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Na Trilha do Passado

A obstinação de um Espírito penitente


Romance psicografado por
Roberto de Carvalho
Pelo Espírito Basílio

Sinopse
Arrependido pelas equivocadas escolhas de sua última experiência
terrena, o Coronel Elpídio, que havia sido um fazendeiro cruel e
ganancioso, implora por uma encarnação de resgate.
Reencarnado no corpo de um aleijado, órfão e miserável,
perseguido pelos inimigos do além, procura ser obstinado o
bastante para cumprir tão importante missão.
Sem paradeiro certo, vive em constantes peregrinações e acaba se
reencontrando com o passado, onde a chance da reabilitação o
aguarda.
Seu drama nos mostra que a vida humana é a seqüência de uma
trilha que, embora nos projete sempre à frente, remete-nos
invariavelmente ao encontro do passado.

Roberto De Carvalho

Nasceu em Liberdade/MG, no dia 2 de março de 1964.


Aos 13 anos, mudou-se com a família para Angra dos Reis/RJ, onde
viveu durante 27 anos. Desde 2004, reside em São Paulo.
E poeta e escritor; tem alguns livros de poesia publicados e é
detentor de várias premiações em concursos literários.
Por suas atividades como escritor, tornou-se membro do Ateneu
Angrense de Letras e Artes (Angra dos Reis) e da Academia
Guanabarino de Letras (Rio de Janeiro).
Roberto escreve desde a infância, mas somente aos 40 anos, após
conhecer o espiritismo, descobriu que é médium de inspiração.
Atualmente, trabalha, estuda e procura divulgar a Doutrina através
de seus livros e de palestras realizadas em Casas Espíritas.
BASILIO é o pseudônimo usado pelo médium para denominar a
fonte espiritual que lhe transmite as mensagens doutrinárias
inseridas em seus romances.

"Para Deus, passado e futuro são o presente."


Allan Kardec

Na Trilha do Passado
A obstinação de um Espírito penitente

Roberto de Carvalho
pelo Espírito Basílio
Sumário
Introdução................................................................

Primeira Parte - O arrependimento .......................


1 Os credores........................................................
2 Amor maternal..................................................
3 Arrependimento ...............................................

Segunda Parte - A expiação..................................


4 Encarnação de Leonor. .....................................
5 Enganosa acolhida.............................................

6 O temido Peçonha ............................................


7 Revelações do passado .....................................
8 Afeição mútua ...................................................
9 Trabalho e dignidade ........................................
10 Missão cumprida .............................................

Terceira Parte - A reparação ................................


11 A benzedeira .................................................
12 Provação e vício ............................................
13 Oportunidade e fracasso ..............................
14 Mal-estar........................................................
15 Conhecendo o Evangelho ............................
16 Voltando a sonhar.........................................
17 Atritos em família .........................................
18 Encarando o passado....................................
19 Possuído pelo demônio ................................
20 Suprema doação ...........................................
21 Captura e suicídio .........................................
22 A santa............................................................
23 A Casa dos Pequeninos.................................

24 Epílogo ...........................................................

Introdução
O romance Na Trilha do Passado trata a questão das penas futuras
com base no esclarecimento de que o arrependimento, a expiação e
a reparação, constituem as três condições necessárias para apagar os
traços de uma falta e suas conseqüências.

O arrependimento suaviza a expiação, abrindo caminho para a


reabilitação, mas só a reparação pode anular o efeito, destruindo-lhe
a causa.

Fica claro, que não basta o arrependimento para que o culpado se


veja livre da falta cometida. É necessário expiar e reparar essa falta
para que tal beneficio seja alcançado.

O arrependimento pode ocorrer em qualquer tempo, mas, quanto


mais tarde, maior sofrimento enfrentará o culpado. A expiação
consiste no sofrimento físico e moral que são conseqüências da
culpa e pode ocorrer na vida atual, na vida espiritual, após a morte,
ou ainda em nova existência corporal; já a reparação consiste em
fazer o bem àqueles a quem se havia feito mal.
Na Trilha do Passado narra um caso típico de infração às leis divinas,
seguida de arrependimento, expiação e reparação. Os personagens
que compõem o romance, mostram o exemplo claro de que a vida
humana é formada por uma única trilha, onde passado, presente e
futuro são interligados por laços inquebrantáveis, constituídos pela
lei de causa e efeito e onde sentimentos e pessoas caminham lado a
lado, plantando e colhendo os frutos (doces ou amargos) auferidos
em suas próprias escolhas.
Sem ter como se desviar desta trilha, o transgressor de ontem se vê
em penitência hoje, e o transgressor de hoje será o penitente de
amanhã, mas todos seguindo rumo à evolução moral, pois "Não há
uma única imperfeição da alma que não importe funestas e inevitáveis
conseqüências, como não há uma só qualidade boa que não seja fonte de um
gozo. "

Bibliografia: O Céu e o Inferno


Cap. 7 - Código penal da vida futura.

Primeira parte
O arrependimento
l

Os credores
Pergunta: Todos os Espíritos experimentam, no mesmo grau e pelo mesmo tempo, a
perturbação que se segue à separação da alma e do corpo?

Resposta: Não; depende da elevação de cada um. Aquele que já está purificado se
reconhece quase imediatamente, porque se libertou da matéria durante a vida do
corpo, ao passo que o homem carnal, aquele cuja consciência não épura, guarda por
muito mais tempo a impressão da matéria.

L.E.* - Questão 164

Naquela noite, a mesma cena voltou a se repetir.


Sem poder se mover, preso à sua cama de inválido, ao coronel
Elpídio só restou acompanhar, com os olhos esbugalhados de
pavor, a aproximação do grupo de desordeiros que sempre chegava
àquela hora.

Os elementos surgiam de todos os cantos do aposento, projetando-


se das sombras, atirando-se sobre a carcaça castigada do velho
fazendeiro, como uma horda de demônios recém-saída das trevas.

Xingavam-no, arrancavam-lhe os cobertores, estapeavam-lhe o


rosto, chicoteavam-lhe as pernas e os braços, e parecia que nunca se
davam por satisfeitos, pois quanto mais agrediam aquele corpo
esquálido e indefeso, mais parecia intensificar o ódio e a indignação

* O Livro dos Espíritos


do bando impiedoso e cruel, formado por dezenas de homens e
mulheres; negros, em sua maioria.

Ao coronel, restava apenas a tentativa de enxotá-los mentalmente.


Não podia nem xingá-los em voz alta, pois há muito tempo havia
perdido completamente a voz.

—Sumam daqui, seus miseráveis! Saiam do meu quarto! Vou


mandar chamar os meus capatazes e vocês vão ver só! Deixem-me
em paz! Deixem-me em paz! — gritava em pensamento, sem
conseguir mover um músculo sequer.

Mas a única coisa que recebia de volta eram os insultos e as


agressões dos seus perseguidores. Apesar de toda aquela agitação
infernal, podia ouvi-los, ainda que mentalmente, o desafiarem com
profundo sarcasmo.

— Coronel, onde está a sua fazenda? Onde está o seu dinheiro?


Onde estão os seus jagunços? E o seu poder? Onde está o seu poder,
coronel?
E aquele pandemônio desenfreado durava horas, até que,
completamente extenuada, a vítima acabava abandonada.
Geralmente, os ataques cessavam quando os primeiros raios de sol
começavam a invadir o aposento, pelas frestas da cumeeira do
telhado.

Mas o coronel sabia que o sossego não duraria muito tempo e esta
expectativa não lhe permitia ter um segundo sequer de paz. Logo a
noite retornaria com a sua terrível escuridão e, juntamente com ela,
os insaciáveis bandoleiros para novamente o castigarem ali, na
solidão miserável do seu próprio aposento.

— Onde estão os meus capatazes que não vêem isto? Por que não
vêm me defender desses malditos? — perguntava-se inutilmente,
como a fazer coro às indagações de seus inimigos.
O coronel Elpídio estava morto, ou melhor, desencarnado, há
quinze anos e não ousava certificar-se desta realidade.
Completamente despreparado para encarar os desdobramentos da
vida pós-morte, negava-se a admitir a sua nova condição.

Passara toda a existência preocupado apenas em adquirir bens


materiais, em acumular fortunas e, pelo menos neste quesito, saíra
vitorioso. Chegara a se tornar um dos homens mais ricos e
respeitados da região onde viveu.

O grande problema foi que, para atingir os seus objetivos, utilizou


muitos meios condenáveis. Para conquistar tudo o que pretendia,
usou e abusou de artimanhas as mais diversas, mas principalmente,
da violência implacável de seus capatazes.

Viveu dessa forma, incapaz de nutrir por alguém um sentimento


mais nobre e, em contrapartida, somente conquistou ódios, rancores
e inimizades.

Não conheceu e não fez a menor questão de conhecer nunca o


sentido de palavras como: caridade, amizade, amor... Ou seja, os
sentimentos que distinguem os homens de bem dos que vivem
trancafiados no cativeiro mental que o egoísmo representa.

Muita gente sofreu nas mãos do coronel Elpídio, principalmente os


infelizes escravos que eram por ele adquiridos. Convencido de que
os negros não possuem alma e que existem apenas para satisfazer as
necessidades dos brancos, o fazendeiro nunca os poupou.

Devido às más atitudes do coronel ao longo de sua vida, muitas de


suas vítimas não conseguiram perdoá-lo. Pouquíssimos, após
livrarem-se do pesado fardo de seus corpos materiais, optavam por
seguir as orientações pacificadoras dos Espíritos benfeitores que os
aguardavam do outro lado e deixá-lo em paz. De um modo geral,
acabavam se tornando ferrenhos obsessores, Espíritos revoltados e
vingativos que continuavam habitando nas imediações da fazenda,
presos aos invisíveis tentáculos do ódio, esperando o momento mais
propício de se vingarem de seu impiedoso algoz.

Dotado de um egoísmo imensurável, toda a fortuna amealhada pelo


coronel sempre fora usada em seu próprio benefício. Nunca lhe
passara pela cabeça a intenção de praticar sequer um ato de
generosidade e, se alguma vez pareceu ajudar alguém, o objetivo
era sempre o de tirar vantagem em outro momento.

Chegou à velhice completamente isolado, sem parentes ou amigos


que o pudessem amparar. Quando o peso da idade e a doença o
subjugaram, destituindo-o de sua opulência física, ele se tornou
incapaz de proteger-se a si próprio e de resguardar os bens
adquiridos ao longo da vida. Assim, sofreu uma verdadeira
pilhagem patrimonial e perdeu praticamente tudo o que possuía de
valor em casa. Relíquias, objetos de ouro e prata, dinheiro, tudo isso
foi, aos poucos, sendo roubado pelos próprios empregados que
simplesmente o odiavam. Os poucos escravos que lhe restavam no
fim da vida também foram fugindo, à medida que o coronel
definhava dolorosamente em sua cama de enfermo.

Ciente desta dura realidade e com medo de ficar sem um níquel


sequer, só lhe restou, numa madrugada em que se encontrava
totalmente abandonado, munir-se do resto de energia que ainda lhe
animava o organismo, arrebanhar o que lhe sobrara de valor, ou
seja, algumas pedras preciosas que até então ninguém houvera
descoberto e, improvisando um esconderijo dentro de uma das
paredes de sua casa, ocultá-las dos saqueadores.

Este foi o último esforço físico por ele empregado, antes que a morte
viesse lhe arrebanhar para as esferas imponderáveis da
espiritualidade.

Foram esses comportamentos equivocados que provocaram no


coronel aquela intensa confusão mental após seu desencarne.
Quinze anos depois de ter seu corpo material destruído por uma
doença cancerosa, ainda não conseguia ordenar os pensamentos e
abrir os olhos para as coisas mais óbvias que o próprio infortúnio se
lhe expunha todas as noites, durante aqueles impiedosos ataques.

Ele sabia que os integrantes do grupelho odioso que o agredia


diariamente eram as suas vítimas do passado. Pessoas que haviam
sofrido imensamente em suas mãos; quer como escravos,
empregados, ou mesmo desafetos de transações financeiras, por ele
ludibriados.

Todos eles estavam desencarnados e o coronel sabia disto, mas não


admitia a sua igual condição. Não aceitava o fato de se encontrar na
mesma dimensão espiritual de seus inimigos, pois se julgava muito
superior a qualquer um deles. No seu confuso e equivocado
pensamento, acreditava que, se houvesse mesmo alguma forma de
sobrevivência após a morte física, seria justo que ele, que sempre
ocupara uma posição de destaque em relação aos demais,
mantivesse essa mesma condição, independentemente da maneira
com que se manifestasse esta nova realidade. O que não podia,
pensava ele, eram manterem-se no mesmo nível hierárquico um
patrão e seus subalternos, um fazendeiro e seus escravos, um
branco e os negros que apenas tiveram em suas existências o
objetivo de servi-lo. Além disso, se era fato que os negros não
possuíam almas, o que então estariam fazendo ali?

Pensando assim, ele achava ser aquele episódio cotidiano uma


irônica maquinação do diabo com o fito de aniquilá-lo, de levá-lo à
loucura e destituí-lo de todos os bens adquiridos ao longo de sua
vida.

Por isso, durante todos aqueles anos, era somente ao diabo que ele
emitia seus pensamentos. Vivia preso àquele ciclo vicioso de más
vibrações, atraindo e trocando ondas fluídicas de ódio com os seus
desafetos. Era ele próprio quem cultivava aquele torvelinho de
horror e atraía para junto de si o bando de desordeiros impiedosos,
alimentados pelo ódio e pela sede de vingança. Esta era a razão pela
qual nunca o deixavam em paz. Era o próprio coronel que, de certo
modo, os convidava e os recepcionava na solidão sombria do seu
solitário aposento.

1
O amor maternal
Pergunta: O amor materno é uma virtude ou um sentimento instintivo, comum
aos homens e aos animais?

Resposta: É uma coisa e outra. A natureza deu à mãe o amor pelos filhos no
interesse da conservação deles. No animal, porém, esse amor é limitado às
necessidades materiais; cessa quando os cuidados se tornam inúteis. No homem,
persiste pela vida inteira e comporta um devotamento e uma abnegação que são
virtudes. Sobrevive mesmo à morte e acompanha o filho além do túmulo. Bem vedes
que há nele outra coisa a mais que no animal.

L.E. - Questão 890

Ali, no mesmo cômodo da casa, onde o coronel se encontrava preso


àquele padecimento diário, mas numa faixa vibratória bem
diferente, invisível aos turvos olhos dele e dos obsessores que o
molestavam, uma criatura iluminada, protegida por uma auréola de
luz intensa, acompanhava com profundo pesar os tristes
acontecimentos que se desenrolavam naquele cenário.
Tratava-se de Santinha, a mãe de Elpídio. Ela havia retornado à
pátria espiritual quando ele era ainda criança, deixando-o órfão aos
quatro anos de idade. Depois, passara a assistir, com profunda
tristeza no seu aflito coração de mãe, a todos os desatinos e equívo-
cos cometidos pelo filho ao longo dos anos. Inúmeras vezes tentara
inspirá-lo e conduzi-lo para o caminho do bem, mas ele quase
nunca estava receptivo para as suas boas sugestões.

Junto de Santinha se encontrava a inseparável amiga Loreta,


Espírito benfeitor, também bastante adiantado em termos de
evolução moral. As duas haviam encarnado juntas várias vezes,
principalmente como irmãs, e uma profunda afinidade as mantinha
unidas há muito tempo.

Loreta lamentava profundamente o sofrimento de Santinha,


partilhava aquele sentimento com a querida amiga, mas tudo o que
podia fazer para amenizá-lo, era oferecer amparo e carinho.

— Mais de quinze anos de perturbação e ele não reage. Continua se


negando a encarar a realidade dos fatos — disse Loreta, suspirando
desanimada.

— E verdade, minha querida! Uma vida inteira de erros e agora a


tenebrosa previsão do porvir o mantém prisioneiro de si mesmo. Ele
terá que se conscientizar de que com este adiamento, está apenas
retardando a oportunidade de sua evolução. Por mais erros que te-
nhamos cometido em nossa jornada terrena, por mais obscura que
tenha sido a trilha do passado, chega uma hora em que a grande luz
da verdade não pode mais ser evitada.

— Tem toda razão, minha querida! Por mais que a realidade nos
fira, temos de enfrentá-la e, apegados ao infinito amor de Deus,
contando com a sua benevolência, nos apresentarmos ao tribunal
divino, nos declararmos culpados e cumprirmos, com resignação, a
penitência auferida em nossas equivocadas escolhas.
— Sim. Porque é somente dessa forma que se dá a evolução
humana e não há como escaparmos dela, pois este é o plano do
Criador para todos nós, seus filhos.

As conversas que as amigas travavam ali, naquele ambiente, tinham


por objetivo alcançar as ondas mentais do coronel Elpídio. Embora
escravizado pelo turbilhão psíquico de sua consciência pesada e
pela implacável perseguição de seus obsessores, ele passava por
alguns momentos de lucidez.

Era exatamente nesses momentos que Loreta e


Santinha mantinham esses diálogos, com a intenção de serem
ouvidas mentalmente por ele. Era uma espécie de doutrinação
indireta, já que, diretamente, não tinham como se dirigirem ao
fazendeiro, cuja mente se mantinha impenetrável feito uma rocha.

O auxílio espiritual, embora esteja sempre disponível, só pode ser


ofertado àqueles que o pedem e que estejam verdadeiramente
preparados para recebê-lo. O problema é que durante aqueles mais
de quinze anos, isto ainda não sucedera ao coronel Elpídio.

— Sabe, Loreta, estou pressentindo que as coisas mudarão em


breve. Elpídio já não está mais suportando a limitação do cativeiro
mental em que se enfiou. Ele está começando a se sentir
incomodado nesta posição — disse Santinha, observando aquele
Espírito meio entorpecido, que começava a se inquietar no casulo
psíquico criado por ele próprio.

— Tomara que você esteja certa, minha amiga. Assim, esta imensa
angústia que tanto lhe incomoda hoje, não terá mais razão de ser.
— Não tenha tanta certeza disso, Loreta.
— Por quê?
—Porque a minha responsabilidade sobre Elpídio ainda é a de uma
mãe para com o seu filho. E quando ele for socorrido e estiver
consciente de sua atual condição, certamente vai precisar de uma
encarnação de resgate o quanto antes e sou eu que vou estar com
ele, amparando-o e auxiliando-o nas suas maiores necessidades.
— Não pode ser outra pessoa?

— Poderia, mas pedi autorização para fazê-lo eu mesma.

— Mas, por quê?

— Porque, enquanto mãe de Elpídio, desencarnei muito cedo. Ele


era ainda muito criança e a convivência dele com a madrasta foi
desastrosa. De certo modo, contribuiu para acentuar nele uma
personalidade já bastante doentia. Os dois eram inimigos de
encarnações passadas e deveriam ter-se reconciliado naquela
experiência.

— Não foi o que aconteceu, não é?

— Infelizmente não conseguiram. Pelo contrário, aproveitando-se


da condição de tutora, a madrasta cobrou com sobra de juros tudo o
que de ruim havia acontecido entre eles. O resultado é que ela
retornou à pátria espiritual tão endividada quanto antes e ele seguiu
vida afora, desforrando sobre os outros as judiações que sofreu na
infância.
— Mas para isto ter acontecido, ele já deveria ter má índole.

— Certamente. A má índole ainda é uma característica muito


presente na natureza humana, mediante a tantas imperfeições que
precisam ser vencidas. Mas há uma grande possibilidade de se
reverter este quadro, ou, ao menos de minimizá-lo, através da
educação do Espírito durante a sua infância física. Cabe aos pais, ou
aos responsáveis pelas crianças, além de serem para elas um bom
exemplo, nutri-las de amor e conscientizá-las sobre o
comportamento que devem assumir ao longo de suas vidas. Educá-
las, orientá-las, mas sempre com base no amor e na compreensão e
não da forma como, infelizmente, a madrasta de Elpídio se
comportou. As agressões só fazem piorar as coisas.

— Você se sente, de alguma forma, culpada pelo que aconteceu a


ele?

— Não. De forma alguma. Graças a Deus, cumpri a missão que me


foi designada e retornei à vida espiritual no tempo estipulado pelo
Plano Maior. A orfandade precoce e o convívio de Elpídio com a
pessoa que me substituiu eram uma provação pela qual ele teria que
passar. A minha decisão de cuidar dele agora, nada tem a ver com
sentimento de culpa ou de remorso, mas simplesmente de amor.
Amo-o como mãe. A concepção de Elpídio e a curta convivência
que tivemos foi uma das experiências mais gratificantes que
experimentei ao longo de minha existência. Continuo amando-o
como a um filho muito querido, a quem faltou discernimento, bom
senso e maturidade, mas enfim, um filho. E por isso que continuo
tão ligada a ele.

— Você sabe que ele terá uma dolorosa encarnação de resgate e que
será uma tarefa muito difícil auxiliá-lo.

— Este é um dos motivos pelos quais pedi para ajudá-lo. Quem é a


pessoa mais indicada para cuidar de um penitente? Não é a mãe?
Não é isto que acontece, por exemplo, nos presídios? Não são, em
sua grande maioria, as mães que sacrificam o repouso dos seus
domingos para se submeterem aos constrangimentos das visitas
penitenciárias? Não são elas que abdicam de si mesmas e levam
suas suadas e minguadas economias para oferecerem um mínimo
de conforto ao filho encarcerado?

— Presos, às vezes, pelos crimes mais hediondos, não é?

— Sim. Mas para a mãe, ou melhor, para a maioria delas, isto é o


que menos importa. Ela não está ali para julgar o crime cometido
pelo filho. Eleja foi julgado, está pagando pelo que fez. A mãe está
ali para ampará-lo, para atenuar o sofrimento infringido àquela
alma penitente. Ela foi designada para cuidar daquele filho de Deus
durante aquela encarnação e sabia, de antemão, o compromisso que
estava assumindo. Esta é a verdadeira missão de uma mãe e é isto
que farei, minha amiga. Não importa o que eu tenha que passar,
farei o que for necessário para ajudar Elpídio a iniciar a reparação
de suas faltas.

— Está bem, Santinha! Já que você tomou esta decisão, saiba que
estarei do seu lado, amparando-a e auxiliando-a sempre que você
precisar. Permanecerei no plano espiritual e guiarei os seus passos,
procurarei sempre lhe inspirar os melhores pensamentos e as
melhores decisões a serem tomadas — disse Loreta, abraçando a
amiga com grande emoção.

— Deus a abençoe, minha irmã!

— Você estará protegida pela lei do esquecimento, Santinha, e não


se lembrará de nossa conversa, mas estarei aqui, zelando por você
— reforçou Loreta acariciando os cabelos dela.

— Eu sei, minha irmã. A lei do esquecimento de nosso passado a


cada nova encarnação é, por assim dizer, uma forma de nos deixar
mais à vontade para melhor exercitarmos o nosso livre-arbítrio. Se
isto não ocorresse, agiríamos como animais conduzidos pelas
rédeas.

— Seríamos manipulados o tempo todo pela nossa própria


lembrança.

— Sim. Não seríamos nós mesmas, mas uma projeção daquilo que
nos propomos ser.

— E esta condição daria margem à hipocrisia e à falsidade


ideológica — atalhou Loreta.
— Exatamente. Deus nos concede a lei do esquecimento para que,
com mais liberdade de ação, possamos ser uma cópia fiel de nós
mesmos. Assim, cada degrau galgado na escala da evolução, será
verdadeiro, pois partiu de nossa própria iniciativa e não da
obrigatoriedade advinda da lembrança de um compromisso
assumido no passado.

— De qualquer modo, minha irmã, pode contar comigo. Estarei lhe


ajudando em tudo o que for possível.

— Eu tenho certeza disso, Loreta. Tenho pedido muito a Deus que


me ampare e proteja, porque eu tenho consciência de todas as
dificuldades que me aguardam nesta missão, mas, em nome desse
imenso amor que nutro em meu coração, não posso e não pretendo
falhar.

E as duas permaneceram abraçadas, alicerçadas nos pilares do mais


genuíno sentimento que o homem pode desenvolver em si: o amor
fraternal.

3
Arrependimento
Pergunta: Qual a conseqüência do arrependimento no estado espiritual?
Resposta: O desejo de uma nova encarnação para se purificar. O Espírito
compreende as imperfeições que o impedem de ser feliz e por isso aspira a uma nova
existência em que possa expiar suas faltas.

L.E. - Questão 991


As previsões de Santinha estavam corretas. Após aquela noite, não
demorou muito para que o coronel Elpídio retomasse a consciência
e percebesse a sua caótica situação. Durante mais um ataque dos
implacáveis obsessores, o velho fazendeiro, num lampejo de
raciocínio lógico, deixou, finalmente, de imputar ao diabo a sua
desventura.

Incentivado pela sugestão de sua benfeitora, lembrou-se de Deus e,


mesmo julgando-se imerecedor de qualquer auxílio, clamou
desesperadamente:

— Ajude-me, oh, Deus de misericórdia! Não me deixe mais sofrer


nas mãos dessas pessoas. Estou arrependido das maldades que fiz e
peço perdão por tudo. Ajude-me, por favor! Acode este Teu filho in-
grato e desgraçado! Este verme que não é digno nem de pronunciar
o Teu nome! Não agüento mais tanto sofrimento! Quero responder
pelas minhas faltas. Ajude! Por favor, ajude!
Mas ainda levou um bom tempo para que o socorro fosse efetivado.
Os primeiros resquícios de consciência haviam surgido no coronel,
mas o sentimento de remorso ainda trazia arraigado em si um
potente manancial negativo que precisava ser suplantado pelo
equilíbrio emocional. Essa negatividade, gerada pelo próprio
pensamento dele, refletia-se na forma de barreiras psíquicas que
envolviam o seu pe-rispírito e o isolava da intervenção externa, não
permitindo que chegassem até ele as projeções benéficas dos
Espíritos socorristas.
Antes de qualquer ação mais concreta, fazia-se necessário o
procedimento de uma limpeza espiritual. E isto, embora contasse
com o auxílio dos benfeitores, deveria ocorrer de dentro para fora,
ou seja, a partir da consciência do próprio socorrido.
Entretanto, após o primeiro passo dado pelo coronel em direção à
luz, foi como se suas janelas mentais tivessem sido descortinadas
para uma maior compreensão. Santinha conseguia, por fim, filtrar
seu pensamento através daquele tênue véu que se abria lentamente,
adentrar o sombrio interior do filho e ali projetar flashes de lucidez
e discernimento.
Deste modo, ele foi, pouco a pouco, inteirando-se de sua lamentável
situação. Reviveu, no decorrer do tempo, todo o cenário de sua
última encarnação e reconheceu-se tremendamente faltoso.
Implorou a Deus uma oportunidade para reparar tanto erro
cometido. Pediu perdão às suas vítimas e chegou a ser perdoado
por algumas delas menos vorazes de justiça ou já enfadadas de
persegui-lo.
Outras, entretanto, mais persistentes em seus infaustos propósitos,
não se sensibilizaram com a súplica de seu antigo algoz e
mantiveram firme a intenção de se vingarem dele.
Dentre os que o haviam perdoado encontravam-se Vicente e
Lurdes. Embora tivessem sido, talvez, as pessoas mais prejudicadas
pelo coronel Elpídio, estes dois nunca o perseguiram.
Agora, assistiam, sensibilizados e tomados mesmo de profunda
piedade, ao sofrimento do homem que os havia aniquilado na
encarnação anterior, destruído os seus sonhos, ferindo-os
terrivelmente.
***
Vicente e Lurdes estavam recém-casados quando sofreram as
conseqüências da maldade do fazendeiro. Grileiro contumaz,
Elpídio tentou invadir as terras que o casal acabara de adquirir e
onde pretendia criar sua tão sonhada prole. O sítio localizava-se
numa das divisas da fazenda de Elpídio e fora vendido por um
baixo preço, justamente por causa da constante ameaça de invasão.
Nessa ocasião, o coronel Elpídio já era um homem temido devido à
sua insaciável ambição e às atitudes violentas de seus jagunços.
Ninguém que o conhecesse ousava enfrentá-lo.
Mas, Vicente, à época, jovem e destemido, não se deixou intimidar.
Respondeu à altura, e enfrentou o inimigo com coragem e
determinação. A reação do moço pegou Elpídio de surpresa. O
fazendeiro chegou mesmo a admirá-lo por aquilo e considerou até a
possibilidade de deixar passar em branco o ocorrido. Mas os
homens rudes que serviam ao coronel não costumavam perder
qualquer oportunidade de se divertirem, e violência para eles era
sempre encarada como um divertido passatempo.
Gregório era o chefe do bando que trabalhava para Elpídio. Homem
de confiança do fazendeiro, perverso e destemperado, logo
convenceu o patrão de que era necessário tomar uma atitude
imediata para que fosse mantido o respeito e o medo que toda a
gente demonstrava por ele.
— Se o senhor não tomar uma providência, corre o risco de ficar
mal-afamado — disse ele ao patrão, durante um carteado entre a
jagunçada.
Gregório era viciado em jogo e não conseguia ficar longe das
apostas.
— Será?
— É claro que sim. Pior ainda, o poder e o respeito que o senhor
conquistou até aqui podem ser transferidos para aquele abusado
que teve o topete de enfrentá-lo, coronel! — completou muito sério,
sem tirar os olhos do baralho.
— E, você pode ter razão.
Elpídio estudou bem a situação e acabou concordando com
Gregório. Decidiu que os capatazes deveriam castigar o jovem
sitiante, aplicando-lhe uma violenta surra. Mas que fosse somente
isto, nada de matá-lo e muito menos de usarem qualquer tipo de
arma contra ele. A agressão deveria ser feita corpo-a-corpo e o
episódio deveria parecer apenas mais uma das tantas brigas que
ocorriam freqüentemente naquela região e não um crime
encomendado. Os homens do coronel teriam a vantagem numérica
de quatro homens contra um.
No entanto, para tentar reforçar a sua condição de líder do grupo e
arrancar dinheiro dos seus comandados, Gregório apostou que seria
capaz de resolver sozinho aquela questão. Desafiou os demais
jagunços para uma aposta, garantindo que seria capaz de derrotar o
destemido sitiante a socos e pontapés. A proposta foi aceita de
imediato e uma boa quantia em dinheiro foi apostada na luta.
Praticamente todos optaram pelo Vicente.
Ficou combinado que ninguém iria interferir na briga. Que
assistiriam a distância e só tomariam uma atitude em caso de
extrema necessidade. Mas Gregório não contava com esta
necessidade, pois era um homem brigão e muito experiente, tinha
certeza de que seria muito fácil dar uma bela surra naquele sujeito
atrevido e presunçoso.
Mas o que ele não esperava era que Vicente fosse tão durão.
Quando aconteceu o confronto, o jagunço ficou atordoado com o
que encontrou pela frente. Vicente era muito forte fisicamente, sabia
se defender muito bem e lutava como um gladiador. Todos os gol-
pes aplicados pelo jagunço eram defendidos pelo rapaz, que, sem
ser atingido, revidava imediatamente, acertando em cheio o
adversário.
Gregório se viu atordoado, pois percebeu que os seus comandados,
assistindo à cena, começavam a achar graça da insólita situação.
Além de estar perdendo dinheiro, estava também perdendo o
respeito de seus subordinados e isto era inadmissível. Mas, quanto
mais se desesperava, mais imprecisos tornavam-se os seus golpes e
mais certeiros e violentos vinham os que o abatiam.
Atônito, diante do poderoso adversário que enfrentava, humilhado
pelos próprios colegas, o jagunço se convenceu de que não havia
outra saída. Sacou da arma e disparou três vezes contra Vicente. Foi
a única forma de subjugá-lo, pois no corpo-a-corpo o rapaz era
mesmo invencível.
Vicente foi assassinado covardemente e Gregório nunca mais
conseguiu ser a mesma pessoa. Mesmo tendo matado o rapaz,
continuou odiando-o, pois a surra que levara e a obrigatoriedade de
tomar aquela atitude extrema, fizeram dele um perdedor. Perdeu,
no primeiro momento, a condição de líder do grupo e de homem de
confiança do coronel. Mais tarde, acabou demitido, por
insubordinação.
Embora os planos do coronel tivessem fugido ao controle e se
complicado um pouco com o assassinato de Vicente, o crime acabou
sendo considerado como conseqüência de briga de desordeiros,
como previamente estabelecido pelo mandante. O assassino,
amparado pela influência política do patrão, nunca foi punido. Mas,
profundamente ferido em seus brios,
Gregório entregou-se aos vícios e terminou os dias demente,
revivendo a cena de sua derrota, odiando o rapaz que o humilhara,
xingando impropérios pelas ruas.

***
Após o assassinato de Vicente, um sofrimento imensurável bateu à
porta de sua jovem esposa. Inconformada com a precoce e
inesperada morte do marido, sentindo-se completamente
desamparada, coube a Lurdes enterrar o cadáver dele e retornar à
casa paterna, dois meses após haver se casado.
Mas estava inconsolável, chorava o tempo todo, não conseguia se
alimentar direito e quase não dormia. Ninguém conseguia tirá-la
daquele constante estado de apatia.
Acabou contraindo uma grave doença e faleceu menos de um ano
após o desencarne do marido.
Morreu de tristeza, diziam as pessoas.
Lurdes retornou à pátria espiritual em estado lastimável.
Completamente desequilibrada, precisou ser muito bem amparada,
passou por uma fase de adaptação, tratamento e esclarecimento.
Somente um bom tempo depois foi que pôde reencontrar-se com o
marido.
Vicente, Espírito bem mais evoluído, a ajudou a compreender a
complexidade da natureza humana e o funcionamento das leis que
regem o Universo e que, às vezes, devido à nossa limitada
compreensão, nos parecem tão incoerentes.
— Há pessoas para as quais a violência ainda é encarada com muita
naturalidade. Todos os seres humanos estão em estágio evolutivo e
o nível deste processo é bastante variável. Infelizmente, alguns ain-
da levarão muito tempo para saírem desse patamar e abraçarem a
lei do amor universal — disse ele.
— Mas não se pode fazer tanta maldade e ficar-se impune —
protestou Lurdes, inconformada.
— Ninguém fica impune das maldades que pratica, querida. A
cobrança vem sempre, através da lei de causa e efeito. Eu tenho
plena convicção de que nossos algozes pagarão pelo que fizeram,
mas não pretendo fazer justiça com as próprias mãos e, since-
ramente, não me sentirei bem quando este momento chegar para
eles. Lamento que alguns homens estejam em estágio tão atrasado e
tudo o que faço é pedir a Deus que os ajude a se elucidarem.
A felicidade proporcionada pelo reencontro do casal, na
espiritualidade, impediu que qualquer sentimento de revolta os
comprometesse. O amor que nutriam entre si era tão intenso e
verdadeiro, que não lhes permitiu cultivar qualquer negatividade
em seus corações. Juntos, perdoaram a maldade de seus algozes e,
acertadamente, deixaram nas mãos de Deus a cobrança da justiça a
ser feita no futuro. Concentraram-se em buscar o crescimento moral,
através do trabalho e dos estudos espirituais, preparando-se para
uma futura encarnação, onde trariam à Terra o seu grandioso exem-
plo de perdão e de indulgência para com o próximo.
Os dois estavam muito animados com um programa social que
pretendiam desenvolver em favor das crianças carentes em sua
próxima experiência encarnatória e andavam muito envolvidos com
este projeto.
***
Após um breve período de restabelecimento na pátria espiritual,
bastante consciente de seus erros e inteirado dos graves percalços
que sua próxima encarnação lhe reservava, Elpídio encontrava-se
impaciente para retornar à vida material. Ele sabia que era a única
maneira de se corrigir. Lamentava profundamente o desperdício da
experiência anterior, quando se deixara quedar pelas más
tendências, e tudo o que queria agora era iniciar a sua regeneração.
O seu reencontro com Santinha deu-se por um curto período de
tempo, já que, tendo assumido o compromisso de auxiliá-lo, ela
precisou reencarnar logo depois que ele retornou à pátria espiritual.
Mas a demonstração daquele amor incondicional o sensibilizou
profundamente. Elpídio achava que, por suas equivocadas atitudes,
não encontraria uma pessoa sequer na espiritualidade que o
quisesse bem. Mas estava enganado, pois Santinha provou-lhe o
contrário, demonstrando-lhe a invencível força de um amor
incondicional: o amor de mãe.
Outra situação que o deixou igualmente comovido, foi o perdão que
obteve de Vicente e Lurdes. Elpídio havia sido tomado de
verdadeiro pavor, quando se viu frente a frente com o casal que ele
havia destruído. Preparou-se para ser agredido, destratado e
humilhado, ajoelhou-se aos pés dos dois, mas teve uma grande
surpresa.
Vicente segurou-o carinhosamente pelos ombros e o ergueu. Depois
o encarou com os olhos translúcidos, no interior dos quais não havia
um resquício sequer de mágoa ou ódio, mas apenas um inequívoco
sentimento de carinho.
— Seja bem-vindo à espiritualidade, meu irmão! — disse-lhe o
rapaz, com um tom de voz calmo e seguro.
— Perdoem-me pelo mal que lhes fiz... — gaguejou Elpídio,
enormemente constrangido, chorando de arrependimento.
— Não precisa pedir perdão por nada — respondeu Lurdes. — Nós
já o perdoamos há muito tempo. Concentre-se agora na preparação
para a sua futura tarefa, procure aprender o máximo possível
durante a sua estada aqui. Reflita muito e tente inserir em seu inte-
rior tudo o que for positivo, pois este será o seu suprimento moral
para a próxima experiência terrena.
E seguiram tranqüilos, abraçados e sorridentes, deixando atrás um
Elpídio imerso em tristeza e remorso. As atitudes de Santinha,
Vicente e Lurdes moldaram nele uma nova mentalidade. Entendia,
enfim, que os homens foram criados por Deus para serem bons,
para se amarem incondicionalmente e se perdoarem infinitamente.
Todos os seus maus passos eram agora motivo de vergonha e de
arrependimento. Por isso, ele estava tão impaciente para retornar à
vida material e reparar os erros que pudessem ser reparados. Mas,
principalmente, para fazer diferente desta vez, angariar novos
valores, servir sempre, perdoar e amar. Estes seriam os genuínos
propósitos de sua nova encarnação.

Segunda Parte
A expiação
4
Encarnação de Leonor
Pergunta: A incerteza em que se acha quanto à eventualidade do seu triunfo nas
provas que vai suportar na vida, é para o Espírito uma causa de ansiedade antes da
sua encarnação?
Resposta: De uma ansiedade muito grande, pois as provas da sua existência o
retardarão ou o farão avançar, conforme as tiver bem ou mal suportado.

L.E. - Questão 341

Santinha reencarnou numa pequena vila de lavradores. Foi batizada


com o nome de Leonor e seus pais, Tónico e Zefa, prestavam
serviços para os fazendeiros locais. O casal morava num pequeno
casebre de tijolo cru, com cobertura de sapé, como todas as demais
residências edificadas naquele vilarejo.
Tónico e Zefa tinham mais quatro filhos e a birra do matuto com a
pequena Leonor começou muito cedo. Na verdade, desde que ela
nascera. Como todo homem machista e inculto daqueles arredores,
Tónico achava que seu primeiro filho tinha de ser varão. Segundo a
concepção daquela gente, isso determinava o grau de
masculinidade do genitor. Se o primeiro filho fosse do sexo
masculino, o pai era elogiado e respeitado por todos, se fosse
feminino, o pobre-diabo se tornava motivo de piadas e provocações.
Como Leonor havia sido a primeira criança a nascer na casa do
Tónico, este praticamente a descartou da condição de cria, julgando-
se mesmo insultado pela ousadia da menina de haver tomado a
dianteira na concepção da prole. Para piorar a situação, os outros
quatro rebentos eram todos do sexo masculino, o que Tónico,
sempre inconformado, considerou como uma imperdoável afronta
do diabo à sua pessoa. Se havia tanto menino esperando para
nascer, por que Leonor havia de ter sido a primeira?
Definitivamente, aquela intrometida não era a sua filha, era a sua
vergonha. Era o motivo de deboche e a razão de seus maiores
aborrecimentos. Uma provocação que o demônio lhe fizera, por
pura pirraça e que agora, vira-e-mexe uns abusados vinham lhe
jogar na cara, queixava-se.
Tais absurdos ocorriam principalmente na vendinha do vilarejo,
local onde os homens se reuniam todas as noites para beber
cachaça, jogar cartas e falar da vida alheia. Verdadeiro repasto de
viciados, o lugar era freqüentado por todo tipo de obsessor. Era ali
que, sob o comando de Espíritos inferiores se iniciavam pra-
ticamente todas as desavenças envolvendo os moradores da
localidade o que, geralmente, terminava em pancadarias ou até
mesmo em crimes mais graves.
Uma noite em que os matutos estavam reunidos na vendinha, um
sujeito chamado Agnelo, estando bêbado e dominado por uma
entidade bastante encrenqueira, provocou Tónico, dizendo com sua
voz mole e arrastada:
— Macho, que é macho, faz filho macho de primeira.
Foi o suficiente para que uma incontrolável onda de ódio explodisse
dentro de Tónico, induzindo-o a aplicar uma violenta surra no
desafeto e a expulsá-lo dali debaixo de chicotadas.
Mas Agnelo era tinhoso e traiçoeiro. Antes de ir embora jurou que,
mais dia menos dia, haveria de se vingar do seu desafeto. Cuspiu no
chão a saliva misturada com sangue e se retirou resmungando os
mais desprezíveis impropérios.
Após este bizarro episódio, o desprezo do pai à pequena Leonor
agravou-se ainda mais e provocou nela uma espécie de apatia, já
que sua natureza apaziguada não lhe permitia nutrir qualquer
sentimento de revolta ou mágoa. A mãe, apatetada, nem se dava
conta do que se passava a sua volta. Ocupada tão-somente em
satisfazer todas as vontades do marido mandão e mal-humorado,
quase nem se dirigia à filha. Veladamente, também a acusava pelo
infortúnio do Tônico. Aliás, a rejeição paterna encontrou coro em
todos aqueles corações, e nem os irmãos livravam Leonor da
fatídica exclusão familiar. Ela se sentia como uma estranha dentro
do próprio lar, alguém que não pertencesse àquele mundo.
De fato era isso mesmo que ocorria. "Há duas espécies de famílias:
as famílias por laços espirituais e as famílias por laços corporais",
explicam os Espíritos em O Evangelho segundo o Espiritismo, de Allan
Kardec, no capítulo XIV, item 8. Entre Leonor, seus pais e seus
irmãos, não havia mais do que uma ligação consanguínea, por força
da necessidade de sua reencarnação naquelas circunstâncias. Era
um ninho estranho que a acolhia apenas durante a iniciação do seu
programa reencarnatório. Não existia entre eles qualquer laço
afetivo proveniente de encarnações anteriores, como comumente
ocorre nos laços familiares das reencarnações terrenas. A missão
daquela moça não estava diretamente vinculada àquela família e era
por isso que ficava tão evidente a dissonância existencial entre eles.
Mas é impossível saber-se de tudo isto, estando os Espíritos
encarnados protegidos pela lei do esquecimento. Daí a importância
de se ouvir os conselhos instintivos que os anjos guardiões inserem
aos ouvidos de seus protegidos. Daí a importância das instruções
espirituais que descortinam os olhos materiais às coisas que se
fazem invisíveis; abrem os ouvidos às que se fazem inaudíveis e
permitem a compreensão daquilo que parece ser incompreensível.

***
Da infância miserável e desventurada, Leonor não tinha muitas
lembranças que valessem a pena armazenar no arquivo da
memória. Vivera com as mãozinhas calejadas pelo cabo da enxada
ou da foice. Usara somente as roupas dos irmãos ou da mãe, porque
nunca possuíra as suas próprias vestimentas. Enquanto não tinha
idade ainda de se cuidar sozinha, andara maltrapilha, desleixada,
com sua cabeleira desgrenhada, seu corpo mal-cuidado, sujo, já que
o pai não permitia que Zefa dedicasse a ela qualquer tempo, por
mais exíguo que fosse, para cuidados ou mimos.
Anos depois, suas pernas e braços passaram a viver marcados pelos
vergões roxos das constantes surras de cipó que levava do genitor,
pelos motivos mais pueris.
Inicialmente, ao ser surrada, Leonor se derretia em lágrimas, mas
com o passar do tempo foi se acostumando e deixou de chorar
quando apanhava. Seu silêncio não era bem uma afronta, mas uma
espécie de conforto que ela acolhia dentro de si, acumulando
resistência e ao mesmo tempo resignação pelo que teria de
enfrentar. Afinal, para ela, a vida era daquele modo mesmo e nada
poderia ser feito para mudar tão dura realidade.
Uma das poucas lembranças que habitavam em sua memória,
ocorrera quando Leonor tinha nove anos de idade. Acontecera num
dia em que, após haver levado mais uma surra do pai, buscara
abrigo entre uma moita de capim que ficava nos fundos do quintal.
Estava distraída, assoprando os vergões das pernas e dos braços
para aliviar a dor, quando ouviu um ruído de chocalho e percebeu
que estava sentada bem próxima de uma enorme cascavel. Ficou
paralisada de medo, pois a cobra estava de bote armado, agitando a
ponta da cauda, de onde soava o barulho sinistro. Estava prestes a
atacá-la. Seu coraçãozinho começou a bater em descompasso, seus
músculos se retesaram e seus olhinhos ficaram congelados de
pavor, mirando o réptil ameaçador que também a fitava.
De repente, surgiu, não se sabe de onde, uma senhora de cabelos
grisalhos, iluminada por uma luz misteriosa e com um semblante
extremamente meigo. Trajava um longo vestido que, de tão branco,
chegava a ferir a vista. Aproximou-se em silêncio e se interpôs entre
a menina e a cobra. Os olhos de Leonor oscilavam agora entre uma
e outra, preocupada também com a segurança da recém-chegada.
Sem dizer uma única palavra, a mulher apontou o dedo indicador
para o mato, como se ordenasse que a cascavel se retirasse e foi
exatamente o que ela fez. Desarmando o bote, a cobra abandonou a
posição ofensiva e deslizou mato adentro, desaparecendo entre o
capinzal. A mulher sorriu para Leonor e disse mentalmente umas
palavras que ficaram gravadas na memória da menina para sempre:
— Seja forte, minha querida! Não se esqueça do compromisso
assumido. Faça a sua parte, que eu estarei sempre ao seu lado,
ajudando no que for possível.
Foi a primeira vez que Leonor se sentiu familiarmente ligada a
alguém. Ali, com certeza, estava um parente seu, alguém com quem
ela tinha uma afinidade sincera e leal. Coisa que não encontrava
entre os pais e os irmãos, dentro do seu próprio lar.
Aliviada, Leonor tentou dizer umas palavras de gratidão, mas sua
voz estava presa. Queria pedir também àquela mulher que a levasse
dali, que a livrasse do pesado fardo que a sua vida representava.
Mas ela desapareceu misteriosamente, tão logo a cobra se foi.
Pareceu evaporar-se no ar, e sua partida foi tão inesperada quanto
sua aparição.
Leonor nunca comentou aquela situação com ninguém, pois sabia
que a chamariam de mentirosa ou, pior, a considerariam louca.
No entanto, as meigas palavras daquela tão bondosa e misteriosa
mulher nunca mais lhe abandonaram o pensamento.
***
Mas, a pior lembrança que Leonor guardara daquela época, foi a
que fez a sua vida mudar completamente e ocorrera quando ela
contava quatorze anos de idade.
O tal Agnelo era um sujeito mal-encarado, beberrão e abusado. Para
piorar a sua fama, muita gente dizia que ele havia assassinado a
própria esposa, que, anos antes, tinha desaparecido, da noite para o
dia, sem qualquer explicação plausível.
Para justificar o sumiço da mulher, Agnelo dissera que ela o havia
abandonado. Como ninguém tivera curiosidade suficiente para
esclarecer a história, a coisa ficou por isso mesmo. Mas muitos
asseguravam que ele a havia matado e enterrado o corpo em algum
lugar, porque os dois bebiam muito e a cada pileque tomado,
brigavam feio, agredindo-se fisicamente. Mas a mulher,
naturalmente mais fraca, sempre levava a pior, vivendo cheia de
hematomas e escoriações pelo corpo.
Leonor morria de medo daquele homem, pois mal se tornou
mocinha, começou a notar a maneira maldosa com que o sujeito a
olhava. Não que passasse pela cabeça ingênua dela o que
significavam as libidinosas intenções daquele beberrão. Ela nem
imaginava o que representava aquilo, mas tinha medo, devido às
histórias que falavam a respeito dele. Acreditava que ele era mesmo
o assassino da esposa e por isso o temia tanto.

***

Um dia, quando já estava anoitecendo, Tônico percebeu que a


barrica de água, que ficava na cozinha, estava vazia. A água
utilizada no cotidiano da casa era coletada em baldes, num riacho
que passava a cerca de trezentos metros dali e armazenada
diariamente nesta barrica. O caminho que ligava a casa e o rio era
uma vereda estreita e sinuosa, ladeada por um milharal que, à
época, estava bastante alto. O transporte e armazenamento da água
era uma das muitas tarefas que Leonor era obrigada a fazer durante
o dia, já que o pai imputava sempre a ela, as funções mais
trabalhosas.
Naquele dia, atarantada com outros afazeres, Leonor se esquecera
de recolher a água. Após levar mais uma surra de cipó, por causa do
esquecimento, foi obrigada a guarnecer-se de dois baldes e dirigir-
se, no escuro, até o riacho.
Por não ter medo de quase nada, a incumbência não a preocupou
tanto. Faria a caminhada rapidamente e voltaria vitoriosa,
mostrando ao genitor que o castigo não a intimidara. Afinal, Leonor
era uma mocinha destemida, acostumada aos percalços da vida na
roça e a sobreviver aos maus-tratos do pai.
Mas, naquele dia, o seu pior pesadelo estava programado para
acontecer e nada pôde evitar que ele se concretizasse.
Após encher os baldes de água, ao virar-se para retomar o caminho
de volta para casa, sentiu que braços firmes, surgidos das sombras
da noite, a imobilizavam enquanto uma mão enorme e malcheirosa
procurava tampar-lhe a boca.
Leonor mordeu instintivamente aquela mão que tentava amordaçá-
la e iniciou um grito estridente que não foi muito longe, pois
imediatamente uma pancada na cabeça a fez calar-se.
Uma tontura súbita a fez rodopiar e, antes de cair aos pés do seu
algoz, conseguiu ainda distinguir os olhos sempre vermelhos e
ébrios de Agnelo.
Estava totalmente incauta nas mãos da única ameaça que lhe
provocava terror.
Ao acordar, com o corpo todo dolorido e semidesnuda, Leonor, sem
ter uma noção exata do que se passara, só tinha uma preocupação
na cabeça: recompor-se e levar logo a água para o pai, senão
tomaria outra surra quando chegasse em casa e os vergões da surra
anterior ainda latejavam em sua pele. Nem o direito de chorar pela
agressão sofrida ela se permitiu.
O ataque do maníaco e o desmaio dela devem ter durado pouco
tempo, pois ninguém percebeu qualquer anormalidade quando ela
entrou em casa transportando os dois pesadíssimos baldes
abarrotados de água. Leonor guardou para ela mais aquele segredo.
No entanto, foi o próprio Agnelo que, de cara cheia e porque nunca
se esquecera da humilhante surra que Tônico lhe aplicara no
passado, andou se vangloriando de haver deflorado a filha dele.
Cientificado da situação, o pai de Leonor armou-se de um cipó bem
grosso e foi tirar satisfações com a menina.
Apavorada e extremamente humilhada, Leonor esclareceu a
história:
— Foi aquele maldito que me pegou à força lá no riacho, pai.
Tónico pegou a espingarda de caça e saiu atrás do Agnelo, feito
uma fera. Leonor, embora preocupada, quase chegou a se sentir
bem. Afinal, era a primeira vez na vida que o pai a defendia de
alguma coisa. Mas não era bem assim. Tónico estava preocupado
apenas em defender a sua própria honra e não a da filha, que ele
considerava bastarda e inútil.
Duas horas depois, o matuto retornava para casa acompanhado do
Agnelo. Chamou Leonor e deu a ordem:
— Está tudo resolvido. Este sujeito aceitou lhe acoitar. A partir de
amanhã você passa a morar na casa dele.
— O quê? Eu? Na casa dele?
— A senhora mesma. Eu que bem desconfiei que essa história de
ter sido forçada a se deitar com ele era tudo mentira.
— Não, pai! Ele me pegou à força, sim. Eu não menti para o senhor,
não — gritou a menina, com voz de choro.
— Deixe de conversa fiada, Leonor. O Agnelo me contou tudo.
Vocês marcaram de se encontrar lá no riacho e você só foi lá porque
sabia que ele estava lhe esperando. Aliás, só pode ter sido por isso
que você deixou a barrica vazia naquela noite.
— Não, pai. É mentira dele... Ele estava escondido no mato... Bateu
na minha cabeça...
— Deixe de lorota! Se fosse mentira você tinha me contado na noite
que aconteceu. Por que ficou quietinha esse tempo todo? Hein?
Leonor olhou para o pai e viu nele o seu pior inimigo. Pior, talvez,
do que o próprio Agnelo que a havia atacado e que agora mentia de
um modo tão desavergonhado. Estava claro que não havia como
reverter aquela situação absurda. Mas, definitivamente, não iria dar
ao seu algoz o prazer de violentá-la de novo, muito menos o
permitindo fazer aquilo com a aquiescência do seu próprio pai. Não
viveria ao lado daquele crápula nem por um segundo.
Agnelo, que até então se mantivera calado, ao lado do pretenso
futuro sogro, mirou-a com seus olhos perenemente vermelhos e
cozidos pelo efeito do álcool, sorriu satisfeito, expondo uns cacos de
dentes, escuros e apodrecidos.
— Comece a arrumar suas coisas, meu benzinho, que amanhã bem
cedo eu venho lhe buscar.
Disse essas palavras com a língua mole, cuspiu de lado, despediu-se
de Tônico e foi embora cambaleando, completamente
desequilibrado.
Naquela madrugada, Leonor pulou a janela do quarto e andou
durante cinco horas sem parar. As vezes, com medo de que alguém
pudesse ir ao seu encalço, corria até que as pernas fraquejassem e
uma dorzinha aguda ao lado do umbigo a obrigasse a diminuir a
marcha.
Quando o dia amanheceu, ela estava às margens de uma rodovia.
Ali conseguiu carona num caminhão leiteiro e afastou-se uns
cinqüenta quilômetros da vila.
Dessa forma, seguiu entre caminhadas e caronas. Foi se
distanciando e nunca mais teve notícias de seus parentes. Nunca
mais voltou a pisar naquele lugarejo, onde nascera e crescera em
sofrimento.
5
Enganosa acolhida
Pergunta: O aborto provocado é um crime, seja qual fora época da concepção?
Resposta: Há crime toda vez que transgredis a lei de Deus. Uma mãe, ou qualquer
outra pessoa, cometerá crime sempre que tirara vida de uma criança antes do
nascimento, pois está impedindo uma alma de suportar as provas de que serviria de
instrumento o corpo que estava se formando.

L.E. - Questão 358

Leonor bateu palmas no portão de uma enorme e antiga casa, à


margem da estrada. Estava faminta, sedenta e muito cansada. Fazia
mais de um mês que havia fugido de casa, emagrecera alguns
quilos, suas roupas estavam em farrapos, a poeira cobria todo o seu
corpo.

Já estava desistindo de ser atendida, quando uma mulher


qüinquagenária saiu no alpendre e a olhou com muita curiosidade.

— O que deseja, moça?


— Tudo... Qualquer coisa, minha senhora. Pelo amor de Deus!
Estou com sede, com fome e cansada, me socorre...

E Leonor não conseguiu dizer mais nada, pois sua vista escureceu, a
cabeça rodopiou vertiginosamente e ela caiu ali mesmo.

Quando recobrou os sentidos, estava na varanda da casa, deitada


numa rede.

— Sente-se melhor, agora? — perguntou a mulher, passando em


sua testa um lenço umedecido.
— Sim, senhora! O que aconteceu comigo?
— Você desmaiou lá no portão.
— Desmaiei?
— E, deve ter sido de fraqueza e me deu um trabalho enorme trazê-
la para a varanda e deitá-la na rede. Ainda bem que você está
magrinha e eu pude carregá-la no colo — disse a mulher, cerrando
os punhos, em demonstração de força.
— Ah, meu Deus! Me perdoe!
— Isto não foi nada. Não precisa se desculpar. Como é mesmo o
seu nome?
— Leonor.
— Muito bem, Leonor. O meu nome é Odília. Vamos lá na cozinha
que eu vou lhe dar alguma coisa para comer. Você consegue andar?

— Acho que sim...

Amparada por Odília, Leonor ergueu-se da rede com certa


dificuldade.

— Meu Deus, você está horrível! — Depois de comer, vai me contar


o que está fazendo sozinha neste fim de mundo, ouviu? — disse a
mulher com voz autoritária.
Mais tarde, após ter-se alimentado e bebido quase dois litros de
água, Leonor narrou toda a sua história, para uma incrédula Odília,
que se recusava a acreditar no que ouvia.

— Quer dizer que você foi violentada por um maníaco e o insano


do seu pai ainda queria que você fosse morar com o pilantra? Que
absurdo! Os dois deveriam ser presos.
— Eu precisei fugir.

— Fez muito bem! - aplaudiu Odília.

— Só que, agora, não sei mais o que fazer da vida. Estou vivendo
na estrada, passando fome, correndo perigo...
Leonor não conseguiu conter o pranto e as lágrimas grossas que lhe
afloraram dos olhos abriram duas veredas entre a poeira do rosto.
Odília a encarou com seriedade.
— Não se preocupe mais com isto, está bem? Você me parece ser
uma menina sincera e ajuizada, por isso vai ficar aqui o tempo que
quiser.
Leonor estava ainda chorando, com o rosto enfurnado entre as
mãos. Odília prosseguiu:
— Eu moro praticamente sozinha, sou viúva e meus filhos quase
nunca vêm me visitar. Esta casa é grande e eu preciso mesmo de
uma pessoa sacudida para me ajudar a mantê-la limpa e
organizada. Portanto, se você quiser, pode ficar morando comigo.
A moça não entendeu de imediato as palavras de Odília. Mas
quando se deu conta do convite que acabara de receber, não pôde
acreditar. Era bom demais para ser verdade.
— A senhora está me convidando pra morar aqui? — olhou em
volta. A casa era linda!

— Foi o que acabei de lhe dizer.

— Mas eu não vou incomodar?


Odília a olhou com impaciência, suspirou fundo e disse com certa
rispidez na voz:
— Leonor, você não entendeu nada mesmo. Não estou apenas lhe
fazendo um favor, estou lhe propondo trabalhar. Se tivermos uma
boa convivência, nós duas sairemos ganhando, se não tivermos, eu
vou lamentar, mas você terá de ir embora.
— Oh, dona Odília, eu nem sei como agradecer à senhora.
— Não precisa agradecer. Agora, enxugue ES tas lágrimas e vá
tomar um banho, livre-se desta sujeira toda. Enquanto isso, vou ver
se encontro umas roupas que sirvam em você.
Uma semana depois, Leonor ainda não conseguia acreditar que
estava vivendo aquela realidade. Sua vida havia melhorado
imensamente desde que chegara à casa de Odília. A mulher, apesar
de mandona e temperamental a tratava bem. A casa era confortável
e o trabalho não era tão pesado. Finalmente, possuía as suas
próprias roupas, pois Odília a presenteara com vestidos e calçados.
Tinha o seu próprio quarto, uma cama macia, com cobertores
quentinhos, e um confortável travesseiro de paina. A comida era
farta. Enfim, tudo conspirava a favor.
Mas não demorou muito e as coisas começaram a mudar. Aquela
calmaria toda passou a ser ameaçada por uma grave realidade.
Leonor começou a apresentar uns sintomas de desconforto físico
que logo foram percebidos pela experiente Odília.

Um dia, durante o café da manhã, a mocinha sentiu uns fortes


enjoos, náuseas, e acabou vomitando a refeição. Constrangida,
tentou se justificar.
— Devo ter comido muito, mas é que o café estava tão gostoso!

— Não é nada disso — respondeu Odília, en-carando-a muito séria.

— Não? Então, o que é?

- Você está esperando um filho, Leonor. Isto é sintoma de gravidez.


Eu já estava desconfiada de que você estava prenhe quando chegou
aqui. Não foi à toa que você desmaiou lá no portão, lembra-se?

— Eu? Mas... Então... — gaguejou.

— Está esperando um filho do bandido que a agarrou. Ele


engravidou você, menina.

— Não é possível! Isto não pode ter acontecido — gritou Leonor,


completamente aturdida.
— Calma! Entrar em desespero não vai adiantar nada. Vamos
pensar com bastante calma e procurar uma saída.

— Saída? Mas que saída, dona Odília? Meu Deus do céu... —


começou a chorar.

— Procure se controlar, Leonor. O que aconteceu com você não é


muito natural, mas também não é o fim do mundo. Agora, vamos
ver o que pode ser feito. Vá para o seu quarto descansar um pouco,
depois a gente conversa sobre isto.

Leonor foi para o quarto e chorou copiosamente, mas logo depois se


acalmou. Um amparo invisível, porém eficaz a fez raciocinar com
sensatez. Por mais que quisesse repudiar a idéia de estar grávida,
não o conseguia. Era como se já visualizasse a criança que ali estava
em formação, incauta e inocente. Por pior que fosse o pai e a
maneira como foi gerado, algo em sua consciência dizia-lhe que o
bebê não tinha a menor culpa do que havia ocorrido.
Instintivamente, foi para a frente do espelho, alisou o ventre com as
duas mãos e sentiu uma energia boa provinda de suas entranhas.
Ela não podia ver, mas naquele momento, sua inseparável guardiã
espiritual a envolvia inteiramente com fluidos que a acalmavam e
ao mesmo tempo revigoravam suas forças. Por ser de boa índole e
estar sempre receptiva aos benefícios espirituais, Leonor absorvia
com extrema facilidade o tratamento ministrado, o que explicava
aquela repentina sensação de bem-estar.

Naquele exato instante, passou a amar incondicionalmente o


serzinho que ali estava e tomou a decisão mais importante da sua
vida:
— Custe o que custar, hei de ter este filho — disse para uma Leonor
corajosa e determinada que a fitava do outro lado do espelho.
Não demorou muito e Odília entrou no aposento. Segurou as mãos
de Leonor e sentou-se na cama, fazendo-a sentar-se também.
Encarou-a de frente.

— Acabei de tomar uma decisão.

— Sobre o quê?
— Ora, que pergunta, Leonor! Sobre esta sua gravidez indesejada.
Afinal, é fruto de uma violência, filho de um monstro e você não
tem a menor obrigação de ter esta criança.

— E o que a senhora pretende fazer?

— Conheço uma pessoa que vai tirar este intruso daí.

— Tirar?

— E, tirar. Fazer um aborto.


— Mas, é pecado!

- Não! Neste caso, não é. Deus não vai se zangar por você se recusar
a conceber o filho de um maníaco.

— Mas a criança não tem culpa!

— Esta criança ainda nem existe, minha filha. Por enquanto é só um


feto.
— Será?
— Com toda certeza!
-Ah, dona Odília, eu tenho minhas dúvidas.
— E, por acaso, você acha que tem mais conhecimento sobre a vida
do que eu, é?

Além de Loreta, outras entidades espirituais, também interessadas


no desfecho daquela trama, encontravam-se ali no quarto. Eram os
inimigos de Elpídio que não davam trégua a Leonor. Influenciavam
Odília para que ela tentasse convencer a moça a abortar, usando um
argumento completamente equivocado, uma vez que o aborto é
sempre um crime, já que é uma gravíssima transgressão às leis de
Deus.
Segundo O Livro dos Espíritos, na questão 344, a união da alma e do
corpo ocorre desde o momento da concepção. Um laço fluídico faz a
ligação entre o
Espírito e a matéria, no momento em que esta é gerada e este laço
fluídico vai se encurtando à medida que a gravidez avança. Ou seja,
para todo corpo gerado já existe, de antemão, um Espírito
preparado para habitá-lo. O aborto impede a encarnação e,
conseqüentemente retarda a missão destinada àquele Espírito.
Já o argumento de que o aborto seria aceitável por se tratar do filho
de um maníaco, foi outro grande equívoco, pois um crime nunca
pode servir de justificativa para a consecução de outro. Além disso,
também em O Livro dos Espíritos, na questão 207, fica claro que os
pais transmitem aos filhos as semelhanças físicas, mas não as
semelhanças morais, pois se trata de almas diferentes. "O corpo
procede do corpo, mas o Espírito não procede do Espírito. Entre os
descendentes das raças nada mais existe do que consanguinidade".
A resistência de Leonor fez com que sua anfitriã ficasse muito
irritada. Odília encarou a moça com gravidade e passou a falar com
um tom de voz bastante alterado, já que aquela conversa
interessava também aos obsessores que ali se encontravam e eram
eles que a incentivavam a insistir naquele disparate. Se Odília
convencesse Leonor a abortar, seria uma dupla vitória para eles,
pois além de impedir a reencarnação de Elpídio, tornaria Santinha
uma transgressora da lei divina. Era tudo o que eles desejavam que
acontecesse naquele momento.
— Escute, Leonor e preste bem atenção no que vou lhe dizer,
porque eu não vou repetir — continuava ela. — Acolhi você em
minha casa e estou lhe oferecendo muita coisa boa. Você pode ficar
aqui para sempre, desfrutar de tudo o que temos, mas não pre-
cisamos de um fedelho atrapalhando as nossas vidas. Você não sabe
o que é ter um filho. Dá muito trabalho! É choro de madrugada, é
titica pela casa toda, é febre, é cólica... Além disso, quem lhe garante
que esta criança não vai herdar a maldade do pai?

— Mas... Mas...

— E tem mais. Você vai ficar muito ocupada cuidando de sua cria.
Quem irá fazer o seu serviço? Ou você acha que vai ficar aqui como
hóspede, sem precisar trabalhar!

— Mas, dona Odília, eu...

— Chega de conversa, Leonor. A única chance de você continuar


nesta casa, é aceitando abortar esta criança. Portanto, se prepare,
pois amanhã logo cedo vamos providenciar isto. A pessoa que eu
conheço tem muita experiência no assunto. Você não vai sentir
nadinha e o problema logo estará resolvido.

Antes de sair do quarto, deixando Leonor completamente


angustiada, completou:
— A menos que você, sua boba, prefira voltar a comer poeira na
estrada!

Mas Leonor já havia tomado a sua decisão e nada a faria recuar. No


dia seguinte, quando Odília foi acordá-la, a cama estava vazia e não
havia nem vestígios da presença da moça em sua casa.

***
Apesar dos percalços que a vida nômade representava, Leonor
decidiu seguir o seu caminho, renunciando ao conforto que Odília
lhe oferecera. O direito à liberdade de escolha compensava as
dificuldades enfrentadas.
Por isso, ela seguiu em frente, retornando à sua peregrinação. A
única coisa que a incomodava um pouco era a gradativa
protuberância em seu ventre. A barriga ia ficando maior e mais
pesada a cada dia, mas ela não se queixava. Ao contrário, sentia um
indisfarçável orgulho pela sua condição. Estava grávida. Ia dar à luz
o filho do maníaco que a violentara, mas, e daí? Talvez, na sua
ingenuidade de quase menina, nem atinasse bem para o que aquilo
representava, mas não cultivava em si qualquer sentimento de
repulsa ou de mágoa. Aliás, a possibilidade de tomar-se mãe,
incutia em sua alma uma sensação de conforto, uma alegria que ela
não sabia bem de onde vinha. Mas estava convicta de que amava
muito aquela inocente e indefesa criança que germinava em seu
tenro útero.
Todos os seus passos, desde o momento em que tomara a decisão
de fugir da casa dos pais, estavam sendo seguidos bem de perto por
uma atenta e zelosa Loreta que inspirava nela os melhores
pensamentos e a protegia quando necessário, inserindo em sua alma
um renovado alento e a imorredoura esperança de que melhor sorte
a aguardava em algum lugar, e que era preciso estar bem atenta
para não desperdiçá-la, no momento em que esta oportunidade se
apresentasse.
E, como já foi dito, também os inimigos espirituais de Elpídio
estavam atentos, aproveitando-se de todas as oportunidades para
atacarem Leonor com suas negatividades, com seus maus
pensamentos, seus desânimos e suas mágoas.

As investidas dos obsessores haviam funcionado muito bem através


de Agnelo, Tônico, Zefa e até dos irmãos de Leonor. Todos haviam
sido usados para agredi-la, para tentar fazer brotar em seu bondoso
coração o gérmen nocivo da mágoa, para fazê-la desistir de tudo.
Depois, buscaram vencê-la através da indecorosa, mas tentadora
proposta de Odília. Se obtivessem sucesso, o compromisso de
Santinha estaria perdido e a reencarnação de Elpídio seria
inviabilizada, impossibilitando, assim, o início de suas reparações
cármicas.
Mas tais investidas não encontraram guarida naquele Espírito
determinado, elevado e amoroso. No íntimo, Leonor sentia, não o
peso da responsabilidade, mas o prazer de ser útil. A alegria da
superação, a recompensa humilde e edificante de bem-servir.

6
O temido Peçonha

Pergunta: Há pessoas que parecem perseguidas por uma fatalidade,


independentemente da maneira como procedem. A desgraça não estará no seu
destino?

Resposta: São talvez provas que devam sofrer e que elas mesmas escolheram. Ainda
uma vez lançais à conta do destino o que muitas vezes é apenas conseqüência de
vossas próprias faltas. Nos males que vos afligem, tratai de conservar pura a
consciência e já vos sentireis bastante consolados.

L.E. - Questão 852

Anselmo nasceu nos arrabaldes de uma pequena cidade. Era, por


assim dizer, uma criatura estranha. Seu aspecto sombrio e
desajeitado lembrava uma escultura humana que houvesse sido
talhada com imperfeição e desleixo.

Os aleijões da perna direita, vários centímetros menor que a


esquerda e do pé direito, totalmente voltado para trás, exigiam o
apoio de uma possante bengala para manter o equilíbrio do corpo.
Também seu braço direito era defeituoso de nascença. Sua destra,
bem menor que a mão esquerda, ostentava uns dedinhos moles e
minúsculos; pequeninos e esféricos apêndices que lembravam cinco
jabuticabas grudadas num galho defeituoso da árvore.

Seu rosto, bastante deformado, lembrava uma carranca; os olhos


negros, esbugalhados, a testa muito larga, o nariz achatado e
grande, contrastavam com uma boca exageradamente pequena,
onde os dentes, de tão miúdos, pareciam inexistentes, dando a
impressão de que o pobre crescera tão banguela quanto nascera. O
queixo longo e fino, recoberto por uma penugem rala desde a
infância, completava-lhe a excêntrica silhueta.

Sua estranha aparência física causava pavor nas crianças e algumas


pessoas mais supersticiosas se benziam ao passar perto dele,
achando que um ser tão desprovido de graça, deveria ter sido
forjado pelas malignas mãos do demônio, pois julgavam que um
filho de Deus não poderia ter uma aparência tão esquisita.

Inúmeras eram as lendas que se criavam em função da


desconformidade anatômica do pobre homem, que muito cedo foi
rebatizado pela turba zombeteira de "Peçonha".

Na cidade onde Anselmo vivia era muito comum que os pais, para
colocarem seus filhos na linha, usassem a bizarrice do infeliz como
ameaça.
— Criança que não come legume, fica aleijado feito o Peçonha.
E a criança devorava um prato cheio de abóbora, chuchu ou quiabo.

— Criança que não vai para a cama cedo, sonha com o Peçonha.

E os fedelhos recolhiam-se, submissos, mal o sol se punha e


rezavam implorando a Deus que os livrassem de tão terrível
pesadelo.

— Criança que não estuda, vira burro de carga do Peçonha.

E não havia repetição de ano na escola.


Embora a maioria dessas crianças nem conhecesse o tal Peçonha, a
medonha descrição, ampliada em muito pela maldade das línguas
ferinas e pela fértil mentalidade infantil, fazia dele uma criatura
demoníaca e perversa; inimigo número um dos meninos e meninas
que viviam naquele lugar.

Os adultos julgavam necessário que fosse assim, pois quanto mais


medo os pequeninos nutrissem pelo Peçonha, maior seria o poder
de persuasão que a pavorosa imagem do aleijado exerceria sobre
elas.

Por isso, havia a necessidade de se inventar histórias cada vez mais


terríveis, onde o vilão era sempre o coitado do Peçonha; ou mesmo
de atribuir a ele a culpa de todos os infortúnios que ocorressem
naqueles arredores, transformando-o, por vezes, no coisa-ruim em
pessoa.

Se houvesse uma praga numa fazenda e o gado adoecesse, alguém


dizia ter visto o Peçonha fazendo mandinga num recanto da tal
fazenda, ou jurava por todos os santos tê-lo ouvido xingando e
amaldiçoando o fazendeiro prejudicado.

Se uma criança adoecesse, era o Peçonha que havia botado olho


ruim nela.

Se uma pessoa morresse, era o Peçonha que havia pedido a alma


dela.

Se a geada castigasse a pastagem, a culpa era do Peçonha.

Se o sol esturricasse os brotos da plantação, adivinhe de quem era a


culpa!

Assim, a fama do Peçonha espalhou-se feito fumaça em tempo seco.


Mas ele só era temido por quem não o conhecia. As pessoas que o
conheciam de perto, em vez de temê-lo, zombavam muito de sua
aparência estranha, sabendo que não precisavam se preocupar com
uma reação agressiva de sua parte.
Tirando a anomalia física, Anselmo era um ser humano como
qualquer outro; ou melhor, ostentava no coração sentimentos ainda
mais nobres do que muitos daqueles que o julgavam e condenavam,
baseando-se apenas em sua lastimável aparência física.

Ele era incapaz de agredir, mesmo que verbalmente, a quem quer


que fosse. Não emitia maus pensamentos e não desejava mal a
ninguém. Era extremamente sensível, gostava de música, gostava
das pessoas, principalmente das crianças e só não mantinha um
relacionamento mais estreito com elas, porque não lhe era permitido
fazê-lo. Por isso, dedicava todo o seu amor à também amorosa mãe.

Outra coisa que diferenciava Anselmo da maioria das pessoas, era a


maneira como sonhava. Seu sonho não se diversificava, como ocorre
naturalmente, mas era um enredo único e persistente que o visitava
quase todas as noites. Nele o cenário exibido era sempre o mesmo:
uma cidadezinha no alto de uma colina muito verde, com suas
casinhas brancas, donde sobressaíam as duas imponentes torres de
uma igreja muito antiga. Do topo de uma das torres, um sino
enorme, com seu bojo metalizado voltado para o rumo Norte,
alvejado pelos raios solares do alvorecer, rebrilhava, lançando nos
ares umas réstias douradas de luz. Em torno da cidadezinha, as
campinas verdes e o manto azul de um céu translúcido pareciam se
tocar no horizonte, ao longe.

Era este o cenário repetitivo que o convidava, ou melhor, que o


invocava sempre, por meio daqueles sonhos, com uma constância e
uma regularidade irrepreensíveis, para uma visita obrigatória.
Anselmo não sabia bem como isto ocorria, mas a sua intuição lhe
dizia que aquele lugar existia em algum recanto e que o seu sossego
dependia de descobrir onde ficavam aquelas paragens. Ali,
certamente encontraria descanso.
Mas, descanso de quê? De um cansaço que, embora lhe parecesse
inexistente, não o deixava em paz. Era uma sensação desconfortável
e intrigante que lhe cansava por dentro, que bulia na intimidade dos
seus mais recônditos sentimentos.

Seria remorso? Parecia. Mas, remorso de quê? Anselmo nunca fizera


mal a um vivente sequer. Ao contrário, padecia muito com a
discriminação imposta à sua deficiência física. Sofria humilhações,
agressões verbais e físicas de toda espécie e nunca revidava a essas
zombarias.

A única coisa que fizera no passado para abrandar a dor da


humilhação, quando a pouca idade ainda o permitia fazer, fora
procurar o colo materno e, enfurnado na alcova que o vestido de
chita barata oferecia à sua cabecinha confusa e triste, chorar
copiosamente, enquanto os dedos sutis de Leonor lhe afagavam os
cabelos crespos, duros e embaraçados.

Nem raiva ele nutria pelos seus perseguidores. Não os xingava, não
desejava mal a eles, apenas chorava e, mesmo assim, não era um
choro de revolta e nem de autopiedade, era apenas uma maneira de
aliviar a tristeza de sua alma.

De certo modo, sentia-se merecedor de todo o escárnio e de toda a


agressão que lhe dedicavam e, por incrível que parecesse, achava
pouco.

A mãe dizia:

— Reze, meu filhinho! Peça para Deus lhe amparar e lhe dar força e
paciência.

Mas ele não conseguia rezar. Não porque desacreditasse de Deus ou


porque o culpasse pelos seus infortúnios, mas por não se sentir
merecedor da piedade divina. Não rezava porque tinha vergonha
de recorrer à benevolência do Criador, de expor a Ele a sua
fragilidade frente às provações da vida.

Em sua cabeça, bombardeada por um turbilhão de sentimentos


desconexos, de procedências indefinidas, não havia espaço para
tamanho e tão nobre ato de contrição.
Era justamente a certeza da existência de Deus que o reprimia, que
o fazia confranger-se de sua condição. Que o fazia mergulhar no
fosso inóspito daquele remorso cáustico e inquietante.

Com o passar do tempo, a idade avançando em anos, seu semblante


ganhou o aspecto sombrio e triste dos seres que envelhecem em
sofrimento.

A maturidade precoce imprimiu-lhe gravidade à voz e aí se perdeu


de vez a serenidade do antigo mimo. O aconchego do colo materno
distanciou-se, desintegrou-se na poeira do tempo, transformando-se
numa lembrança apagada, distante e inacessível.

7
Revelações do passado
Pergunta: Podemos ter algumas revelações sobre as nossas existências anteriores?
Resposta: Nem sempre. Contudo, muitas pessoas sabem o que foram e o que faziam.
Se lhes fosse permitido dizê-lo abertamente, fariam extraordinárias revelações do
passado.

L.E. - Questão 395


Os repetitivos sonhos de Anselmo tiveram início após um episódio
ocorrido num momento longínquo de sua infância. Era uma
lembrança tão remota, que ele era incapaz de precisar em que época
ocorrera.

Lembrava-se apenas de estar brincando no quintal do casebre onde


vivia com a mãe, na periferia da pequenina cidade natal, quando
umas pessoas que ele considerou estranhas devido às suas roupas
muito coloridas e extravagantes e ao modo espalhafatoso com que
falavam, aproximaram-se de sua casa.

Assustado com a chegada do cortejo, o menino saiu se arrastando


para dentro do pobre casebre, gritando pela mãe, com os olhinhos,
já defeituosos, ainda mais esbugalhados devido ao estado de pânico
daquele momento.

Tratava-se de ciganos nômades que percorriam as cidades


comprando e vendendo bugigangas, principalmente artefatos de
metal, cobre e alumínio. Com o objetivo do comércio, visitavam as
residências, propondo negócios aos moradores.

A imagem mais nítida que ficou gravada na memória de Anselmo


foi quando a mulher mais velha do grupo, uma cigana robusta, de
longas e alvas tranças o encarou com muita seriedade, enquanto
bebia água numa caneca de barro e disse, com sua voz grave e
enigmática, num castelhano embolado.

— Deus o livre de sina tão amargurada, criaturinha infeliz!

Anselmo olhou para a mulher, sem entender a quê ela se referia.


Estava tão apavorado com a presença do grupo de ciganos, que não
conseguia organizar suas idéias e, menos ainda, prestar atenção ao
que lhe diziam.

Mas logo depois, a cigana revelaria maiores detalhes a Leonor, sem


se importar com a presença do menino que começou a observar
mais atentamente o intricado diálogo. De repente, voltou toda a sua
atenção para ela e ficou tentando decifrar o mistério do estranho
palavreado.

— Este menino não nasceu defeituoso à toa — advertiu. — Esta


perna e este braço que hoje estão tortos e secos, e esta feição que
agora é tão deformada já foram fortes e belos em outra ocasião.

Anselmo aguçou ainda mais os ouvidos infantis, enquanto a mulher


prosseguia:

— Mas estes membros foram, também, instrumentos de muita


maldade. Por isso, vieram assim nesta vida. Tudo isso é fruto da
expiação que ele precisa enfrentar para se regenerar perante Deus e
à sua própria consciência.

Mesmo temeroso, o menino aproximou-se da velha cigana. Não


queria perder uma só palavra do que estava sendo revelado naquele
momento:

— Há pessoas que vêm ao mundo só para sofrerem mesmo. Mas


não são coitadinhos não, viu? São Espíritos que se encontram em
penitência por crimes cometidos no passado.

Mesmo ditas numa língua estranha ao pequenino, as palavras


soaram-lhe claras e convincentes e nunca mais lhe abandonaram a
memória.
Anselmo nunca se esqueceu do semblante im¬passível da mãe,
olhando para a velha cigana, com um sorriso abobalhado no canto
da boca. Era como se ela acreditasse, mas não quisesse admitir que
acreditava. Talvez para não impressionar a criança, talvez por amar
demais o seu filho para aceitar que ele fosse possuidor de uma
natureza embrutecida.
Mas a cigana, indiferente aos sentimentos de mãe e filho,
continuava com o seu tétrico e, de certo modo, inconveniente
discurso:
— Ninguém sofre sem merecimento, dona, porque a lei de Deus é
infalível e implacável. Este menino vai sofrer muito, porque causou
muito sofrimento aos outros. Mas, o padecimento dele será
amenizado no dia em que ele se deixar guiar pelos sonhos, for
aonde tem que ir e, lá neste lugar, reparar toda a maldade que
cometeu.

E a mulher prosseguiu falando, entre uma e outra golada ruidosa,


secando com o dorso da mão a água que escorria pelos cantos dos
lábios grossos e exageradamente rubros.

Quando devolveu a caneca, voltou a encarar Anselmo. Depois


suspirou profundamente, agitou todo o corpo num tremelique
agônico e foi-se embora em passos apressados, como se tivesse
muita pressa em sair dali.

Talvez para tranqüilizar o filho, Leonor demonstrou não ter


acreditado na revelação daquela mulher. Apenas se benzeu e disse
baixinho:

— Deus nos livre de toda praga e mau agouro. Amém!

***
As palavras da velha cigana nunca mais saíram da cabeça de
Anselmo. Mas, se por um lado, não o deixaram, tiveram vida
efêmera na mente de Leonor, como se quisessem deixar claro que o
recado era para ele e não para ela.

Nas poucas vezes em que, intrigado com esta ou aquela situação


vexatória, Anselmo recorria à lembrança da genitora para que ela
lhe explicasse a revelação da velha cigana, ela era categórica:
— Não me recordo de nada, meu filho. Tem certeza de que não
andou sonhando essas coisas?
—Não foi sonho não, mãe. Eu era muito pequeno, mas me lembro
bem da cena. Os ciganos chegaram no terreiro, ofereceram umas
bugigangas pra senhora, mas a senhora não comprou nada. Então
essa velha cigana pediu água e, enquanto bebia, ficou olhando pra
mim e comentou essas coisas com a senhora. Eu tenho certeza de
que foi real, mãe.

— Mesmo que tenha acontecido, meu filho, não se pode dar crédito
a pessoas que vivem numa situação tão irregular. Esqueça isto e
cuide da sua vida.

— Mas, mãe. Por que é que eu fui nascer aleijado deste jeito?
— Porque Deus quis assim.
— Mas por que Ele quis assim?
— Porque tinha que ser.
— Mas por que tinha que ser?
— Eu já lhe disse, meu filho, você nasceu diferente porque Deus
quis assim. Eu não sei lhe explicar direito como estas coisas
funcionam, não tive uma formação religiosa e não conheço a bíblia,
porque não aprendi a ler, mas posso lhe garantir que Deus não é
injusto e que tudo o que nos acontece, seja de bom ou ruim, tem o
seu motivo. Deus não faz ninguém sofrer à toa. Ele é justo e bom,
creia nisto e não deixe a mágoa nem o desânimo tomarem conta do
seu coraçãozinho, está bem?
Anselmo sorria com seu jeitinho tímido e ingênuo, expondo os seus
dentinhos minúsculos, feito caroços de arroz cozido. Abraçava-se
fortemente à mãe.

— Está bem, mamãe! Eu não vou ficar chateado com Deus porque
ele me fez diferente das outras pessoas, não. Eu também sinto que
Ele é bonzinho.

E a conversa terminava sempre assim, mas os argumentos tão vagos


e previsíveis de sua mãe não o convenciam inteiramente. Além
disso, a imperecível imagem da velha cigana, e o rumor das suas
palavras nunca se lhe afastaram da memória.
Foi exatamente a partir do dia em que ouviu a enigmática revelação
da cigana, que teve início a projeção do cenário descrito e a imagem
da bucólica cidadezinha, com suas casinhas brancas, sua igreja
antiga, suas campinas verdes, seu céu translúcido...

O fato é que Anselmo absorveu a informação dada pela mulher e


acreditou na maldade existente em sua natureza espiritual. Admitiu
que todos os seus infortúnios estavam diretamente ligados às
conseqüências funestas de suas más atitudes. Por isso, trazia
arraigado em si aquela inevitável sensação de remorso, aquele in-
vencível constrangimento perante a bondade de Deus e o temor que
nutria por sua implacável justiça.

Mas ali estavam os sonhos, para lembrar-lhe do que deveria fazer


para tentar sanar os seus delitos. Os sonhos que, segundo a cigana,
deveriam ser seguidos, pois o conduziriam ao lugar onde ocorreria
a reparação de suas faltas, onde faria jus ao descanso moral e teria
suavizado o fel dos seus dissabores.

8
Afeição mútua
Pergunta: Desde que tivemos muitas existências, o parentesco remonta às
anteriores?

Resposta: Não poderia ser de outra maneira. A sucessão das existências corpóreas
estabelece entre os Espíritos liames que remontam às existências anteriores: disso
decorrem freqüentemente as causas de simpatia entre vós e alguns Espíritos que vos
parecem estranhos.
L.E. - Questão 204
Xodós os percalços do mundo pareciam ter caído diretamente sobre
a cabeça do pobre Anselmo. Segundo lhe dizia a mãe, ele não tivera
pai nem mesmo para o ato de sua concepção.

Quando perguntava pelo genitor, Leonor respondia com má


vontade:

— Você foi feito sem pai, meu filho. Lhe fiz sozinha e sozinha lhe
crio, não está bem assim?
A resposta que a mãe lhe dava, era suficiente para mitigar a
limitada curiosidade do menino, mas era também motivo de muita
galhofa entre os seus coleguinhas da escola.
Chamavam-no de "Filho de chocadeira" e pilheriavam com ele
dizendo que, ao deparar-se com a feiúra do filho recém-nascido, o
pai saíra em debandada e que, provavelmente, ainda não havia
parado de correr.
E davam largas gargalhadas sobre a desgraça do aleijadinho.
Não bastasse isto, havia a problemática do seu aleijão para piorar
ainda mais as coisas. Como se fosse pouco o desconforto e as dores
físicas provocadas pela instabilidade anatômica, todos queriam
saber porque sua perna direita era seca e curta; porque seu pé
direito era virado para trás; porque seu braço direito era pequenino
e os dedos de sua minúscula mão pareciam jabuticabas; porque seu
nariz era tão grande e a boca tão pequena...
Neste caso, a maldade alheia ultrapassava todos os limites do
escarninho e os insaciáveis zombeteiros lhe criavam outros
humilhantes apelidos: "Aborto da Natureza", "Mula-manca",
"Geringonça Humana", além da famosa alcunha que o perseguiu
por toda a vida: "Peçonha".
Anselmo procurava encarar com bom humor as pilhérias que suas
desditas inspiravam nos coleguinhas, mas por dentro entristecia-se.
Com o tempo, foi se afastando da escola e, porque Leonor, talvez
pressentindo e entendendo o motivo de sua deserção escolar, não
lhe exigisse coisa diferente, abandonou definitivamente os estudos,
tendo aprendido apenas os rudimentos de alfabetização.
Tornou-se um menino arredio, calado e solitário. Passava os dias
enfiado em seu pequeno mundo, ou seja, no quintal acanhado de
sua casa, soletrando alguns poucos livros que conseguia adquirir e
se divertindo com uns brinquedos improvisados que ele mesmo
confeccionava com pedaços de madeira.
Anselmo e Leonor eram muito apegados e viviam praticamente um
para o outro.

***
A vida de Leonor, tão repleta de sofrimentos, tornara-se menos
triste após o nascimento do menino. Ela sempre rememorava a
época difícil em que havia fugido de casa sem sequer se dar conta
de que estava grávida e se vira entregue à própria sina. Ganhara a
estrada, passara fome, frio e sofrera muitas humilhações. Mas
estava decidida a não recuar.
Lembrava-se também do episódio na casa de Odília, mas essas
lembranças não lhe inspiravam revolta ou tristeza. Eram coisas do
passado, estavam superadas e serviam apenas como aprendizado.
Leonor havia chegado àquela cidade, no dia exato do nascimento de
Anselmo. Acolhida com urgência no hospital público, após entrar
em trabalho de parto em plena rua, evitou dar informações que
pudessem conduzi-la de volta ao inóspito seio familiar. Quanto à
sua idade, alegou ser bem mais velha e isto não foi contestado, já
que sua aparência, tão desgastada pela rudeza da vida nômade,
denotava realmente uma idade bem superior à que de fato possuía.
Pressentindo, às vezes, que uma força invisível a auxiliava, Leonor
via que certas situações, que inicialmente lhe pareciam negativas,
acabavam se revertendo em seu benefício. Ao ver que o filho
nascera com graves deficiências físicas, ela não demonstrara
grandes preocupações, encarando aquilo tudo de maneira muito
natural, como se dentro de si algo já a houvesse alertado de que
seria assim mesmo, como seja estivesse preparada de antemão para
enfrentar aquele momento.

E a deficiência do menino acabou ajudando-a a conseguir alguns


benefícios junto à prefeitura. Orientada pelas enfermeiras, que se
sensibilizaram muito com a penosa situação e com a inabalável
coragem demonstrada por aquela jovem mãe, Leonor se cadastrou
num projeto de assistência social do município, que amparava os
deficientes físicos e seus familiares.

E foi assim que, num brevíssimo período de tempo, conseguiu que


lhe doassem um pequeno terreno num loteamento popular, na
periferia da cidade. Seu casebre foi construído em um final de
semana, num mutirão social, com material fornecido pela prefeitura
e nada lhe custou.

Muito trabalhadora, a mãe de Anselmo logo percebeu que próximo


de seu casebre passava um riacho de águas exuberantes. Com seus
próprios esforços e a ajuda de uma vizinha, improvisou um
encanamento, utilizando gomos de bambus gigantes. Desviou um
bom lote de água do riacho, conduziu-o para o seu quintal,
construiu uma possante bica, à sombra de um abacateiro e se tornou
uma conceituada lavadeira de roupas, conquistando, em pouco
tempo, uma clientela leal e satisfeita.
Era assim que mãe e filho passavam os dias. Ela, lavando suas
roupas, cantando músicas nostálgicas, com sua voz aguda e afinada.
Anselmo divertindo-se com seus brinquedos improvisados,
deliciando-se com a toada triste e as letras melancólicas das músicas
que Leonor cantava.
Apesar da pobreza e de suas íntimas frustrações, sentiam-se bem.
Sentiam-se protegidos da maldade do mundo, como se o cercadinho
de taquara e o pequenino portão de madeira que os separavam da
rua fossem uma muralha intransponível, que nenhum intruso
pudesse ultrapassar para quebrantar a paz existente naquele lar tão
pobre, porém tão harmonioso. Mãe e filho se sentiam bem quando
estavam juntos e se protegiam mutuamente. Se precisassem sair
para resolver qualquer assunto na rua, como a entrega das trouxas
de roupa lavada, era sempre com pressa que o faziam. Logo
retornavam à segurança e paz de sua aconche¬gante "fortaleza".

9
Trabalho e dignidade
Pergunta: Não há homens que se encontram impossibilitados de trabalhar no que
quer que seja e cuja existência é inútil?
Resposta: Deus e justo e só condena aquele que voluntariamente tornou inútil a sua
existência, pois esse vive à custa do trabalho dos outros. Ele quer que cada um seja
útil, de acordo com as suas faculdades.

L.E. - Questão 680

Anselmo sentia falta dos estudos. Tinha necessidade de aprender as


coisas, era curioso e irrequieto. Mas, se por um lado, a instrução
escolar lhe fora praticamente negada, a inspiração artística, surgida
não se sabe de onde, aflorou de modo espetacular.

Tudo começou num dia em que ele viu, na praça da igreja, um


velho artesão esculpindo pequenas imagens de santos, a partir de
uns tocos de madeira. As ferramentas utilizadas por ele eram alguns
formões, um afinadíssimo canivete com cabo de madrepérola e
algumas folhas de lixa com que dava acabamento às peças.

Anselmo ficou deslumbrado com a perícia do artista. Também tinha


os seus méritos de escultor, pois era ele próprio quem fabricava os
seus brinquedos e depois passara a fabricar também as suas
próprias bengalas. No início, apenas uns pedaços de madeira roliços
e firmes, mas, com o tempo, sentiu vontade de decorá-las e começou
a entalhar na madeira uns arabescos bem desenhados, dos quais se
orgulhava muito.

Mas nada do que fizera até então poderia ser comparado à perfeição
das peças espetaculares esculpidas por aquele homem que ali se
encontrava. E, tanto Anselmo observou o escultor, que acabou lhe
conquistando a simpatia.

Penalizado com o aleijão do rapazinho, que estava há horas apoiado


em sua bengala, observando-o com muito interesse, o artesão, que
se chamava Plínio e que era extremamente calado, abandonou o seu
habitual mutismo e se dirigiu a ele, após dar por terminado um São
Sebastião de quarenta e três centímetros de altura, com flechas e
tudo. Depôs a peça sobre o banco e perguntou:
— Como é seu nome, menino?
— O meu? — gaguejou Anselmo, pego de surpreso pela pergunta
inesperada.

— Não tem mais ninguém aqui além de nós dois.

Então, ele olhou em torno e viu que realmente se encontrava a sós


com o escultor, naquela praça. Estava tão distraído a observar o
trabalho do artista, que nem se dera conta.
— Anselmo, senhor.
— Quantos anos você tem, Anselmo?
— Quatorze.
— Você gosta de escultura?
— Nunca tinha visto fazer...
— Mas, agora que já viu, gosta ou não gosta?
— Gosto, sim senhor.
— Quer me ajudar?
Anselmo olhou para a mãozinha defeituosa, como se quisesse dizer
ao artista: "não vê que sou aleijado?". Mas limitou-se a perguntar:

— De que jeito?

— Jeito se dá, quando vontade há — disse o homem, com um tom


de voz que sugeria sapiência.
E vendo os olhinhos do menino brilharem de encantamento, diante
das peças dispostas sobre o banco da praça, ultimou:

— E aí, vai me ajudar, ou não?

Então, Anselmo sorriu um riso que era misto de incredulidade e


empolgação.

— Posso mesmo?

O escultor entregou-lhe uma folha de lixa bem fina e lhe disse:

— Sente-se aí e comece a lixar as peças. Com bastante cuidado,


hein?!

Anselmo sentou-se e, trêmulo, apanhou uma Nossa Senhora de


Fátima. Prendeu-a no desvão das coxas, firmou-a com os dedinhos
redondos da mão direita e com a mão esquerda começou a alisá-la
delicadamente, acentuando-lhe as formas, embelezando-a ainda
mais. Aos poucos foi se acalmando, perdendo o medo.
— Você leva jeito para o negócio — disse o escultor, procurando
encorajar e descontrair o tímido ajudante.
Anselmo apenas sorriu sem nada responder, pois sua atenção
estava totalmente voltada para as formas delicadas da bela santinha
que, sob a ação da lixa, desprendia um farelinho mimoso e
aromático que a brisa da tarde espalhava pelos ares.
Foi um dos poucos momentos de sua vida em que pôde
experimentar um sentimento de realização. Sentiu orgulho de si
mesmo, sentiu-se capaz, competente e talentoso.
No entalhe da madeira, os contornos da imagem iam se destacando,
se aprimorando, ganhando vida. E Anselmo sorria, sorria de
contentamento, expondo os seus dentinhos minúsculos, enquanto o
sol frouxo da tarde ia tomando uma coloração rósea, tingindo os
carneiros lerdos e lanzudos que pastavam no céu, como se
projetasse um imenso painel colorido sob a tela azul-celeste do
firmamento.

Desejou que a mãe estivesse ali para vê-lo trabalhando. Certamente


ela se orgulharia dele. Por uns segundos fechou os olhos e pôde
sentir os dedos macios de Leonor afagando-lhe os cabelos e ouviu
claramente a sua voz a encorajá-lo:

— Muito bem, meu filho, assim é que se faz!

***

Anselmo passou a tarde toda trabalhando com


Plínio e quando finalmente se dirigiu para casa já estava
anoitecendo.

Leonor estava com o coração apertado, angustiada, esperando pelo


filho. Ele nunca ficava tanto tempo longe de casa.
Quando o viu se aproximando, assobiando uma das canções que ela
própria entoava, sua preocupação foi substituída por uma
prazerosa sensação de alívio. Leonor achou que deveria ralhar com
ele, mas logo mudou de idéia. O menino estava tão feliz, abraçou-a
tão carinhosamente e a beijou com tanta ternura, que ela se limitou
a dizer:
— Que demora, meu filho!
***
Plínio permaneceu na cidade por duas semanas. Era ele um artista
nômade, desses que vivem de pouso em pouso, tendo o céu por
chapéu e o chão por colchão. Mas durante sua estada na cidade,
Anselmo não se desgrudou dele e o aprendizado do menino foi es-
pantoso. A destreza do aleijadinho surpreendeu o escultor que não
pôde deixar de comentar:
— Você tem talento, menino. Parece que já faz isto há muito tempo.
E o coração de Anselmo se encheu de alegria. Passou todo aquele
período trabalhando com o Plínio e observando as técnicas que o
escultor utilizava em sua arte.

No último dia de trabalho, Anselmo foi para casa todo feliz, com
uns trocados no bolso e uma pequena imagem de Santo Antônio,
que Plínio lhe dera de presente.

No dia seguinte, não teve dúvidas. Comprou um canivete, um


formão e lixas. Percorreu a mata em busca de pedaços de madeira e
se pôs a esculpir, procurando aplicar a mesma técnica que observara
ser utilizada pelo seu instrutor.

As primeiras peças esculpidas por Anselmo saíram completamente


irregulares, mais parecendo totens do que imagens. O próprio autor
de tais descalabros chegou a rir de si mesmo, ao ver o resultado
desastroso de seus ensaios.
Mas, aos poucos, sua habilidade foi se desenvolvendo e ele
percebeu que o que o atrapalhava não era o braço torto, nem a mão
diminuta e nem as bolinhas de dedos, mas a sua própria ansiedade.
Então, respirou fundo, concentrou-se e passou a trabalhar com
serenidade. Pronto! As peças começaram a ganhar forma e graça.
Seis meses depois, já possuía um acervo de dezoito imagens muito
bem esculpidas e lapidadas, enfeitando os paupérrimos móveis do
casebre onde vivia com a mãe.
Muito mais do que um passatempo, a escultura em madeira tornou-
se um sagrado ofício na vida de Anselmo. Única atividade, aliás,
que ele exerceu durante toda a sua existência.

Anselmo não sabia, mas quando Plínio apareceu na cidade, já


estava determinado que o tempo de paz e segurança daquele lar,
pouco a pouco chegava ao fim. As tardes bucólicas e tranqüilas,
passadas à sombra do abacateiro, ouvindo as canções comoventes
de sua mãe, enquanto ela lavava roupas, brevemente deixariam de
existir.

Um novo tempo de agitação e sofrimento estava se aproximando e a


dedicação de Anselmo à escultura foi o que amenizou a
tempestividade desta nova fase.
Tudo começou numa manhã em que Leonor não conseguiu sair da
cama. Queixando-se de uma dor insuportável nas costas, pediu ao
filho que chamasse uma vizinha para socorrê-la.

Anselmo saiu sobressaltado, sentindo um enorme nó na garganta,


esforçando-se ao máximo para não explodir em lágrimas. Nunca
vira a mãe doente antes e estava simplesmente apavorado.

Leonor foi levada de ambulância para o hospital, onde ficou


internada por quinze dias, período em que Anselmo se sentiu mais
abandonado do que nunca. Passava as noites insone, largado à
solidão do casebre, rezando para que a mãe retornasse ao lar. Mal o
dia amanhecia, o rapazinho corria para o hospital e lá ficava,
sentado num canto qualquer, chorando baixinho, aguardando
notícias que ninguém lhe trazia.

Nesses quinze dias, Leonor passou por um rigoroso tratamento


ambulatorial e voltou para casa com uma séria recomendação
médica para manter-se em repouso. Uma gravíssima pneumonia
havia minado a resistência de seus pulmões e qualquer esforço
físico poderia matá-la.

Uma tristeza imensa tomou conta daquele humilde lar.


Inicialmente, os vizinhos acorreram e auxiliaram no que puderam,
mas eram pessoas também muito carentes, com pouquíssimos
recursos materiais e, com o passar do tempo, abandonaram mãe e
filho à própria sorte.

Foi por esta ocasião que Anselmo, no auge de sua juventude,


precisou arregaçar as mangas e assumir os compromissos da casa.
Não havia mais os fregueses da lavagem de roupa e há tempos não
entrava um níquel sequer dentro de casa. A despensa estava vazia e,
pior, a mãe precisava de medicamentos para se manter viva.

Anselmo se viu à beira de um precipício, passando e vendo a


genitora passar fome e privações; vendo-a definhar-se dia a dia,
medicando-se a base de chás que apenas amenizavam a
enfermidade, já que não existia dinheiro para os remédios tão
necessários que o médico havia receitado.

O rapaz chegou a pensar em esmolar, mas a idéia logo lhe provocou


repulsa. Não porque lhe faltasse humildade, mas por não se julgar
merecedor da piedade alheia. As antigas palavras da cigana
continuavam latentes em sua memória: "Esta perna e este braço
tortos e secos foram instrumentos de muita maldade no passado".

Ora, como poderia utilizar os instrumentos de sua reparação como


objetos de sobrevivência? Usar o aleijão conquistado à custa de sua
própria perversidade para entregar-se ao ócio e à indolência?
Afinal, Anselmo nunca duvidara das palavras da cigana. Não tinha
conhecimento algum sobre tais assuntos, mas alguma coisa dentro
de si não o permitia duvidar da legitimidade daquela revelação.

E foi numa manhã de domingo que ele tomou a decisão mais


acertada de sua vida. Nessa ocasião, dispunha ele de um grande
acervo de pequenas esculturas que vinha confeccionando desde que
Plínio o ensinara. Encorajado pela urgente providência que o
momento requeria, colocou todas as peças num saco de aniagem e
as levou para a praça da igreja. Ali, as dispôs no chão, sob a sombra
de uma quaresmeira. Sentou-se ao lado delas e ficou aguardando.

Quando os fiéis saíram da igreja, após a missa, e se depararam com


a novidade, foi tão grande o rebuliço em torno do jovem artista que
até o padre correu para ver do que se tratava, achando que fosse
alguma briga.

Anselmo, peito intumescido de felicidade e de orgulho, quase não


conseguia acreditar no que estava acontecendo. Poderia ser aleijado,
esquisito, feio ou o que quisessem dizer a seu respeito, mas era
capaz de produzir uma arte que deixava as pessoas maravilhadas.
Possuía talento e força de vontade. Não precisava esmolar para
sobreviver. Era um artista! Um talentoso escultor!
As pessoas estavam encantadas com as suas obras, principalmente
com os santinhos que tão meticulosamente esculpia.

Mas, por maiores que fossem os elogios e por mais que insistissem
em pagar além dos baixos preços que ele cobrava, Anselmo não
aceitava um centavo a mais. Se o cliente o mandasse ficar com o
troco, ele imediatamente retrucava:

— Então, faça o favor de escolher mais uma escultura.

Em questão de minutos todas as peças foram vendidas e várias


encomendas feitas e até pagas antecipadamente para serem
entregues no domingo seguinte.

Foi a segunda vez que Anselmo experimentou o sabor da vitória em


sua vida.

Logo após comercializar todas as esculturas, dirigiu-se ao armazém,


onde comprou alimentos. Depois foi à farmácia, adquiriu os
medicamentos receitados à mãe e chegou em casa triunfante,
sentindo-se útil e responsável.

Despontara nele, finalmente, o espírito do homem da casa.


Assumira a responsabilidade de se manter e de sustentar a querida
mãezinha que dedicara toda a vida a cuidar dele.
Entrou no quarto de Leonor que estava na penumbra. A mãe gemia
de dor.

— Mãezinha?
— Oi, meu filho! — respondeu a enferma com um fio de voz.
— Tenho uma boa notícia — disse ele, esforçando-se para controlar
a emoção. — Comprei todos os seus remédios e bastante comida pra
nós, chega de passar fome nesta casa.
—Ah, meu filho! — suspirou a mulher. — Você andou pedindo?
Anselmo aproximou-se. Olhou-a bem de perto e disse com a voz
trêmula de orgulho.
— Não, mãe! Esta vergonha eu não lhe faria passar. Arrumei
dinheiro com o suor do meu trabalho, mãe. Vendi as minhas
esculturas todas e já estou com um monte de encomendas pra
entregar na semana que vem. Eles gostaram, mãe! Adoraram os
santinhos que o Plínio me ensinou a fazer! A partir de hoje, acabou
a fome e a falta de remédio pra senhora, mãe!
Leonor ficou com os olhos banhados de lágrimas diante da
empolgação do seu rapazinho.
— Oh, meu filho querido! Estou tão orgulhosa de você!
E, sem dizer mais nada, Anselmo a abraçou carinhosamente, e aí foi
a vez de o filho aconchegar a genitora em seu colo e retribuir-lhe a
carícia amorosa que tantas vezes ela lhe ofertara, aliviando-lhe a
tristeza e o sofrimento.
10
Missão cumprida
Pergunta: A perda dos entes que nos são caros não nos causa dor tanto mais
legítima quanto é irreparávelé independente da nossa vontade?

Resposta: Essa causa de sofrimento atinge tanto o rico quanto o pobre: representa
uma prova, ou expiação, e a lei é comum para todos. Mas, já é um consolo poderdes
comunicar-vos com os vossos amigos pelos meios que vos estão ao alcance, enquanto
não dispondes de outros meios mais diretos e mais acessíveis aos vossos sentidos.

L.E. - Questão 934

Anselmo tomou-se, finalmente, uma pessoa melhor aceita pela


sociedade. Afinal, uma criatura forjada pelo coisa-ruim, não poderia
esculpir imagens de santos com tanta graça e desenvoltura, diziam
alguns. E este pensamento foi tomando corpo e se ampliando, pelo
menos ali, na cidade onde o aleijado vivia. Mas, nem a
popularidade adquirida com a beleza de sua arte, nem o desapego
material evidenciado em seus sentimentos e em suas ações foram
capazes de livrá-lo da perseguição dos escarnecedores.
Anselmo continuou sendo agredido onde quer que estivesse,
principalmente pela molecada, que não o deixava em paz.

Na presença dos adultos, até que se seguravam um pouco, mas, na


ausência destes, o mundo vinha abaixo e o pobre era alvo das mais
abomináveis e cruéis perversidades.

Xingavam-no, imitavam seu jeito torto de andar, insultavam-no


com apelidos desconcertantes, atiravam-lhe bolas de lama e de
estrume, quebravam suas pequenas esculturas, tomavam-lhe a
bengala e jogavam no topo das árvores, e nunca se davam por
satisfeitos, como se nutrissem por ele um ódio inconsciente, porém
indissipável.
Alguém, que tivesse visão mediúnica, enxergaria os Espíritos
desordeiros que insuflavam os moleques a molestarem o aleijado.
Eram os inimigos desencarnados do velho fazendeiro exigindo
vingança a todo custo.

Cada agressão a Anselmo era comemorada com gargalhadas


sinistras. Eram cenas tão horripilantes, que se algum daqueles
garotos pudesse ver ou ouvir, abandonaria completamente o mau
hábito da perseguição ao incauto escultor e correria imediatamente
para o colo de sua mãe.

Naquele momento, crianças ingênuas, mas de índoles perversas,


tornavam-se instrumentos dos obsessores e sua condição de
encarnado era usada para o infame objetivo da agressão daqueles
que, desprovidos de matéria, não podiam concretizá-la por seus
próprios meios.
Anselmo se submetia àquela perseguição, como um cordeiro se
entrega à imolação. Nunca deixou de acreditar na revelação da
velha cigana, por isso não tinha a menor dúvida de que tudo aquilo
era do seu merecimento.

Entretanto, com o passar dos anos, o aleijado foi se cansando


daquele sofrimento constante e aí, passou a encarar com maior
seriedade a segunda parte da revelação: "O padecimento dele será
amenizado no dia em que ele se deixar guiar pelos sonhos, for
aonde tem que ir e, lá neste lugar, reparar toda a maldade que
cometeu".

Para Anselmo não havia dúvida. Teria que sair dali, pegar estrada,
viajar o quanto fosse necessário até encontrar o tal lugar indicado
nos sonhos. Eleja se sentia familiarizado com aquela paisagem.
Tinha certeza de já ter estado naquela região, de ter vivido ali,
muito embora, em toda a sua vida, nunca houvesse saído de sua
cidade natal.
Era uma situação esquisita, inexplicável, mas ao mesmo tempo,
conciliável dentro dos seus confusos pensamentos.

A cigana estava certa, pensava ele. Teria que partir, encontrar


aquele lugar e, uma vez lá, deixar que as coisas se desenrolassem
por si mesmas.

Mas, partir como? A mãe estava doente, acamada, dependia dele


para tudo.

Anselmo começou a pensar num meio de conciliar as coisas.


Precisava partir, mas daria um jeito de levar com ele a genitora.
Para isso, teria que se preparar financeiramente.

Então, durante um bom período, trabalhou diu-turnamente e


esculpiu as peças mais bonitas de sua vida. Vendeu-as para um
comerciante e, munido de uma quantia razoável de dinheiro, expôs
seu plano para
a mãe:

— Mãezinha querida, nós precisamos ir embora daqui. Sinto que


nosso tempo nesta cidade já se esgotou e que compromissos muito
importantes nos aguardam em outro lugar. Eu consegui ajuntar
dinheiro e nós vamos ter condições de viajar com um certo conforto.

Mas, antes que terminasse de falar, Leonor segurou levemente a sua


mão, olhou nos olhos tristes de
Anselmo e sussurrou, tentando inserir à voz a maior naturalidade
possível:

— Não, meu filho! Quem precisa ir é você e não nós dois.

— Mas, mamãe. Eu não vou a lugar algum sem a senhora. Não vou
abandoná-la!

— Não será necessário, Anselmo. Eu também estou indo embora,


mas para outro canto. Tenho sonhado com um campo muito florido
e lindo! Alguma coisa me diz que estão me esperando lá. Devo
partir em breve, meu filho.

— O quê? A senhora está me dizendo que vai pro céu? Que vai...
Que vai morrer?

Leonor assentiu com a cabeça, num movimento lerdo, os olhos


úmidos e tristes, fitando o filho que quedou desesperado.

— Sim, meu filho! A sua vida é diferente da minha e muito ainda


há para ser feito dela. Eu já estou no fim da minha existência, mas a
sua vai prosseguir por um bom tempo e é assim que deve ser.

— Não, mamãe! Por favor, não faça isto! Não me deixe sozinho!
Como é que eu vou viver sem a senhora? A senhora é a minha única
amiga, o meu único amor, mamãe!
E agarrou-se a Leonor, com o mesmo gesto de desespero com que
um náufrago se agarra à tábua salvadora em meio à tormenta
impiedosa de um mar revolto.

— Não fique triste, meu filho querido! Você vai ficar bem e, na
medida do possível, eu vou cuidar de você. Não vou lhe abandonar,
nunca, eu prometo! Pode ter certeza disto!

Mas Anselmo não queria saber de nada. Abraçado à mãe, chorou


amargamente, pedindo a Deus que não tirasse dele a sua única
protetora.

Chorou até que o sono chegasse e dormiu agarrado a ela, um sono


inquieto, entrecortado por profundos e sentidos soluços.
Aquela foi a noite mais triste da vida de Leonor. Ela já tinha certeza
de que não sobreviveria à doença que havia minado completamente
as suas forças. Seus pulmões estavam totalmente destruídos e a
dificuldade para respirar aumentava cada vez mais.
Ela pressentia que sua tarefa estava no fim e era por isso que
tentava preparar o filho para encarar a dura realidade do seu
desencarne.
Realmente, a missão de Santinha, no corpo de Leonor, já estava
cumprida. Poucos dias depois, era recepcionada com muita emoção
pela querida amiga Loreta, na pátria espiritual.
Devido ao desgaste daquele complicado período encantatório,
encontrava-se um pouco abalada, necessitando se recompor, mas
sua preocupação maior não era consigo mesma.
— Minha querida irmãzinha, como você foi forte e resignada! —
disse Loreta, abraçando-a carinhosamente.
— Também estou feliz, Loreta, mas muito preocupada com o pobre
Anselmo. Será que ele vai dar conta de suas reparações?
— Só vai depender da força de vontade dele próprio, minha irmã.
De como irá usar o seu livre-arbítrio. Se superará as dificuldades, ou
se sucumbirá ao imensurável peso de seu resgate. Mas, pelo que
tenho visto, ele certamente vai alcançar os seus objetivos. Ele tem
sido muito obstinado.

— Se eu pudesse tê-lo ajudado mais...


— O quê? E tirar dele o mérito das próprias conquistas? Dessa
forma você o estaria atrapalhando e não ajudando, afinal ele está
cumprindo a missão que pediu a Deus.
— É verdade, minha irmã. Às vezes, na ânsia de ajudar as pessoas,
nós acabamos retardando o seu crescimento, não é?

— Sim. Claro que não podemos usar deste artifício para cruzarmos
os braços e não ajudarmos ninguém, afinal, a caridade para com os
sofredores é o que de melhor temos a oferecer, mas devemos sem-
pre usar o bom senso e dosarmos as nossas ações, para não
interferirmos nos objetivos predeterminados por nossos irmãos,
desestimulando-os a enfrentarem os obstáculos necessários à sua
elevação.
— Queira Deus que Anselmo consiga levar adiante os seus projetos.

—Ao que tudo indica, levará, sim, minha querida. Fique tranqüila!

— Que Deus lhe ouça, Loreta!

E as duas inseparáveis amigas elevaram a Deus uma profunda


oração de agradecimento pela oportunidade tão bem aproveitada
por Leonor e pedindo força e proteção para Anselmo, que
enfrentaria agora uma fase ainda mais complicada, desprovido que
estava da presença física de sua amável protetora.
O desencarne de Leonor provocou uma dor dilacerante na já tão
sofrida alma de Anselmo. No primeiro momento, recusou-se a
aceitar a realidade e, embora já soubesse desde o raiar do dia que a
mãe havia morrido, guardou para si este segredo e ficou velando o
cadáver dela durante um dia inteiro, trancado em casa.

Tentou fazer com que aquele corpo sem vida tomasse os


medicamentos e se alimentasse. Acariciava os cabelos argênteos da
mãe, beijava-lhe a testa magra e fria, contava-lhe histórias e, de vez
em quando, era acometido de uma incontrolável crise de choro.
Desmanchava-se em lágrimas, tentando secar os olhos vermelhos e
inchados com a manga da blusa. Depois, olhava para o corpo da
genitora e implorava, soluçando:

— Mãezinha! Mãezinha, não me deixe só! Me leve com você, por


favor!

Somente quando o sol já ia se pondo, foi que tomou a iniciativa de


avisar os vizinhos que Leonor havia falecido.
A noite do velório foi longa e fria. Alguns vizinhos permaneceram
na casa, mas ninguém se aproximou demais de Anselmo. O máximo
que faziam era direcionar-lhe algumas palavras de solidariedade e
dar-lhe uns tapinhas no ombro.
Quando um senhor que estava presente demonstrou preocupação com as
despesas do sepultamento, Anselmo pegou todo o dinheiro que havia
ajuntado para a tão sonhada viagem com a mãe e entregou a ele.
— Isto dá?
— Tem muito dinheiro aqui, rapaz. Não precisa gastar tudo — disse
o homem, contando as notas. — Podemos fazer um enterro bem
simples...
Mas Anselmo nem quis ouvir e também não aceitou que lhe
devolvessem dinheiro algum.

***
Logo após o enterro de Leonor, Anselmo apanhou alguns
apetrechos e desapareceu para sempre daquele lugar. Nem se deu
ao trabalho de trancar a casa, afinal, o único bem valioso que havia
nela não mais estava lá. Que os vizinhos ou a prefeitura dessem à
casa e aos parcos móveis ali deixados a destinação que achassem
melhor.

Jogou às costas um saco de aniagem com uns poucos pertences, mas


principalmente, com seus artefatos de escultor e ganhou estrada.
Andando com dificuldade, conseguindo, muito raramente uma
carona, foi em busca do lugarejo de seus sonhos. Conheceu muitos
lugares.

Quando chegava em uma cidade e obtinha uma boa acolhida,


Anselmo permanecia por algum tempo, fazendo e comercializando
suas esculturas. Geralmente, dormia em praças públicas, mas às
vezes era acolhido num albergue ou na casa de uma pessoa mais
caridosa. Ali, reabastecia-se de forças e logo depois retornava às
andanças. Nunca passou mais de uma vez pela mesma cidade.
Viveu assim durante muitos anos. Envelheceu precocemente,
comendo o pó da estrada, recebendo nas costas o açoite das
tempestades.
Para evitar o calor abrasivo dos dias ensolarados, optava por andar
durante a noite, quando o céu enluarado e as estrelas o permitiam
enxergar o caminho a seguir.
Entretanto, não conquistou amizades. Sua vida errante não o
permitia manter relações duradouras. O único relacionamento
sólido que havia mantido até então fora mesmo com a mãe.

O seu firme objetivo era encontrar a cidade de seus sonhos, o


lugarejo descrito pela cigana e, cuja imagem, mantinha-se viva e
firme em sua memória. Anselmo não tinha a menor dúvida de que
tal lugar existia e era em busca desse ideal que encontrava forças
para seguir sempre em frente.

Terceira Parte
A Reparação
11
A benzedeira
Pergunta: Que sentido se deve dar ao qualitativo de feiticeiro?
Resposta: Aqueles a quem chamais feiticeiros são pessoas que, quando de boa-fé, são
dotadas de certas faculdades, como a força magnética ou dupla vista. Como, então,
fazem coisas que não compreendeis, julgai-as dotadas de um poder sobrenatural. Os
vossos sábios não têm passado muitas vezes por feiticeiros aos olhos dos ignorantes?

L.E. - Questão 555

No meio da espessa neblina, que mal permitia enxergar o próprio


corpo, surgiu a pedrada certeira bem no meio da testa. A pancada
provocou um corte profundo e uma enorme protuberância na fronte
do andarilho. Um jorro de sangue quente e rubro escorreu por entre
os olhos, abriu-se em duas fileiras paralelas que contornaram o
nariz, desceram pelos cantos da boca e voltaram a se unir na ponta
do queixo, formando um sinistro desenho. Dali despencou em cas-
cata, encharcando-lhe a camisa encardida. A vista escureceu, o
mundo pareceu girar freneticamente e a queda foi inevitável. O
baque do corpo, o contato da pele machucada com o solo
pedregoso, a poeira misturando-se ao sangue, a confusão na mente,
o mundo girando, girando...

A seguir, vieram os chutes. Violentos golpes nas costelas, nas


pernas, no rosto... Tudo isto misturado a uma algazarra indefinível.
Gargalhadas e impropérios. Xingamentos desconexos, vozes quase
infantis, mas carregadas de uma intolerância monstruosa.
— Tome, seu aleijado do inferno!
Suma daqui, andarilho filho do coisa-ruim! E gritavam.
E riam, um riso nervoso e debochado.
Anselmo, completamente indefeso, surpreendido com tão
desmesurada e gratuita violência, tentava se proteger com os
braços, mas também estes eram castigados pelos impiedosos
pontapés, até que se enlanguesceram completamente e se
entregaram, incautos, à má sorte daquele momento.

Quanto tempo teria durado o covarde ataque? Segundos? Minutos?


Horas? Não dava para saber. Totalmente subjugado pela terrível
dor física, o homenzinho torto e maltrapilho perdera
completamente os sentidos.

De repente, foi como se o breu de um manto muito escuro houvesse


sido descerrado sobre suas retinas e uma sensação de desmaio o
subjugou inteiramente, livrando-o, de certo modo, daquela dolorosa
realidade.

Antes de perder os sentidos ainda conseguiu ouvir o sino da igreja


anunciar que eram cinco horas da manhã e concluiu, pela
proximidade das badaladas, que estava nos arredores de uma
cidade. E mais, visualizou também, ou melhor, adivinhou, em meio
à obscuridade imposta pela cerração, que aquela igreja era
exatamente a que existia em seus sonhos. Era a igreja da estranha
cidade que o vinha admoestando há anos, com suas alvas e
imponentes torres, seu sino enorme, cujo bojo metalizado rebrilhava
ao ser alvejado pelos raios solares do alvorecer. Sem dúvida, ali
estava o lugar pelo qual havia sido atraído de modo irrevogável
para a longa peregrinação.

Apesar de todo o sofrimento daquele trágico momento, sentiu um


grande alívio mediante esta descoberta e pediu a Deus que não o
levasse ainda. Que o permitisse viver para concretizar sua tão
premente, embora desconhecida, missão.
Acordou horas mais tarde, num cômodo retangular, de agradável
aspecto e bem asseado. Das paredes claras sentiu o cheiro do reboco
de tabatinga e do teto recém-reformado, um aroma suave de sapé
fresco. Acomodado numa espécie de maca, sobre um colchão macio
e aromático, recebia os cuidados de um par de mãos delicadas que o
tratavam, fazendo assepsias e aplicando unguentos em suas feridas.

A mente estava confusa, os pensamentos desconexos, a cabeça, os


braços e a perna direita doíam terrivelmente. Seus olhos se
encontravam cerrados pelo volumoso inchaço e a vista estava
magoada demais para que ele pudesse distinguir o vulto que o
estava tratando naquele aposento.

Anselmo se sentiu muito mal. Não pôde evitar o constrangimento


de estar dando trabalho a alguém. Ele, que não gostava de
incomodar as pessoas, que não se sentia merecedor de qualquer
gesto de atenção e cuidado por parte de quem quer que fosse,
estava ah, ocupando com suas mazelas o tempo de uma pessoa que
certamente deveria ter coisas mais importantes para fazer. Não
tinha como não se sentir mal. Não era justo ficar dando trabalho aos
outros, pensava, constrangido.
Quando percebeu que sua voz, embora enclausurada pelo
desconforto daquele momento e pelas dores físicas, poderia ser
usada, balbuciou molemente:

— Não tive culpa!

Precisava justificar o fato de estar todo arrebentado daquele jeito.


De estar ocupando o tempo de alguém que deveria ter outras
ocupações. Tinha medo de ser confundido com um malfeitor.

— Calma, meu filho! — respondeu o vulto que cuidava dele.

Só então ele percebeu que se tratava de uma mulher. Uma senhora


de idade avançada, com um tom de voz tão suave e afetuoso que o
fez lembrar-se dos tempos em que podia repousar a cabeça no colo
da mãe. Por mais que relutasse, não conseguiu evitar o início de um
choro desconsolado.
— Não tive culpa — continuou. — Não mexi com ninguém, estava
chegando à cidade. Passei a noite inteira caminhando... Só vim por
causa do sonho...
Insistia com a voz mole e rouca. Parecia transtornado, sem muita
noção do que dizia. Era a primeira vez na vida que Anselmo dava
vazão a um sentimento de contrariedade, mas não o fazia por
revolta, fazia-o para justificar à dedicada benfeitora o seu estado de-
plorável. Fazia-o para não ser confundido com um aventureiro
inescrupuloso que tivesse recebido uma lição por maus atos
praticados. Mas nada daquilo era necessário. A mulher,
demonstrando uma tranqüilidade inabalável, limitava-se a dizer,
com voz quase sussurrada:
— Tudo bem, seu moço! Não precisa se explicar. Acalme-se que eu
vou lhe tratar.
— Fui atacado à toa, dona. Não faço mal às pessoas.
— Eu sei. E a maldade do mundo. Muitos jovens, hoje em dia, não
respeitam as pessoas mais velhas. Principalmente os desamparados,
que vivem pelas estradas.
— Ninguém sofre porque quer, dona. Se dependesse da minha
vontade, eu não teria nascido aleijado e miserável.
Certamente, a pancada na cabeça havia afetado o raciocínio de
Anselmo. Ele que, se deixando guiar pelos instintos, nunca havia
contestado o merecimento de suas penas, via-se agora negando esta
condição. Estava visivelmente transtornado, precisava ser
acalmado.

— As pessoas que o atacaram deveriam estar bêbadas.


Possivelmente, estavam voltando de alguma festa regada a álcool e,
sabe-se Deus a que mais. Há pessoas que não precisam de
justificativas para descarregar nos outros a sua bestialidade, as suas
frustrações. Infelizmente, o mundo está cheio de gente com este
comportamento lamentável.

— Mas eu não mexi com eles. Estava seguindo o meu caminho,


quieto, como sempre. Não sei por que fizeram isto comigo —
continuava o andarilho, com voz chorosa.

— Fizeram por diversão, moço. O senhor teve sorte de o Carlos tê-


lo encontrado.

Então a mulher se lembrou de que o pobre-diabo não deveria fazer


a menor idéia de quem era o Carlos e emendou, enquanto
continuava a cuidar de seus ferimentos:

— Carlos é um moço nascido e criado aqui, filho de família pobre,


mas muito honrada. Trabalha desde menino na fábrica de laticínios
e agora é gerente lá. E um moço de coração muito bom, sabe? Ele
estava indo trabalhar quando o viu caído na beira da estrada. Até
achou que tinha chegado tarde demais, mas quando percebeu que
você estava vivo, colocou-o em sua velha caminhonete e o levou ao
hospital. Lá, o pessoal alegou que não tinha como atendê-lo. Má
vontade dessa gente, sabe? Então o Carlos o trouxe para cá, pois
sabe que eu tenho alguns recursos medicinais e que não deixo
ninguém ao relento.

— Deus lhes pague, à senhora e a este moço! Mas eu não quero dar
trabalho, dona...
— Gertrudes. Meu nome é Gertrudes e não se preocupe com nada.
Apenas relaxe e descanse, que você vai ficar bem.
Enquanto dizia isto, a bondosa senhora acariciava os cabelos
espetados do andarilho, uma carícia que o fez voltar no tempo e
lembrar-se da querida mãezinha. Como estaria ela? Como deveria
ser o tal campo florido que ela disse ter visto, um pouco antes de
morrer? Esses questionamentos nunca abandonaram os
pensamentos de Anselmo desde a morte da mãe. Ele tinha certeza
de que ela continuava cuidando dele e, de certo modo, sabia haver,
no gesto de carinho que Gertrudes lhe proporcionava, uma
invisível, porém perceptível participação de Leonor. De alguma
forma ela estava também ali e ele podia senti-la.
A ingestão de um chá de efeito medicinal e a gostosa carícia de
Gertrudes fizeram-no relaxar e, entre soluços, Anselmo voltou a
dormir.
Gertrudes saiu do galpão por uns instantes e, quando retornou,
tinha nas mãos um livro de orações. Sentou-se à cabeceira da cama
do enfermo, abriu o livro e fez uma fervorosa prece, pedindo ajuda
a Deus para cuidar daquela pobre criatura.
Ela conhecia bem a causa dos sofrimentos terrenos. Vivera sempre
ao lado do pai com quem aprendera a tratar as enfermidades do
corpo com folhas, raízes e sementes cultivadas no quintal de sua
humilde casinha e, do Espírito, com preces e benzeduras.

Bastante caridosa e possuidora de uma fé inabalável em Deus, era


com esses recursos que praticava a caridade tão propagada e
recomendada por Jesus Cristo.

Auxiliava as pessoas pobres, que não dispunham de condições


financeiras para um acompanhamento médico, a se livrarem dos
percalços de suas moléstias, através do tratamento eficaz e gratuito,
com suas ervas, e de fervorosas orações em favor dos assistidos.

Fazia-o numa espécie de enfermaria rústica, improvisada no


pequeno galpão de pau-a-pique, coberto com sapé, que seu pai
havia construído nos fundos do quintal da casa. Para acomodar os
pacientes mais necessitados, dispunha de três macas confeccionadas
com bambus, sobre as quais colocara confortáveis colchões e
travesseiros recheados com ervas desidratadas de poder sedativo,
como mácela, camomila e cidreira, entre outras.
Inúmeras vezes, Gertrudes fora acordada no meio da madrugada
ou tirada de sua casa embaixo de temporais, para socorrer mulheres
em trabalho de parto, pois exercia também o papel de parteira. Era
comum as pessoas fazerem verdadeiras filas, no quintal de sua
casinha humilde, principalmente para benzerem as suas crianças
dos males a que denominavam de quebranto, espinhela caída, mau-
olhado e coisas dessa natureza.

A benfeitora tratava a todos com muito carinho e,


independentemente da crença dos assistidos e do modo como
denominassem as moléstias apresentadas, ela pedia apenas duas
coisas para garantir o sucesso do tratamento: "fé em Deus e pureza
de sentimentos para com os semelhantes".

Assim, auxiliada por uma eficiente equipe de entidades espirituais,


ia, na medida do possível, mitigando os sofrimentos alheios.

Gertrudes sabia que as doenças do corpo estão, invariavelmente,


ligadas às questões do Espírito. Sabia que nenhum sofrimento é
imposto à matéria por pura casualidade. Sabia que tudo na vida tem
o seu porquê e era por isso que sempre recorria ao auxílio espiritual
durante os tratamentos medicinais que aplicava nos seus enfermos.
Ela conhecia desde menina os segredos de além-túmulo. Convivera,
desde tenra idade, com a presença dos Espíritos benevolentes que
orientavam e auxiliavam o pai nos seus trabalhos de cura e de
desobsessão.
Aquele antigo galpão, improvisado nos fundos do quintal de sua
casa já era, na época, o local dos atendimentos. Ali, ela presenciou
inúmeras manifestações espirituais, viu muita gente ser tratada e
muitas vezes foi convocada a ajudar o pai nesses trabalhos.
Por isso, Gertrudes sabia como é efêmera e transitória a existência
material dos homens na Terra. Sabia da imortalidade das criaturas
de Deus no que concerne à sua verdadeira essência. Sabia que essa
essência é de natureza divina e que a carne que reveste provisoria-
mente o Espírito é apenas um envoltório perecível, sobre a qual o
sofrimento tem ação purificadora e passageira.
Ela sorriu um riso triste e piedoso que não pôde ser visto pelos
olhos magoados do andarilho quando ele disse: "Ninguém é
miserável porque quer".

Gertrudes sabia que não é bem assim. Se fosse, onde estariam a


justiça e o infinito amor de Deus? Que espécie de pai criaria filhos
miseráveis e aleijados?
Somente pelo prazer de vê-los em sofrimento? Não!
Definitivamente, não!

O livro que tinha nas mãos era O Evangelho segundo o Espiritismo,


presente que ganhara de seu pai, aos quinze anos de idade. Seu
Adolfo levara um dia para casa este que é um dos livros da
codificação espírita, dera-o à menina e, por ser analfabeto, pedira-
lhe que lesse para ele.

Assim, todas as noites, durante muitos anos, Gertrudes leu para o


pai as dissertações do Evangelho. Acabou se interessando tanto pelo
assunto, que convenceu o genitor a adquirir as demais obras da
codificação espírita e as transformou em livros de estudos diários.

Muito satisfeito com o aprendizado da filha, seu Adolfo, quando


estava próximo de desencarnar, décadas mais tarde, disse para ela:

— Não foi para mim que você leu durante todos esses anos, sabia?

Como Gertrudes, emudecida pela triste emoção do momento, nada


respondesse, ele prosseguiu:

— Você estava lendo para si mesma, minha filha! Agora sabe de


tudo, conhece o verdadeiro sentido da existência humana. Sabe que
o homem foi criado para evoluir, para iluminar-se de pureza e de
sabedoria, aproximando-se, assim, da natureza divina da qual foi
gerado e para a qual haverá de retornar em algum momento de sua
existência.

Gertrudes meneava a cabeça afirmativamente, com os olhos cheios


de lágrimas, fitando o pai que, lentamente se despedia, como a
chama de um archote, cujo combustível estivesse se esgotando.

— Agora você sabe que Deus concede todas as oportunidades


necessárias para o nosso aperfeiçoamento, através da multiplicidade
das encarnações. Sabe, também, que são os nobres sentimentos
cultivados em nós que impulsionam a nossa evolução. Mas sabe,
principalmente, que o que mais nos eleva é o amor ao próximo, a
caridade. Seja caridosa, minha filha! Procure praticar o bem e não
deixe qualquer sentimento ruim fazer morada em seu coração. Ame
sempre e nunca odeie ninguém!

E, como se revivesse, naquele momento, a antiga cena, Gertrudes


suspirou profundamente e falou baixinho:

— Obrigada, papai, pelos conselhos. De fato, em meu coração não


existe espaço para nenhum outro tipo de sentimento que não seja o
amor ao próximo.
Obrigada, meu Deus, pelo privilégio de poder ser útil e me ajude a
permanecer assim durante a minha estada neste planeta de tantas
expiações.

Delicadamente, voltou a cuidar do enfermo que, naquela manhã, o


Criador confiara aos seus prestimosos cuidados.
12
Provação e vício
Pergunta: O meio em que certos homens se acham colocados não constitui para eles
a fonte principal de muitos vícios e crimes?
Resposta: Sim, mas ainda aí há uma prova que o Espírito escolheu, quando em
Uberdade. Ele quis se exporá tentação para ter o mérito da resistência.

L.E. - Questão 644

Fim de tarde. O sol crepuscular dourava as nuvens ao longe,


ocultando-se lentamente atrás das montanhas acinzentadas pela
branda turvação que precedia a noite. A tonalidade dourada
daquele pôr-do-sol prenunciava uma noite muito fria. Os
trabalhadores da antiga fazenda, ferramentas às costas, voltavam
para os seus lares, enquanto os grilos, com seus trinados estridentes
iniciavam o rotineiro concerto noturno. Na pastagem, que aos
poucos se orvalhava pelo sereno da noite, as reses se recolhiam e se
juntavam em pequenos grupos para dormirem aquecidas.
Nesses momentos, Fagundes permanecia sentado em sua antiga
cadeira de balanço. Ficava plantado no meio da imensa e solitária
sala, observando a luz do dia aniquilar-se lentamente. Não sabia se
gostava daquilo, ou se o fazia movido por uma invencível
necessidade de sofrer solidão.

Ficava olhando a paisagem que o vão da janela esquadrinhava à sua


frente, vendo o verde das árvores e dos campos perderem
gradativamente a nitidez e o brilho de seus matizes, como se um
invisível apagador os eliminasse por inteiro, deixando apenas o
fundo opaco de um imenso quadro-negro.

Era o momento em que um misto de paz e de nostalgia espalhava-se


pelos ares, contagiando até os corações menos apegados a
sentimentos nobres, inserindo em todas as almas um quê de
mistério e de inquietação.

Porém, no coração de Fagundes, nada afeito a bons sentimentos,


somente o desespero preponderava. Somente lhe dominavam a
raiva e a decepção de haver perdido tanto dinheiro e comprometido
a posse de sua propriedade. Ele era viciado em jogo e jogara muito.
Numa época em que os ventos estiveram a favor, ganhara bastante
dinheiro. Adquirira inúmeros bens, inclusive aquela fazenda. Mas
um dia as coisas mudaram drasticamente e os prejuízos foram
inevitáveis. Tentando salvar-se a todo custo, enfiou-se numa grande
dívida, contraindo vultosos empréstimos com um agiota
oportunista e contumaz. Com o dinheiro do empréstimo em mãos,
foi aumentando cada vez mais o valor das apostas, tentando
recuperar o que havia perdido, mas as coisas só fizeram piorar. Em
pouco tempo estava completamente falido.

O único acordo que conseguira, fora convencer o credor a se manter


em silêncio e dar a ele um certo período de tempo para quitar a
dívida. Caso não conseguisse levantar a quantia devida, Fagundes
lhe entregaria aquela que era a única propriedade restante. Coisa
inútil, pois ele sabia ser impossível conseguir juntar uma quantia
tão alta, já que a fazenda, além de mal trabalhada, tinha a sua
produção utilizada com irresponsabilidade.

O único trunfo que Fagundes possuía, ou julgava possuir, era a filha


Eugênia. Uma moça linda, prendada e possuidora de um coração
boníssimo. Sua esperança era que, durante o período negociado
com o agiota, arranjasse para a filha um casamento afortunado, com
um herdeiro em potencial. Fagundes conhecia alguns rapazes nesta
condição e sabia que todos se derretiam de amores por ela. Faltava
apenas convencer a filha a aceitar tal proposição.
Na formosura plena dos seus vinte anos, Eugênia era uma moça
encantadora, mas em termos de sentimentos, seus planos eram
completamente opostos às pretensões do genitor. Para ela, a questão
financeira não importava nem um pouco. Pessoa de modos simples,
nunca fizera uso do dinheiro do pai além do necessário à sua
sobrevivência.

Quanto a casamento, Eugênia tinha os seus planos muito bem


formulados. Seu coração já possuía dono desde os tempos de
menina. Havia entre ela e Carlos um amor puro e verdadeiro.
Amavam-se desde os primeiros anos escolares, quando haviam
estudado juntos. A diferença social entre eles, já que Carlos
provinha de uma família muito pobre, nunca fora sequer
comentada. Viviam um para outro, amavam-se e não tinham a
menor dúvida a este respeito. Esperavam apenas o melhor
momento para consolidarem aquele sentimento inequívoco, através
do matrimônio.

Enquanto este momento não chegava, o casal mantinha uma


cautelosa distância e somente se encontrava quando conseguia dar
um jeito de driblar a vigilância de Fagundes. Tal procedimento
servia para evitar aborrecimentos desnecessários, já que o pai de
Eugênia era um sujeito extremamente anti-social, principalmente
quando exagerava na bebida. Como os jovens enamorados
estivessem bem certos de suas pretensões e se preparassem em
silêncio para concretizá-las, a moça não via a menor necessidade de
colocar o pai e o namorado numa inútil situação de confronto antes
do momento decisivo, já que sempre ficara muito clara a intenção
do Fagundes de casá-la com alguém rico.
Carlos era um rapaz trabalhador e honesto. Embora ganhasse um
modesto salário na fábrica de laticínios, com a obstinação dos que
amam de verdade, andava economizando todo o dinheiro que
podia para oferecer à futura esposa o maior conforto possível. Já
havia adquirido um terreno de tamanho razoável e iniciara a
construção de uma casa, onde o casal pretendia criar os futuros
filhos.

Mas a situação era bastante complicada para os dois jovens,


principalmente depois que Fagundes havia perdido a fazenda. Com
o desespero de se ver prestes a ser despojado de todos os seus bens,
tornou-se uma pessoa ainda mais insensata. Estava inconformado
pelas propriedades que perdera, sem levar em consideração que ele
próprio as havia deitado fora. Ele, que sempre tivera uma forte
queda para o alcoolismo, agora, afastado das mesas de jogos, pro-
curava compensar esta falta, ampliando drasticamente o consumo
de aguardente. Bebia muito e, embriagado, ficava insuportável.

Fagundes era um homem totalmente desprovido de fé. Nunca


admitira a existência de Deus. Nunca sequer questionara de onde
vinha a força soberana por trás daquele céu encarnado, daquelas
montanhas que se acinzentavam sob o véu da noite, daquela or-
questra de bichos à margem do regato, daquele sol que se erguia
todas as manhãs, devolvendo à paisagem a sua viva luminosidade.
Completamente cético, não conseguia visualizar a ação de Deus
nestas maravilhosas manifestações que a natureza se lhe expunha
diuturnamente.

Ele não acreditava em nada que não pudesse ver, cheirar, apalpar...
Achava que tudo o que foge aos cinco sentidos básicos atinentes à
natureza física do homem é inexistente e ilusório. Armadilha para
pegar pessoas fracas, incautas e desavisadas. Nutria desprezo pelos
padres, pelos pastores, pelos divulgadores do Espiritismo e por
todos aqueles que se intitulam ou que recebem, mesmo sem querer,
o título de mensageiro espiritual.

Revoltava-se contra as pessoas de fé que se tornam seguidoras de


qualquer doutrina religiosa. Considerava-as um bando de aleijados,
pobres-diabos incapazes de se guiarem sozinhos; covardes, necessi-
tando de muletas e de quem os conduza pela mão.
Nem no auge do seu desespero, conseguia se dar conta de que o
pior cego é aquele que se recusa a vislumbrar a irradiação luminosa
que a constante presença de Deus projeta na vida dos homens. Uma
cegueira alicerçada nas ilusões das conquistas materiais, no orgulho,
na ambição e no egoísmo. Sentimentos mesquinhos que fazem o
homem sempre acreditar ser mais do que é e esquecer-se de sua
origem espiritual, mas que também o conduz, invariavelmente, à
direção do infortúnio e do desapontamento.

Por seu destempero comportamental, fizera da esposa uma eterna


sofredora. Arrogante e machista, Fagundes nunca dera à mulher o
direito de questionar as suas más atitudes. Julgava-se acima do bem
e do mal, podendo fazer o que bem entendesse de sua vida, sem se
importar se o seu comportamento afetava também a vida daqueles
que viviam ao seu lado.

Um dia, cansada daquela vida insuportável, a mãe de Eugênia


pareceu ter desistido de viver. Parou de se alimentar, tornou-se
reclusa e muda. Com o tempo, passou a falar coisas desconexas,
desenvolveu uma espécie de loucura e faleceu após muito
padecimento, deixando a filha ainda criança sob a tutela do pai e da
avó paterna.

Parecendo nem se dar conta do ocorrido, Fagundes não demonstrou


qualquer tipo de tristeza ou de remorso. No mesmo dia em que
enterrou o cadáver da mulher, voltou a entregar-se à ilusória
satisfação de seus vícios, indiferente ao sofrimento da pequena
Eugênia que pranteava a precoce orfandade.

Em casa, restaram-lhe as presenças da mãe e da filha, mas era como


se houvesse um abismo intransponível entre eles. Fagundes as
ignoravam e elas não faziam a menor questão de se aproximarem
dele, pois suas conversas eram sempre desagradáveis e fúteis.
Dialogava no ambiente doméstico com o mesmo tom de voz e a
mesma deselegância com que tratava seus adversários de jogo nos
salões, onde apostava o que insistia em chamar de sortes e azares.

13
Oportunidade e fracasso
Pergunta: Antes de sua missão com o corpo, a alma compreende melhora lei de
Deus do que após a sua encarnação?
Resposta: Compreende-a de acordo com o grau de perfeição a que tenha chegado e
dela guarda intuição após sua união com o corpo. Mas os maus instintos do homem
fazem freqüentemente que ele esqueça a lei de Deus.

L.E. - Questão 620

Eugênia tinha quinze anos quando a avó desencarnou, era a


segunda grande ausência física em sua tão curta existência. Sem a
presença da avó, a companhia do pai tornou-se ainda mais difícil.
As discussões entre os dois eram constantes e Fagundes passou a
vigiá-la dia e noite, acometido de um ciúme doentio. Alegava ter
medo de que a filha o abandonasse e usava tal argumento para
justificar o cerceamento.

À época, o sentimento de amor entre Carlos e Eugênia já era uma


realidade inequívoca entre eles. Sentiam-se como se estivessem
vivendo um reencontro programado e inevitável. A presença de um
tinha para o outro o efeito da saudade abrandada depois de
prolongada separação e, por isso, sempre que lhes era possível,
estavam juntos. Nesses encontros, Eugênia chorava as mágoas com
Carlos, desabafando com ele os seus conflitos com o pai.
Um dia, o rapazinho a pegou pela mão e disse:

— Venha comigo, que eu vou lhe apresentar a uma pessoa.

— Posso saber quem é?

— Confie em mim, Eugênia. É uma senhora muito especial, sabe?


Ela vê coisas que a gente não consegue enxergar.

— Ela vê Espíritos? É uma vidente?

— Sim. Mas, além disso, é muito sábia e tem um coração de ouro.


Ela é benzedeira e me curou de uma grave doença, quando eu tinha
seis anos.

— Já ouvi falar e já li matérias em revistas sobre pessoas que têm


esses dons, mas nunca conheci ninguém pessoalmente. Estou
curiosa.

Antes que Eugênia chegasse à casa de Gertrudes, a benzedeira havia


tido uma visão bem clara sobre alguns acontecimentos relativos à
vida passada da menina. Na cena que lhe foi projetada na mente,
durante a leitura matinal do Evangelho, aparecia um homem
truculento e bastante cruel. Ele estava de tocaia, atrás de uma árvore
frondosa, numa curva de estrada, esperando por alguém. De
repente, surgiu um rapaz jovem, de boa estatura, que passava pela
estrada, levando às costas algumas ferramentas de trabalho.
No momento em que o moço passava pela curva, foi atacado pelo
adversário que o espreitava. As coisas aconteceram muito
rapidamente, os dois travaram uma luta violenta e, mesmo tendo
sido pego de surpresa, o jovem levava clara vantagem sobre o
outro. De repente, o que iniciara a briga sacou de um revólver e
disparou três vezes, abatendo covardemente o rapaz.
Logo o cenário mudou e Gertrudes vislumbrou a jovem viúva
chorando a morte do marido, adoecendo pelo sofrimento e
desencarnando logo depois, com muita tristeza.
Vidente experimentada, Gertrudes estava acostumada a conviver
com estas visões desde a infância. Instruída pelo pai e, mais tarde,
pela leitura dos livros da codificação, ela conhecia bem as suas
faculdades mediúnicas e sabia o que aquilo representava. Por isso,
não se surpreendeu nem um pouco quando Carlos adentrou sua
casa, de mãos dadas com a namorada.
— Dona Gertrudes, esta é a...

— Não precisa falar o nome. É a Eugênia, de quem você tanto fala,


não é? — antecipou sorrindo.

Eugênia baixou os olhos, constrangida.

— Não se acanhe, querida — disse Gertrudes, abraçando-a. —


Carlos vem muito à minha casa e toda vez que chega aqui, fala
coisas maravilhosas a seu respeito. Agora, estou vendo que ele não
exagerou em nada do que disse.

— Obrigada, dona Gertrudes, ele me falou também muitas coisas


boas sobre a senhora e me trouxe, porque eu estou precisando de
ajuda.

— Então vamos lá nos fundos para conversarmos mais à vontade.

E se dirigiram para o velho galpão, onde Eugênia narrou os seus


problemas de relacionamento com o pai. Enquanto ouvia o relato da
moça, cenas complementares às que havia assistido, foram
projetadas na mente de Gertrudes.

Quando Eugênia silenciou, a benzedeira já tinha as informações de


que precisava. Fagundes era a reencarnação de Gregório, o jagunço
que havia assassinado Vicente. Após um período de extremo
sofrimento na esfera espiritual, demonstrara um arrependimento
verdadeiro e implorara para ter uma nova oportunidade. Queria
reparar a maldade praticada contra Vicente e Lurdes.
Com a permissão do plano espiritual e a aquiescência do casal, foi
permitido ao ex-jagunço vir ao planeta na condição de pai de
Lurdes, para receber como genro o rapaz que ele havia assassinado
naquela experiência encarnatória. Seria uma forma de colocá-los
novamente juntos para, através da convivência familiar, iniciarem a
reconstrução da harmonia quebrada pelas lamentáveis ocorrências
do passado.

Então é isto — pensou Gertrudes. — O infeliz não resistiu às


provações e sucumbiu às antigas más tendências, voltando a se
entregar aos vícios, desperdiçando a oportunidade pela qual
implorou e que lhe foi concedida por Deus.

Gertrudes percebeu que Eugênia estava chorando, cabisbaixa. Num


gesto de carinho, ergueu suavemente o rosto da mocinha, enxugou-
lhe as lágrimas com os polegares e disse:

— Minha pobre criança! Não chore e não odeie o seu pai. Mesmo
demonstrando tanta fraqueza diante de seus vícios e de suas
imperfeições, também ele é filho de Deus e merece ser perdoado e
amado como todo mundo. Em vez de refutá-lo, faça diferente, tente
entendê-lo e, se não puder amá-lo como seu genitor, procure amá-lo
e compreendê-lo como a um irmão fragilizado e ignorante, a quem
a luz da razão ainda não alcançou, mas que alcançará um dia, por
mais tempo que demore.

— Mas, por que eu devo amá-lo, se ele demonstra tanta falta de


carinho para comigo?

— Eugênia, minha filha. Todos nós, que estamos neste planeta,


tivemos experiências de vidas anteriores e, na maioria dos casos, já
convivemos com as mesmas pessoas com quem vivemos hoje.
Muitas dessas pessoas foram inimigas em outras encarnações e
estão novamente juntas com o intuito de se acertarem. Algumas
conseguem, porém, outras, não. Mas aquelas que têm um pouco
mais de discernimento e uma maior propensão para o bem, devem
fazer a sua parte, independentemente das posturas que os outros
venham a tomar. Graças a Deus, você tem um maior grau de
compreensão, ou seja, está um pouco mais evoluída do que o seu
pai e é por isso que a iniciativa da reconciliação deve ser sua. Você
me compreende?

— Acho que sim — respondeu a mocinha, com uma expressão mais


leve. — Isto quer dizer que eu e Carlos também já estivemos juntos?

— Com toda certeza! E certamente viveram uma história muito


linda, pois o amor que demonstram um pelo outro é muito claro.
Carlos, que acompanhava a conversa, sorriu:

— Não lhe falei, Eugênia, que estamos vivendo um reencontro?

— Tudo isto é maravilhoso, dona Gertrudes! - comentou a menina,


com um ar bem mais alegre.
— Acredito no que a senhora está dizendo e, a partir de hoje, vou
procurar ser mais compreensiva com o meu pai.

Gertrudes acolheu Eugênia e Carlos num abraço afetuoso. Ela agora


sabia de tudo, mas sabia também que não deveria contar àquele
jovem casal os pormenores dos acontecimentos passados. O pai
sempre a aconselhara a ser prudente quanto às informações obtidas
através das faculdades mediúnicas. Uma vez dera-lhe um conselho
que Gertrudes nunca mais esqueceu:

— Se fosse para todos terem conhecimento do passado, Deus não


nos submeteria à lei do esquecimento. Portanto, minha filha, toda
vez que souber de algo através da mediunidade, seja prudente.
Procure ajudar as pessoas envolvidas na trama, mas evite dar
informações que talvez elas não estejam preparadas para ouvir —
dissera ele.
Muitos anos já haviam se passado, mas as palavras do pai soavam
claras na memória de Gertrudes.
Por isso ela evitava sempre pormenorizar as experiências de vidas
anteriores daqueles que a procuravam. Falava sempre
hipoteticamente, mas impondo à voz tamanha firmeza, e ao olhar,
tanta certeza, que dificilmente as pessoas deixavam de acreditar no
que ela dizia.

Eugênia nunca mais esqueceu o conselho de Gertrudes e toda vez


que se via em apuros, era à nova amiga que ela recorria, em busca
de guarida e de esclarecimentos. Desde então, passou a ter mais
compreensão quanto à natureza rude e fraca do pai. Após isto, a
relação entre os dois, embora distante de ser a ideal, melhorou um
pouco e o convívio tornou-se menos pesaroso.

***

Um terno laço de amizade passou a unir Gertrudes, Carlos e


Eugênia. As visitas do jovem casal à casa da benzedeira se
amiudaram e os esclarecimentos à cerca do Espiritismo eram
sempre colocados em prática nessas ocasiões.

Incentivados por Gertrudes, Carlos e Eugênia desenvolveram um


grande interesse pela doutrina de Kardec e, tendo adquirido os
livros da codificação, passaram a estudá-la. As dúvidas eram
sempre esclarecidas durante os encontros na casa da benfeitora e to-
dos os conceitos ali fundamentados faziam muito sentido para eles,
como se, ao lerem as explicações expostas naqueles livros,
estivessem se recordando de uma realidade vivida há bem pouco
tempo.

E isto era mesmo real, afinal, menos de duas décadas atrás os dois
se encontravam na pátria espiritual, irmanados pelos ideais de
perdão, caridade e amor, estudando e vivenciando o espiritismo
cristão.
Os anos se passaram e Eugênia, contrariando mais uma vez as
pretensões do pai, que preferia vê-la em casa o dia inteiro,
resguardando-se para um casamento financeiramente promissor,
tornou-se uma dedicada professora primária, muito amada por seus
alunos. Passou a lecionar numa escola municipal, freqüentada,
principalmente, pelos filhos das famílias mais carentes.

Este convívio diário com a classe mais humilde e a consciência


espiritual adquirida nas leituras do Evangelho e no exemplo vivo
das ações de Gertrudes que, mesmo não tendo aparentemente nada
para oferecer, atendia semanalmente a dezenas de pessoas,
ofertando-lhes socorro físico e espiritual, fizeram brotar no coração
de Eugênia um forte desejo de ser útil, de fazer para os necessitados
algo além do que lhe cobravam os compromissos materiais, ou seja,
de praticar a caridade tão apregoada por Jesus e seus discípulos.

Tal projeto passou a fazer parte dos pensamentos da professora de


uma forma determinante. Contando sempre com o apoio e o
incentivo do namorado, elaborava-o mentalmente todos os dias,
esperando apenas o momento oportuno de colocá-lo em prática.

14
Mal-estar
Pergunta: Por que o Espírito encarnado perde a lembrança do seu passado?
Resposta: O homem não pode nem deve saber tudo. Deus assim o querem sua
sabedoria. Sem o véu que lhe oculta certas coisas, o homem fícaria ofuscado, como
quem passa sem transição da obscuridade à luz. Pelo esquecimento do passado ele
émais senhor de si.
L.E. - Questão 392

A condição física de Anselmo exigia bastante cuidado. Ele estava


muito ferido, principalmente pela pedrada que levara na testa e por
uma grave luxação no tornozelo direito, que se encontrava muito
inchado. Gertrudes não se desgrudava dele, aplicando bálsamos em
suas chagas, dando-lhe chás de ervas e raízes medicinais e
praticamente o obrigando a engolir canjas e mingaus, que
preparava com muito carinho.
O homem alternava momentos de lucidez e de delírios e quando
delirava, chamava pela mãe com um tom de voz tão sentido e
infantil, que Gertrudes chegava a ficar com o coração apertado de
piedade.
Fazia três dias que ele estava sob os cuidados da benfeitora,
quando, numa manhã de domingo, Carlos e Eugênia apareceram
por lá. Carlos levara algumas peças de roupa, pois os agressores
haviam rasgado as que Anselmo transportava consigo.

— Como vai o nosso paciente? — perguntou o rapaz, ao entrar na


casa da benzedeira.

— Como Deus permite — respondeu ela, com seu semblante


sempre sereno. — O nome dele é Anselmo. Acho que ainda não
acordou, está acomodado nos fundos do quintal, no galpão de
atendimento.

— Podemos visitá-lo? — perguntou Eugênia.

— Claro! Acho que uma visita fará bem a ele. Certamente Anselmo
vai gostar de conhecer o rapaz que o socorreu naquela manhã.
Aliás, sua presença veio bem a calhar, pois você poderá ajudá-lo a
tomar um banho e a fazer uma higiene pessoal mais adequada.
— Ajudarei com muito prazer. Também estou com vontade de
conhecê-lo — comentou Carlos. — Acredita, Eugênia, que a
recepcionista do hospital não quis atender o seu Anselmo, só por se
tratar de um andarilho? Ela inventou mil desculpas, alegou falta de
vagas, disse que o médico havia viajado e que a farmácia estava
completamente vazia. Quando percebi a má vontade dela e de mais
alguns funcionários que se encontravam na recepção, achei melhor
não insistir, porque, mesmo se o aceitassem, certamente ele seria
muito maltratado lá. Por isso, tomei a decisão de trazê-lo para a casa
da dona Gertrudes.

— Você fez muito bem, Carlos — disse Eugênia, — Mas o descaso


dos funcionários do hospital é um absurdo. Isto é caso de polícia.
Eles não podem, simplesmente, escolher os seus pacientes.

— Mas, por aqui e em muitas outras cidades, principalmente nestes


confins de mundo, é assim que as coisas funcionam e chamar a
polícia, na maioria dos casos, não adianta nada — ressaltou o rapaz.
— Além do mais, a maioria desses hospitais é desaparelhado,
muitos dos funcionários que ocupam cargos de chefia não têm
qualificação técnica, pois são cabos eleitorais, indicados por
padrinhos políticos inescrupulosos, e outros trabalham com má
vontade, alegando baixos salários.

— O que falta mesmo é amor e senso de caridade entre os homens


— falou Gertrudes. — E importante ser-se um bom profissional,
mas é ainda mais importante ser-se humanitário e caridoso para
com as pessoas. Isto é que tem feito tanta falta neste mundo. Se os
homens atentassem um pouco mais para as palavras de Jesus,
quando ele se refere a "amar o próximo como a si mesmo",
deixariam de fazer distinção entre as pessoas e a todos encarariam
como filhos igualmente gerados por um Deus único, bom, justo e
soberano. Estou falando, principalmente dos nossos maus
governantes e daqueles infelizes profissionais, especialmente na
área da saúde, que insistem em ver o sofrimento dos seus pacientes
apenas como oportunidade de engordar as suas contas bancárias.
Inclui também os funcionários públicos que torcem o nariz para os
desvalidos e, numa atitude completamente equivocada, fazem a
distinção das pessoas apenas pela aparência física. São pessoas que
merecem a nossa piedade, pois estão construindo os seus próprios
padecimentos futuros.

— Infelizmente, não existe muita gente com este nível de


consciência — disse Carlos. — É por isso que pessoas como a
senhora, dona Gertrudes, são tão importantes para a sociedade. A
senhora faz de graça aquilo que muitos ganham para fazer e se
recusam.

— Não, Carlos. Não superestime a minha modesta contribuição.


Apenas tenho consciência de que não estou aqui a passeio e procuro
justificar a minha estada neste planeta de expiações, participando
com uma parcela insignificante. Herdei de meu querido pai a tarefa
de auxiliar os penitentes a terem suas dores atenuadas, faço-o com o
maior carinho e a maior devoção, mas isto não faz de mim um ser
humano melhor do que ninguém, já que também possuo as minhas
fraquezas e trago faltas do passado a serem resgatadas.
— Dona Gertrudes, a senhora é uma pessoa muito especial sim e,
por isso, quero lhe expor um projeto e fazer-lhe um convite — falou
Eugênia.

— Obrigada, minha filha. Vou aceitar o seu elogio como um gesto


de carinho, embora discorde quanto a isto, de ser uma pessoa
especial. Mas, que projeto é este?
— Eu não sei explicar o motivo, mas tenho em mente, e já comentei
várias vezes com o Carlos, uma vontade imensa... Mais do que isso,
uma verdadeira necessidade de desenvolver um trabalho social
nesta cidade. Desde que passei a lecionar na escola pública, tenho
convivido diariamente com dezenas de crianças que, salvo algumas
exceções, têm na merenda escolar a sua única refeição diária. Essas
crianças comentam comigo sobre as suas dificuldades. Em muitos
casos os pais estão desempregados, outros estão ganhando salários
irrisórios ou até mesmo doentes. Há também os filhos de pais
irresponsáveis, viciados... Enfim, há situações de todo tipo. A
criança que está em idade escolar, ainda pode fazer pelo menos uma
refeição, mas as que não chegaram a esta idade, nem disto dispõem.
Uma vez, eu vi um aluno colocando parte da merenda escolar
dentro da mochila. Perguntei por que ele estava fazendo aquilo e ele
respondeu que era para levar à irmãzinha mais nova, pois em casa
não havia nada para comer.

Eugênia fez esta narrativa com a voz embargada pela emoção.


Gertrudes a observou seriamente e comentou:

— E muito bom que você tenha esta consciência, Eugênia. Esta


realidade eu já conheço desde criança. Muitos desses pais a que
você se refere, foram também crianças necessitadas e sempre
recorriam ao meu pai, em busca de auxílio. Hoje, são os filhos deles
que me procuram, muitas vezes pedindo um pedaço de bolo, um
copo de café, para matar a fome. Eu procuro atendê-los na medida
do possível, mas nem sempre me é possível fazê-lo.

— Naturalmente, a senhora não dispõe de muitos recursos —


emendou Carlos.

— Faço todo o possível para ajudar e fico com o coração apertado


quando não consigo. Quanto a você, Eugênia, este
comprometimento a que se refere pode ter sido firmado na
espiritualidade, antes da sua encarnação atual. Aliás, é para isto que
servem os favorecimentos materiais que a espiritualidade concede
aos homens. E para testar a sua capacidade de doação em oposição
à fraqueza auferida no egoísmo.
— Depois que, graças à senhora, passei a conhecer o Espiritismo,
eu não tenho mais dúvida disto. Encaro hoje esta missão como um
compromisso muito sério e sinto que devo colocá-la em prática, tão
logo me seja possível.

— Você sabe que não será nada fácil, não é, Eugênia?

— Quanto a isto, eu não me iludo. O que espero é que o meu pai


mude de atitude, que se torne uma pessoa mais compreensiva e me
permita usar uma parte dos seus bens materiais em favor dos
necessitados. Afinal, tudo o que ele conquistou até aqui, tem sido
usado egoisticamente. Ao mesmo tempo em que eu vejo a miséria
na vida dessas crianças, vejo a fartura e muitas vezes até mesmo o
desperdício dos alimentos que são produzidos na fazenda de meu
pai. E por isso que eu tenho certeza de que o projeto é viável, sim. E
tudo uma questão de boa vontade. A senhora percebe que não é
nenhuma utopia o que tenho em mente?

— Sim, minha filha. Muitas vezes, a prática da caridade está muito


mais ao alcance do que supomos e nós só não a desenvolvemos por
comodismo.

— Eu penso em implantar, num canto qualquer da fazenda, uma


espécie de escola suplementar. Mas não nos moldes das escolas
oficiais. Um lugar onde possam ser acolhidas as crianças que ainda
não atingiram a idade escolar e mesmo as que estudam, em seus
horários ociosos. Ali, essas crianças seriam incentivadas a
desenvolver atividades esportivas, culturais e recreativas, além, é
claro, de serem cuidadas e devidamente alimentadas.

— Mas... e quanto às despesas de manutenção deste espaço?

— Isto precisa ser melhor estudado, mas tenho a impressão de que


não será inviável, pois eu sei que posso contar com um bom número
de voluntários. Tenho conversado com as outras professoras e até
mesmo com algumas mães e pais de alunos. Muitas dessas pessoas
se propõem a ajudar, assim que o espaço estiver pronto. Quanto aos
alimentos, nós podemos aproveitar o que hoje é desperdiçado e
produzir ainda mais na própria fazenda, com o auxílio desses
voluntários. É claro que para isto dar certo, preciso contar com a
adesão de meu pai e este é o ponto que mais me preocupa. Preciso
falar com ele sobre isto, mas ainda não tive coragem.

— Realmente, esta parte é a mais complicada, mas precisa ser


vencida — disse Gertrudes. — E quanto ao convite?

— Ah, sim. Segundo as suas próprias palavras, as pessoas precisam


de alimento não só para o corpo, mas também para o Espírito, não
é?
— Naturalmente, minha filha. E não são as minhas palavras
somente, são palavras do Evangelho. A fome do Espírito é ainda
mais grave do que a fome da matéria.
— Então, eu quero convidá-la para ser a dirigente espiritual desta
futura casa de caridade.

— Oh, Eugênia! Quanta honra, minha filha. Não sei se estou à


altura de assumir um posto tão relevante, mas como recusar a um
convite seu? Coloque o projeto em prática e pode contar comigo,
sim. Farei tudo com muito amor e dedicação.

— Eu tenho certeza disto, dona Gertrudes — disse Eugênia,


abraçando-a.

***
Logo depois, os três entraram no galpão, onde Anselmo se achava
acamado.

— Olha a novidade! Tem visitas para o senhor — disse Gertrudes.

E abriu uma fresta da janela, de onde uma tênue luminosidade


quebrantou a penumbra do aposento.
Ela falava com voz alta, pois, devido a uma infecção no ouvido, o
enfermo estava quase surdo.

Então Anselmo, que já pensava estar dando trabalho em demasia


para a anfitriã, sentiu-se ainda mais desconfortável com a presença
do jovem casal.

Receber visitas era um luxo do qual ele se sentia totalmente alijado.


Como poderia alguém se importar com o destino de um andarilho
aleijado e disforme como ele? — indagou-se.

— Como o senhor está se sentindo? — perguntou Eugênia com


brandura, enquanto segurava na mão defeituosa de Anselmo e o
encarava com seus olhos infinitamente calmos.

— Graças a Deus, já estou bem melhor — respondeu ele, tentando


ser convincente, apesar da voz arrastada. — Acho até que já devia ir
embora. Já dei muito trabalho...

— Isto está fora de questão — atalhou Gertrudes, com fingida


braveza. — Depois riu e apontou para o rapaz. — Este é o Carlos, o
moço de quem eu lhe falei, Anselmo. Foi ele que o socorreu,
lembra? E esta moça linda é Eugênia, a namorada dele.

Anselmo olhou para o casal que sorria para ele e foi acometido de
um estranho mal-estar.
— Nós, por acaso, já nos conhecemos? — perguntou com a voz
meio trêmula.
— Provavelmente, não. O senhor já esteve aqui antes? — respondeu
Carlos com outra pergunta.

— Não. Nunca!

— Então é praticamente impossível, pois eu também não fui a


muitos lugares e não me lembro de tê-lo visto antes daquela manhã
que o socorri.
— Deus lhe pague pelo que fez por mim, seu moço — disse o
andarilho, sentindo-se mais aliviado.

— Já está pagando, seu Anselmo. Tenho tido muita sorte na vida,


graças a Ele! — disse isto e olhou para Eugênia, deixando bem claro
o que queria dizer com a palavra sorte.

Eugênia aproximou-se de Carlos, abraçou-o e os dois ficaram bem


defronte a Anselmo que agora tinha uma visão mais definida do
casal. A sensação que experimentou não foi das mais agradáveis.
Sem saber porquê, teve uma repentina vontade de chorar e, apesar
do grande carinho que demonstravam por ele, o aleijado se sentiu
extremamente constrangido. Algo dentro de si transmitia aquela
estranha sensação, mas, ao mesmo tempo, parecia alegrar-se com o
encontro. Parecia uma situação já programada, algo extremamente
necessário.
A visita não durou muito e, antes de se retirarem, Carlos ajudou
Anselmo a se banhar e a vestir as roupas que levara para ele.
Prometeu voltar no dia seguinte para ajudá-lo novamente na
higiene e para baterem um papo mais descontraído.

— Vai ser bom — disse Gertrudes. — Ele anda muito triste e calado.
Quem sabe você não o alegra um pouco?

Eugênia ficou impressionada com o tratamento que Gertrudes


vinha dispensando ao paciente.

—A senhora é praticamente uma médica. Como aprendeu a cuidar


tão bem de um enfermo?

E a velha benzedeira percorreu o aposento com os olhos,


demonstrando enxergar ali um grupo de amigos espirituais e disse
sorrindo.

— Nada faço sozinha, minha filha. Quem manipula minhas mãos e


minha mente são eles, os amigos espirituais, que aqui se encontram.
São eles os verdadeiros médicos que atendem aos assistidos. Eu sou
apenas um instrumento a serviço da espiritualidade, como meu pai
o foi durante muitos anos.

15
Conhecendo o Evangelho
Pergunta: Deus facultou a todos os homens os meios de conhecerem sua lei?
Resposta: Todos podem conhecê-la, mas nem todos a compreendem. Os homens de
bem e os que desejam pesquisá-la são os que melhor a compreendem. Todos,
entretanto, a compreenderão um dia, pois e preciso que o progresso se realize.

L.E. - Questão 619

No dia seguinte, Carlos cumpriu o prometido e foi visitar Anselmo,


ajudou-o novamente a se banhar e deu-lhe iogurtes e queijos
produzidos na fábrica. Foi a primeira vez que o andarilho
experimentou iguarias tão deliciosas e as devorou com a avidez de
uma criança faminta. Passou a ter um comportamento mais alegre e
interessou-se em conversar amenidades.

Gertrudes, vendo naquele momento de descontração uma boa


oportunidade para esclarecimentos, colocou uma cadeira ao lado de
Carlos, sentou-se e, olhando para Anselmo, sugeriu:
— Que tal, se fizéssemos uma leitura do Evangelho?

— Ótima idéia! — concordou Carlos, que não perdia nenhuma


oportunidade de ouvir as explanações de Gertrudes sobre a vida
espiritual.
Anselmo, que sempre via com curiosidade Gertrudes folheando
aquele livro, nada respondeu, apenas ficou em silêncio para ouvir a
leitura do item 9 do capítulo XI de O Evangelho segundo o Espiritismo:

A verdadeira propriedade:

"O homem verdadeiramente não possui senão aquilo que pode


levar deste mundo. O que ele encontra ao chegar e o que deixa ao
partir, goza durante a sua permanência na Terra; mas, desde que é
forçado a deixá-los, é claro que só tem o usufruto, e não a posse real.
Que é então que possui? Nada do que é de uso do corpo; tudo o que
é de uso da alma: a inteligência, os conhecimentos, as qualidades
morais. Isso o que traz e leva consigo, o que ninguém pode arreba-
tar, o que lhe será de muito mais utilidade no outro mundo do que
neste. Dele depende estar mais rico ao partir do que ao chegar neste
mundo, porque a sua posição futura depende do que ele houver
adquirido no bem. Quando um homem parte para um país lon-
gínquo, arruma a sua bagagem com objetos de uso nesse país e não
se carrega de coisas inúteis. Fazei, pois o mesmo, em relação à vida
futura, aprovisionando-vos de tudo o que nela vos poderá servir..."
Gertrudes encerrou a leitura, pousou o livro no colo e disse:

— Compreenderam?

— Eu compreendi muito bem — disse Carlos.

Como Anselmo permanecesse em silêncio, a mulher perguntou:

— E você, entendeu?

— Pra ser sincero, não entendi muito bem, dona Gertrudes.

— Gostaria de uma explicação?

— Se não for lhe ocupar o tempo.


—É uma ocupação necessária e prazerosa, Anselmo. A leitura diz o
seguinte: O homem deve se ocupar mais em conquistar riquezas
espirituais do que materiais, porque tudo o que ele conquistar na
Terra, fica aqui, no dia em que ele deixa o corpo físico. Por mais rico
que seja, por mais posses que possua, por mais poder que detenha,
quando segue para a pátria espiritual, ele não leva nada disso. Leva,
sim, as conquistas morais, os sentimentos, os conhecimentos, enfim,
tudo aquilo que lhe será útil naquela dimensão. Portanto, o homem
que não se preocupa em armazenar em si estas riquezas, por mais
rico que tenha sido na Terra e por mais poder que aqui tenha
conquistado, será como um indigente na espiritualidade.

E Gertrudes, com seu jeito carinhoso e brando de falar, fez uma bela
explanação sobre o tema. Suas palavras caíram como gotas de luz
no limitado entendimento de Anselmo. Projetou réstias de
luminosidade em sua obscura inquietação interior.

A medida que ela falava, ele parecia absorver cada palavra, não
somente com os ouvidos, mas com todo o seu corpo e com toda a
sua alma. Interessou-se muito por aquele novo aprendizado e fez
muitas perguntas à benzedeira. Queria saber sobre reencarnação,
vida além-túmulo, lei de causa e efeito, razão dos sofrimentos
atuais...

Gertrudes acolheu com muita alegria a curiosidade de Anselmo e,


na medida do possível, o foi esclarecendo, mas era pergunta demais
a exigir resposta. Anselmo contou a ela sobre a premonição da
cigana, falou dos sonhos que passara a ter com aquela cidade, falou
da sensação que sempre tivera de estar se penitenciando ao nascer
aleijado e miserável.
A mulher ouviu tudo com muita atenção e, ao final, disse com sua
voz sempre tranqüila.
—Anselmo, nada acontece conosco sem a aprovação de Deus. Para
todas as ações que nos atingem existe sempre uma razão lógica,
pautada no planejamento da providência divina. Você está
interessado mesmo em conhecer toda a verdade? — perguntou-lhe
com entusiasmo.

— Sim, senhora. Sempre tive muitas dúvidas e agora sei que a


senhora pode me ajudar.

— Então, vamos fazer assim: todos os dias, vamos tirar um tempo


para estudarmos o Evangelho e esclarecer os seus questionamentos,
está bem?

— Por mim está ótimo! Eu lhe agradeço muito, dona Gertrudes.


— Não precisa agradecer. Ah, Carlos, se você quiser participar,
podemos combinar um horário que não lhe atrapalhe no trabalho.

— Por mim também está ótimo, dona Gertrudes. Estarei aqui


sempre que for possível, neste mesmo horário.

Assim, deram início aos estudos. A pessoa mais interessada no


aprendizado era Anselmo, cuja saúde foi lentamente se
restabelecendo.
Uma bonita e sincera amizade se desenvolveu entre Anselmo e
Carlos e, à medida que foram estreitando o relacionamento, os dois
passaram a conversar sobre suas vidas, a se conhecerem melhor.
Anselmo narrou ao rapaz toda a situação que vivera até chegar
àquela cidade e os percalços pelos quais passara deixou o rapaz
extremamente emocionado.

— O senhor ainda sente muita falta da sua mãe, não é mesmo?


Sim, mas agora, com as explicações que a dona Gertrudes tem —
me dado sobre a vida depois da morte, eu já não sofro tanto.
— Que bom!
—Antes, eu achava que minha querida mãezinha estava bem
próxima, cuidando de mim, mas era só uma desconfiança. Agora,
não. Agora eu tenho certeza de que isto é real. O Evangelho me
mostrou que tudo é verdade, que a morte é mesmo só uma
passagem de um mundo pro outro. Isto explica, inclusive, porque é
que eu nasci aleijado deste jeito. A cigana estava certa, eu devo ter
aprontado muito pra merecer este sofrimento e agradeço a Deus por
estar sofrendo, porque agora eu sei que pedi esta penitência e se eu
cumprir direitinho, vou chegar melhor lá do outro lado.

— Mas nem tudo é sofrimento, não é, seu Anselmo? Afinal, o


senhor me disse que aprendeu a arte de esculpir.

— É verdade. Graças à bondade do saudoso seu Plínio, que Deus


fez a caridade de botar no meu caminho, aprendi a fazer os meus
santinhos e é com este ofício que venho defendendo o pão de cada
dia.

— Então, precisa retomar a sua produção. O senhor já não está


curado o suficiente para fazê-lo?

— Já. Mas eu precisaria de madeira e não dá pra ir ao mato


procurar. Ainda sinto muita tonteira, às vezes. Minha perna direita
está muito machucada, quase não posso sair da cama.

— Se é por isto, está resolvido. Amanhã, quando eu vier, vou lhe


trazer matéria-prima e o senhor faz o seu trabalho aqui mesmo, no
galpão.

— Mas, vai fazer muita sujeira...

— A sujeira que fizer eu limpo — atalhou Gertrudes que acabara de


entrar no cômodo, trazendo duas xícaras de chá. — Isto não é
desculpa para você não trabalhar, ouviu? Estou muito curiosa para
apreciar a sua arte.
E a partir daquele dia, Anselmo, embora ainda se encontrasse
convalescente, necessitando dos cuidados de Gertrudes, voltou,
lentamente, a confeccionar as suas esculturas. A primeira que fez,
uma Nossa Senhora das Dores, deu de presente à anfitriã. E com a
segunda, um São Sebastião de tamanho considerável, presenteou o
amigo Carlos. Ambos ficaram impressionados com a beleza das
peças.
***

Um dia, Anselmo notou que Carlos estava triste, o que não era
muito comum e o instigou a contar o que estava acontecendo.

— Meu problema é complicado — disse ele, com certo desânimo na


voz. — Eu e Eugênia nos amamos muito e pretendemos nos casar,
mas seu Fagundes jamais me aceitará como gemo. Ele cismou que a
Eugênia tem que se casar com um rapaz rico.

— Ele tem muitas posses?

— Nem tanto. Na verdade, nasceu rico, mas passou a vida inteira


dedicando-se às apostas. Ele é viciado em jogos e sempre apostou
muito dinheiro. Tanto ganhou quanto perdeu, só que, nos últimos
anos, segundo se comenta por aí, parece que andou perdendo
muito. Dizem que o único bem que lhe restou foi a fazenda onde
vive, mas que também esta já estaria comprometida com seus
credores.

— A Eugênia sabe disto?


— Pelo jeito, ela não sabe de nada, tanto que tem projetos sociais
que pretende desenvolver, contando com o auxílio financeiro do
pai. De qualquer modo, estes comentários podem ser somente
especulações. Talvez a coisa não esteja tão complicada quanto se
comenta.

— Você disse que só restou a fazenda?


— Sim, é o que dizem. E se for verdade, as coisas ficam mais
complicadas ainda.

— Por quê?
— Porque o seu Fagundes pode querer forçar mais a situação para a
Eugênia se casar com um homem rico, para que ele se reestruture
financeiramente.
— Mas isto é um absurdo! Não se pode fazer de um filho uma
moeda de troca.
— Como esperar sensatez de uma pessoa que vive enfiada num
mundo tão ilusório quanto o do jogo, seu Anselmo?
— É. Você tem razão, Carlos. Mas o importante é que Eugênia lhe
ama e você a ela. O pai dela não pode fazer nada quanto a isto e este
negócio de forçar filha a se casar, é coisa do passado. Ninguém mais
se presta a isto.

— Eu sei, seu Anselmo. Mas poderia ser diferente. Eu e Eugênia


quase não nos vemos para evitar confrontos com o pai dela.
Naquele dia mesmo que estivemos juntos aqui, viemos escondidos.
É sempre assim que nos encontramos. Ela fica muito triste, às vezes,
por causa desta situação, pois, no fundo, se preocupa com o pai.
Espera que ele mude o comportamento. Eugênia tem um coração de
ouro e não gosta de ver o pai contrariado.

— Mas é ele quem está dificultando as coisas. Parece ser um


homem complicado.

— Eu sei, seu Anselmo, mas isso não impede de nos sentirmos


muito mal.

***

E os dois amigos conversaram muito sobre aquele assunto. Um


invisível elo de fraternidade estreitava-os gradualmente, sem que
sequer se dessem conta disso. O drama de Carlos e Eugênia
incomodava profundamente o coração de Anselmo e ele lamentava
não ter condições de ajudar o casal a resolver os seus problemas.
Acompanhando tudo a uma certa distância, Gertrudes notava
aquela aproximação e sorria por dentro, mantendo a sua costumeira
discrição. Ela tinha certeza de que nada daquilo estava acontecendo
por acaso, mas guardava para si todos os segredos, pois percebia
que as coisas estavam caminhando exatamente como deveriam ter
sido programadas.

***

Quando Eugênia voltou a visitar Anselmo, um mês depois, em


companhia de Carlos, surpreendeu-se com a disposição do homem.
Encontrou-o trabalhando, entalhando os seus santinhos, sorridente
e animado.

— Minha nossa, seu Anselmo! O senhor nem parece mais a mesma


pessoa que estava estirada na cama, naquele dia.

— Graças a Deus, dona Eugênia, e a esta verdadeira santa que se


chama dona Gertrudes — respondeu ele emocionado.
— Além disso, pela primeira vez na vida, encontrei um amigo de
verdade e também isto me tem feito muito bem.

Carlos sorriu e o abraçou.

— Tenha certeza de que este sentimento é recíproco, seu Anselmo.


Sua amizade tem sido muito boa para mim também.

E os quatro iniciaram uma conversa animada que durou horas e


estreitou ainda mais os laços de afinidade que os havia aproximado.
16
Voltando a sonhar
Pergunta: Durante o sono, a alma repousa como o corpo?
Resposta: Não. O Espírito jamais está inativo. Durante o sono, afrouxam-se os laços
que o prendem ao corpo e, então, não precisando o corpo da sua presença, o Espírito
se lança no espaço e entra em relação mais direta com os outros Espíritos.

L.E. - Questão 401

Numa noite em que estava dormindo profundamente, Anselmo


sonhou com sua mãe. Um sonho bastante claro e inequívoco que o
fez, no dia seguinte, logo após acordar, procurar Gertrudes em
busca de esclarecimentos. Nesta ocasião, eleja havia voltado a
andar, apoiado em sua bengala. Encontrou a anfitriã na horta de
ervas medicinais, limpando os canteiros.
— Bom dia, dona Gertrudes!
— Bom dia, Anselmo! De pé, já tão cedo?
— Tive um sonho que me deixou muito impressionado e, de
alguma forma, eu sinto que ele é uma seqüência dos sonhos que me
fizeram chegar até esta cidade.

— Ah, e você quer falar sobre isto, não é?

— Se for possível...

— E claro que sim, meu amigo. Vamos entrar, que eu vou preparar
um desjejum e nós conversamos, está bem?

Pouco depois, estavam tomando café e Anselmo narrou o que havia


sonhado.

— Minha mãezinha apareceu lá no galpão esta noite. Estava linda,


toda de branco. Fez sinal pra que eu a seguisse, como não encontrei
a minha bengala, eu disse a ela que não podia andar, então ela ficou
rindo pra mim. Aí eu percebi que podia andar sim, ou melhor, que
podia flutuar e fui atrás dela. Ainda olhei pra trás, vi o meu corpo
na cama e achei esquisito aquilo, porque, ao mesmo tempo que
estava deitado, eu ia saindo do galpão com minha mãezinha. Como
é que pode ser isto, dona Gertrudes?

— E até muito simples, Anselmo. Você já aprendeu em nossas


leituras, que nós somos Espíritos e não matéria. Nós habitamos o
corpo durante o período encarnatório, mas não estamos presos a ele
o tempo todo. Durante o sono, quando o nosso corpo está
repousando, nós ficamos livres temporariamente e é comum
sairmos por aí, para visitarmos nossos entes queridos, resolvermos
algumas questões pendentes, nos instruirmos, ou até mesmo
fazermos coisas erradas, se os nossos instintos assim quiserem.

— Então, o que a gente pensa que é sonho, é coisa real?

— Sim. Na grande maioria das vezes, são realidades vividas pelo


Espírito nessas incursões, ou seja, nessas visitas à pátria espiritual,
onde faz contato com as pessoas afins que lá se encontram.

— Que coisa interessante!

— Vê como Deus é maravilhoso, que até isto nos permite fazer?


— Sim, mas por que a gente não se lembra de todos os sonhos, ou
lembramos só pela metade?
Por causa da limitação que nos é imposta pela matéria. O Espírito é,
mal comparando, como um pássaro que voa muito alto e tenha uma
visão bastante ampla das coisas à sua volta. Quando o Espírito volta
à matéria é como se esse pássaro fosse aprisionado — numa gaiola,
ou seja, passa a ter uma visão muito mais limita da. E por isso que
nós não conseguimos nos lembrar de tudo o que acontece nesses
momentos de liberdade espiritual, porque quando voltamos ao
corpo é como se estivéssemos enjaulados.
Mas, do sonho desta noite eu consigo me lembrar muito bem. Foi
diferente, senti a presença da minha mãezinha como nos tempos
que ela estava junto comigo, senti a brisa da noite, o sereno, tudo.

— E o que aconteceu?

— Minha mãe me levou a um lugar estranho. Parecia um casarão


abandonado, quase todo engolido pelo matagal. Um lugar triste,
sabe? Eu me senti muito mal lá, quis voltar correndo, mas ela me
acalmou e me falou com uma voz que eu não podia ouvir, mas que
entrou direitinho na minha mente. Ela disse assim: "Anselmo,
procure se lembrar deste lugar. E muito importante!". Então eu
fiquei olhando, olhando, e comecei a ter uma lembrança apagada.
Mas foi uma sensação ruim, era como se eu estivesse revivendo
umas coisas do passado que me fizeram ter vergonha. Estava aflito,
e ao mesmo tempo com medo. Tinha a sensação de estar sendo
ameaçado, estava muito fraco e doente. Fiquei perturbado com
aquilo, senti vontade de chorar... Então, mamãe me deu um beijo
com muito carinho, despediu de mim e, de repente, eu estava de
volta na cama.
Quando Anselmo terminou a narrativa, com a voz carregada de
emoção, Gertrudes comunicou-lhe:

— Acho que sei onde fica este casarão.

— É mesmo?

— Desconfio que seja o casarão mal-assombrado da fazenda do pai


de Eugênia.

— Casarão mal-assombrado?

— Sim. Lá na propriedade do seu Fagundes tem um casarão em


ruínas do jeito que você descreveu, quase todo recoberto pelo mato.
Era a antiga sede da fazenda e foi abandonado porque, segundo se
comenta aqui nas redondezas, ele ficou mal-assombrado depois que
o antigo dono daquelas terras, um tal de coronel Elpídio morreu.
Muita gente dizia ter ouvido os gritos do coronel, anos e anos após
a sua morte. Diziam que eram gritos horripilantes e desesperados,
emitidos do quarto do velho fazendeiro que parece ter sido um
homem muito sovina.

— A senhora acredita em assombração?

— Em assombração, não. Mas em Espíritos perturbados e


perturbadores, sim. Com certeza, esse tal coronel, por ser muito
materialista, passou alguns anos preso aos seus bens materiais.
Manteve-se ligado ao ambiente onde viveu e onde desencarnou.
— E por que será que ele ficava gritando?

— Pode ter sido por vários motivos. Sentimentos de remorso ou de


revolta por se ver sem o corpo e sem o poder que a matéria lhe
proporcionava. Mas pode ter sido também por perseguição de seus
inimigos desencarnados, ou seja, os obsessores.

— Obsessores?

— Sim, suas vítimas. Pessoas a quem ele deve ter prejudicado e que
não o perdoaram.

— Mas, dona Gertrudes, e o que é que eu tenho a ver com tudo


isto? Será que esse coronel Elpídio fui eu em outra encarnação?
Como lhe disse, a sensação que tive foi a de que era eu que estava
vivendo aquilo tudo, me sentindo doente, fraco e com muito medo.
Foi muito ruim o que senti naquele lugar, foi como se estivesse
revivendo um momento antigo, mas ainda muito vivo aqui, dentro
de mim.
E Anselmo ficou bastante agitado enquanto fazia esta narrativa.
Sacudia a cabeça, como se pretendesse, com esses movimentos,
espantar as más recordações. Sua voz estava alterada, meio chorosa.
Gertrudes interveio.
- Calma, Anselmo! — pediu ela, apoiando a mão no ombro do
amigo. — Que importa isso agora?
O que interessa é a sua nova consciência. Se errou no passado e
pediu para vir consertar esse erro, ou pelo menos parte dele, você
está conseguindo, meu querido. E isto é o que realmente interessa.
Hoje você é uma pessoa de bem, um homem íntegro, honesto, de
coração puro.
— Mas, dona Gertrudes, essas coisas mexem muito com a gente...

— Eu sei, meu querido. Mas não deixe o remorso enfraquecer a sua


fé e o seu amor pela vida. Se essas coisas estão sendo mostradas a
você, é porque Deus permitiu e, com toda certeza, não foi para que
você ficasse ruminando os seus remorsos, foi para que as suas
atitudes de agora possam servir de reparação aos desatinos de
outrora. Os nossos erros passados, em determinadas circunstâncias,
podem nos ser mostrados com a autorização do Plano Maior, mas
isto não é feito com o objetivo de nos envergonhar, mas para que
possamos consertá-los ou atenuar o prejuízo que causamos aos
outros. Ou seja, de acordo com o nosso merecimento, nós recebemos
um... digamos... empurrãozinho para a direção correta de nossos
objetivos.

— E isto sempre acontece através dos sonhos?

— Não necessariamente. Muitas vezes, vem em forma de sugestão,


de um conselho inserido em nossa mente. Quando isto ocorre, nós
quase sempre pensamos que é obra da nossa intuição, mas na
verdade são conselhos transmitidos pelos Espíritos benfeitores que
nos acompanham. Há ainda os casos em que tais conselhos partem
da boca de pessoas amigas, parentes ou até mesmo de
desconhecidos que de nós se aproximam, demonstrando repentino
interesse pelos nossos dilemas. Muitas vezes, estas pessoas estão
trazendo a solução para problemas que nos parecem insolúveis.
Tudo isto ocorre com a participação do plano espiritual, que atua
constantemente em nossas vidas.

Anselmo se acalmou. Permaneceu um tempo cabisbaixo, o rosto


preso entre as mãos.

Naturalmente, Gertrudes já sabia de toda a história, porém, uma


vez mais, fazia prevalecer o antigo conselho dado pelo pai, ou seja,
bastante discrição na hora de lidar com a experiência de vidas
passadas de seus consulentes.

Com seu tom de voz sempre brando e afetuoso, retomou o diálogo.

— O tipo de relação que você tem com aquele lugar, não importa,
Anselmo. O que importa neste momento é seguir as inspirações que
lhe estão sendo transmitidas pelas entidades espirituais.
— Lembrei-me agora, dona Gertrudes, de uma cena que visualizei
no momento em que estava deixando o casarão. Foi uma coisa
bonita, que me deixou muito emocionado.

— Que cena foi esta?

— Eu já estava me afastando daquele lugar triste quando, de


repente, eu vi que ele estava todo reconstruído, iluminado, com as
paredes caiadas, bem branquinhas, as portas e as janelas
envernizadas, o telhado novinho... De dentro dele, eu ouvi um
piano tocando uma música alegre, acompanhada pelas vozes de um
coral de crianças. Eu fiquei todo arrepiado e comecei a chorar de
emoção. O que será que isto significa?

— Isto é mais difícil dizer, meu amigo. Esta imagem tanto pode
representar o futuro, quanto o passado. Como pode também não ser
nem uma coisa, nem outra. Pode ter sido uma projeção da sua
própria mente para aliviar a tristeza daquele lugar.
— Difícil é acreditar que aquilo não foi real, dona Gertrudes,
porque tudo o que vi e ouvi nesta noite está muito vivo dentro de
mim. A senhora acha que eu devo ir até lá?

— Você está com vontade de fazer isto?


— Estou, sim senhora. Sinto que preciso fazer isto o mais
rapidamente possível.

— E uma longa caminhada e é preciso ter bastante cuidado, pois


embora fique afastado da atual sede da fazenda, se o seu Fagundes
o ver, pode não gostar nem um pouco e tomar alguma medida
agressiva contra você.

— Dona Gertrudes, estou acostumado com as duas coisas: apesar


de ser um aleijado, sou um andarilho e fazer grandes caminhadas
tem sido a minha rotina há muitos anos e quanto a ser agredido,
venho passando por isto a minha vida inteira. Mais uma agressão
não vai fazer muita diferença.

— Você tem toda razão, meu amigo. As minhas preocupações não


podem servir de impedimento à realização da sua tarefa. Quando
quiser ir, vá, e que Deus o proteja.

— Acho que vou amanhã mesmo.

— Faça como o seu coração mandar. Eu vou ficar orando por você.

— Ótimo, dona Gertrudes, mas agora, fale mais sobre esta questão
dos sonhos, por favor!

E Gertrudes continuou esclarecendo Anselmo sobre a liberdade dos


Espíritos enquanto o corpo repousa e a importância destas
incursões como objeto de esclarecimentos e muitas vezes até de
reconciliação entre inimigos, o que explica o arrefecimento de certas
mágoas sem que os adversários tenham se entendido na esfera
material. Anselmo absorveu este novo conhecimento e ficou ainda
mais excitado diante da possibilidade de conhecer o velho casarão.

Mas, na manhã seguinte, acordou com febre e passou o dia inteiro


acamado. Nos dias sequentes, embora tivesse se curado, uma chuva
intermitente não o permitiu levar adiante o plano de visitar o
casarão, mas, quase todas as noites, ele voltava a sonhar com a cena
aflitiva e constrangedora no interior daquela antiga residência.

Percebendo a aflição do amigo, Gertrudes lhe sugeriu pedir auxílio.

— Carlos pode levá-lo na velha caminhonete. O casarão não fica


muito distante da estrada e a chuva deixará de ser um empecilho —
disse ela.

— Obrigado, dona Gertrudes, mas eu preciso fazer isto sozinho.


Tenho em mente que é uma tarefa minha e que as dificuldades que
estão aparecendo fazem parte da provação. Eu preciso vencer tudo
isto e fazer o que tem de ser feito.

— Muito bem — aplaudiu Gertrudes. — Isto é que é determinação!


Então espere o tempo melhorar e faça a sua parte, meu amigo. Tem
uma pessoa que lhe ama muito esperando exatamente isto de você.

E Anselmo sorriu enquanto duas lágrimas escorreram de seus olhos


cansados. Ele sabia que Gertrudes estava se referindo a Leonor e
por uns momentos pôde sentir os dedos da mãe a acariciar-lhe os
cabelos, como nos tempos remotos de sua infância.
17
Atritos em família
Pergunta: A felicidade terrestre é relativa à posição de cada um. O que basta para a
felicidade de um, constitui a desgraça de outro. Haverá, contudo, uma medida
comum de felicidade para todos os homens?
Resposta: Para a vida material, éa posse do necessário; para a vida moral, a
consciência tranqüila e a feno futuro.

L.E. - Questão 922

O clima na residência de Eugênia estava ficando insuportável. Há


dias, ela pressentia que o pai queria falar-lhe algo muito sério.
Prevendo que não deveria ser boa coisa e que Fagundes a cada dia
aumentava mais a ingestão de bebidas alcoólicas, a moça,
disfarçadamente, evitava ao máximo a aproximação dele,
permanecendo o maior tempo possível no local de trabalho ou
mesmo trancada em seu quarto.
Mas, à medida que se aproximava o fim do prazo dado pelo agiota
para se apossar da fazenda, Fagundes ia se desesperando e, numa
noite em que Eugênia estava se recolhendo para dormir, a conversa
tão adiada acabou sendo levada a termo de qualquer maneira.
— Eugênia, tenho um assunto muito urgente para tratar com você
— disse o jogador, segurando a moça pelo braço.
— Pai, eu estou muito cansada e com sono, não podemos conversar
outra hora? — disfarçou ela, percebendo a alteração do genitor e o
forte cheiro de aguardente em seu hálito.
— Não! — gritou Fagundes. — Esta conversa tem que ser agora e
vê se pára de fugir de mim, ou você acha que eu não tenho
percebido isto? Você sai e chega a esta casa na ponta dos pés, vive
trancada neste quarto, fingindo que está dormindo, dando a
entender que não está ouvindo quando lhe chamo...

— Está bem, pai! Vamos conversar, mas não precisa ficar tão
nervoso.
— Não estou nervoso, Eugênia, mas você precisa me respeitar
mais. Afinal de contas sou o seu pai e você me deve satisfações,
ouviu?
Eugênia teve vontade de rebater e mil palavras lhe vieram à mente,
mas ela conseguiu se controlar e, elevando ao máximo o
pensamento às boas vibrações espirituais, conteve-se e seguiu
Fagundes até a sala, onde se acomodaram numa ooltrona.
— Está bem, pai. Do que se trata?

— Eugênia, estamos com um problema muito grave para ser


resolvido e eu preciso muito da sua compreensão — prosseguiu
Fagundes com a voz um pouco embolada pelo efeito do álcool. —
Só você pode me ajudar a sair de uma enrascada em que mise-
ravelmente acabei entrando.
— Está bem, pai, por favor, vá direto ao assunto. Do que se trata?
— Estou devendo uma verdadeira fortuna para o Januário.

— Januário, o agiota?
Aquele miserável mesmo. Ele me pegou num momento de
fraqueza, me fez um empréstimo com uma taxa de juros muito alta.
Assinei as notas promissórias, gastei o dinheiro e não tive como
pagá-lo. Ele me deu um prazo para quitar a dívida, mas o prazo já
está vencendo e eu não estou conseguindo honrar o compromisso.
— Mas, pai, o senhor gastou tanto dinheiro com o quê?
— Isto não vem ao caso, Eugênia. Gastei com o que precisava ser
gasto e pronto.
— O senhor perdeu no jogo, não foi?
— Já disse que isto não interessa! — gritou Fagundes com
impaciência. — O que importa é que esta fazenda foi o único bem
que me restou e também ela vai deixar de ser minha... Ou seja,
nossa. O Januário vai tomá-la de nós. A fazenda foi a garantia que
dei a ele, quando recorri ao empréstimo.

— Meu Deus! Que loucura o senhor está me dizendo, pai!


— Eu sei. E é por isto que lhe disse que o assunto era urgente.
— Mas como é que o senhor acha que eu posso ajudar a resolver
isto?
— Eugênia, minha filha! — disse o jogador, tentando moderar o
tom de voz. — Você não é tão ingênua assim e sabe do interesse que
vários rapazes de família rica lhe devotam. Só eu conheço uma meia
dúzia que, se você estalar os dedos, vêm correndo para os seus
braços sem pestanejar.
— O quê? O senhor não desistiu desta história de eu me casar por
interesse material?
— E o que é que tem isto? Você não vai mesmo se casar um dia?
— Vou, mas não por interesse. Pretendo me casar por amor.
— Isto é uma grande bobagem. Todo casamento é igual, minha
filha. Só é bom no começo, depois tudo vira rotina.
— Não concordo com o senhor e não vou me submeter a um
absurdo desses.
Ah, não? E vai viver do quê? Eu estou mesmo velho e daqui a
pouco morro, mas você, não. Você tem uma vida inteira pela frente
e vai ser pobre pelo resto da vida?
Não estou preocupada com isto, meu pai. Prefiro viver na pobreza
ao lado do homem que eu amo, do que ter uma vida farta de
dinheiro e de contrariedades.
— Está me desafiando, Eugênia? — gritou Fagundes, retomando a
postura agressiva.
— Não, pai. Não o estou desafiando, estou discordando do senhor e
isto é muito diferente. E se o assunto era este, a minha decisão já
está tomada e a minha resposta é não!
Eugênia levantou-se num salto, correu e se trancou no quarto, antes
que o pai pudesse esboçar qualquer reação.
Fagundes, completamente descontrolado, começou a socar os
móveis. Bebeu uma grande quantidade de aguardente e ficou
gritando a plenos pulmões:
— Não pense você que esta conversa está terminada, não,
viu? Queira ou não queira, você é minha filha e me deve obediência.
Vai ter que fazer o que estou mandando, ouviu?

Logo depois, vencido pelo efeito do álcool, terminou desmaiando


no meio da sala.

Ao ver o pai subjugado, Eugênia apanhou algumas peças de roupa,


colocou-as numa mochila e dirigiu-se para a casa de Gertrudes,
onde chegou chorando muito, completamente desconsolada.

Entre soluços, narrou o que havia ocorrido em sua casa e Gertrudes,


amparando-a num abraço terno e reconfortante, pediu aos guias
espirituais que a acalmassem. Depois, conduziu-a ao seu próprio
quarto, fez a moça deitar-se em sua cama e ficou acariciando os
cabelos dela até que Eugênia pegasse no sono.
Mais tarde, Gertrudes foi ao galpão, onde encontrou Anselmo
preocupado.
— O que aconteceu? — perguntou ele. — Parece que ouvi choro na
sua casa.
— Aconteceu uma coisa muito grave, Anselmo. Eugênia e o pai se
desentenderam e ela veio se refugiar aqui.
_ O que houve com eles?
— Fagundes perdeu muito dinheiro nas mesas de jogo. Para tentar
recuperar o que havia perdido, pegou empréstimo com um agiota e,
como não consegue pagar a dívida, vai ter que entregar a fazenda a
ele.
— Meu Deus! Então, o que o Carlos suspeitava era mesmo verdade.
Mas, foi por isso que ele brigou com a filha?

— Não. Imagine que ele quer convencê-la a se casar com alguém


rico, só para salvar-lhe a situação financeira.

— Mas é assim tão fácil arranjar um casamento com herdeiro rico


por aqui?

— No caso de Eugênia, sim. Não existem muitas moças como ela


nessas redondezas. Além de ser linda, Eugênia tem muitas
qualidades. É uma moça séria, trabalhadora, inteligente e,
principalmente, desapegada de interesses materiais. E isto que faz
dela a nora que muitos pais daqui sonham em ter. Realmente, para
ela, seria muito fácil fisgar um bom partido e o sovina do Fagundes
sabe disso.

Anselmo apanhou uma peça que estava entalhando e começou a


lixá-la suavemente. Era uma Nossa Senhora Aparecida de quarenta
centímetros, já quase pronta.
— Meu Deus! Que escultura linda, Anselmo! — exclamou
Gertrudes ao ver a santa.

— A senhora acha? Estou fazendo para a dona Eugênia.

— Que bom, meu amigo, ela está mesmo precisando de um gesto


de carinho neste momento e vai adorar o mimo!

— Pobrezinha, deve estar sofrendo muito!

— É, Anselmo, e eu estou realmente preocupada, pois assim que o


pai souber que ela está aqui, ele virá atrás, com toda certeza.
— Então, vamos fazer uma oração e pedir a Deus que o acalme e
que nos proteja.

— Muito bom, Anselmo, assim é que se fala, meu amigo.

E os dois oraram a Deus pedindo bênção e proteção, principalmente


para Carlos e Eugênia, contra os quais deveria se voltar toda a ira de
Fagundes.

18
Encarando o passado
Pergunta: Qual a origem das faculdades extraordinárias dos indivíduos que, sem
estudo prévio, parecem ter a intuição de certos conhecimentos, como as línguas, o
cálculo, etc?
Resposta: Lembrança do passado; progresso anterior da alma, mas de que ela mesma
não tem consciência. De onde queres que venham tais faculdades? O corpo muda,
mas o Espírito não muda, embora troque de vestimenta.

L.E. - Questão 219

Anselmo não conseguia pegar no sono naquela noite. A lua estava


muito clara e explodia em flashes luminosos através das frestas da
janela e da porta do galpão.
Ele continuava pensando em Eugênia, preocupado com a atitude da
moça ao ir refugiar-se na casa de Gertrudes. Pensava em Carlos,
preocupado também com o desfecho que aquela história poderia
ter. Passara a amar os dois jovens como a dois filhos muito queridos
e tudo faria para vê-los felizes.
De repente, ocorreu-lhe uma idéia tentadora. Estava mesmo sem sono e a
noite enluarada era um convite irresistível para uma caminhada.
Afinal, Anselmo precisava certificar-se de que as pernas já estavam
realmente recuperadas.
Levantou-se, apanhou a bengala, enfiou no bolso seu inseparável
canivete e saiu sigilosamente para não causar preocupação a
Gertrudes, caso ela estivesse acordada.
Favorecido pelo clarão da lua cheia, ganhou a estrada, seguindo na
direção que a benzedeira havia lhe indicado que ficava o casarão
mal-assombrado. Não sabia se pretendia ou se conseguiria chegar
até ele, mas, instintivamente, seguiu naquela direção. Andaria o
tanto que as pernas suportassem e, quando se sentisse cansado,
retornaria.
E o andarilho se viu de volta à velha rotina. Há quantos anos fazia
aquilo? Não se lembrava. Desde a morte da mãe, a vida lhe tornara
um eterno caminhar. Era como se ele seguisse por uma trilha
invisível, porém inexpugnável. Uma intrigante e irresistível trilha
que, embora o projetasse à frente, lançava-o irremediavelmente ao
encontro do passado. Um passado que ele não conhecia, mas que
estava sempre presente em sua vida.
A medida que ia caminhando, sentia o aroma doce da brisa noturna,
a suavidade do sereno em seus cabelos e ouvia o trinar dos grilos a
fazer cócegas em seus ouvidos. Surpreendeu-se com a familiaridade
que aquela paisagem, banhada pela esplêndida luminosidade da
lua cheia, lhe incutia na alma. Cada curva, cada árvore antiga à
beira da estrada, cada saliência ou concavidade geográfica daqueles
campos...
Tudo, enfim, lhe era extremamente familiar e ele passou a ter
certeza de que já estivera antes naquelas paragens. A cada nova
descoberta, um forte sentimento de nostalgia invadia-lhe o peito e o
fazia suspirar profundamente. Enquanto andava, refletia sobre um
comentário que Gertrudes fizera certa vez:
— A vida é transitória e as sensações que alimentam a nossa alma se
alternam dentro de nós a cada novo passo, na inevitável jornada do
nosso dia-a-dia — dissera ela.
Anselmo quase não tinha instrução e não entendera direito o
sentido daquelas palavras, mas naquele momento elas passaram a
ter um significado importante para ele. Era exatamente como se
sentia ali, naquela estrada erma, triste e solitário, com uma estranha
e nova inquietação, aguda e persistente, a lhe revolver a alma.
Após quase três horas de caminhada, deparou-se com a imagem
fantasmagórica do antigo casarão, quase todo coberto pelo matagal.
Um forte arrepio percorreu-lhe a espinha e o fez tiritar de frio,
embora estivesse com o corpo suado após a exaustiva andança.
Mesmo temeroso, invadiu solitariamente os escombros da velha
casa. Seu coração batia em descompasso, suas pernas estavam
trêmulas. As sensações que o lugar lhe inspirava não eram nada
boas.
Para chegar à porta de entrada, galgou uma escadaria de oito
degraus. A madeira antiga rangeu quando ele empurrou lentamente
a porta, que estava quase despencando, presa somente por uma
dobradiça muito enferrujada. O telhado, completamente destruído,
mantinha apenas a grade de madeira que em tempos remotos
servira de apoio às telhas. Esse gradil filtrava a luz da lua cheia, que
se espalhava no interior do casarão, expondo ao solitário visitante o
estrago causado por tantos anos de abandono.
Anselmo vislumbrou em cada parede, em cada janela, em cada
cômodo daquelas ruínas, a mesma familiaridade notada na
paisagem lá fora e reconheceu no ambiente interno daquele casarão
o mesmo local onde estivera em sonho com a mãe, noites antes.
Localizou um corredor onde, ao final, encontrava-se uma grande
janela, presa também por uma velha dobradiça, quase caindo de
vez. Curioso, aproximou-se para contemplar a paisagem que
deveria se descortinar além dela, mas um espesso matagal havia se
desenvolvido à sua frente, obscurecendo totalmente a visão.
Decepcionado com esta descoberta, recuou uns passos e sentou-se
no chão, pois a perna machucada começara a doer. A sensação de
medo e de insegurança já não o incomodava tanto. Pretendia
descansar um pouco antes de retornar à estrada, afinal, o que
sobressaía nesse momento aos seus sentidos, eram o silêncio e a paz
reinante naquele lúgubre ambiente.
De repente, seus olhos foram atraídos para uns objetos minúsculos,
espalhados no chão, sob a grande janela e que refletiam um brilho
espetacular sob a réstia da lua. Inicialmente, Anselmo não deu
muita atenção àquilo, pensando tratar-se de fragmentos de
malacacheta ou coisa assim. Mas, à medida que foi observando, sua
curiosidade foi aumentando e ele resolveu investigar. Caminhou de
cócoras até junto da parede, apanhou um daqueles objetos e o
examinou. Eram pedras muito rijas e coloridas. Haviam caído de
um buraco feito na parede, sob a janela, e eram muito bonitas. Seu
dom artístico se manifestou e ele sorriu ao imaginar o que poderia
ser feito com aquelas pedrinhas coloridas.
Localizou a pequena concavidade um pouco abaixo do peitoril da
janela, de onde elas haviam caído. Ali, um pedaço do reboco havia
se soltado, demonstrando que se tratava de um remendo malfeito.
Por algum motivo, as pedras que se encontravam dentro deste
buraco, foram projetadas para fora, possivelmente pela ação de um
inseto. Anselmo pegou o canivete e escalavrou o reboco,
aumentando o buraco até que pudesse introduzir nele a sua mão e
percebeu que várias pedras ainda se achavam no interior da parede.
Apanhou-as, colocou-as no bolso e, satisfeito com o achado, voltou
a sentar-se, esperando que a dor da perna amainasse.
Uma hora depois, deixou o casarão. Andou alguns passos e, de
repente, uma força irresistível o fez olhar para trás. Novamente viu
repetir-se a imagem fantástica que vira em sonho. Não eram mais as
ruínas que lá estavam, mas o próprio casarão reconstituído, todo
iluminado, com suas paredes caiadas, suas portas e janelas
envernizadas, seu telhado ocre... De dentro dele, a música suave de
um piano espalhava-se pelos ares, misturada à alegria festiva de
vozes infantis que cantavam e riam descontraidamente.
Anselmo ficou alguns segundos contemplando aquela esplêndida
visão, depois esfregou os olhos, como se quisesse certificar-se da
realidade do que lhe era exposto, mas voltou, a enxergar somente as
ruínas sombrias, imersas na bucólica penumbra do matagal.
Bastante agitado pelos sentimentos desconexos que o invadiram, o
andarilho retomou a caminhada e, após mais três horas de andança,
retornou ao galpão de Gertrudes. O dia já estava amanhecendo
quando ele se atirou na cama e, completamente extenuado, pegou
no sono.

19
Possuído pelo demônio
Pergunta: Pode o homem libertar-se da influência dos Espíritos que o impelem ao
mal?
Resposta: Sim, visto que tais Espíritos só se apegam aos que os chamam por seus
desejos ou os atraem por seus pensamentos.

L.E. - Questão 467


Carlos passou pela casa de Gertrudes, como costumeiramente fazia,
ao final da tarde. Lá, ficou sabendo do que havia ocorrido entre
Eugênia e o pai, na noite anterior.

Preocupado, entrou em sua caminhonete e dirigiu-se imediatamente


para a escola, onde encontrou a moça cercada por meia dúzia de
alunos. Ao ver Carlos chegando, uma menina se aproximou dele e
disse:

— Estávamos fazendo companhia para a professora, porque ela está


muito triste hoje, seu Carlos.

— Obrigado! — respondeu o rapaz com um sorriso, dirigindo-se ao


pequeno grupo. — Vocês são muito gentis, mas agora podem deixar
que eu vou cuidar da professorinha de vocês.

As crianças aplaudiram, quando Carlos envolveu Eugênia num


carinhoso abraço. Depois beijaram a professora, despediram-se e se
retiraram, festivas.

— O que está acontecendo, meu amor? — perguntou Carlos, assim


que ficou a sós com a moça.

Eugênia deu um profundo suspiro e fitou o namorado com


desolação.
O que todos nós já esperávamos, Carlos. Meu pai está totalmente
descontrolado, bebendo muito e dizendo coisas sem qualquer
sentido. Ele perdeu a fazenda para um agiota e cismou que eu tenho
que tirá-lo desta enrascada, procurando um herdeiro rico para me
casar. Vê que idéia absurda? Discutimos muito ontem à noite, mas
— ele não se deu por satisfeito com a minha negativa. Disse que
quer retomar a conversa. Foi por causa disso que eu esperei ele
dormir, apanhei umas roupas e fui para a casa da dona Gertrudes.
Agora, estou em dúvida sobre o que fazer.
— Mas eu sei o que fazer, querida! Você não pode voltar para a
sua casa e novamente enfrentar o seu pai no estado em que ele se
encontra. Deixe as coisas se acalmarem primeiro. Dona Gertrudes
me contou que você dormiu lá, foi por isso que vim aqui. Para
buscá-la e levá-la de volta à casa dela.
— Você tem razão, Carlos. Se eu for para casa, meu pai vai começar
tudo de novo e ele está cada vez mais agressivo.

Entraram no carro. Carlos deu a partida e ia saindo, quando um


jovem empregado da fazenda de Fagundes aproximou-se
velozmente numa charrete. O rapazinho estava muito nervoso e foi
com a voz agitada que se dirigiu à professora.

— Dona Eugênia, o patrão me mandou vir buscar a senhora.

Eugênia olhou para o namorado, sem saber o que dizer, mas Carlos
não demonstrou qualquer dúvida quando respondeu ao rapaz.

— A Eugênia não vai para a fazenda hoje. Pode dizer isto ao pai
dela.

O desespero tomou conta do garoto.

— Pelo amor de Deus, dona Eugênia! Eu não posso voltar sem a


senhora. O seu Fagundes tá uma fera! Ele não vai se conformar.

Antes que Eugênia se manifestasse, Carlos desligou o veículo,


desceu e se aproximou do menino que estava quase chorando.
Apoiou a mão no ombro dele e perguntou:
— O que está havendo por lá? Por que você está tão assustado?
— Tá todo mundo apavorado com as atitudes do seu Fagundes,
moço. Ele tá muito esquisito. Parece que tá — aproximou a boca no
ouvido de Carlos para Eugênia não ouvir a delicada revelação —
possuído pelo demônio!
Carlos quase achou graça da situação e teria dado uma boa
gargalhada diante do ar de assombro do rapazinho, se o momento
não fosse tão grave.
— Não diga asneiras, menino! Vá e diga a seu patrão que a Eugênia
não vai para casa hoje e pronto.
— Mas, seu moço, ele vai ficar muito bravo. Vai querer me bater.
— Bater? Mas você não é nenhum escravo, é apenas um
empregado.
— Diga isto a ele! O homem tá muito esquisito, moço. Além disso,
ele não tá agindo por vontade própria, mas pela vontade do diabo.
— Eu sinto muito, mas a Eugênia não vai voltar para a fazenda. Isto
já está decidido.
Carlos entrou na caminhonete e saiu em disparada. O rapaz voltou
para a fazenda sozinho e foi recebido, na porteira da entrada, por
um Fagundes completamente ensandecido.
— Onde está minha filha, seu imprestável?
— Ela não quis vir, patrão...
— Ah, não quis? E foi para onde?
— Não sei, não senhor.
— Quem estava com ela? O rapaz baixou a
cabeça.
— Não vi ninguém, não senhor.

— Deixe de mentir para mim, seu berne! Tinha alguém com ela?

— Tinha... Tinha um rapaz, mas eu não conheço ele, não senhor.

O empregado de Fagundes não estava mentindo quando disse isto.


Ele realmente não conhecia Carlos. Mas a informação deixou o
homem ainda mais possesso. Reagiu aos gritos:

— O quê? Um rapaz com ela? E você os deixou ir embora? Pois


eu vou lhe mostrar como é que se trata camarada incompetente!
E, munido de um chicote, aplicou uma surra no rapaz que, cheio de
pavor, não ousou reagir. Apenas chorou e foi embora com os
vergões a arder-lhe nas costas e nas pernas.
As atitudes insensatas de Fagundes, embora parecendo exageradas,
eram tão-somente o efeito da subjugação imposta pelos Espíritos
desequilibrados que o acompanhavam há muito tempo. E desta
forma que eles agem, quando se determinam a levar adiante um
malfeito qualquer.

Desde que Anselmo chegara à cidade, os personagens das


ocorrências do passado passaram a integrar o mesmo cenário. Isto
significava que a consumação do ato de reparação do coronel
Elpídio estava prestes a ocorrer.

Sabendo disto e, inconformados com o possível sucesso da


empreitada, os obsessores, que tanto se comprazem com o fracasso
dos homens em seus objetivos mais nobres, trataram de agir logo e
não economizaram esforços na tentativa de frustrarem aquela ação.

Mas, devido às condutas retilíneas de Anselmo, Carlos e Eugênia,


eles não puderam atuar por meio destes, uma vez que os três se
encontravam em perfeito equilíbrio emocional e em sintonia com os
Espíritos elevados que os orientavam e protegiam.

Somente encontraram guarida na mente desequilibrada de


Fagundes, com quem vinham mantendo uma grande afinidade.
Com sua natureza doentia, egoística, presunçosa e viciada, o
jogador tornou-se um fértil terreno para a expansão das maldades
dos obsessores, que junto dele se sentiam muito à vontade. Sua
negação de Deus e seus pensamentos materialistas criaram entre ele
e os Espíritos de luz que o tentavam inspirar para o bem, uma
barreira intransponível. Por isso, Fagundes tornou-se uma presa
muito fácil, condicionada a obedecer ao comando dos maus
Espíritos.

Assim, quanto mais o pai de Eugênia se irritava, mais os malfeitores


do além o envolviam em suas obscuras vibrações e faziam rebrotar
das entranhas do ex-jagunço suas mais primitivas e infelizes
aptidões. Manipulavam-no como a um fantoche. E tanto o ad-
moestaram que, naquela noite, seu instinto assassino de ex-jagunço,
até então adormecido no inconsciente, aflorou de modo irrevogável.

Não bastasse a recusa da filha em satisfazer a sua determinação de


pai, tivera a confirmação de uma antiga desconfiança: Eugênia
namorava às escondidas, traindo-o covardemente pelas costas,
convencia-se ele, cada vez mais envolvido pelos obsessores.

Com o incentivo dos Espíritos trevosos que o assessoravam, decidiu


que nada daquilo ficaria impune. Que sua honra, ultrajada pelo
mau comportamento da filha, deveria ser resgatada,
independentemente do que isto lhe custasse.

Naquela noite, enquanto ingeria sôfregas goladas de aguardente,


desentocou um revólver que possuía em casa, limpou-o
cuidadosamente, municiou-o e o colocou na cintura, para deleite e
grande algazarra festiva de suas invisíveis companhias.

***

Naquele mesmo momento, Gertrudes, Carlos e Eugênia


conversavam na casa da benzedeira.
— A senhora precisava ver a cara do rapazinho ao afirmar que o
seu Fagundes está possuído pelo demônio. A impressão que eu tive
foi a de que ele acredita mesmo nisto.

— Isto é fruto da desinformação dessa gente — comentou


Gertrudes. — O que eles chamam de demônios são simplesmente os
Espíritos endurecidos, vingativos e rancorosos que se encontram
desencarnados. Esses malfeitores são atraídos pelos pensamentos
maldosos dos que vivem distantes de Deus e se comprazem em lhes
fazer companhia, induzindo-os a cometer os maiores equívocos, ao
mesmo tempo em que desfrutam de seus vícios. Um dia, todos eles
terão que ajustar contas com Deus e, através da reparação dessas
faltas, ou seja, pelo sofrimento físico e moral, se depurarem. Quanto
mais tempo levarem para se conscientizar, mais aumentarão os seus
débitos e mais dolorosos serão os seus padecimentos na hora do
acerto de contas.

Eugênia suspirou profundamente. Estava inquieta e muito


preocupada.

— Oh, Carlos, estou me sentindo tão mal com esta situação! A única
certeza que tenho é a de que não vou desistir do projeto social e,
mesmo sabendo que não posso contar com a ajuda financeira do
meu pai, ele será realizado um dia.
— Muito bem, Eugênia! E você sabe que pode contar sempre
comigo. Quanto ao nosso futuro, eu já decidi o que fazer. Vou
acelerar a construção da nossa casa e assim que ela estiver pronta,
nós nos casamos, independentemente da aceitação do seu pai, está
bem?

Eugênia, com os olhos banhados em lágrimas, assentiu com um


gesto lento e repousou a cabeça no ombro do namorado. As
contrariedades enfrentadas só faziam aumentar a força
extraordinária daquele amor que os unia cada vez mais.

20
Suprema doação
Pergunta: Qual a mais meritória de todas as virtudes?
Resposta: Todas as virtudes têm o seu mérito, porque todas são sinais de progresso
no caminho do bem. Há virtude sempre que há resistência voluntária ao
arrastamento dos maus pendores. Mas a sublimidade da virtude consiste no
sacrifício do interesse pessoal, pelo bem do próximo, sem segundas intenções. A
mais meritória é a que se baseia na mais desinteressada caridade.

L.E. - Questão 893

Quatro dias após Eugênia haver saído de casa, num domingo logo
cedo, Fagundes parou a montaria próximo ao cercado que
circundava o quintal da casa de Gertrudes. Ele havia determinado a
um empregado que vigiasse os passos da filha e acabou
descobrindo onde ela estava hospedada.
Assim que chegou, começou a gritar a plenos pulmões:
— Eugênia! Eugênia! Eu sei que você está aí. Venha aqui fora
imediatamente.
Sua voz estava arrastada, as palavras saíam emboladas, pois ele
dera de passar todas as noites bebendo, incentivado pelos
obsessores, dentre eles, os comparsas do tempo em que era o chefe
do bando de jagunços do coronel Elpídio. Estes homens en-
contravam-se desencarnados, em completa desarmonia psíquica e
faziam parte do grupo que o incentivava a cometer todos aqueles
desatinos, além de o vampirizarem em seus vícios.

Eugênia estava dormindo e não ouviu os gritos do pai. Quem saiu


para atendê-lo foi Gertrudes.

— Bom dia, seu Fagundes. O que o senhor deseja?


Não quero falar com você, sua feiticeira. Já obtive informações de
que minha filha está acoitada nesta espelunca e eu quero vê-la
agora, senão vou invadir e, se tiver que fazê-lo, não responderei
pelos meus atos.
Por favor, seu Fagundes. Procure se acalmar. Eugênia está sofrendo
muito com esta situação.

— Que situação, o quê? Isto é assunto de família e é melhor que


você não se meta, sua enxerida. Vai chamar minha filha, ou vou ter
que invadir esta tapera? — ameaçou, esporeando o cavalo,
instigando-o a derrubar o cercado.
Sem alternativa, Gertrudes retornou ao interior da casa. Precisava
acordar Eugênia e ver o que poderia ser feito. Fagundes estava
visivelmente descontrolado e muito ameaçador. A mulher ficou
ainda mais preocupada, ao notar, com sua clarividência, que junto
dele estavam os desencarnados que o subjugavam e que estes eram
ainda mais cruéis do que o próprio Fagundes.

Neste momento, Carlos, que havia dormido no galpão, naquela


noite, percebeu o que estava ocorrendo e decidiu enfrentar a
situação. Surgindo de trás da casa, aproximou-se de Fagundes,
acreditando que poderia resolver a questão com bom senso e
diplomacia.

Quando o pai de Eugênia deparou-se com o rapaz, teve um ataque


histérico. Os jagunços desencarnados que o acompanhavam,
reconhecendo em Carlos o desafeto que os haviam enfrentado com
destemor no passado, fizeram acirrar ainda mais o ódio do jogador,
gritando em seus ouvidos:

— Olha aí o tal Vicente que o derrotou naquela briga e que destruiu


a sua vida, lembra-se dele? Ele veio lhe afrontar de novo. E por
causa dele que a sua filha não quer lhe obedecer. Por causa dele
você vai perder tudo o que tem e vai virar mendigo, como da outra
vez. Ele vai lhe destruir de novo, seu frouxo. Vai deixar barato ou
vai mandar esse idiota para o inferno?
Fagundes que, embora sem ter certeza, já desconfiava do
envolvimento de Carlos com sua filha, ficou indignado com a
presença do rapaz ali. Em perfeita sintonia com o grupo trevoso que
o acompanhava, o jogador absorveu a sugestão dos obsessores e
ficou ainda mais histérico.

— O quê? Quer dizer que além de acoitar minha filha, esta bruxa,
acoitou também você, seu pé-rapado? Por acaso você e a Eugênia
estão dormindo juntos?

— Calma, seu Fagundes! Ninguém está fazendo nada errado por


aqui. Não há necessidade de ofensas, vamos conversar
civilizadamente.

— Com você? De jeito nenhum, seu intrometido. E digo mais, se


você tiver encostado um dedo na minha filha, eu o mato, entendeu?

Disse isso e sacou o revólver, apontando-o para o rapaz. Fagundes


estava totalmente desequilibrado, dominado pelas forças invisíveis
que o incentivavam a cometer o crime. Seu instinto assassino, mais
uma de suas tantas más tendências, havia despertado perigosa-
mente dentro de si, para imensa satisfação dos jagunços que o
acompanhavam.

Carlos, munido tão-somente de coragem, não se deixou intimidar.


— O senhor pode até me matar, seu Fagundes, mas eu não vou
mentir. Eu e Eugênia nos amamos e, com ou sem o seu
consentimento, estamos decididos a nos casar.

— Casar? — vociferou o homem. — Vocês estão loucos? Vão viver


do quê? Você é um joão-ninguém, um infeliz que não tem onde cair
morto. Como vai sustentar a minha filha, seu vagabundo?

— Não sou vagabundo, seu Fagundes. Sou trabalhador e vou


oferecer a Eugênia todo o conforto de que ela precisa.

— Ah, não vai mesmo! — grunhiu ele, enquanto apontava a arma


na direção do rapaz, provocando uma gargalhada sinistra entre seus
velhos comparsas.
Tudo aconteceu muito rápido. Anselmo que, de dentro do galpão,
estava ouvindo o desenrolar dos fatos desde o início, entrou em
cena inesperadamente e mudou o quadro de uma história que
deveria ter tido um desfecho bem diferente.
Ao ouvir os gritos ameaçadores de Fagundes, o aleijado saíra
devagarzinho de seu aposento, contornara a casa e ficara escondido,
atrás da parede. À medida que a discussão entre Carlos e o pai de
Eugênia foi se acirrando, o coração do andarilho entrou em
descompasso. Ele sabia que alguma coisa precisava ser feita e que,
de algum modo, o destino do rapaz estava em suas mãos.
Então ele se lembrou mais uma vez das palavras que a cigana
dissera à sua mãe, décadas antes: "O padecimento dele será
amenizado no dia em que ele se deixar guiar pelos sonhos, for
aonde tem que ir e, lá neste lugar, reparar toda a maldade que
cometeu".
A frase martelou inteira e viva em sua mente, como se tivesse
acabado de ser dita pela boca rubra e inesquecível da velha
cartomante.
Anselmo não teve dúvida de que o momento era aquele e que a
missão não poderia ser adiada.
Agiu mais por instinto do que pela razão. Saiu detrás do esconderijo
e, com muita convicção, interpôs-se entre Carlos e Fagundes.
Ao ver Anselmo, o jogador tomou um susto. Em parte, pela
aparência esquisita do homem que surgira do nada, como uma
aparição demoníaca; em parte, porque os jagunços desencarnados
que o acompanhavam, reconheceram em Anselmo o coronel Elpídio
e começaram a gritar nos ouvidos do jogador.
— Olha quem está aí! Nosso antigo patrão, que resolveu virar
bonzinho — dizia um.
— Minha nossa! Como está horroroso este sujeito! — gargalhava
outro.
E faziam coro na mente doentia de Fagundes:

— Manda ele para o inferno também. Tem bala suficiente para os


dois neste revólver.

Completamente transtornado, tomado de uma confusão mental


estonteante, Fagundes puxou o gatilho e Anselmo, agindo com uma
rapidez incomum a um deficiente físico, jogou-se na frente de
Carlos no exato instante em que o disparo iria atingir o peito do
rapaz.

O projétil, destinado a Carlos perfurou as costas do aleijado que o


abraçou, protegendo-o, enquanto mais dois tiros eram disparados.
Revoltado por ver que não havia acertado o alvo, Fagundes voltara
a atirar, mas todos os tiros acertaram em Anselmo que não se
desgrudou do seu protegido, nem quando suas pernas falsearam e
ele quedou-se com um baque seco no chão, pois arrastou consigo o
corpo do rapaz e deu um jeito de cair sobre ele, fazendo de seu
próprio corpo um escudo para protegê-lo, caso o inimigo con-
tinuasse atirando.

Mas quando isto ocorreu, Fagundes, como se tivesse despertado de


um transe, já havia enfiado o revólver de volta na cintura. Esporeou
o cavalo, deu meia-volta e saiu em disparada, deixando os dois caí-
dos no solo. Ao seu lado, os bandoleiros desencarnados gritavam
satisfeitos:
— Como nos velhos tempos, hein, camarada! Agora é fugir e
esperar a poeira baixar.

***
Atraídas pelos estampidos, Eugênia e Gertrudes correram para o
quintal e ficaram atônitas diante da cena que presenciaram. Carlos e
Anselmo estavam caídos, ambos encharcados de sangue. Enquanto
Gertrudes ficou parada na porta, pedindo auxílio espiritual,
Eugênia correu para junto deles. Parecia estar revivendo o cenário
de um antigo pesadelo.

— Carlos! Carlos, meu amor! Não morra, por favor, não me


abandone!

— Eu não estou ferido, Eugênia.

— Mas, este sangue!

— Este sangue não é meu. E do pobre Anselmo. Ele tomou os tiros


que seriam para mim — disse o rapaz, chorando, ajoelhando-se ao
lado do seu protetor. — Ele salvou a minha vida!

Eugênia debruçou-se sobre Anselmo, examinando-o em sôfrega


expectativa. Por fim, exclamou:
— Está vivo! Ele está vivo, Carlos. Vamos levá-lo ao hospital.
Vá pegar a caminhonete.
Mas quando Carlos ia se levantando, Anselmo o segurou com um
gesto débil e sussurrou:

— Não vai adiantar.

— Precisamos tentar.
— Não, por favor! Minha mãezinha querida está aqui. Ela veio me
buscar e eu quero muito ir com ela. Por favor... Me deixem partir
com minha mãezinha! — disse o moribundo com voz apagada,
enquanto borbotões de sangue escorriam-lhe pelos cantos da boca.
Carlos e Eugênia se entreolharam indecisos, mas Gertrudes, que a
tudo acompanhava a distância, pôde ver o que estava acontecendo
na esfera espiritual. Aproximou-se e disse emocionada:
— Ele está certo. A mãe dele realmente está aqui com um grupo de
socorristas espirituais e o desligamento de sua alma já está sendo
providenciado. Vamos fazer uma prece, pedindo bastante amparo
para o nosso querido irmãozinho, que está retornando à verdadeira
pátria dos homens. — E iniciou uma oração.
Carlos e Eugênia, sem conseguirem se conter, choravam abraçados,
vendo que o olhar de Anselmo turvava-se lentamente.
Amparado por Santinha e Loreta, logo após o desligamento de
Anselmo dos restos mortais de seu corpo, ele seguiu em uma maca,
conduzido por um grupo de socorristas espirituais. Seu perispírito
mantinha ainda as características de sua deformidade física, mas de
um modo já bem mais sutil.

Em sua mente confusa, a remota voz continuava ressoando,


repetindo a frase que o acompanhara durante a vida toda: "O
padecimento dele será amenizado no dia em que ele se deixar guiar
pelos sonhos, for aonde tem que ir e, lá neste lugar, reparar toda a
maldade que cometeu".

E sentindo os dedos macios da mãe a acariciar-lhe os cabelos como


nos longínquos tempos de sua infância, Anselmo dormiu
profundamente. Nenhuma dor o incomodava mais.

21
Captura e suicídio
Pergunta: Os Espíritos se afeiçoam de preferência a certas pessoas?
Resposta: Os bons Espíritos simpatizam com os homens de bem ou passíveis de se
melhorarem. Os Espíritos inferiores, com os homens viciosos ou que possam vir a
sê-lo; daí a sua afeição por causa da semelhança dos sentimentos.
L.E. - questão 484

O assassinato de Anselmo causou um grande rebuliço na cidade.


Embora se tratasse da morte de um desconhecido andarilho, o que
gerou o escândalo foi o fato de o assassino ter sido o popular
jogador Fagundes. Pior, dentre as três testemunhas oculares que o
acusavam, estava sua própria filha Eugênia.
Fagundes havia desaparecido da cidade desde o momento do crime
e os policiais de toda a redondeza andavam em seu encalço. Afinal,
há muito tempo o assassino andava desprovido de regalias, pois
aquilo que ele insistia em chamar de sorte o havia abandonado em
todos os sentidos.
Para mais um de seus tantos azares, o delegado era um jovem
recém-promovido, com um senso de justiça a toda prova e uma
vontade férrea de mostrar serviço. Era o primeiro grande crime que
encarava em sua nova função e ele certamente não deixaria o crimi-
noso impune. Jurou publicamente que meteria o acusado na cadeia
em muito pouco tempo.
Para Eugênia foi um tempo de tristezas e inquietações. A morte de
Anselmo só fez piorar a já grave decepção de saber que não mais
herdaria a fazenda, pois tinha o projeto social predefinido em mente
e as instalações da propriedade faziam parte dele.
Ao tomar conhecimento de que a fazenda pertencia ao credor de
seu pai, foi como se houvessem jogado um balde de água fria em
suas nobres pretensões. Então ela percebeu até que ponto chegava a
irresponsabilidade de seu genitor. Depois, a exigência de que ela se
casasse por interesse material para livrá-lo das conseqüências de
seus próprios desatinos, expunha-lhe o lado manipulador, frio e
arrogante, não dando a menor importância para o verdadeiro
sentimento de amor que a filha nutria por Carlos.
Agora, a tentativa de assassinar o rapaz que ela amava e o covarde
assassinato do inofensivo Anselmo, mostrava um lado ainda mais
obscuro da personalidade de Fagundes, ou seja, a falta de controle
emocional de um psicopata obcecado e intolerante.
Durante o enterro do corpo de Anselmo, Carlos, Eugênia e
Gertrudes encontravam-se bastante abalados com o trágico
acontecimento.

— Não entendo como é que uma pessoa pode ser tão inconseqüente
— disse Eugênia, referindo-se ao pai. — Por mais que a gente tente
entender, por mais que estude a natureza dos homens e que queira
colocar em prática os mandamentos de amor e perdão, apregoados
por Jesus Cristo, é muito difícil!

— Minha filha — suspirou Gertrudes. — Todos nós seres humanos


possuímos em nosso interior o gérmen da violência. Aliás, no
passado, muitas vezes, foi a capacidade de sermos violentos que nos
livrou de muitos problemas. Num mundo onde prevalecia a lei do
mais forte, ser violento era uma questão de sobrevivência. No
entanto, o tempo passou, as coisas mudaram muito e,
principalmente depois da vinda do Cristo ao planeta, a lei do amor
está passando, pouco a pouco, a substituir a lei do mais forte. O
problema é que muitos homens insistem ainda em continuar
vivenciando a barbárie, pois a agressividade permanece muito
latente dentro deles. Pessoas assim ainda não absorveram nem a lei
de Moisés, ou seja, os dez mandamentos: "não mataras, não
furtarás, não cobiçarás as coisas do teu próximo..." Infelizmente,
estas pessoas levarão bastante tempo para absorverem a lei do amor
que Jesus Cristo nos trouxe já há tanto tempo.

— É, dona Gertrudes, a gente sabe que essas coisas ocorrem o


tempo todo, mas nunca imagina que vai acontecer dentro da nossa
própria casa, envolvendo a nós e aos nossos familiares — suspirou
Eugênia.

***
Cumprindo o que havia prometido, poucos dias depois, o delegado
e seus soldados capturaram Fagundes. Ele estava escondido no
mato, completamente desorientado. Mais parecia um bicho do que
um ser humano, no momento de sua prisão. Abandonado à solidão
dos que vivem à margem da lei, desprovido dos prazeres auferidos
em seus vícios, passou a ter uma visão aterradora de seu futuro.
Afinal, o que o aguardava? Prisão, humilhação, pobreza, vergonha...
Isto poderia ser classificado de vida? Não! Não sob a ótica egoística
e inconseqüente com que encarava a existência humana.

Ao contrário de Elpídio, o ex-jagunço Gregório falhara em suas


provações. Sua missão seria conquistar o amor do casal que ele
próprio havia destruído na existência anterior. Foi-lhe concedida a
oportunidade de um convívio estreito com essas pessoas, tendo a
moça como filha e podendo ter o rapaz como genro. A boa condição
financeira que lhe foi propiciada também fazia parte do resgate.
Deveria ser utilizada de modo generoso, pois auxiliar Eugênia e
Carlos a concretizarem o projeto social era mais um dos
compromissos assumidos por ele antes de sua encarnação.
No entanto, o infeliz falhara em tudo. Deixara as más tendências e
os vícios dominarem novamente a sua vida. Somente dera ouvidos
aos Espíritos desajustados que passaram a acompanhá-lo desde os
primeiros deslizes, ignorando completamente os conselhos que os
bons Espíritos tentavam incutir em sua mente, inspirá-lo para o
bem.
Assim, viveu egoisticamente, negando a existência de Deus,
sobrepondo-se a tudo e a todos. Não amou nem mesmo as pessoas
mais próximas e não fez a menor questão de ser amado. Queria
apenas ganhar suas apostas, gozar os efêmeros prazeres materiais,
ditar regras e ser obedecido sempre.
Conduzido ao cárcere, não se conformou e, incentivado pelos
companheiros espirituais desequilibrados que o queriam junto
deles, enforcou-se com o próprio cinto, prendendo-o à cela da
delegacia
Tão logo desencarnou, foi subtraído de seu corpo físico, através da
ação violenta dos Espíritos malfeitores que o vinham vampirizando
e, conduzido aos territórios umbralinos, certamente viria a sofrer
durante muito tempo as conseqüências de sua má conduta.

Para Eugênia, o suicídio do pai foi mais um duro golpe em seu


coração, já tão abalado pelas sequentes adversidades.

— Queria que ele pagasse pelo crime que cometeu, mas não
esperava que morresse desta forma — disse ela a Gertrudes,
durante o enterro do corpo do genitor.

— O suicídio é sempre uma morte complicada e as conseqüências


costumam ser desastrosas na espiritualidade — respondeu a amiga.
— Só nos resta orar por ele e pedir a Deus que tenha compaixão e
que suavize o padecimento de suas penas.

22
A santa
Pergunta: O pressentimento é sempre um aviso do Espírito protetor?

Resposta: É o conselho íntimo e oculto de um Espírito que vos quer bem. Está
também na intuição da escolha que se fez; é a voz do instinto. O Espírito, antes de
encarnar, tem conhecimento das principais fases de sua existência, do gênero de
provas por que terá de passar; quando estas têm um caráter marcante, conserva
uma espécie de impressão em seu íntimo e essa impressão é a voz do instinto, que se
revela quando o momento se aproxima como um pressentimento.
L.E. - Questão 522

Poucos dias após o suicídio de Fagundes, Januário procurou


Eugênia e apresentou-lhe as duplicatas. O prazo dado ao pai dela
estava se esgotando e o agiota estava ansioso para se apropriar da
fazenda. Afinal, tratava-se de uma belíssima propriedade, que só
não tinha uma produção mais rentável devido ao desleixo do ex-
dono.

Januário fingiu lamentar a situação, disse ter muita simpatia pela


moça, mas, no fundo, não via a hora de assenhorear-se daquelas
terras.

Eugênia, embora bastante abalada, não criou qualquer dificuldade e


garantiu ao credor de seu pai que em poucos dias desocuparia a
fazenda.

Dias depois, reuniu os empregados e explicou-lhes o que estava


acontecendo. Expôs-lhes a situação da venda da propriedade, mas
disse-lhes também que eles certamente não ficariam
desempregados, pois havia pedido ao novo proprietário para
manter os mesmos camaradas que há anos vinham servindo
fielmente a ela e a seu pai.

Após a exposição, todos retornaram aos seus afazeres, cabisbaixos e


inseguros quanto ao futuro.

Já as duas mulheres que há décadas trabalhavam na casa e que


eram muito apegadas a Eugênia, não conseguiam parar de chorar.
Um clima de tristeza tomou conta do ambiente, enquanto elas
ajudavam a professora a separar os pertences pessoais, que deveria
levar consigo.

As coisas estavam desse modo quando alguém bateu palmas na


varanda. Ao ver de quem se tratava, Eugênia correu em direção à
grande amiga.
— Que bom ver a senhora, dona Gertrudes, estava mesmo
precisando lhe falar — disse, abraçando-a carinhosamente.

— O que está acontecendo aqui? — perguntou Gertrudes, ao ver


várias malas espalhadas no chão e as duas mulheres chorando.

— Estou retirando os meus pertences, pois devo entregar a


propriedade ao Januário esta semana. Estou esperando o Carlos vir
com a caminhonete para me apanhar. Mas, antes, queria saber se
posso ficar morando com a senhora. A casa que o Carlos está cons-
truindo ainda demora uns meses para ficar pronta e enquanto isso,
nós vamos providenciar os documentos, pois pretendemos nos
casar antes de irmos morar juntos.

— Seria para mim um grande prazer acolhê-la novamente em


minha casa, Eugênia, mas...

— Mas?

— Mas, se o que eu penso for verdade, você não vai perder a


fazenda.
— E por que não?
Gertrudes estendeu-lhe uma sacola.
— Isto é um presente do Anselmo para você. Eugênia fitou a
benzedeira, sem nada entender.
— Vamos, pegue! É seu.

Eugênia apanhou a sacola e quando ia abrir, Gertrudes interveio.

— Melhor fazer isto lá dentro. Podemos ir ao seu quarto?

— E claro dona Gertrudes, mas por que tanto suspense?

— Vamos lá, que você vai saber.

E as duas entraram no quarto. Quando Eugênia tirou da sacola a


imagem de Nossa Senhora Aparecida, ficou boquiaberta. Além da
perfeição do entalhe, o manto da santa estava todo coberto pelas
pedrinhas coloridas que Anselmo havia encontrado na parede do
casarão.

— É linda, dona Gertrudes!

— Ele fez com muito carinho para você, Eugênia. Pena que não teve
a oportunidade de entregar pessoalmente.

— E mesmo, mas o que este presente tem a ver com a entrega da


fazenda ao Januário?

— Eugênia, preste atenção! Você não reparou nestas pedras?


— Claro que sim. São lindas, e deram um efeito maravilhoso à
escultura.

— Só isto?

— Dona Gertrudes, do que a senhora está falando, afinal?

— Preste atenção, Eugênia. Estas pedras não são um enfeite


qualquer. São pedras preciosas!

— O quê? A senhora está brincando?

— Eu não brincaria com uma coisa tão séria, minha filha.

Eugênia sentou-se na cama. Estava pálida. Observou bem a


imagem.

— É verdade! Eu não percebi logo, porque jamais iria supor uma


coisa dessas, mas agora, vendo melhor, parecem mesmo pedras
verdadeiras.

— Pois eu não tenho a menor dúvida de que sejam. Não que eu


entenda do assunto, mas a minha intuição não costuma falhar e eu
nunca vi nada igual em toda a minha vida.
—Mas, onde ele as teria arranjado?
— Eu desconfio de que sei, mas isto é uma longa história. Tempos
atrás, o Anselmo me disse que havia sonhado com a mãe dele.
Neste sonho, eles estiveram no velho casarão mal-assombrado que
existe aqui na fazenda, onde ele se sentiu muito mal e teve o que
considerou haver sido um reencontro com o passado. Anselmo
ficou muito impressionado com o sonho e me disse que pretendia ir
até o local, mas houve uns contratempos e nós não voltamos mais a
conversar sobre o assunto. Naquela noite que você foi para a minha
casa, após a discussão com o seu pai, o Anselmo me mostrou esta
imagem que estava esculpindo para lhe presentear. Mais tarde, eu
ouvi um barulho e vi que ele estava seguindo em direção à estrada,
imaginei que estivesse indo para o casarão. Preocupei-me, mas
achei melhor não interferir.

— Mas... — interrompeu Eugênia com certa impaciência.

— Calma, minha filha, já vou chegar onde você quer. No dia


seguinte, o Anselmo confirmou ter ido ao casarão. Disse-me que
havia encontrado umas coisas muito bonitas lá, mas não me revelou
do que se tratava. Falou que era uma novidade e que eu só poderia
ver, depois que você visse. Eu achei graça e não insisti, afinal,
apesar da idade, às vezes o Anselmo tinha uns rompantes de
ingenuidade e se comportava feito uma criança. Agora eu sei que
ele estava se referindo a estas pedras.
— Será?
Eu tenho certeza! Muitos anos atrás, havia um fuxico na região de
que o antigo dono desta fazenda, o tal coronel Elpídio, era muito
avarento e teria enterrado objetos valiosos em algum lugar, para se
proteger dos próprios empregados que o estavam roubando, depois
— que ele ficou doente. Enquanto a fazenda esteve abandonada,
após a morte do coronel, muitos moradores da cidade procuraram
esses tesouros, escavando buracos em diversos lugares da
propriedade. Mas, segundo consta, nunca encontraram nada que
justificasse o comentário.

— Então, a senhora acha que o Anselmo sabia onde estavam


escondidas estas pedras?

— Não. Ou melhor, conscientemente, não. Aliás, ele nem sabia que


elas tinham valor, porque se soubesse, as teria guardado num lugar
mais seguro. Ele apenas quis enfeitar o manto da santa para lhe
agradar. Eu a encontrei embaixo da cama dele, quando fui varrer o
galpão.

— Mas a senhora não disse que já tinha visto a imagem?

— Sim, mas quando ele me mostrou era só uma peça de madeira,


não havia pedra alguma. Depois, com todos estes acontecimentos
ruins que se seguiram, eu acabei até me esquecendo do presente
que ele estava preparando para você.

— Oh, dona Gertrudes, se isto se confirmar, vai ser maravilhoso! —


disse Eugênia com grande expectativa. — Significa que eu vou
poder pagar a dívida do meu pai...

— E ficar com a sua fazenda.

— Obrigada, meu querido amigo! — exclamou a moça, de olhos


fechados, a mão espalmada sobre o coração. — O que posso fazer
para demonstrar toda a gratidão que lhe devoto pelas atitudes
maravilhosas que tanto estão beneficiando a mim e ao Carlos?
Gertrudes pousou a mão no ombro dela.
— Eu sei como você pode fazer isto, Eugênia.
— Sabe? Então, me diga, por favor!
— O Anselmo me contou que na noite em que esteve em sonho no
casarão, foi lhe mostrada uma visão encantadora. Segundo ele, as
ruínas se transformaram num lugar lindo, iluminado, com som de
música e vozes alegres de crianças. Esta visão o deixou muito
emocionado e se repetiu ante seus olhos na noite em que ele esteve
lá fisicamente.
— Mas é claro! O meu projeto! — atalhou a professora. — A casa de
apoio às crianças carentes pode muito bem ser instalada no casarão.
Vai dar muito trabalho, teremos que praticamente reconstruí-lo,
mas será possível, sim! O casarão está bem localizado, fica próximo
da estrada e não é tão distante da cidade.

Gertrudes sorriu.

— Muito bom você ter gostado da sugestão.

— Eu sei que a idéia não foi só da senhora, dona Gertrudes. Aliás,


já nem me surpreendo mais com essa afinidade entre a senhora e os
Espíritos benfeitores. Mas, explique-me uma coisa, como foi que o
seu Anselmo localizou estas pedras?

— Ele foi ajudado por amigos espirituais. Embora os Espíritos


elevados procurem não interferir em questões de ordem material,
dependendo do objetivo da ação, eles podem permitir uma
comunicação esclarecedora, sim. Há, em O Livro dos Médiuns, na
segunda parte, item 31, a história de uma senhora que acabara de
perder seu marido, depois de trinta anos de convivência e, sem
nenhum recurso material, se encontrava a ponto de ser expulsa de
casa pelos próprios enteados. Uma tarde, o marido, em Espírito,
apareceu para ela e a pediu para acompanhá-lo ao escritório. Ali,
mostrou uma escrivaninha selada, onde lhe indicou uma gaveta
secreta, cuja existência ninguém conhecia. Nesta gaveta,
encontrava-se o testamento que a beneficiava na partilha dos bens e
que a livrou de ser vítima de uma grande injustiça.

— Que história interessante, dona Gertrudes!

— Prova de que as relações entre encarnados e desencarnados são


muito mais freqüentes do que supomos, não é? Anselmo teve o que
podemos chamar de conselho íntimo de um Espírito protetor, ao ser
inspirado a ir ao casarão, porque as suas intenções eram boas e
desprovidas de egoísmo. Bem ao contrário das intenções de quem
escondeu as pedras, mesmo que tenha sido ele próprio, em outra
encarnação. O que aconteceu foi uma advertência provinda da
espiritualidade e à qual, felizmente, ele deu crédito.

— Graças a Deus!

— Quando a intenção dos homens é praticar o bem, os bons


Espíritos os inspiram a encontrarem o melhor caminho. Isto tem
acontecido, por exemplo, na área da ciência e da tecnologia. Os
Espíritos entram em contato mental com os encarnados e os
auxiliam a encontrar soluções para problemas graves, como vacina
para doenças letais e coisas desse tipo. Resta aos homens estarem
atentos a essas advertências que têm sido de imensurável auxílio
para a humanidade inteira.

— Precisam também ter humildade para admitirem que não agem


sozinhos.

— Exatamente! Talvez seja esta a parte mais complicada, porque os


homens, ainda tão orgulhosos e senhores de si, não admitem dividir
os louros de suas conquistas com ninguém, menos ainda com
mentores que eles não podem ver e nem ouvir.

***

Quando Carlos chegou à fazenda, desconsolado por estar indo


ajudar a noiva a levar sua bagagem para a casa de Gertrudes, foi
surpreendido pelo bom ânimo das duas.

—O que está acontecendo aqui? — perguntou ele, meio confuso.


Eugênia correu em sua direção, abraçou-o, beijou-o ternamente e
disse:

— Carlos, meu amor! Vamos nos sentar, que eu e dona Gertrudes


temos uma notícia maravilhosa para lhe dar.
E, após ouvir a incrível história narrada por elas e de ter confirmado
o que as mulheres já desconfiavam, ou seja, de que aquelas pedras
eram mesmo muito valiosas, Carlos, profundamente emocionado,
elevou uma prece de gratidão ao querido amigo Anselmo, rogando
a Deus que o recompensasse, dando-lhe amparo e proteção.

23
A Casa dos Pequeninos
Pergunta: O reinado do bem poderá implantar-se algum dia na Terra?

Resposta: O bem reinará na Terra quando, entre os Espíritos que a vêm habitar, os
bons predominarem, porque, então, farão que aí reinem o amor e a justiça, fonte do
bem e da felicidade. É pelo progresso moral e pela prática das leis de Deus que o
homem atrairá para a Terra os bons Espíritos e dela afastará os maus. Estes, porém,
só a deixarão quando o homem tiver banido daí o orgulho e o egoísmo...

L.E.-Questão 1019
Três anos mais tarde, o velho casarão estava totalmente reformado.
Nele foi construída a casa de assistência à criança, que Eugênia
tanto sonhara. Com a ajuda de Carlos, foram tomadas todas as
medidas necessárias para, dentro dos trâmites jurídicos, serem
registradas legalmente e vendidas as pedras encontradas por
Anselmo.
A pedido de Eugênia, o próprio Carlos se encarregou de, com muito
cuidado, extrair as jóias do manto da santa, substituindo-as, uma a
uma, por outras de menor valor, mas de semelhantes belezas. O
presente de Anselmo tornou-se um objeto de incalculável estima e,
colocado sobre uma antiga cristaleira que pertencera à avó de
Eugênia, passou a ser o ornamento mais valioso dentro da casa da
fazenda.

Com o dinheiro arrecadado, Eugênia pagou todas as dívidas de


Fagundes e, com o que sobrou, pôde investir no seu projeto social.

Novos investimentos também foram feitos na fazenda, que


aumentara consideravelmente a produção. Melhores condições de
vida foram oferecidas aos empregados e muita gente foi contratada,
para suprir a demanda de mão-de-obra que as novas atividades
passaram a exigir.

A Casa dos Pequeninos, assim denominada a entidade assistencial


instalada no velho casarão, era a menina dos olhos de Eugênia,
Carlos e Gertrudes, pois a benzedeira também aderiu à
concretização do projeto.

Contando com a contribuição de inúmeros voluntários, dentre eles


professores, enfermeiros, pais de alunos e funcionários da própria
fazenda, e sob a vigilante direção dos fundadores, em muito pouco
tempo, a Casa estava funcionando a todo vapor.
Atendendo inicialmente como creche, ali os pequeninos tomavam
banho, recebiam alimento e podiam dormir confortavelmente
durante algumas horas do dia. Dentro das atividades desenvolvidas
no projeto incluíam-se práticas recreativas, esportivas e culturais.
Uma vez por semana, a Casa era visitada por um médico e uma
dentista, para atendimento de rotina às crianças ali assistidas.
Outra atividade implantada no centro de atendimento foi a
assistência espiritual, pois uma Escola do Evangelho foi inaugurada
numa de suas enormes salas. Esse trabalho era dirigido por
Gertrudes e todos participavam com muito boa vontade.
Uma parte da fazenda foi separada para produzir alimentos para
suprir somente às necessidades da Casa dos Pequeninos, que
deslanchou em muito pouco tempo, mostrando que Eugênia estava
certa quando se referia à urgência de se colocar em prática aquele
projeto.

Mesmo tendo um início bastante simples e tímido, a ação foi


pioneira naquela região e, com o passar dos anos, não só se
expandiu vertiginosamente, como serviu de modelo a muitos outros
projetos de igual importância, implantados por pessoas possuidoras
de sentimentos tão nobres quanto os que levaram Eugênia a tomar
aquela atitude.

A Casa dos Pequeninos, além de creche-escola, transformou-se num


importante orfanato, onde muitas crianças órfãs foram acolhidas e
reintegradas ao seio familiar, através de adoções.
O primeiro passo dado pela amada professorinha converteu-se num
manancial considerável de atitudes caridosas, que muito
contribuíram para a suavização das dores daqueles que trilham o
caminho da depuração moral, através do sofrimento físico.

***
Na pátria espiritual, após um breve período de repouso ao lado de
Santinha, Anselmo, já recomposto, preparou-se para retornar à vida
terrena. Ele sabia que apenas parte de seu resgate havia sido
cumprido e que novas provas o aguardavam. De qualquer modo, o
seu belo exemplo de resignação e de amor ao próximo, arrefeceu
enormemente a ação dos seus inimigos do passado. Todos haviam
acompanhado os sofrimentos e a mudança de comportamento do
ex-coronel durante o período de suas expiações.
Alguns decidiram seguir o seu exemplo, buscando também se
reformarem intimamente, outros pretendiam ainda continuar
espreitando-o, mas já sem a ferocidade e o indomado ódio dos
tempos de outrora.
Mas, para Anselmo, isto agora era o que menos importava. Bem
mais seguro de si, provido das melhores intenções e dos mais
nobres sentimentos em seu coração, pediu a Deus a oportunidade
de retornar logo à esfera material, para dar curso ao resgate que tão
necessário se fazia.

— Desta vez, você não precisará reencarnar para ser mãe de


Anselmo, não é Santinha? — perguntou Loreta à amiga.

— Não, minha irmã. Desta vez, eu o acompanharei daqui, da esfera


espiritual. Serei seu Espírito protetor e ele terá uma mãe e um pai
carnais que, com toda certeza, o amarão tanto quanto eu.

— E nesta nova encarnação ele não passará por tanto sofrimento...

— O sofrimento não é a única forma de se resgatar as dívidas do


passado e Deus, com o seu infinito amor, nos dá outras opções para
isto. Não que uma coisa substitua a outra, mas elas se completam. A
seara do bem necessita de muitos trabalhadores e quando se vive
para servir, quando a caridade e o amor ao próximo passam a ser a
bússola de nossa vida, nós estamos, também, resgatando dívidas.
Na verdade, o que faz o homem evoluir, não é o sofrimento em si,
mas a lição de humildade e resignação a que a dor o submete.
— O importante é aprender com o sofrimento e colocar em prática
este aprendizado, não é?
Exatamente! Auxiliar os irmãos que padecem, através de trabalhos
voluntários, orientar os que estão desorientados e sempre praticar o
bem, são ações tão purificadoras quanto as que nos impõem os
sofrimentos purgativos da regeneração. O Anselmo terá, —nesta
nova oportunidade, condições muito favoráveis para se tornar um
benfeitor.
Então, é este o projeto para a nova encarnação dele?
— Sim, não só dele, mas de muitos que se encontram encarnados
neste momento. Na verdade, o homem, após adquirir conhecimento
sobre a sua condição espiritual, só sofre mesmo, se deixar de lado o
próprio aprendizado e insistir em alimentar em si os sentimentos
daninhos que já deveria ter superado. Aí, então, o sofrimento se faz
necessário, para chamá-lo de volta à razão. Uma vez conhecedores
dos benefícios espirituais, todos devem se esforçar ao máximo para
trilhar o caminho do bem, adiantarem a sua evolução moral e, deste
modo, amenizarem os padecimentos auferidos em suas faltas
passadas.

24
Epílogo
Pergunta: O número de existências corporais e limitado ou o Espírito reencarna
perpetuamente?
Resposta: A cada nova existência, o Espírito dá um passo no caminho do progresso.
Quando se libertar de todas as impurezas, não tem mais necessidade de provações
da vida corporal.

L.E. - Questão 168

Embora recentemente fundada, já havia um considerável


movimento diário na Casa dos Pequeninos. Rotineiramente, Carlos,
Eugênia e Gertrudes permaneciam por lá até às dezenove horas
quando, após a leitura do Evangelho, seguiam para as suas casas.
Então, os dois deixavam Gertrudes na residência dela e se dirigiam
à fazenda. Era lá que estavam vivendo desde que haviam se casado,
pouco menos de dois anos antes.
O casamento, mesmo realizado através de uma cerimônia simples,
como o quisera a estimada professora, mobilizara toda a cidade,
devido à simpatia e ao imenso carinho que todos nutriam pelo
casal. Carlos e Eugênia viviam muito felizes, sentindo crescer a cada
dia o amor puro e verdadeiro que os mantinha unidos há tanto
tempo.

Naquela noite, quando chegaram à casa de Gertrudes, Eugênia, que


estava em adiantado estado de gravidez, começou a sentir fortes
contrações e pediu para descer do carro.

Era a sua primeira gravidez e Carlos ficou bastante preocupado,


vendo-a segurar a barriga com as duas mãos, gemendo e se
contorcendo.

— Carlos, meu querido, chegou o momento, acho que a criança vai


nascer agora.

— Meu Deus, Eugênia! Vamos voltar para o carro, vou levá-la ao


hospital imediatamente.

— Não! Vão vai dar tempo! — disse ela olhando para Gertrudes,
que compreendeu a sua intenção.

— A Eugênia está certa, Carlos. Leve-a para o galpão e deite-a


numa maca, que eu vou apanhar uns apetrechos e já estou indo
para lá. A menos que você não confie nesta parteira aqui.

— Confio na senhora muito mais do que em qualquer médico, dona


Gertrudes. Afinal, foi pelas suas mãos que vim ao mundo.

— E os seus pais também! — enfatizou ela.

Com muito cuidado, Carlos pegou Eugênia no colo e a conduziu


para o galpão. Gertrudes entrou para atendê-la e, ao perceber que o
rapaz estava muito impaciente, pediu-lhe que se retirasse e
esperasse do lado de fora.

— Numa hora dessas, o pai mais atrapalha do que ajuda. Vá para


fora e fique esperando, que na hora certa eu lhe chamo.

E praticamente o expulsou do cômodo.

Estreante no ofício de pai, Carlos realmente estava muito tenso.


Ficou aguardando do lado de fora, perscrutando as estrelas,
rezando para tudo dar certo.

Enquanto isto, a experiente Gertrudes se encarregava de trazer ao


mundo a criança tão esperada.

Poucos minutos depois, o choro estridente do recém-nascido ecoou


pelos ares. Carlos invadiu o aposento em disparada.

— Nasceu? Nasceu? — perguntava com uma expressão patética no


rosto, como se duvidasse de tão óbvia realidade.
— Parabéns, papai! É um meninão! — exclamou Gertrudes.
Eugênia, chorando e sorrindo ao mesmo tempo, com a criança
aconchegada em seu seio, disse-lhe com voz cansada:
— Veja, meu amor, que lindo bebê Deus mandou para nós!
— E mesmo. Ele é lindo e forte! — comentou Carlos, aproximando-
se da cama.
Seu semblante expunha uma alegria quase infantil, olhos brilhando
de euforia, lágrimas aflorando de sua alma, lavando-lhe as retinas...
De repente, olhou à sua volta e reparou que a criança havia nascido
na mesma maca onde Anselmo estivera internado alguns anos
antes. Então, sentiu uma imensa saudade do amigo, lembrou-se de
que, se não fosse pelo sacrifício da própria vida que Anselmo fizera
em seu benefício, ele não estaria vivendo aquele momento tão
especial.
Completamente tomado pela emoção, permitiu-se entregar ao
abraço afetuoso da esposa. Juntos, choraram e oraram a Deus,
agradecendo pela maravilhosa graça recebida.
— Eugênia, você permite que eu escolha o nome do nosso filho? —
perguntou ele, assim que recuperou o controle da voz.

— É claro, meu amor! O que você sugere?

— Havia pensado em chamá-lo de Anselmo, o que você acha?

— Anselmo? Oh, meu querido! É claro que eu concordo. Nada mais


justo do que fazer uma homenagem à pessoa que nos permitiu estar
assim, tão felizes e realizados.

E Carlos, aconchegado ainda à esposa, beijou-a carinhosamente.


Depois, acariciou com o dorso dos dedos o rostinho miúdo do filho
e voltou a agradecer a Deus por lhe proporcionar tamanha
felicidade.
***
Num canto do galpão, numa imagem que só Gertrudes conseguia
ver, encontrava-se Santinha, Espírito protetor do recém-nascido,
também tomada de profunda emoção. Apresentava-se
radiosamente bela e elevava aos céus uma fervorosa prece, pedindo
bênçãos para o amado pupilo que iniciava, naquele pequenino
corpo, a sua nova jornada terrena.
Lá fora, uma esplêndida lua cheia derramava claridade sobre os
campos orvalhados, sobre as montanhas, as árvores, as estradas...

E a festiva sinfonia que os grilos promoviam naquela noite era um


concerto de boas vindas ao Espírito que, em constante aprendizado,
voltava às lições, reiniciando seus passos na trilha do passado.
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