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HISTORIA PUBLICA e historia do tempo presente Sumario Introdugas: A terceira margem do tempo: Cruzamentos posstveis entre historia publica e histéria do tempo presente 7 Rogério Rosa Rodrigues e Viviane Borges Artigos A memorializagao da morte do marechal Castelo Branco 19 Caroline Silveira Bauer Para além da beleza e do terror: Notas sobre os desafios de tornar puiblicas trajetdrias infames 39 Viviane Borges Histéria recente e processos participativos: Experimentasées em museus 57 Leticia Bauer Genealogias da historia puiblica na Colombia: Fragmentos de uma pratica intelectual 73 Sebastin Vargas Alvarez De Sao Paulo a Charlottesville: Derrubada e questionamento de monumentos como casos de iconoclastia politica da bistéria publica 93 Francisco das Chagas Fernandes Santiago Junior Estudar a historia recente do Chile (1970-2019): Perspectiva historiografica e alguns temas para sua problematizasao 115 Danny Gonzalo Monsalvez Araneda Digitalizado com CamScanner fash ds tesemunbas Troma, meméira cbistria do Contestado 133 Rogério Rosa Rodrigues Enerevistas Historia piblicaehistéria do tempo presente no Brasi} Entrevista com Ana Maria Mauad por Rogrio Rosa Rodrigues e Viviane Borges 155 Historia de temps presente na América Latina 165 Entrevista com Eugenia Allier-Montaiio por Rogério Rosa Rodrigues e Viviane Borges His Entrevista com Serge Noiret tor Rogtro Rosa Rodrigues e Viviane Borges Autoraseautores 205 Introdugao: A terceira margem do tempo: Cruzamentos possiveis entre historia Publica e histéria do tempo presente Rogério Rosa Rodrigues e Viviane Borges Nao de nosso pai nao se podia ter esquecimento; ese, por um pouco, a Bente fizia que esquecia, cra sé para xe despertar de novo, de repente, com de outros sobressaltos a meméria, no pas. (Guimaries Rosa,“A terceira margem do Rio’) A terceira margem do tempo é como situamos as miltiplas relagdes ‘entre a hist6ria pablica ea histéria do tempo presente. A nascente dessa conexio brotou da leitura de um dos contos mais populares de Gui- mares Rosa, Nele, um jovem narra a histéria do pai qu comendar uma canoa para viver n olveu en a “terceira margem” do rio que corria roximo & casa da familia, A decisao do pai levou o filho a refetir sobre 0s motivos da partida, efetuada sem nenhuma justficativa, embora pla- nejada e nunciada de antemao. O pai nunca mais retornou e isso fez com que o filho mantivesse uma ‘glia constante em uma das margens dlo mesino ri, ora levando alimentos para o pai, ora a ele drigindo Palavras, sem, contudo, receber de volta mais que um aceno ocasienal A Bgurada pai ausente¢ como uma metifora para a presensa de algo, ft aguém, que, mesmo que tenha partido, ainda se encontra no presen. te. Sua morada na terceira margem do rio nos indica um Ponto cego, ‘mis nem por iso inexistente, dos passados que desiguamn « come oc conan Ptoptio.tempo. Os questionamentos do narrador remetem para a constante reflexividade dos historiadores e historiadoras que trabalharn caintetsesao da histéria pablica e da historia do tempo presente. Filha “Parceira da meméria a historia atua no combate a0 esquecimento das Digitalizado com CamScanner ciascoletivas vividas no passado, especialmente aquelas que va~ Ham no presente, malgrado os esforcos, dliberados de alguns, invo itirios de outros, para apagi-las da cultura hist6rica contemporan O presente & como essa margem em que tudo fui tudo passa, tudo transita, Ele pode ser pensado também como a encruzilhada dos tem~ pos, por onde correm memoria e historias difices de reter. Mas tal como a canoa, a terceira margem € contigua ao tempo vivido pelo(a) historiador(a). Nesse tempo de muitas correntezas nfo se deve (e nto se pode) esquecer de tudo, tampouco devem ou podem ser retidas todas as Aguas da meméria, pois correr, misturar-se a outras Aguas, seu destino. Se a 4gua € metifora do tempo, a figura do pai que esti na margem do fio, mas que também no mais habita com a familia, parece circuns- crever esse passado que é-de outra época,mas que ainda vive entre.nés. Um passado-que-nao-passa, marcado por um_tempo situado na tercei~ ra margem da histévia,transitando entre acontecimentos provindos de diversos afluentes ¢ correndo livre, misturado, a0 préprio tempo do(a) narrador(a)/historiador(a). Fazer histéria pablica ¢ buscar a parceria com a histéria do tempo presente implica manter-se atento aos desvios, aos ritmos ¢ is mar~ zens dos tempos do passado que nio passa, do presente que ora parece ‘estacionar, ora parece escapar rumo ao futuro incerto, ora, por fim, se ‘vé invadido por correntezas provindas de Aguas remotas estacionadas ‘em outros afluentes. Em todos os casos, existe 0 petigo de ser levado ‘pelas correntezas € pelos burburinhos do momento, ou enganado pelo silencio das aguas que correm lentamente. E no entremargens que his pee da historia piblica e do tempo presente desejam intervir. semelhanga entre esses dois campos da pesquisa histérica ea eee Posicionado num ponto especifico do fluxo temporal: aquele compar- ‘thado com os suetos que investiga. Essa stuasao demanda dele um cconstante diilogo ¢ reflexio com o proprio presente. E desse local Pussesieniy local que cle observa, analisa, participa e€ nesse local que toma posigao. N to, o narrador passa décadas, até envelhecer a se pereantey one en pa deixou sua casa par habitar a tercers mange ea ee ‘ margem do rio, Pergunta ue se faz em didlogo ininterrupto que revisa, exclui e atualiza bi tac Na rst his, ee pape be ao musa Besquisadora, que no cessa de tensionar os limites da sua produgdo ¢ > 3 3 a 9 refletir sobre seu compromisso com os sujeitos geralmente esquecidos, cu negligenciados, por certa tradigio que valoriza sempre os vencedores como agentes na construgio e na conduso da hist6 A telagia dialégica travada entre. pesquisador(a)-e-sujeitos-pesqui- sados nem sempre é harménica. O mesmo sucede com a forma como a comunidade se relaciona com narrativas histéricas que emergem em rmargens tio inseguras com a promovida por este encontro. Geralmen- te espera-se do(a) historiador(a) que ele ou ela se refugie no passado distante, € que para lé conduza o(a) leitor(a) sem riscos de envolvé- -lo(a) nas demandas do presente. Histéria pablica e hist6ria do tempo presente, especialmente quando em parceria, anunciam as ferramentas de trabalho, mas também a posiio € o posicionamento do(a) historia~ dor(a) na pesquisa que desenvolve. E € exatamente com essa franqueza que espera conquistar a confianga do(a) letor(a). Se a histéria do tempo presente é aquela que se faz em meio as cor- rentezas e fluxos temporais, com suas peculiaridades a cortar 0 tempo vivido pelo(a) historiador(a), a historia pablica é sensivel busca dos su- jeitos do presente que conferem sentidos ao passado, ora com demandas ideolégicas, ora consumistas, ora para fins de fortalecimento de lutas politicas do momento. Nos dois campos da histsria € possivel detectar 0 compromisso com os sujeitos diretamente envolvidos na pesquisa, com a poténcia da histéria e da meméria como forca irruptiva ¢ insurgente no contemporineo. As discussSes-que-cercam os.usos.do.passado.c.a jure ‘campos uma espécie de trincheira para o posicionamento fundamen- tado de historiadores € historiadoras diante das demandas coletivas de passado, de meméria e de historia. ‘A relasdo poderosa entre dois campos tio vibrantes traz um universo Inteiro de questdes como meméria, testemunho, trauma, patriménio, justiga e identidade. Eixos articuladores fandamentais para suas res~ pectivas constituigdes como campos disciplinares, mas também as de- ‘mandas orientadas pelo anedtico, pelo singular e pela fruigio de expe~ rigncias vividas em outros tempos. Nesse sentido, “enfases” da histéria ppablica, apresentadas por Cauvin (2018), se misturam ao que Santhiago (2016) aponta como “engajamentos.fundamentais’, rcunindo caracte- als pobbes MP: com /e Digitalizado com CamScanner 10 risticas passiveis de entrecruzamentos como o desejo de uma que extrapole o académico, de uma maior p derando uma historia feit: publico), da possibilidade : audiéncig articipacao publica ( a com, para € pelo piiblico, ¢ das intervencées feitas © passado serem reconhecidas pel desejos objeto de pesquisa, proj Consi ainda histori e pelo historiador sobre (0s sujeitos no presente. Fazer desses por uma reflexio que renove histérica, mas também promoy: a consciéncia historica dos suj volvida, € tarefa important publica quanto a histéria do tempo pre: a ciéncia sente. Incorporada a pritica de muitos h se consolidado como area movida po prio tempo, Para além das questoes trazidas por perspectivas curopeias, anglo-saxais e/ou norte-americanas, a historia publica ea his- toria do tempo presente foram apreendidas e apropriadas pelo contexto latino-americano, tendo no Brasil um espaco de discussao e difusao de reconhecida importancia. Nos capitulos que seguem, um campo parece iluminar o outro na tentativa de transformar desejos e demandas sociais em pesquisa, fazendo emergir também as sombras ¢ os conforme a luz se desloca. istoriadores, a historia publica tem 1 embates que cercam 0 nosso pro- tedricas apagamentos, Os autores aqui reunidos foram desafiados a transitar pela terceira margem, propondo, através de suas pesquisas e areas de atuacio, arti- culages entre a historia publica e a histéria do tempo presente. Entre- vistamos trés importantes pesquisadores cujos estudos perpassam essas areas: Eugénia Allier-Montaiio, no México, Ana Mauad, no Brasil, e Serge Noiret, na Italia, Desafiamo-los a refletir sobre suas trajtérias a falar de suas pesquisas e também daquelas que consideram relevan- tes para a configuragio do campo disciplinar. Pedimos que apontas- sem como suas pesquisas articulam demandas sociais e cientifi compromisso ético e politico. Nao menos importante, acenamos para Possiveis conexdes de trabalho entre Brasil, México e Italia, de forma a ampliar e fortalecer essa margem terceira de um rio que se fortalece pelo €ncontro que tem com seus afluentes, No fluxo dos capitulos, é possivel perceber uma pisocupapda-com i i. dei: jeitos desviantes, os temas sensi Nesse percur> 80, @ meméria torna-se categoria fundamental, a atravessar o livro aqui ; éria € “prssentado, travando combates contra o esquecimento. A memoria com o v 3 Lo a 3 : Digitalizado com CamScanner n instituida como vetor na tentativa de equalizar a consciéncia comum de nossa propria fragilidade, colocando-se como limite ¢ elemento poten- cializador nas conexdes possiveis entre os dois campos que transitam pela terceira margem. Memoria ligadas a diferentes aspectos do social, mediadas pelo discurso histérico preocupado em problematizar ques~ toes vivas e prenhes em acontecimentos ainda movedicos. Essa categoria fluida € permeada por demandas sociais. Elas atra- vessam 0 livro aqui apresentado, conectando histéria puiblica e his do tempo presente. Objetos convertidos em repositérios de meméria (Bauer, C.), estratégias de reconhecimento de memérias traumiticas e/ ou vinculadas a minorias (Borges), meméria publica e seu cariter auto- ritario (Bauer, L.), gestao da memoria (Alvarez), disputas de meméria (Santiago Jr.), memdéria como pratica social (Araneda), memoria e sua capacidade de provocar reflexdes sobre as estruturas herdadas do pas- sado (Rodrigues), memoria urbana ou memoria das cidades (Mauad), memoria ligada as violéncias recentes (Allier-Montafio) ¢ memérias coletivas e sociais (Noiret) sao apenas alguns dos problemas que tran- sitam pelas discussdes aqui apresentadas. Isto é, as discussdes buscam deslindar a meméria em sua vontade de inteireza de sentidos, mostran- do a potencialidade dessa categoria miltipla para pensar as articulagdes entre a historia publica ¢ a historia do tempo presente. Como uma rede costurada por muitas mios, é também pela meméria que os historiadores ¢ historiadoras aqui reunidos acabam refletindo sobre seu papel no debate piiblico. Os textos sio atravessados por exer- cicios de reflexividade que, de diferentes formas, fazer emergir a preo- cupagio com a dimensio publica da experiéncia histérica. Para além de reunirem varias categorias em seu guarda-chuva conceitual', ambos os campos levam os pesquisadores a refletirem sobre os desafios contem- porineos de sua atividade, convidando (ou exigindo impiedosamente) a pensar e agir sobre seu proprio tempo. A histéria do tempo presente, inicialmente criticada pela auséncia de recuo temporal, motivou os his- es X opeadse welorog slice 6cbne07e') : . 3 ju uma espéci OS Sacha a a pals mer co i en a historia do tempo presente: “usos da meméria; usos do passado; demanda social; per- ‘epsio publica da historia; divulgarso cientifica da historia; sammie: Digitalizado com CamScanner ~ toriadores ¢ historiadoras a problematizar seu papel como Sujeitos que dividem com os seus objetos algumas angustias e categorias de pensa- mento. Contemporaneo de seu objeto, o historiador teria uma melhor compreensio da realidade estudada (Joffily & Borges, 2019) bém uma responsabilidade redobrada em se conectar com },) Mas tam- as reivindica- Ses ¢ expectativas dos sujeitos do seu tempo. A historia publica confe- re uma dimensao pratica a essa imersdo no presente, dinamizando um conceito capaz de promover consequéncias priticas com implica diretas na sociedade (Santhiago, 2018) A participagao de historiadores no debate publico, atravessados por questdes vivas do presente em que estio inseridos, Perpassa estas pa- ginas. Fazer da histdria um oficio é pensar também em como somos afetados € no quanto compartilhamos desse afeto com aqueles que pre- tendemos estudar. Como testemunha, sujeito e Ppesquisador, nao é pelo fato de dominar técnicas exclusivas, ou reivindicar notério saber sobre ~ 98 acontecimentos do passado, os quais trafegam em correntezas man- sas ou turbulentas na atualidade, que o historiador situado nessa mar- gem de pesquisa se diferencia dos colegas que atuam em outros campos .. - da historia. A peculiaridade da sua andlise esta no fato de se arriscar no © © fluxo dessas 4guas/tempo e se dispor a nadar contra a propria corrente = = do oficio que, desde o século XIX, instituiu 0 conhecimento hist6érico como area que deve se afastar das paixdes, do inacabado, das disputas & p Wa" cvlerdode' so twelorroaer conflitos do presente. Qoa! a EEE CORCRB ACESS Essa corrente ou tradigio, vale dizer, foi diversas vezes tensionada por pesquisadores ¢ pesquisadoras do passado, mas o campo da histéria ptiblica e da histéria do tempo presente vem se tornando compromisso Gientifico € ético com os sujeitos da pesquisa, com o presente vivido e com memoria dos mortos. Isso tem consequencias, pois, além da expo- sigdo aos conflitos que agitam o momento, os historiadores(as) também se veem no meio de uma pratica historiadora que se relaciona com o Piblico de forma complexa e desafiadora, Isso ocorre porque as deman- das do piblico interessado em historia nem sempre sio aquelas que interessam e fundamentam os procedimentos académicos, tensionando os limites das tradigdes e das fals: ficagdes na historia. Achar a dosagem certa para a produsao historiografica, o gosto do puiblico consumidor de passados, 0 compromisso com a verdade e a memoria dos sujeitos, é um Digitalizado com CamScanner 3 desafio tao complexo quanto instigante para quem se dedica a cruzar historia publica ¢ histéria do tempo presente. Outra questao pertinente para quem trabalha na margem terceira da historia, € 0 fato de que © produto que lega ao puiblico como narra- tiva histérica € também uma tomada de posigio. Mesmo sabedor do carter provisério de sua anilise, mesmo ciente de que a histéria por ele construida € feita daquilo que Bédarida (2000) chamou poetica~ mente de “moradas provisrias’, considera fundamental tomar posigdes diante dos acontecimentos latentes no presente. Como bem destacou Didi-Huberman, ao analisar os didrios que Bertold Brecht escreveu no periodo de exilio: “tomar posigio € desejar, é exigir algo, € situar-se no presente e visar o futuro” (Didi-Huberman, 2017, p. 15). E nessa acepcio de tomar posigao que os caminhos da histéria publica e da historia do tempo presente novamente tornam a se separar. Em primeiro lugar, porque ambas desejam o impossivel — a apreensio analitica/reflexiva sobre 0 provisorio, 0 que escapa e corre como as correntezas do rio. Mas € justamente por serem objeto do desejo de construgao de faturos possiveis que esses dois campos recentes da histéria, no papel de coirmaos das ciéncias conectadas com 6 presente, encontram sua potencialidade analitica e — por que na transformadora da realidade social e cientifica na qual estao inseridos. As questdes que atravessam estas paginas fazem parte das preocupa- des do Programa de Pés-Graduagao em Historia da Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc), que tem como area de concentragio a Historia do Tempo Presente. A linha de pesquisa Politicas de Memsria e Narrativas Historicas, cujas preocupagoes centram-se Nos processos so- ciais de produgao de memsrias em interagio com os sos do passado e com a formulagao de narrativas histéricas, sejam ou nao geradas no am- bito de instituigdes formalmente vinculadas a produgao historiogrifica, volta-se aos temas localizados na terceira margem da historia, pensando as intersegdes possiveis entre os dois campos apreendidos por este livro. Neste caminho, as atividades promovidas pelo Laboratorio de Patri- ménio Cultural (LabPac) e pelo Laboratério de Imagem e Som (LIS) incentivam projetos preocupados com as demands sociais e com a par ticipagdo dos historiadores no debate puiblico, permitindo uma pritica Digitalizado com CamScanner “ oujante? A Fundacao de Amparo & Pesquisa e fora engajada e pu ede Sana Cetra (Fapes)agradecemoso apoig Tnoraio 2 tividades do grupo de pesquisa. Este livro € parte do a que temos pensado ¢ realizado com o aval dessa fundagio d pistoriad finance resultado do com o apoio do PPGH. deohs on ns, xjitosimersos em demandas que se avolumagy, sempre carentes de mais tempo. Dispor de energia, agenda e zelo para apoir 0 trabalho de amigos e colegas é um ato de amizade, Gostaia- ‘mos de agradecer, por scu tempo e apoio,a Mariana Joffily, coordenado- ra do PPGH da Udesc (2018-2021), que fez a tradusio de dois artigos ¢ dae entrevstas aqui publicadas, Sem sua contribuigo generosa,a entrega dessa publicasao 20 letor tardaria mais alguns meses, Por fim, nosso agradecimento a Joana Ramalho, artista portuguesa que gentilmente cedeu seu instigante trabalho para a capa deste livro, permitindo que ele fosse atravessado pela janela entreaberta pela histo ria publica ¢ a histdria do tempo presente, e ao diretor artistico Sandro Resende, coordenador do Projeto Manicémio’, que possibilitou 0 con- taro com a artista e sua obra 1 atravessa 0s dois campos aqui entremeados, Esperamos que esse livzo desdgue em portos interessados em diilogo. Que trafegue, como 0 rio do conto de Guimaraes Rosa, “nessa égua, que nao para, de longas beiras”. Agua por onde transitam os tempos historicos e que escorre rumo a futuros incertos, Referéncias Bédard, F“Tempo presente e presenga da histre” In: Ferrera, M.M,; Amado) (01g) Usos& abusos da historia oral. 3 ed. Rio de Janeio; FGV Editors, 2000, 219-2 Cauvin,T.A ascensio da Hiséria Pati onal” Revista tora Pblica uma perspectiva internacional’ NUPEM, Campo Mourio/PR,v,11,n.23, 8-28, 2019, 2 Ver: cw ficebook.com/labpaciudese>; >, Acesso em 20 jn Dono, Hsb09k conabpacaudesc>; ovine apg de cist artica em Lisbon integra ans com puss Freatules de intemamento prquitico,Disponvel em: cwracebook com Soma portpa> Acco em: OF mat SD, en Diti-Hluberman, G. Quando as imagens fomam porto: ootho da Belo Horizont: Eators UFMG, 2017, ee: Tbh; rnc Phere. Teng paca ems Mets ce SCR Rio de Jani / Rese: Autograia/ EDUPE 2019, Rora,G.“A tec marge doi In: Primera esti. 1% ed Rio de anc out Olmpi, 1981p. 27-32 Sanching,R"Duas palais muitos sgicaos alguns comeniroe sobre a his tra piblia no Br Is Mad A.M; Almeida, JR, Santhiagos Rong) Historia publica no Brasil: sentidos eitineririos, Sao Paulo: Letra e Vor, 2016, 7-23-36, __. “Historia piblica e autorreflexividade: da prescrisfo ao processo”. Tempo e Argumento, Florianopolis,» 10,23, p. 286-309, 2018. Digitalizado com CamScanner A memorializacao da morte do marechal Castelo Branco* Caroline Silveira Bauer Brasil, terra onde os bandidos, que desonram o nome da P4- tria ¢ este sertao nacional, teimam em nao morrer. Onde as san- guessugas nao so exclusivas dos matos e vampiros no chu- Pam apenas pescosos de cavalos sonolentos, filhos da égua! (Albuquerque Junior, 2009, citando trechos de Grande Sertao: Veredas) O casaréo construido no inicio do século XX, localizado no centro de Quixada, sertao do Ceara, abriga 0 Museu Histérico Jacinto de Sousa. Objetos nas paredes € nos expositores, dispostos em diferentes salas, apresentam uma narrativa sobre a historia da cidade. Caminhando por esses espacos, chega-se a um comodo, que reproduz um dormitério, com uma cama, um roupeiro e uma cadeira. A esquerda, em um pulpito, um livro de registros de héspedes de uma pousada; & direita, vitrines prote- gem um copo, um chinelo de couro, um pequeno candelabro com uma vela usada e um sabonete. Ja perto da cama, é fornecida uma pista sobre 6 intrigante quarto. Fazendo as vezes de legenda, uma pequena placa diz: “Neste modesto leito dormiu pela tltima vez, na noite de 17 para 18 de julho de 1967, 0 saudoso marechal Humberto de Alencar Caste- Jo Branco”. Caso ainda faltem referéncias ao visitante, um painel, cuja atualizagao data de junho de 2002, explica quem foi Castelo Branco: 5s ite so calorosa em Quixada = alunos e docentes 0 convite € a recepga0 adi, prin: ao | Digitalizado com CamScanner 20 {O] Marechal tornou-se o vigésimo Presidente da Repub pelo Congresso nacional, em 11 de abril de 1964, e governou Ca julho de 1967, com o propésito de visitar uma amiga ica, eleito até 1967, stelo Branco, ja como ex-presidente, veio a Quixadé no dia 17 de » @ escritora Rache| de Queiroz, (...) © marechal retornou A capital cearense num avian monomotor, Quando chegou a Fortaleza, a aeronave que o transporta va colidiu com um jato da Base Aérea, causando 0 acidente que resultou no falecimento do ex-presidente do Brasil, Essas informagoes, entretanto, sao insuficientes para se compreender Por que 0 quarto em que Castelo Branco dormiu sua tiltim: objetos que utilizou nessa ocasido foram preservados e, posteriormente, Passaram a compor a exposicao permanente do Museu Histérico, Hi ie de nao-ditos que atravessam esse ato de Preservagio e, para compreendé-lo, é necessario, primeiramente, evidenciar os siléncios do painel explicativo: Castelo Branco foi o primeiro ditador escolhido Para ocupar 0 cargo de presidente da Republica apés a deposigao de Joao Goulart por um golpe civil-militar, iniciado no dia 31 de margo de 1964. Em outras palavras, se a morte de forma abrupta e tragica de um ex-presidente poderia explicar os intentos de memorializacao de sua vida, 0 dbito do herdi da Revolugao de 1964 (Cordeiro, 2015, p. 87) Permite que se compreenda, também, a memorializacao de sua morte. O tratamento post mortem da meméria de Castelo Branco foi um Processo que envolveu metaforas e metonimias, comemoragdes e ho- menagens, nomes de cidades, de escolas, de vias publicas, algo bastan- te comum em processos memorialisticos € museograficos. Mas existem algumas especificidades na constru¢ao dessa meméria, que nao se res- quarto em que o militar dormiu sua tiltima mo morbidez ¢ necrofilia: seus restos mortais B . de Janciro ¢ depositados no Mausoléu Castelo oe uae ately 18 dei atho.ci-11973 un amente com outros ob- Jetos pessoais, como o reldgio de ouro Patek Philippe (com manchas de sangue) que usava no momento do acidente, ¢ que registra o momento da queda do aviao; 0 aviio em que Castelo Branco viajava, um Piper-A- zteca, prefixo PP-ETT, de propriedade do governo do Estado do Ceara, foi restaurado, ¢ se encontra no patio do 23° Batalhao de Cagadores, em a Noite e os noite, envolyendo até mes foram trasladados do Rio Digitalizado com CamScanner 21 Fortaleza’; a acron: sadora do acidente, o Lockheed TF-33, prefixo FAB 43225, apés o conserto das pequenas avarias causadas pelo impac- to, voou até 1973, ¢ hoje se encontra exposto na Base Aérea da capital cearense; 0 local da queda do aviao também foi memorializado, ou, pelo menos, houve uma tentativa de memorializagao, com a instauracao de um “marco-zero” no ponto em que o aviio atingiu o solo. Nos tiltimos anos, tem crescido 0 ntimero de estudos no Cone Sul que se dedicam ao estudo dos ditadores e verdugos, de suas memérias e das memérias de seu entorno familiar.’ Eram sujeitos de certa forma invisibilizados: seus crimes existiam, mas nao os criminosos; lembrava- -se muito das vitimas, mas poucos dos vitimarios, Em alguns paises, foi possivel responsabiliza-los penalmente; em outros, foram identificados eescrachados, No Brasil, esses homens, que sequer sfio chamados dita- dores, morreram impunes. Foram homenageados das mais diferentes formas, seus governos ainda constituem uma cronologia para o ensino de Histéria e para a historiografia escolar da ditadura, e, recentemente, reabilitados por discursos negacionistas. Eis a intersecgao entre a hist6- ria do tempo presente e a hist6ria publica trabalhada nesse texto. Na manha do dia 17 de julho de 1967, Castelo Branco viajou de Fortaleza a Quixada para visitar Rachel de Queiroz na fazenda “Nao me deixes”, Ao entardecer, dirigiu-se 4 Casa de Repouso Sao José, loca~ lizada na Serra do Estevao, ¢ se hospedou no quarto mimero 18. No dia seguinte, as seis horas da manhi, assistiu @ missa ¢ tomou café da ma- nha, ¢, logo apés, deslocou-se até o aeroporto de Quixada, de onde o bi- 2 Lira N 371) afirma que o avito foi restaurado e se encontra nesse espago desde prepara? eae para o 23° Batalhao de Cavadores, a aeronave perma- neceu em exposigao em um galpao anexo 20 Museu Historico ¢ Antropolégico do Cears, cm Fortalens De aeordo com Ruoso (2008, p.43-44),“o avido estava aos fundos do patio, na lateral eaquerda do museu, sob um teto de telhas de amianto. Pela sua localizagio, 0 vistante poderia rodear aqueles pedagos com um olhar atento ¢ curioso. Ao chegar era possivel dbeervar partes de motor as asas € a frente da cabine destruida, com a hélice de- Positada ao lado deos motores? Atualmente, na sala Eusébio de Sousa desse mesmo museu, um retrato de Castelo Branco ¢ scis fotografias ampliadas de seu funeral. 3 Ver, por exemplo: Garibian (2019); Feld ¢ Salvi (2019); Joffily e Chirio (2016). Digitalizado com CamScanner 2 motor que o levaria de volta a capital decolou as nove horas.‘ Quarenta minutos mais tarde, quando ja se aproximava do aeroporto de Fortaleza, o bimotor colidiu com outra aeronave, e se chocou com 0 solo. Dos seus seis ocupantes, apenas o copiloto sobreviveu. Posteriormente, o acidente foi investigado, e a torre de comando, responsabilizada. As informages sobre a disseminagao da noticia da queda da aero- nave sio muito fragmentadas. O entéo governador Placido Aderaldo Castelo € seus assessores aguardavam a chegada do aviao no aeroporto. Cinco minutos antes do horario previsto para a chegada, um oficial, sigilosamente, comunicou 0 fato ao governador.’ Logo apés, as radios também anunciavam a queda de um aviao oficial que vinha do interior em diregao a Fortaleza, ¢ seguiram difundindo novas informacées atra- vés de interrupgies na programagao (Lira Neto, 2004, p. 370). avio caiu em um local de dificil acesso, pertencente 4 Compa- nhia Hidrelétrica do Sao Francisco (CHESF). Quando 0 repérter Ma- cério Oliveira e 0 fotégrafo Manuel Cunha, do jornal fortalezense O i Povo, aproximavam-se do lugar, cruzaram com um jipe da CHESF, que transportava 0 corpo do marechal em direcao ao Hospital Militar. No mesmo veiculo, estava 0 entao governador, o vice-governador, e outros militares de alta patente. Cunha registrou o resgate dos demais cor- pos, sendo de sua autoria a impactante fotografia do militar Francisco Uch6a Cavalcante, carregando sobre os ombros os restos mortais de Candido Castelo Branco, Segundo matéria publicada em 2017, Manuel ‘Cunha ainda teve outro rolo de negativos apreendido pelos militares da Aeroniutica, como parte da investigacio sobre o acidente (Paiva, 2017). A forografia do corpo de Castelo Branco, apreendida no role con- fiscado, esse registro que nunca foi visto e cuja existéncia foi negada a Partir de uma solicitasao feita via Lei de Acesso a Informagao (Paiva, 2017), deu inicio ao proceso de memorializagio da morte do marechal, instantes ap6s sua defungao, Quanto ao quarto em que o marechal dormiu sua Gltima noite, nem sempre foi um lugar de memoria. Em julho de 1968, a escritora Rachel dde Queiroz, em artigo publicado no jornal Correia do Geard, demonstra- 4 Para a reconstituigho dos eventos da noite anterior a0 acidente, ver: Paiva (2017), 5 "Fortaleza espera hoje os despojos de Castelo", Jornal do Brasil, 17 jul 1972, p. 4. Digitalizado com CamScanner 23 ya seu inconformismo com o tratamento dado pelas Irmas Missiondrias da Imaculada Conceigao & histéria e aos 5 da exploragao turistica do espag provaveis lucros provenientes Parece que as Irmas nao da i anci: 6ri Parece que as Irmas nio dao muita importincia ao valor histérico da- quele quarto, mobiliado com duas camas estreit as: na ao di ngue dos demais cmodos, ¢ continua a ser eventualmente ocupado pelos hés- pedes. Nao cuidam sequer as donas da casa, na sua inocéncia, em outro a ter aquele quarto, se preservado, reconstituido tal como estava na noite de 17 para 18 de julho de 1967. Nao, as freiras, anjos brancos de escapulario azul, nao se preocupam com os marcos dos homens ilustres e ignoram habilidades mercendrias do setor hoteleiro. (apud Silva, 2017, p. 49) valor ~ 0 valor turistico que pode: No dia 1° de julho de 1972, 0 jornal Didrio de Noticias divulgava, em uma pequena nota, a assinatura de um convénio entre a Secretaria de Cultura do Ceara e a Casa de Repouso Sao José, a fim de manter 0 quarto ntimero 18 “rigorosamente no estado em que deixou 0 ex-pre- sidente”.’ O acordo, assinado em uma visita do governador, César Cals, de sua esposa e de prefeitos de varios municfpios 4 Casa de Repouso, estabelecia que o cémodo permanecesse reservado para fins turisticos (Silva, 2017, p. 49). Essa informagao é corroborada por pesquisadores, que compreendem o convénio como uma preocupagao “com a memoria do regime, com as lembrangas daquilo que estivesse ligado aquele 31 de margo de 1964” (Coelho, 2018, p. 133). Em 18 de julho de 1972, cinco anos apés 0 acidente, 0 Jornal do Bra~ sil noticiava que, “em Quixada, a memoria de Castelo Branco perma- nece bem viva.’ Paralelamente a solenidade de inauguragio do Mau- soléu Castelo Branco em Fortaleza, descerrou-se uma placa de bronze na entrada do quarto ocupado por Castelo Branco na pousada, com os seguintes dizeres: “Neste apartamento dormiu pela ultima vez, na noite de 17 de julho de 1967, 0 marechal Humberto de Alencar Castello Branco, 1° presidente da Republica na Revolugio de 1964”, “As itmas © padres da Casa de Repouso da Serra do Estevao ainda conservam 0 640 quarto de Castelo”, Didrio de Noticias, 17 jul. 1972, p. 7. 7 “Fortaleza espera hoje os despojos de Castelo”, Jornal do Brasil, 17 jul. 1972, p.4. Digitalizado com CamScanner Py quarto 18,onde cle dormiu, tal como Castelo 0 deixou. As du: Simples,um guardz-roupa, uma cadera de embalo, uma mesinias jar de bar, uma vel eum crucifino (p. 4), afrmava o peridico, A inicatva foi do governo do Estado, através do secretrio de culture Ceara Fernando Uchoa Lima* a ‘Nessa época, ja se considerava 0 quarto ntimero 18 da pe on eT Casa de Re- pouso um “ponto turistio”, de acordo com 0 proprictiio da Ctandiano Leite. jomal Corio de Manba ttaneceveuo tens conn durado exposto no quarto de Castelo Branco: ‘Em meio ao destino incerto 20 qual esto. oa0 : ‘expostos todos os homens, 0 Exereatisimo Presidente Humberto de Alencar Castello Branco in ree er om dos recantos mais belo de sua tea : ido Estevio (...) Tustre marechal, se em vida deixastes, com 5 antes através da iniciativa do memorialista Joao Eudes Costa e de ges toes nos poderes municipal e estadual. Costa também influenciow na composigao do acervo ena elaboracdo da narrativa historiogrifica do museu (Barbosa, 2015, p. 84), E qual seria a narrativa historiogréfica do quarto sobre Castelo Bran- co ea ditadura? Além da disposigao dos méveis com suas legendas ex- plicativas, ha nas paredes do comodo uma reprodugio da capa do jornal (0 Povs do dia seguinte ao acidente e algumas fotografias, além do painel explicativo, cuja autoria é atribufda a Marta Lima. Esse painel traz alguns dados biogréficos do marechal, como sua for- ‘macio militar, sua participacao na Segunda Guerra Mundial e sua posse como “vigésimo presidente da Repiblica, eleito pelo Congresso Nacio nal,em 11 de abril de 1964”. Informa os motivos de sua visita a Quixada seu itinerdrio entre os dias 17 e 18 de julho,além das circunstancias de sua morte. Por fim, afirma que os objetos presentes naquela sala perten- ‘Gam ao quarto em que se hospedou Castelo Branco na Casa de Repou ‘0 Sto José, Trata-se de uma narrativa biogrifica de exemplaridade, em que ndo se menciona a existéncia de um golpe ou uma ditadura, sequer das medidas tomadas por Castelo Branco durante seu mandato, ‘A composigdo da sala de exposigbes busca uma proximidade com . passado, mas também cria distancias, a partir das auséncias (0 apa- gamento da hist6ria ditatorial) e dos vazios (nao ha nada evidente, ja que o acidente ¢ a morte no ocorreram ali, bem como 0 corpo nao esta presente), uma contradigio estudada por Didi- Huberman (1998, 37) quando analisou os possiveis questionamentos do observador de um timulo. O mesmo paradoxo ¢ vislumbrado quando se pensa no quarto enquanto homenagem, como afastamento da mort, jé que s© 10Nadinertaso de metal de Dail Vien Coxho(2018) uma refit sabe oo ies trogaba do Marechal Castelo Banc ala () O%> aoe ee rica vopem que Ie coon id a ad de eu md Ss Be Pencaco Solano, da made speirs Marina Ont, da ad Crate A nsec no ena i Coa de Repos, A fora poss ee meme encoun pind eporos 0 ut, mas 80 ala una a esse Dl ln i ts ay Jo Museu Histo, qu ao eputesies come Se no i ected do metal mance mh ldkima fotografia, cama e objetos de dormir, cadcra,chinelos, mess, sabonete, miquins uae com ensge ami. Digitalizado com CamScanner 26 trata de uma lembranga dos ultimos momentos de sey ocup, vida. A preservacio do quarto © sua musealizagio possui um de eternizar o ditador e a ditadura. ante em, intento Analisar e escrever sobre a memorializacao da morte de Castelo Branco foi um desafio: as leituras sobre cemitérios, memoriais ¢ museus pareciam nao dar conta do “objeto”, que se localiza entre a preservagio e o culto, o fetiche e o tributo. E, ao me perguntar sobre as raz6es das ho- menagens, ainda que certamente elas se refiram ao “filho ilustre do Cea- ra” ou ao “herdi da Revolugao de 1964”, permanecem os questionamen- tos sobre por que elas ocorrem a partir da patrimonializagao da morte, com a conservagao de uma série de objetos relacionados aos tiltimos momentos da pessoa com vida e, ao mesmo tempo, 0s avides envolvidos no acidente € 0 local da morte. Seria necessario refletir sobre a morte, a tragédia e o sensacionalismo? Sobre a ideia de por que preservar € 0 que preservar? Entre outras tantas questoes, abordar os atores envolvidos no processo de memorializagao, bem como as conjunturas culturais ¢ his toricas em que as diferentes iniciativas foram propostas, ndo me parecit suficiente, e representaria outro desafio, pois implicaria analisar a me moéria ¢ os rituais fiinebres a partir de outros referentes culturais, os do sertao central (Bezerra, 2015), que, parafraseando Lowenthal (1985), ¢ um pais estranho para mim, Assumindo os riscos, admito que meu interesse em estudar o pro cesso de memorializagao da morte de Castelo Branco foi decorrente da visita, em abril de 2018, ao museu Jacinto de Sousa, e de meu espant© quando vi preservado o sabonete utilizado por Castelo Branco para sus higiene pessoal, _ Alguns meses depois, durante meu pés-doutorado em Barcelona, as sti a uma palestra do artista visual Fernando Sanchez Castillo sobre suds Interveng6es envolvendo o ditador espanhol Francisco Franco. O 4 possui trés pelos da sobrancelha de Franco, entregues pelo profis Soe eeponntyl Pela confeegto cla miseara morta do detanto. Fe ima intervengao a outros restos de Franco, fia leynu uma fotografia ane ae a ie das maos do ditador @ Digitalizado com CamScanner a7 diferentes quirdlogos, que, sem saber de quem se tratava, foram precisos em descrever a personalidade do generalisimo." A partir dessa palestra, cresceu minha inquietagao em refletir sobre o quarto e o sabonete como uma pulsao fetichista, entre o grotesco, 0 mérbido e o sinistro, assim como cresceram os problemas explicitados, j4 que nao contava com a ironia fina ¢ o brilhantismo de Sanchez Castillo. O quarto ¢ o sabonete foram despojados de suas fungies pré-definidas hos seus usos cotidianos e transformados em suportes de uma meméria. Foram revestidos de aura, trazendo a presenga de algo que nao esta, esta~ belecendo distancia e presenga (Didi-Huberman, 1998), além de torna- rem-se tinicos, pois “testemunharam’a ultima noite com vida de Castelo Branco. Por isso, comportam um “potencial mistico”, uma “ordem do sa- grado”, uma ideia de eternidade. Foram dotados, também, de fetichismo, ao se Ihes atribuir uma alma, um valor histérico, mais que um valor de uso (Riegl, 2014), determinando sua conservagio e protecao para a pos- teridade (Guixé, 2009). Ao se pressupor sua autenticidade (Benjamin, 2017), aproximam o visitante do passado e transmitem determinada me- moria sobre Castelo Branco, provocando um deleite, uma fruigao sobre essa ambiéncia, esse efeito de presenga, essa sensacio de “realidade”, de que aquele passado “realmente existiu’, do qual o visitante também se torna testemunha, alguém que pode afirmar “eu vi”, estabelecendo outros critérios de verdade (Hartog, 1999) para a narrativa histérica, memorial © museogrfica presente naquela sala de exposigao. © passado, além de poder ser visto, torna-se “palpavel”, em uma ilusio tatil, A partir da conyocagio de Didi-Huberman, (1998, p32) para abrir 0s olhos ¢ experimentar o que nio se ve, mas esti all, como registro de uma perda, € possivel perceber que os itens. relacionados ao Ultimo dia de Castelo Branco estabelecem uma relagdo metonimica com a dita- dura, com a morte e 0 corpo de Castelo Branco, com o passado, Ne: ritual puiblico de luto diante de uma morte inesperada, trigica, 08 ob- jetos ¢ os locais foram convertidos em repositories de memdrias (Hu- fischmid, 2013, p. 111). Ha outros casos similares pelo mundo; a “Sala da Memoria’ no museu Yad Vashem, em Israel, inaugurada em 1961, contém cinzas trazidas dos fornos crematorios de diversos campos de ses encontros ¢ revelagbes podem ser vistos em seu video-intervengio Banuka \ {our pute do scary do Centro ue Arte Dos de Maye etn Madi desde 2016 ee Digitalizado com CamScanner 28 peus (Robin, 2014 p 130-1), em uma operagio me- fica de dificil nomeagao. ar 0 quarto, ver OS objetos, “tocar” ness inho de experiéncia. Em uma perspectiva c que, em um ritual secularizado, marcam a da auséncia. Por essa dime! sacrae concentragao eure moral e museogté ado, surge pa Do ato de visit a impressao de um ga : eae (quiasl esses itens sa0 reliquias”’, a presenga auséncia da presenga € mana, inscrevem na memoria social determinada pelo poder que deles er 1 memé narrativa histérica, e sto objetos de histéria publica (Godelier, 1998). Infelizmente, nao foram encontradas informagGes sobre o ntimero de visitantes que o museu recebe, nem referéncias sobre o trabalho peda- gogico em relag’o ao quarto de Castelo Branco, apenas noticias sobre uma intervencdo intitulada “Mascaras fascistas: nosso dever é desmas- cari-los”, realizada em setembro de 2018, por um grupo de discentes e docentes da Faculdade de Educagao, Ciéncias e Letras do Sertao Cen- tral." (Feclesc) (Grupo de Histéria da Feclesc..., 2018). IV. © Mausoléu Castelo Branco foi idealizado pelo entio governador do Cearé, Plicido Aderaldo Castelo, eleito indiretamente pela Assem- bleia Legislativa em 1967, por indicagio de Castelo Branco." Projetado B Rear Es Igor Salomao Teixeira, li alguns materiais sobre as reliquias religiosas Gj dfusto da pritca de conserva objetossacos c, 3s vezes,pedagos de corpos. A partir eae ‘palais do livro de Janaina Martins Cordeiro (2015), lembrei- . Acesso em: 06 fev. 2020. re Alem de C: : eens ae eos com 0 Mausoléu, 0 tinico outro ditador que possui um fami, na cidade de Tague p Seihernepege a Ae da Costa e Silva. A casa de sua sta ¢ Sil tas rande do Sul, foi i Na Para mais informasdes, ver: Volkmer e Koch (2017). Se 1S Nese fv br/epdoc/: eae telo>. Aceea oy 0 $e ace" 0/ diionarios/verbete-biografico/placido-aderaldo-cas Digitalizado com CamScanner a9 pelo arquiteto Sergio Bernarde: em maio de 1970 e sua inaugurs as obras do mausoléu foram iniciadas > ocorreu em 18 de julho de 197 com o traslado dos corpos do marechal'® ¢ de sua esposa, Argentina, na conjuntura das celebragdes do sesquicentenirio da Independéncia do Brasil e dos cinco anos do acidente, ja na administragio de Cé Cals de Oliveira Filho, indicado ao cargo de governador por Garrastazu Medici. ur nilio O desenho arquitetdnico, um balango de 30 metros de comprimento, que cria um volume suspenso no espago, simboliza “a ideia de altura do estadista, pairando sobre todas as coisas””, assim como a projesio de seu pensamento (Gabriele & Sampaio Neto, 2007, p.7) ¢ “a certeza da pro- jecao do nome de Castelo Branco no futuro ¢ na histéria”.'* O entorno da construcao é pavimentado com dormentes de madeira niistica, 0 que obriga os visitantes a olharem onde pisam, e os coloca em uma postura de reveréncia (cabega abaixada) a meméria de Castelo Branco. Sergio Bernardes utilizou a arquitetura para tornar presente o que foi através do que nao é mais (Ricoeur, 2016, p. 31). Internamente, o mausoléu foi projetado para que o visitante percor- resse uma exposigao das realizagées politicas e dos objetos pessoais do militar”, como o relégio manchado de sangue, que marca o horirio da queda da aeronave.” Ao final da exposigao estava a “Capela de Medita~ ¢40”, com os despojos em urnas de metal. O visitante retornava, entio, pelo corredor oposto, onde painéis reproduziam fotografias, grificos ¢ trechos de discursos ¢ textos de autoria de Castelo Branco. Apés um 16 Castelo Branco foi enterrado no Cemitério Sao Jodo Batista, na cidade do Rio de Janeiro. No mesmo local, foram sepultados Arthur da Costa e Silva, que morveu em 17 de dezembro de 1969, Emilio Garrastazu Médici, que morreu em 9 cle outubro de 1985 ¢ Exnesto Geisel, que morreu em 12 de setembro de 1996. Jodo Batista Figueiredo, que faleceu em 24 de dezembro de 1999, esta enterrado tambéin no Rio de Janeiro, mas no ‘Cemitério Sao Francisco Xavier. 17 Monument a Castelo esté quase pronto”, Jornal do Brasil, 20 jun. 1972, p. 13. 18 “Mausoléu de Castelo”, Jornal do Brasil, 12 abr. 1972, p. 10, 19 Esses objetos estavam em uma sala do Museu da Repiiblica, no Palicio do Catete. Ver: Branco ter monumento”, Jornal do Brasil, 06 abr. 1970, p. 21. 20 Dé acondo com reportagem do Jornal do Brasil pretends trasladar pata o expago Mausoléu of restos do bimotor Piper-Azteca do Governo dlo Ceara, em que viajava canal Branco, Essa transferéncia nunca se efetivou. Digitalizado com CamScanner 30 periodo de abandono, que resultou na degradardo de parte do acervo ¢ alguns furte®, 0 complexo arquitetdnico foi tombado no ano de 2005 pelo Conselho Estadual de Preserva¢io do Patriménio Cultural do Estado do Ceara, ¢ reformado no ano seguinte.”” Estudar 0 processo que envolveu a construgo do mausoléy, ainda que niio fosse 0 objetivo especifico desse capitulo, foi uma escolha para com- plementara anilise sobre a memorializagao da morte de Castelo Branco, no que diz respeito ao tratamento conferido aos corpos dos ditadores apos sua morte, no caso, como legitimagao de uma determinada narrati- va historica pela ditadura através dessa memorializagio (Grisales, 2016, p.93),€ a utilizagao desse conjunto de “teliquias”~ aquelas de Quixada, mas também, agora, as exibidas em Fortaleza, para exploragio turistica. Os corpos ou os timulos dos ditadores sto sempre perturbadores. Nao somente por fazerem com que os vivos lidem com a morte, como ocorreria com qualquer outro corpo ou tumba, mas pelo transito entre o Privado, os rituais de luto, e o publico, como motivos de homenagens ¢ rememorasoes, pertencentes 4 economia politica do patriménio de um pais. Que as ditaduras cultuem e homenageiem seus ditadores é com- preensivel, mas ¢ as democracias? oO mausoléu-memorial-monumento-museu, em suas diferentes no- menclaturas, evidencia o hibridismo de suas fungdes de homenagem, de modelo moral e de transmissio de uma meméria (Le Goff, 1996, Pp 535) e de um relato histérico sobre Castelo Branco e a “Revolugao”, Nas palavras da historiadora Janaina Cordeiro, a construgio do memorial e 21 No dia 29 de dezembro de 1980, 0 religio de pulso que Castelo Branco usava no mo- ano do acidente, e que era considerado um dos “poucos objetos interessantes expostos 14" foi furtado do painel no qual era exibido, o que motivou o filho de Castelo Branco 4 solicitar a devolugdo dos objetos pessoais do pai, “de grande importdncia sentimental A ‘droes levam Patek Philippe de Castelo”, Jornal do Brasil, 30 dez. 1980, capa, Em uma curiosa nota publicada oite paos depois, o Jornal do Brasil afirmava qs familia de Castelo Branco pretendia transterir oc esquites de Castelo Branco ¢ aunt para umn jazigo familiar, em forma de protesto pelo estado de abandono eon 6 te encontrava o mausoléu. Ver: “Antimemsria, Jornal do Brasil 10 abs, 1988, p. 6. 22 Nao abordarei os processos de apropriacdo ¢ ress nificagdo desse espago, como as intervengoes realizadas desde 2013 at eaive A Nee Politicos a 2 campanha Para mudanga de nome de Mausoléu Castelo Branco para “Frei Tito”. ° apie fumes Bolsa, ver: Mourio ¢ Silva (2016). Para a campanha, ver: Hupsel Digitalizado com CamScanner 31 o traslado do corpo do marechal em uma “ceriménia civico-finebre” buscavam “inserir a revolugiio de 1964 no altar efvico da historia pdtria, atribuindo-lhe inclusive seu proprio herdi, Castelo Branco. Ao mesmo tempo, procuravam situar o grande homem da revolugdo como um grande Somem da historia recente do pais” (Cordeiro, 2015, p. 82). Memorializava-se, portanto, o ditador, mas também a ditadura, que, no inicio dos anos 1970, possuia um projeto bi stante explicito: além de projetar a “tevolugao” no futuro, procurava desenvolver economi mente certas regides do pais através do tui © corpo, © quarto e os objetos utili: Branco para e ismo. E por que nao utilizar ados ou pertencentes por Castelo fim? Que esse “turismo de meméria” corresse 0 risco de se transformar em algo kitsch ou torpe, como lembrado por Régine Robin (2014, p. 129), seria um mero detalhe. Lembre-se a utilizagao de recursos pliblicos provenientes da Secretaria de Cultura do Ceara para a preservagio do quarto, ou do discurso proferido pelo entio governador 0 do Mausoléu Castelo Branco, em que faz referéncia a memoria de Castelo Branco, mas também lembra a adesito do Ceara ao “processo desenvolvimentista” da gestiio de Médici: na inaugura onde brasileiros de todos os recantos viriio depositar os seus sentimen- tos de gratidio ¢ admiragdo ao herdi nacional, que nos legou 0 exemplo de sua coragem moral, o patrimdnio de sua aga, de sua obra ¢ do seu sacrificio, (...) Senhor presidente [refere-se a Médici], 0 povo cearense, em comunhio de sentimentos com todo 0 povo brasileiro, ao cultuar a meméria do ex-presidente Castelo branco, reafirma a sua real ¢ integral devogio para com os ideais de liberdade e postulados democriticos; ¢ re~ nova sua total adesio ao processo desenvolvimentista, implantado no pais inteiro e incentivado pelo governo de Vossa Exceléncia. (Silva, 1972, p. 3) Existe um vasto campo que tem se dedicado ao chamado “turismo de meméria”, entendido como uma pritica turistica que incita a exploragao do patriménio que proporciona alguma referencia ao passado (Cavaig- nac & Deperne, 2003, p. 14), e, no caso de eventos traumaticos, através de formas mais especificas de turismo, chamadas de “dark éourism” ¢ “ oy i 23 thanatourism”, e suas variantes.: 23 Gonzileze Mundet i Cerdan (2018) citam outras expresses utilizadas para se referir 4s priticas turisticas ligadas de alguma forma cont a morte, Digitalizado com CamScanner 32 Desta forma, 0 “quarto” e o Mausoléu Castelo branco foram inseridos em um circuito turistico (Oliveira, 2015, p. 136-7), coadunando-se in- teresses regionais — da prefeitura de Quixada, da Secretaria de Cultura do Ceara e do Conselho Estadual de Cultura”, que objetivavam desen- volver economicamente o estado através do turismo vinculado a cultura € A preservacio patrimonial ~ e nacionais e internacionais — através das agdes do Conselho Federal de Cultura (Maia, 2012). Foi o governador César Cals (1971-1974) que criou em sua gestao a Empresa Cearense de Turismo e desenvolveu 0 “Plano de Incentivo ao Turismo” (Nobre, 1979, p. 111). Em reportagem realizada pela correspondente do jornal O Globo, Juliana Castro, consta a informacao de que, em 2014, ano em que se rememoravam os 50 anos do golpe civil-militar de 31 de margo de 1964, e em que a tematica da ditadura fez parte de diversos debates puiblicos, o Mausoléu recebia cerca de oitenta visitantes por més, menos de trés pessoas por dia (Castro, 2014). A questo da transmissao da meméria sobre a ditadura, a imprevisibilidade quanto as apropriacoes ¢ aos usos desses relatos, ja que o futuro sempre permanece aberto (Jelin, 2012), sera abordada no proximo item, V. A guisa de epitafio Em 1983, o mobiliario do quarto de Castelo Branco seguia na Casa de Repouso Sio José, o aviio causador da tragédia ja havia parado de vas, ¢ 0 corpo de Castelo Branco jazia em seu mausoléu. Apés mais de duas décadas do fatidico acidente, 0 processo de memorializagao parecia estar concluso. No dia 18 de julho, porém, exatamente no 26° aniver- sario da morte do marechal, o entao prefeito de Fortaleza, César Cals de Oliveira Neto, agora pertencente ao Partido Democratico Social, ¢ 0 governador do Estado do Ceart & época, Luiz de Gonzaga Fonseca Mota, do mesmo partido, inauguraram o chamado “marco-zero” de um futuro parque florestal, demarcando o Ponto exato em que o avido em que estava Castelo Branco chocara-se contra 0 solo. Naquele local, foi 24 Curiosamente, a primeira sede do Conselho em que nasceu Castelo Branco, “comprada par militar e estadista” (Barbalho, 2008, p. 13), Estadual de Cultura do Cerard foi a casa a abrigar o drgio © homenagear o ‘ilustre Digitalizado com CamScanner 33 instalada uma pedra de marmore branco com uma placa, em que se lia: Neste local as 9:40 de 18 de julho 1967 no aviéo PP-ETT perderam a vida Humberto de Alencar Castelo Branco, Alba Frota, Candido de Alencar Castelo Branco, Celso Tinoco Chagas, Manoel Nepomuceno de Assis.” A ceriménia contou com a presenga de Antonieta Castelo Branco, filha do militar, que a descerrou as 9:40 da manha, mesmo ho- ririo do acidente. O terreno, de 255 m2, dedicados a construgao de um futuro memorial, foi doado pela prefeitura ao Estado. A partir de uma matéria do jornal O Pows, foi possivel conhecer ini- ciativas anteriores para a instalagdo de um memorial no local, mas, em fangao das dificuldades, foi decidido construir um mausoléu ao lado do Palacio da Aboligao, no centro da cidade. Em 1975, 0 entao governador César Cals e o prefeito de Fortaleza a época, Vicente Cavalcante Fialho, sobrevoaram a regiao ¢ decidiram pela criagao de um bosque com 0 nome de Castelo Branco, preservando a mata da regiao. Mas esse proje- to somente foi iniciado em 1983, com a determinagao do “marco-zero”, eo antincio da construcao de um monumento, de autoria do engenheiro Francisco de Carvalho Martins, que, no entanto, nao foi construido.* Nesse caso, diferentemente do quarto e do mausoléu, houve uma acao deliberada de espacializar a meméria, dotando-a de uma “linguagem espacial” (Schindel, 2009). O “local do acidente” transformou-se em um espaco de memoria, ou seja, foi patrimonializado, através da intervencao de sujeitos que pretendiam com isso recuperar ¢ transmitir certa narra~ tiva sobre 0 passado. A partir da memoria dos eventos sucedidos nesse espago, foi convertido em um “lugar de meméria” (Robin, 2014, p. 125). Mesmo com a elaboragao de uma politica memorial para projecao da ditadura e os ditadores no futuro, nado havia como ~ e nao ha como — controlar a transmisséo da mem6ria e, assim, evitar um possivel esque- cimento decorrente da passagem do tempo, das mudangas geracionais ¢ das transformagoes nos interesses. Em 2014, durante as obras para construgao da Barragem do Coco, sob responsabilidade do governo do Estado, os operarios encontraram 25 “Marco-zero foi arrancado e soterrado”. O Povo, 19 jul. 2017. Disponivel em: . Acesso em: 06 fev. 2020. Digitalizado com CamScanner edra de marmore branco um carnaubal. Por de: tamente com mais do “marco-zero”, conhecerem su © > Jt sem a Placa, no Meio d a Origem, e! la foi Temovida jun. s de m cavado para a construgio do lago, Hoj ameniteg « aterial es. © pelas aguas do Rio Cocg : MALCO~zerg 5, fato que permite 40 ao mito grego da deusa Lete e ao Proprio Rio Lete tio do submundo, que produzia esquecimento nos : uma aproximac: iam), liguidando ag lembra etifora do esquecimento, S em consideracio a0 poder, presen Ngas aS crescentes deman- tes de forma explicita no 13; a Positivacdo da me- © 0 avanco do autoritarismo através » talvez se tenha de 8 personagens que arrasa com tudo e — novamente, o papel pi de Tamandaré, que sobreviveu a um diivio junto a sua companheira, abrigando-se em uma palmeira, © a partir dai, teriam Tepovoado a terra. Peri, entio, transforma a palmeira-abrigo em palmeira-jangada, nova arca de Noé, ¢ salvoc do diktivio, ambos dio origem ao povo brasileiro. O diltivio pode ser um novo comeco. Nao ha controle sobre a memoria. 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