto fosse necessário até encontrar o tal lugar indicado
nos sonhos. Eleja se sentia familiarizado com aquela paisagem.
Tinha certeza de já ter estado naquela região, de ter vivido ali,
muito embora, em toda a sua vida, nunca houvesse saído de sua
cidade natal.
Era uma situação esquisita, inexplicável, mas ao mesmo tempo,
conciliável dentro dos seus confusos pensamentos.
— Mas, mamãe. Eu não vou a lugar algum sem a senhora. Não vou
abandoná-la!
— O quê? A senhora está me dizendo que vai pro céu? Que vai...
Que vai morrer?
— Não, mamãe! Por favor, não faça isto! Não me deixe sozinho!
Como é que eu vou viver sem a senhora? A senhora é a minha única
amiga, o meu único amor, mamãe!
E agarrou-se a Leonor, com o mesmo gesto de desespero com que
um náufrago se agarra à tábua salvadora em meio à tormenta
impiedosa de um mar revolto.
— Não fique triste, meu filho querido! Você vai ficar bem e, na
medida do possível, eu vou cuidar de você. Não vou lhe abandonar,
nunca, eu prometo! Pode ter certeza disto!
— Sim. Claro que não podemos usar deste artifício para cruzarmos
os braços e não ajudarmos ninguém, afinal, a caridade para com os
sofredores é o que de melhor temos a oferecer, mas devemos sem-
pre usar o bom senso e dosarmos as nossas ações, para não
interferirmos nos objetivos predeterminados por nossos irmãos,
desestimulando-os a enfrentarem os obstáculos necessários à sua
elevação.
— Queira Deus que Anselmo consiga levar adiante os seus projetos.
—Ao que tudo indica, levará, sim, minha querida. Fique tranqüila!
***
Logo após o enterro de Leonor, Anselmo apanhou alguns
apetrechos e desapareceu para sempre daquele lugar. Nem se deu
ao trabalho de trancar a casa, afinal, o único bem valioso que havia
nela não mais estava lá. Que os vizinhos ou a prefeitura dessem à
casa e aos parcos móveis ali deixados a destinação que achassem
melhor.
Terceira Parte
A Reparação
11
A benzedeira
Pergunta: Que sentido se deve dar ao qualitativo de feiticeiro?
Resposta: Aqueles a quem chamais feiticeiros são pessoas que, quando de boa-fé, são
dotadas de certas faculdades, como a força magnética ou dupla vista. Como, então,
fazem coisas que não compreendeis, julgai-as dotadas de um poder sobrenatural. Os
vossos sábios não têm passado muitas vezes por feiticeiros aos olhos dos ignorantes?
— Deus lhes pague, à senhora e a este moço! Mas eu não quero dar
trabalho, dona...
— Gertrudes. Meu nome é Gertrudes e não se preocupe com nada.
Apenas relaxe e descanse, que você vai ficar bem.
Enquanto dizia isto, a bondosa senhora acariciava os cabelos
espetados do andarilho, uma carícia que o fez voltar no tempo e
lembrar-se da querida mãezinha. Como estaria ela? Como deveria
ser o tal campo florido que ela disse ter visto, um pouco antes de
morrer? Esses questionamentos nunca abandonaram os
pensamentos de Anselmo desde a morte da mãe. Ele tinha certeza
de que ela continuava cuidando dele e, de certo modo, sabia haver,
no gesto de carinho que Gertrudes lhe proporcionava, uma
invisível, porém perceptível participação de Leonor. De alguma
forma ela estava também ali e ele podia senti-la.
A ingestão de um chá de efeito medicinal e a gostosa carícia de
Gertrudes fizeram-no relaxar e, entre soluços, Anselmo voltou a
dormir.
Gertrudes saiu do galpão por uns instantes e, quando retornou,
tinha nas mãos um livro de orações. Sentou-se à cabeceira da cama
do enfermo, abriu o livro e fez uma fervorosa prece, pedindo ajuda
a Deus para cuidar daquela pobre criatura.
Ela conhecia bem a causa dos sofrimentos terrenos. Vivera sempre
ao lado do pai com quem aprendera a tratar as enfermidades do
corpo com folhas, raízes e sementes cultivadas no quintal de sua
humilde casinha e, do Espírito, com preces e benzeduras.
— Não foi para mim que você leu durante todos esses anos, sabia?
Ele não acreditava em nada que não pudesse ver, cheirar, apalpar...
Achava que tudo o que foge aos cinco sentidos básicos atinentes à
natureza física do homem é inexistente e ilusório. Armadilha para
pegar pessoas fracas, incautas e desavisadas. Nutria desprezo pelos
padres, pelos pastores, pelos divulgadores do Espiritismo e por
todos aqueles que se intitulam ou que recebem, mesmo sem querer,
o título de mensageiro espiritual.
13
Oportunidade e fracasso
Pergunta: Antes de sua missão com o corpo, a alma compreende melhora lei de
Deus do que após a sua encarnação?
Resposta: Compreende-a de acordo com o grau de perfeição a que tenha chegado e
dela guarda intuição após sua união com o corpo. Mas os maus instintos do homem
fazem freqüentemente que ele esqueça a lei de Deus.
— Minha pobre criança! Não chore e não odeie o seu pai. Mesmo
demonstrando tanta fraqueza diante de seus vícios e de suas
imperfeições, também ele é filho de Deus e merece ser perdoado e
amado como todo mundo. Em vez de refutá-lo, faça diferente, tente
entendê-lo e, se não puder amá-lo como seu genitor, procure amá-lo
e compreendê-lo como a um irmão fragilizado e ignorante, a quem
a luz da razão ainda não alcançou, mas que alcançará um dia, por
mais tempo que demore.
***
E isto era mesmo real, afinal, menos de duas décadas atrás os dois
se encontravam na pátria espiritual, irmanados pelos ideais de
perdão, caridade e amor, estudando e vivenciando o espiritismo
cristão.
Os anos se passaram e Eugênia, contrariando mais uma vez as
pretensões do pai, que preferia vê-la em casa o dia inteiro,
resguardando-se para um casamento financeiramente promissor,
tornou-se uma dedicada professora primária, muito amada por seus
alunos. Passou a lecionar numa escola municipal, freqüentada,
principalmente, pelos filhos das famílias mais carentes.
14
Mal-estar
Pergunta: Por que o Espírito encarnado perde a lembrança do seu passado?
Resposta: O homem não pode nem deve saber tudo. Deus assim o querem sua
sabedoria. Sem o véu que lhe oculta certas coisas, o homem fícaria ofuscado, como
quem passa sem transição da obscuridade à luz. Pelo esquecimento do passado ele
émais senhor de si.
L.E. - Questão 392
— Claro! Acho que uma visita fará bem a ele. Certamente Anselmo
vai gostar de conhecer o rapaz que o socorreu naquela manhã.
Aliás, sua presença veio bem a calhar, pois você poderá ajudá-lo a
tomar um banho e a fazer uma higiene pessoal mais adequada.
— Ajudarei com muito prazer. Também estou com vontade de
conhecê-lo — comentou Carlos. — Acredita, Eugênia, que a
recepcionista do hospital não quis atender o seu Anselmo, só por se
tratar de um andarilho? Ela inventou mil desculpas, alegou falta de
vagas, disse que o médico havia viajado e que a farmácia estava
completamente vazia. Quando percebi a má vontade dela e de mais
alguns funcionários que se encontravam na recepção, achei melhor
não insistir, porque, mesmo se o aceitassem, certamente ele seria
muito maltratado lá. Por isso, tomei a decisão de trazê-lo para a casa
da dona Gertrudes.
***
Logo depois, os três entraram no galpão, onde Anselmo se achava
acamado.
Anselmo olhou para o casal que sorria para ele e foi acometido de
um estranho mal-estar.
— Nós, por acaso, já nos conhecemos? — perguntou com a voz
meio trêmula.
— Provavelmente, não. O senhor já esteve aqui antes? — respondeu
Carlos com outra pergunta.
— Não. Nunca!
— Vai ser bom — disse Gertrudes. — Ele anda muito triste e calado.
Quem sabe você não o alegra um pouco?
15
Conhecendo o Evangelho
Pergunta: Deus facultou a todos os homens os meios de conhecerem sua lei?
Resposta: Todos podem conhecê-la, mas nem todos a compreendem. Os homens de
bem e os que desejam pesquisá-la são os que melhor a compreendem. Todos,
entretanto, a compreenderão um dia, pois e preciso que o progresso se realize.
A verdadeira propriedade:
— Compreenderam?
— E você, entendeu?
E Gertrudes, com seu jeito carinhoso e brando de falar, fez uma bela
explanação sobre o tema. Suas palavras caíram como gotas de luz
no limitado entendimento de Anselmo. Projetou réstias de
luminosidade em sua obscura inquietação interior.
A medida que ela falava, ele parecia absorver cada palavra, não
somente com os ouvidos, mas com todo o seu corpo e com toda a
sua alma. Interessou-se muito por aquele novo aprendizado e fez
muitas perguntas à benzedeira. Queria saber sobre reencarnação,
vida além-túmulo, lei de causa e efeito, razão dos sofrimentos
atuais...
Um dia, Anselmo notou que Carlos estava triste, o que não era
muito comum e o instigou a contar o que estava acontecendo.
— Por quê?
— Porque o seu Fagundes pode querer forçar mais a situação para a
Eugênia se casar com um homem rico, para que ele se reestruture
financeiramente.
— Mas isto é um absurdo! Não se pode fazer de um filho uma
moeda de troca.
— Como esperar sensatez de uma pessoa que vive enfiada num
mundo tão ilusório quanto o do jogo, seu Anselmo?
— É. Você tem razão, Carlos. Mas o importante é que Eugênia lhe
ama e você a ela. O pai dela não pode fazer nada quanto a isto e este
negócio de forçar filha a se casar, é coisa do passado. Ninguém mais
se presta a isto.
***
***
— Se for possível...
— E claro que sim, meu amigo. Vamos entrar, que eu vou preparar
um desjejum e nós conversamos, está bem?
— E o que aconteceu?
— É mesmo?
— Casarão mal-assombrado?
— Obsessores?
— Sim, suas vítimas. Pessoas a quem ele deve ter prejudicado e que
não o perdoaram.
— O tipo de relação que você tem com aquele lugar, não importa,
Anselmo. O que importa neste momento é seguir as inspirações que
lhe estão sendo transmitidas pelas entidades espirituais.
— Lembrei-me agora, dona Gertrudes, de uma cena que visualizei
no momento em que estava deixando o casarão. Foi uma coisa
bonita, que me deixou muito emocionado.
— Isto é mais difícil dizer, meu amigo. Esta imagem tanto pode
representar o futuro, quanto o passado. Como pode também não ser
nem uma coisa, nem outra. Pode ter sido uma projeção da sua
própria mente para aliviar a tristeza daquele lugar.
— Difícil é acreditar que aquilo não foi real, dona Gertrudes,
porque tudo o que vi e ouvi nesta noite está muito vivo dentro de
mim. A senhora acha que eu devo ir até lá?
— Faça como o seu coração mandar. Eu vou ficar orando por você.
— Ótimo, dona Gertrudes, mas agora, fale mais sobre esta questão
dos sonhos, por favor!
— Está bem, pai! Vamos conversar, mas não precisa ficar tão
nervoso.
— Não estou nervoso, Eugênia, mas você precisa me respeitar
mais. Afinal de contas sou o seu pai e você me deve satisfações,
ouviu?
Eugênia teve vontade de rebater e mil palavras lhe vieram à mente,
mas ela conseguiu se controlar e, elevando ao máximo o
pensamento às boas vibrações espirituais, conteve-se e seguiu
Fagundes até a sala, onde se acomodaram numa ooltrona.
— Está bem, pai. Do que se trata?
— Januário, o agiota?
Aquele miserável mesmo. Ele me pegou num momento de
fraqueza, me fez um empréstimo com uma taxa de juros muito alta.
Assinei as notas promissórias, gastei o dinheiro e não tive como
pagá-lo. Ele me deu um prazo para quitar a dívida, mas o prazo já
está vencendo e eu não estou conseguindo honrar o compromisso.
— Mas, pai, o senhor gastou tanto dinheiro com o quê?
— Isto não vem ao caso, Eugênia. Gastei com o que precisava ser
gasto e pronto.
— O senhor perdeu no jogo, não foi?
— Já disse que isto não interessa! — gritou Fagundes com
impaciência. — O que importa é que esta fazenda foi o único bem
que me restou e também ela vai deixar de ser minha... Ou seja,
nossa. O Januário vai tomá-la de nós. A fazenda foi a garantia que
dei a ele, quando recorri ao empréstimo.
18
Encarando o passado
Pergunta: Qual a origem das faculdades extraordinárias dos indivíduos que, sem
estudo prévio, parecem ter a intuição de certos conhecimentos, como as línguas, o
cálculo, etc?
Resposta: Lembrança do passado; progresso anterior da alma, mas de que ela mesma
não tem consciência. De onde queres que venham tais faculdades? O corpo muda,
mas o Espírito não muda, embora troque de vestimenta.
19
Possuído pelo demônio
Pergunta: Pode o homem libertar-se da influência dos Espíritos que o impelem ao
mal?
Resposta: Sim, visto que tais Espíritos só se apegam aos que os chamam por seus
desejos ou os atraem por seus pensamentos.
Eugênia olhou para o namorado, sem saber o que dizer, mas Carlos
não demonstrou qualquer dúvida quando respondeu ao rapaz.
— A Eugênia não vai para a fazenda hoje. Pode dizer isto ao pai
dela.
— Deixe de mentir para mim, seu berne! Tinha alguém com ela?
***
— Oh, Carlos, estou me sentindo tão mal com esta situação! A única
certeza que tenho é a de que não vou desistir do projeto social e,
mesmo sabendo que não posso contar com a ajuda financeira do
meu pai, ele será realizado um dia.
— Muito bem, Eugênia! E você sabe que pode contar sempre
comigo. Quanto ao nosso futuro, eu já decidi o que fazer. Vou
acelerar a construção da nossa casa e assim que ela estiver pronta,
nós nos casamos, independentemente da aceitação do seu pai, está
bem?
20
Suprema doação
Pergunta: Qual a mais meritória de todas as virtudes?
Resposta: Todas as virtudes têm o seu mérito, porque todas são sinais de progresso
no caminho do bem. Há virtude sempre que há resistência voluntária ao
arrastamento dos maus pendores. Mas a sublimidade da virtude consiste no
sacrifício do interesse pessoal, pelo bem do próximo, sem segundas intenções. A
mais meritória é a que se baseia na mais desinteressada caridade.
Quatro dias após Eugênia haver saído de casa, num domingo logo
cedo, Fagundes parou a montaria próximo ao cercado que
circundava o quintal da casa de Gertrudes. Ele havia determinado a
um empregado que vigiasse os passos da filha e acabou
descobrindo onde ela estava hospedada.
Assim que chegou, começou a gritar a plenos pulmões:
— Eugênia! Eugênia! Eu sei que você está aí. Venha aqui fora
imediatamente.
Sua voz estava arrastada, as palavras saíam emboladas, pois ele
dera de passar todas as noites bebendo, incentivado pelos
obsessores, dentre eles, os comparsas do tempo em que era o chefe
do bando de jagunços do coronel Elpídio. Estes homens en-
contravam-se desencarnados, em completa desarmonia psíquica e
faziam parte do grupo que o incentivava a cometer todos aqueles
desatinos, além de o vampirizarem em seus vícios.
— O quê? Quer dizer que além de acoitar minha filha, esta bruxa,
acoitou também você, seu pé-rapado? Por acaso você e a Eugênia
estão dormindo juntos?
***
Atraídas pelos estampidos, Eugênia e Gertrudes correram para o
quintal e ficaram atônitas diante da cena que presenciaram. Carlos e
Anselmo estavam caídos, ambos encharcados de sangue. Enquanto
Gertrudes ficou parada na porta, pedindo auxílio espiritual,
Eugênia correu para junto deles. Parecia estar revivendo o cenário
de um antigo pesadelo.
— Precisamos tentar.
— Não, por favor! Minha mãezinha querida está aqui. Ela veio me
buscar e eu quero muito ir com ela. Por favor... Me deixem partir
com minha mãezinha! — disse o moribundo com voz apagada,
enquanto borbotões de sangue escorriam-lhe pelos cantos da boca.
Carlos e Eugênia se entreolharam indecisos, mas Gertrudes, que a
tudo acompanhava a distância, pôde ver o que estava acontecendo
na esfera espiritual. Aproximou-se e disse emocionada:
— Ele está certo. A mãe dele realmente está aqui com um grupo de
socorristas espirituais e o desligamento de sua alma já está sendo
providenciado. Vamos fazer uma prece, pedindo bastante amparo
para o nosso querido irmãozinho, que está retornando à verdadeira
pátria dos homens. — E iniciou uma oração.
Carlos e Eugênia, sem conseguirem se conter, choravam abraçados,
vendo que o olhar de Anselmo turvava-se lentamente.
Amparado por Santinha e Loreta, logo após o desligamento de
Anselmo dos restos mortais de seu corpo, ele seguiu em uma maca,
conduzido por um grupo de socorristas espirituais. Seu perispírito
mantinha ainda as características de sua deformidade física, mas de
um modo já bem mais sutil.
21
Captura e suicídio
Pergunta: Os Espíritos se afeiçoam de preferência a certas pessoas?
Resposta: Os bons Espíritos simpatizam com os homens de bem ou passíveis de se
melhorarem. Os Espíritos inferiores, com os homens viciosos ou que possam vir a
sê-lo; daí a sua afeição por causa da semelhança dos sentimentos.
L.E. - questão 484
— Não entendo como é que uma pessoa pode ser tão inconseqüente
— disse Eugênia, referindo-se ao pai. — Por mais que a gente tente
entender, por mais que estude a natureza dos homens e que queira
colocar em prática os mandamentos de amor e perdão, apregoados
por Jesus Cristo, é muito difícil!
***
Cumprindo o que havia prometido, poucos dias depois, o delegado
e seus soldados capturaram Fagundes. Ele estava escondido no
mato, completamente desorientado. Mais parecia um bicho do que
um ser humano, no momento de sua prisão. Abandonado à solidão
dos que vivem à margem da lei, desprovido dos prazeres auferidos
em seus vícios, passou a ter uma visão aterradora de seu futuro.
Afinal, o que o aguardava? Prisão, humilhação, pobreza, vergonha...
Isto poderia ser classificado de vida? Não! Não sob a ótica egoística
e inconseqüente com que encarava a existência humana.
— Queria que ele pagasse pelo crime que cometeu, mas não
esperava que morresse desta forma — disse ela a Gertrudes,
durante o enterro do corpo do genitor.
22
A santa
Pergunta: O pressentimento é sempre um aviso do Espírito protetor?
Resposta: É o conselho íntimo e oculto de um Espírito que vos quer bem. Está
também na intuição da escolha que se fez; é a voz do instinto. O Espírito, antes de
encarnar, tem conhecimento das principais fases de sua existência, do gênero de
provas por que terá de passar; quando estas têm um caráter marcante, conserva
uma espécie de impressão em seu íntimo e essa impressão é a voz do instinto, que se
revela quando o momento se aproxima como um pressentimento.
L.E. - Questão 522
— Mas?
— Ele fez com muito carinho para você, Eugênia. Pena que não teve
a oportunidade de entregar pessoalmente.
— Só isto?
Gertrudes sorriu.
— Graças a Deus!
***
23
A Casa dos Pequeninos
Pergunta: O reinado do bem poderá implantar-se algum dia na Terra?
Resposta: O bem reinará na Terra quando, entre os Espíritos que a vêm habitar, os
bons predominarem, porque, então, farão que aí reinem o amor e a justiça, fonte do
bem e da felicidade. É pelo progresso moral e pela prática das leis de Deus que o
homem atrairá para a Terra os bons Espíritos e dela afastará os maus. Estes, porém,
só a deixarão quando o homem tiver banido daí o orgulho e o egoísmo...
L.E.-Questão 1019
Três anos mais tarde, o velho casarão estava totalmente reformado.
Nele foi construída a casa de assistência à criança, que Eugênia
tanto sonhara. Com a ajuda de Carlos, foram tomadas todas as
medidas necessárias para, dentro dos trâmites jurídicos, serem
registradas legalmente e vendidas as pedras encontradas por
Anselmo.
A pedido de Eugênia, o próprio Carlos se encarregou de, com muito
cuidado, extrair as jóias do manto da santa, substituindo-as, uma a
uma, por outras de menor valor, mas de semelhantes belezas. O
presente de Anselmo tornou-se um objeto de incalculável estima e,
colocado sobre uma antiga cristaleira que pertencera à avó de
Eugênia, passou a ser o ornamento mais valioso dentro da casa da
fazenda.
***
Na pátria espiritual, após um breve período de repouso ao lado de
Santinha, Anselmo, já recomposto, preparou-se para retornar à vida
terrena. Ele sabia que apenas parte de seu resgate havia sido
cumprido e que novas provas o aguardavam. De qualquer modo, o
seu belo exemplo de resignação e de amor ao próximo, arrefeceu
enormemente a ação dos seus inimigos do passado. Todos haviam
acompanhado os sofrimentos e a mudança de comportamento do
ex-coronel durante o período de suas expiações.
Alguns decidiram seguir o seu exemplo, buscando também se
reformarem intimamente, outros pretendiam ainda continuar
espreitando-o, mas já sem a ferocidade e o indomado ódio dos
tempos de outrora.
Mas, para Anselmo, isto agora era o que menos importava. Bem
mais seguro de si, provido das melhores intenções e dos mais
nobres sentimentos em seu coração, pediu a Deus a oportunidade
de retornar logo à esfera material, para dar curso ao resgate que tão
necessário se fazia.
24
Epílogo
Pergunta: O número de existências corporais e limitado ou o Espírito reencarna
perpetuamente?
Resposta: A cada nova existência, o Espírito dá um passo no caminho do progresso.
Quando se libertar de todas as impurezas, não tem mais necessidade de provações
da vida corporal.
— Não! Vão vai dar tempo! — disse ela olhando para Gertrudes,
que compreendeu a sua intenção.
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