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© ACONTECIMENTO E 0 HISTORIADOR DO PRESENTE * Fierre Nora J nao é 0 historiador gue faz 0 acontecimento, mas sim a inflacgao da informagao, a multiplicagéo das interro- kapdes, das proprias inquietacdes. Pierre Nora, que diriee, na editorial Gallimard, a notdvel «Bibliotheque des Histol. res», e que dirigiu, na Ecole Pratique des Hautes Etudes, um semindrio sobre «Histéria e Tempo Presente», expoe 0 que &, para si, um acontecimento hist6rico hoje, ¢ qual é 0 Papel do historiador confrontado com este novo territbrio, © presente, e com os seus problemas, * ie Nam artigo publicado no volume colectivo Faire de Histoire, 0 senhor abordou um problema essencial: 0 gute & um acontecimento histérico, como se constitui hoje um acontecimento hist6rico? Foi minha intengao insistir na novidade do aconteci- mento moderno ¢ no seu cardcter «incontornével». Toda a historiografia contemporanea, a «Nova Hist6ria», a da es. cola dos Annales pretendia’ minimizar_o. acontecimento, considerado como uma bolha a superficie da Histéria, ma. nipulada por correntes muito mais profundas, de longa duracio. Ora, quando se esta imerso no actual, numa His. t6ria de que € dificil dar a data de nascimento, mas que se sabe que € a nossa para o melhor e para o pior, o cami. nho parece-nos o inverso: confrontamo-nos inelutavelmente * Entrevista realizada por Jean-Jacques Brochier, 45 com 0s acontecimentos, mesmo que parega que se trata, por vezes, de falsos acontecimentos. Hé uma quinzena de bnos, aparece em Franga o livro dum historiador ameri- Cano, Daniel Boorstin, L'Image, que partia em guerra con- tra 6 mundo modemno, no qual ele via.uma méquina de fabricago de pseudo-acontecimentos, Com efeito, temos toda a sensagao de viver no meio de falsos acontecimentos. Diante de quase tudo 0 que em unissono fazem os jornais, tem-se a impresssio de que todo este rufdo artificial da actualidade nao faz mais do que mascarar alguma coisa, uma Historia que avanga ao passo pesado e lento das legides romanas. Parece-me que nio existe 0 pseudo-acontecimento, F, 0 proprio acontecimento que, em relagio A Hist6ria tradicio- hal, mudou de natureza, por causa ‘da transformagdo ope- rada pelos mass-media, Vivemos doravante num sistema de inflagdo. fenomenolégica como num sistema de inflacgao monetéria Outrora, num sistema de informagio tradicional, passa- vam-se coisas que néo afectavam profundamente a vida das massas, ou estas massas ndo sabiam que esses coisas afecta- Yam profundamente a sua vida, ou entéo ninguém Thes prestava atengio. Seja como for,'o acontecimento desenro~ Tava-se a varios niveis e em varios tempos. Havia actores do acontecimento, os transmissores (sermées de pardquia, mercadores da Idade Média, agentes oficiais do poder) ¢ 0 piiblico que o recebia. © nascimento e o desenvolvimento dos mass-media alte- raram completamente a estabilidade do sistema: aquelas trés instancias nio sio agora mais que uma, Lembro-me, por exemplo, de certa noite das barticadas de Maio 68, encon- trando-me cu numa varanda do Boulevard Saint-Michel, 20 lado de Julien Besangon, que «cobria o acontecimento» para uma estagio de radio. Encontrévamo-nos em cheio no meio da efervescéncia dos gritos e das cargas policiais, ¢ eu ouvia Julien Besangon dizer ao microfone: rebentam granadas, sufoco, nao posso falar-vos mais, ¢ ouvia ao mesmo tempo fa vor no transistor, numa sala a0 lado, como a ouvia o farmacéutico de Carpentras, tranquilamente deitado na sua casa ao lado da mulher. E, ‘nese momento, tive a sensagao duma mudanga na prépria percepcao da Histéria, que se colava a tal ponto ao presente que jé nada os podia separar. © que nio se afastava muito do que dizia Mac Luhan. 6 Nao hé acontecimento sem os media. Pense, por ex¢ Plo, no, desembarque na, Lua: ele esté indissoluvelmente ligado as imagens, completamente oniricas, dos primeiros astronautas a Vaguer no vazio: elas nao existiam sem o Telstar. Viver este acontecimento em directo é mudar total- mente a sua participago na Hist6ria. J4 nao hé uma parti- Gipacio activa, mas antes ligada & inquictagio, & angstia ol (Gria instantanea. Quando se vive a Guerra dos Seis ias, ou uma simples elei¢ao, quando se miniaturiza o acontecimento, de sondagem em sondagem, em vez de apreender brutalmente 0 seu resultado final,'o vivido fi torico é fundamentalmente diferente. Em primeiro lugar, € fofride minuto @ minuto, mas sem ser agido. Por outro lado, vivido de maneira mais angustiada, j& que nao se sabe em ae da por fim, 0 acontecimento. aralelamente, ele é vivido diferentemente pelos que nio se comportam do mesmo modo, porque sabem gus est@o a ser vistos pelo mundo inteiro. © homem politico que fala perante um tio gran blico nio'o pode fazer'dat mesma maneira come 6 fara eens exemplo, uma Camara de Deputados. onhece a célebre frase de Stanley, envi: 1 Gordon Dehn le fae de Slnley, undo por Godan africana, ‘Stanley, desearnado, macilento, tira 0. chapéy ae deste outro branco igualmente estafado, e declara: ‘glee oomeimestont T une ‘, num tom perfeitamente ‘ eB mains i inglés, como se 0 mundo inteiro’estivesse presente nese Esta frase assemelha-se & de ol cfs poderie dee nie in em Valmy: «E vo- Hoje em dia, 0 mais pequeno aconteciment vivic ae sendo ja histérico, memordvel, sorevendese ii ‘ee Gra, quando nem sequer se sabe se ele teré lugar ou zi viré a ter alguma importancia, Quantas vezes se ouve falar de um «encontro histérico» entre dois personagens importantes, quando ele ainda nem sequer teve lugat e pode talvez ser anulado! Promove-se 0 vivido em histérico, o que muda completamente a natureza do histérico e também lo vivido. Dentro de alguns anos, tudo ter caido e far-se-4 uma filtragem consideravel, separando aquilo que tiver mu- * eit o Dr, Livingstone, creio euls (N.doE.) a dado 0 curso das coisas e aquilo que as nao tiver mudado. ‘Acontece ainda que o facto de elas terem sido vividas como (© foram afecta também em profundidade a maneira como permanecerdo ou no permanecerao, Mas, na verdadeira transformagio, € 0 facto de que um acontecimento histérico s6 era acontecimento porque os historiadores assim o tinham decidido, em fungao do, que esse acontecimento tinha provocado. Eram os historiadores ‘que faziam ascender este ou aquele acontecimento & dade histérica e, de certo modo, toda a Histéria consistia se isto era ou no um acontecimento, a reavaliar 1a sua importincia: 0 14 de Julho foi importante, mas por causa das prisoes que foram feitas de 5 a 11; a guerra das farinhas foi menos importante do que se diz, etc. No acontecimento de tipo moderno, pelo contrario, jé nio é 0 historiador que dispOe, nem mesmo o jornalista, que no € também mais que o eco instanténeo duma coisa muito mais vasta, ¢ que forma este emaranhado da actualidade que muda ‘completamente 0 nosso vivido hist6rico ¢ que constitui a sua natureza, E 0 acontecimento que faz 0 his- toriador. M. L.: Braudel e a Escola dos Annales queriam suprimir 0 acontecimento como nao importante. Hoje, pelo contrdrio, tudo é acontecimento. Nao, longe disso. Podemos, devemos interessar-nos por mil outras coisas. Mas, para a’Histéria do mundo contem- pordineo, que é estudada paralelamente pelo economista © pelo gedgrafo, pelo socidlogo ou pelo demégrafo, 0 aconte- cimento 6, sem diivida, o ponto de vista privilegiado. E, pro- vavelmenie, a via de’ acesso real & Histéria do presente. © acontecimento, esta novidade ininteligivel, deve ser cla rificado pelo historiador, que Ihe tem de fornecer uma expli- cagio provisria e plausivel, esta explicagio s6 pode enraizar-se no pasado. Esta é, sem divida, uma época em ‘que as pessoas sentiram a necessidade de comecar a com- preender 0 que Ihes acontecia e a possuir os seus meios de compreensio quase imediatos. © acontecimento 6 esta montanha incontornével ou esse precipicio em que, como no Canyon do Colorado, se podem Accifrar todas as camadas sucessivas da realidade imediata. 48 M. L.: Outrora, a regra era a de que 0 acontecimento- para se tornar inteligivel ¢ «hist6rico», devia jé ter uma certa «idade». © que se passa agora € precisamente o contrério. f ne- cessério auscultar o acontecimento porque é ele que une, como num feixe, todos os significados sociais de que 03 rodeia. A mais ou menos longo prazo, este acontecimento pode ser um fait divers. E hoje em dia o acontecimento €, de certo modo, um fait divers. __ Tome, por exemplo, dois pequenos acontecimentos, no cinema e em livro: O Porteiro da Noite, o filme de Liliana Cavanni, ¢ Quand la Chine s‘eveillera, o best-seller de Alain Peyrefitte. Se analisarmos o filme, reencontraremos toda a moda retro, que traz 4 meméria histérica uma geragdo que nao viveu a guerra e, pouco a pouco, poder-se-ia, sem di- vida, tecer a partir deste acontecimento, a mentalidade de uma juventude dez anos depois de 1968. O éxito de um livro como este de Peyrefitte, revela indubitavelmente, toda a psicologia nacional face & China, que sofreu uma viragem na época'em que saiu este livro. Representa a opiniéo de ‘uma certa dieita liberal e conservadora perante o fendmeno chinés, Aprofundando este pequeno acontecimento, o de um best-seller, ser-se-ia levado a descobrir todo um quadro da P cologia nacional. E aqui que me parece estar o papel do istoriador. Um pouco, por exemplo, o que f¢ rin a propésito dos boatos ie Orica, a M. L.: Esta Historia do presente que vocé faz e delimita deste modo, reencontra a hegemonia da Hisiéria, onde se Tenovam todas as investigacoes das Ciéncias Humanas. Nesse sector € que é necessério levantar a questi, por- aq esti em causa a diferenga entre a Historia contenpo- rinea e as outras hist6rias. Tradicionalmente, pelo menos até uma data recente, a Hist6ria contempordnea foi desvs lorizada em relagio a uma Histéria mais «nobre», a Hist6ria de épocas mais recuadas, como a da época moderna ou a da época antiga®. Pelo que me toca, ereio, pelo contrério, dis Revoludo Francesa aos nossos das), 7 Contemporines 0 que a Histéria contemporinea € a frente pioneira de uma SNova Historia», principalmente a da escola dos Annales, que s¢ enraizava na época moderna. ‘Toda a escola historica tem afinidades electivas com um certo periods, Os historiadores criticos do fim do século passado, cujo interesse e enguadramento mental eram a for- Thagdo dos Estados-nagées e as rivalidades internacionais Entes da Guerra de 1914, esses historiadores, que nfo que fam ser de nenhum tempo nem de nenhum pais ¢ preten- Giam fazer uma Histéria erudita e critica, fizeram, na rea- fidade, uma Histéria muito profundamente marcada pelo ascimento. dos Estados-nagdes. Nesta qualidade, a sua Curiosidade dirigia'se sobretudo: para as €pocas recuadas, para as origens do fenémeno. A propria palavra origem fot Fina obsessao pata os historiadores positivistas, tal como Sutrora a palavta estrutura se encontrava em todos os titulos Ge ensaios, Repare: Les Origines de la France Contempo- raine, de Taine, Les Origines du Christianisme, Les Origines ‘ie la Monarchie Franque. A parti do momento em que so baseia uma Histéria na compreensio dos Estados-nag6es, Sea ial para a origem do fendmeno. Aquilo a que se chamou a «Nova Histérian, que se cons: tituiu por volta de 1930, privilegiou o periodo que vai desde © Renascimento aos tempos modernos. Primeiro porque se Operou uma renovagao na Hist6ria Econémica e porque as Fontes desta Histéria s6 existem a partir do Renascimento, iAcessoriamente, a constituigao dos Estados modernos for- jecia os elementos de uma Histéria quantitativa. Por outro ado, neste principio do século XX, comegava, a sociedade tradicional ¢ clissica a desenraizar-se profundamente, ¢ & percepcdo deste fenémeno impunha a confrontagao com © Periods imediatamente precedente, que nfo era exacta- Peante o mesmo nem totalmente diferente, mas que j4 pare~ Ua fornecer 0 campo de uma Etnologia relativamente & nossa propria sociedade. Fste desenraizamento acelerou-se brutalmente desde a Segunda Guerra Mundial e impés, em minha opinigo, uma specie de terceiro [olego & Histéria, que ela s6 pode encon: {eae na Historia

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