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‘Copptght artic la Evade SUMARIO ESTAEDIGAO 9 COBSERVAGOES PSICANAL{TICAS SOBRE UM CASO DE PARANOIA (DEMENTIA PARANOIDES) RELATADO EM AUTOBIOGRAFIA (CocasoscHReser’, 1911) 15 fiwtoDueaa] 4 [LHISTORACLINICA 16 IL TENTABVASDEINTERPRETACAD 47 | SOBRE Q MECANISMO DAPARANOIR 78 Ps-ESCRITO 104 FORMULAGOES SOBRE 0S DOIS PRINCIPIos 00 FUNCIONAMENTO PSIQUICO (1913) 108 [antisos Sonne TECNICA (USO DAINTERPRETAGAO DOS SONHOS NAPSICANALISE (1843) 122 [ADINAMICA DA TRANSFERENCIA (1912) 135 RECOMENDAGOES AO MEDICO OUE PRATICAAPSICANALISE(1912} 147 ‘Nico DOTRATAMENTO (1913) 13 RECOROAR, REPETIR EELABORAR (1914) «3 ‘DBSERVAGGES SOBRE 0 AMOR DE TRANSFERENCIA(3945) 210 TP0S DE ADOECIMENTO NEUROTICO (1912) ‘DEBATE SOBREAMASTURBAGAO 1912) 240 [ALGUMAS OBSERVAGSES SOBRE 0 CONCEITO DE NCONSCIENTE NAPSICANALISE (1942) 255 PPRINCiPIoS BASICOS DAPSICANALISE (1913) 26 ‘UMSONHO COMO PROVA(3943), ‘SONHOS COM MATERIAL DE CONTOS DEFAOAS 1913) 201 OTEMADAESCOLHADO COFRINHO (4913) jo1 DDUAS MENTIRAS INFANTIS (1913) 17 APREDISPOSIGAOA NEUROSE OBSESSIVA (1913) 324 SSONHOS COM MATERIAL DE CONTUSDEFAUAS brincalkona que diz “vou te comet” pode ter sido ex- pressa virias vezes, no perfodo inicial em que o pai, que depois se tornou severo, costumava acariciar ¢ brincar como filhinho. Uma de minhas pacientes contou que os seus dois filhos nunca puderam gostar do avd, porque le costumava apavoré-los com a brincadeira afetuosa de que itia cortar suas barrigas. OTEMA DAESCOLHA DO COFRINHO (1913) TTruto ORGINAL. “DAS MOTIV DER KASTOHENWANL: PUBLICADO PRIMEIRRMENTE EM INAGGLY.2, 3, PP.257-66,TRADUZIOODE GESAMMELTE WERAEN,P.23-37;TAMBEM SERCHA FE STUDIENAUSEABE PP 183.98, (TEMA DAESCOLHA.90 COFRINKO Duas cenas de Shakespeare, uma divertida e uma trégi- ca, deram-me recentemente a oportunidade de colocar € resolver um pequeno problema, A cena divertida é a escolha entre os trés coftinhos, feita pelos pretendentes em O mereador de Veneya. bela ce sabida Pércia se acha obrigada, pela vontade de seu pai, ‘a tomar por esposo somente aquele, entre os candidatos & sua mao, que escolher 0 cofrinho certo. Os txéscofrinhos sio de ouro, de prata e de chumbo; 0 certo € aquele que contém seu retrato. Bassinio, o tereeiro dos pretenden- tes, decide-se pelo de chumbo; e assim ganha a noiva, cra afeigdo jé The pertencia antes desse teste do destino. ‘Cada um ¢os candidatos havia justificado a sua escotha ‘mediante um discurso, no qual louvava'o metal que pre- feria e depreciava os outros dois. Nisso a tarefa mais difi- il coube ao terceiro; 0 que ele pode dizer para exaltar 0 cchumbo, em detrimento do ouro e da prata, no foi sufi ciente e pacecen forgado. Se deparissemos com uma fala semelhante, na prética psicanalitica, suspeitariamos de razies sectetas por tris da justificativa insatisfatdria. Shakespeare nao inventou ele mesmo a profecia da escolha do cofrinho, tomou-a de uma historia das Gesta romanoruns. wa qual uma garota faz. a mesma escolha para conguistar o filho do imperador.' Também nesse €as0 0 terceiro metal, o chumbo, & que traz.a sorte. Nao € dificil pe:ceber que encontramos aqui um velho tema, «que requer interpretagio e investigacao de suas origens. pilagio medieval andinima de histias andes, William Shakespear, [Paris] 1896 (TEMA DAESCOLHADO.COFRINKO Uma primeira conjectura, sobre 0 possivel significado da escolha entre ouro, prata e chumbo, logo é corrobo- rada por uma afirmago de Eduard Stucken,? que se eupou do assunto num contexto bem amplo. Ele Quem sio os trés pretendentes de Porcia é algo que se torna claro a partir do que escolhem: 0 principe do Mar- rocos escolhe a caixa de ouro: ele é 0 Sol; o principe de Aragao prefere a caixa de prata: ele é a Lua; Bassinio escolhe a eaixa de chumbo: ele é o Filho da Estrela”, Para sustentar essa interpretagio ele cita um episédio da epopeia estoniana Kalewipoeg, no qual os trés candida- tos aparecem claramente como filhos do Sol, da Lua ¢ da Estrela (“o primoggnito da Estrela Polar”), a noiva cabe novamente ao terceito. De modo que 0 nosso pequeno problema levou a um mito astral! Pena que no possamos concluir com essa cexplicagao, Nossa indagagio continua, pois no cremos, ‘como alguns estudiosos dos mitos, que estes tenham cai- do do céu; mas julgamos, como Orto Rank,’ que foram projetados no céu, apés terem se originado em outra parte, sob condigdes inteiramente humanas. £ para esse teor humano que se volta 6 nosso interesse. Vejamos novamente 0 nosso material. Tanto na epo~ Péia estoniana como na histéria das Gesea romanorum trata-se de uma garota que escolhe entre trés candidatos, ema cena do Mercador de Veneza, aparentemente a mes- 2 E.Stucken, Astralmythen [Mitos astrais}, Leiptig, 907, p.655 3.0. Rank, Der Myohus von der Gebure des Helden (0 mito do nas- cimento do hersi, Leiprige Viena,), 1909, pp.8 38. OTEMAUAESCOLHANO COFRINHO mma coisa, mas também surge, nessa dhtima, algo como uma inversio do tema: um homem escothe entre trés — coftinhos. Se estivéssemos lidando com um sonho, logo pensariamos que os cofres sto também mulheres, simbo~ los do que é essencial na mulher e, portanto, da propria rmulher,assim como estojos, bocetas, cesta, latas ete. Se nibs permitirmos supor uma tal substituigao simb6lica igualmente no mito, a cena do Mercador de Venera torna- -se realmente a inversio de que suspeitamos. De um s6 golpe, como em geral sncede apenas nas fibulas, des ‘mos o nosso tema da roupagem astral, ¢ agora vernos que le humano: ume homem escolke entre tés mulheres. Mas esse € também 0 contetido de outra cena de Shakespeare, num de seus dramas mais impressionan: tes, que nio trata da escolha de uma noiva, mas que, por muitas semelhangas ocultas, liga-se 2 escotha dos coftinhas no Mercador. O velho rei Lear resolve, en- quanto ainda vive, dividir seu reino entre suas trés f= Ihas, conforme a medida do amor que cada uma de~ monstrar por ele. As duas mais vethas, Goneril e Regan, dlsfazen-se em juras e protestos de amor, ea terceira, Cordis, reeusa-se a fazé-lo. Ele deveria reconhecer e recompensar esse amor discreto e mudo, mas ni 0 per- cebe; rechaga Cordélia e divide o reino entre as duas ‘outras, para desgraca sua e de todos. Nao temos ai de novo a cena da escolha entre trés mulheres, das quais a mais jovem éa excelente, a melhor? De imediato nos ocorrem outras cenas que tém 0 ‘mesmo contetido, em mitos, fabulas e obras literérias. O pastor Péris tem de escolher entre txés deusas, das quais DOTEMADAESCOLHADOCOFRINHO afirma que a terceira é mais bonita. A Gata Borralheira 6 igualmente a mulher mais jovem, que ofilho do rei pre- fere is duas mais velhas, Psique, na fabula de Apuleio, é a mais jovem e bela de trés irmass Psiqué, que por um lado & venerada como Aftodite em forma humana, por ‘outro lado & tratada por essa deusa como a Gata Borra- Iheiea por sua madrasta, deve por em ordem um monte de grios misturados, 0 faz com 0 auxilio de pequenos animais (pombas, no caso da Gata Borealheira; formi- gas, no de Psiqué).‘ Quem quiser explorar mais essa ma- \éria certamente achard outras eonfiguragbes do mesmo motivo, que conservam os mesmos tragos essenctais. Contentemo-nos com Cordélia, Afrodite, a Gata Borralheira e Psiqué. As trés mulheres, das quais a ter- ceira & a preferida, ho de ser vistas como de algum modo semelhantes, quando sto apresentadas éomo ir- Nao deve nos confuundir 0 faro de em Lear serem trés filha, isso talvez signifique apenas que Lear deve ser mostrado como um homem idoso, Nao se poderia, normalmente, fazer um velho escolher entre trés mu- Iheres; por isso elas s40 suas filhas. Mas quem so essas trés irmas, ¢ por que deve a es coll recair sobre a terceira? Se pudéssemos responder a essa pergunta, estarfamos de posse da interpretagio procurada. Ora, jé recorremos a téenicas psicanaliticas, a0 explicar os 128s coftinhos como simbolizando txés mulheres. Se temos a ousadia de prosseguir dessa for- ‘ma, encetamos um eaminho que inieialmente nos con- 44 Agradeso ao dr, Otto Rank a indicagie de tis coincidénetas (TEMA DASEOL 400 COFRINO duz a0 imprevisto e ao ineompreensivel, mas que, por alguns rodeios, talvex nos leve a um fim Pode nos chamara atengio que a tereeira,a favorita, «em virios casos possui, além da beleza, eertas peculiari- dades. Sio caracteristicas que parecem tender para al- guma unidade; sem diivida, nao podemos esperar en- contei-lasigualmente marcantes em todos os exemplas. Cordélia se faz apagada e sem brilho como o chumbo, fica muda, “ama e silencia”. A Gata Borralheira se es- conde, de modo a niio ser encontrada. Talver possamos equipararo esconder-se ao silenciar. Estes seriam ape~ nas dois dos cinco easos que reunimos. Mas uma alusio desse tipo se acha, curiosamente, também em outros dois. Decidimos comparara teimosa e reticente Cordé- lia ao chumbo. B dele se diz subitamente, na breve fala de Bassinio, durante a escolha do eofrinho: Thy paleness moves me more than eloguence (plainness, segundo outra leitura) Isto é: tua singeleza me toca mais do que « natureza rumorosados outros dois. Ouro e prata si ‘o chumboé mudo, como Gordélia realmente, que “ama esilencia’s Nas antigas narrativas gregas do julgamento de P: tis nfo se ‘ala de tal reserva por parte de A frodite. 5 Na raduglo de Sclilegel tal reforéncia & perdida, « € mesmo trainsformaca no oposto: “De schlchtes Wesen sprichs berede mich san” [Tua narezasingela me fala de modo cloguente. OTEMADAESCOLHADOCOFRINHD uma das trés deusas dirige-se ao rapaz.e procura obter seu Voto com promessas. Mas uma elaborago bem mo~ derna desta cena poe novamente & luz, de forma singu- lar, o trago que destacamos na terceira mulher. No li- breto de La belle Héline, Paris relata o comportamento de Afrodite nessa competigao de beleza, apés as solicita- (Bes das outras duas deusas: A terceira, oh, a terceia... A terceira nada falou, Assim mesmo 0 primio reebeu... Sedecidirmos concentrarna “mudez” as peculiaridades dessa terceira mulher, a psicaniise nos ira que nos so- thos a mudez é uma costumeira representago da morte.* 114 mais de dez. anos, um homem muito inteligente comunicou-me um sonho que, para ele, demonstrava a natureza telepitica dos sonhos. Viu um amigo ausente, do qual havia muito ndo recebia noticias, e reeriminou- -lhe energicamente o siléncio, © amigo niio respondeu. Depois se verificou que aproximadamente na épaca do sonho ele dera fim & propria vida. Deixemos de lado 0 problema da telepatia; nao parece haver divida, nesse «aso, que a muder tornou-se representagio da morte no sonho, Também ocultar-se, nao ser encontrado, como st- cede trés veres 20 principe na “Gata Borralheira”,é um inconfundivel simbolo da morte no sonho; do mesmo 6 Também na Sprache der Traumes [Linguagem do sonho], de Stekel ([Wieshaden,} 1911), €apresemtada como simbolo da morte OTEMADAESCOLNADO COFRINKO modo a palidez notavel, de que a paleness do chumbo nos faz lembrar, numa das leituras do texto de Shakespeare.” Transpor essas interpretagoes da linguagem dos sonhos para o modo de expresso do mito que nos ocupa sera bastante mais facil, se pudermos tornar verossimil que a nmdex deve ser interpretada como siggno da morte tam- bém em outras produgdes que nao sonho. Neste ponto recorro a um dos contos dos irmios Grimm, o de ntimeto nove, intitulado “Os doze irmios”.* Um rei euma rainha tinham doze filhos, todos homens. Endo falow o rei: “Se 0 décimo terceirofilho for uma me- nina, os garotos terdio que morrer”. Na expectativa desse nascimento, ele manda preparar doze caixdes. Os doze filhos fogem para uma floresta escondida, com o auxilio da mae, ¢juram matar toda menina que encontrarem: Nasce uma menina, que cresce e um dia fica sabendo, pela mie, que teve doze irmios. Ela decide procuré-los, € encomtra na floresta o mais novo, que a reconhece ¢ pretend oculté-la, devido ao juramento dos iemaos. A irma diz, entao: “Eu morrerei feliz, se desse modo puder salvar meus irmiios”. Mas os irmaos a recebem afetuosa- ‘mente, ea fica com eles e passa a cuidar de sua casa, Num pequeno jardim, préximo & casa, ha doze Ii- rigs. A menina 05 cole, a fim de presentear um a cada irmdo. Nesse instante 0s irmaos se transformam em corvos ¢ desaparecem, juntamente com a casa e o jar. dim, Qs corvos sio passaros-almas, 0 assassinio dos + Stekel, 09. ci 8 Eadigio de Reclam, v. .p.59 OTEMADAESCOLHADDCOFRINHO doze irmaos pela irma é representado novamente pela colhicita das flores, como antes pelo caixao e 0 desapare- cimento dos irmaos. A garota, que mais uma verse dis pie a salvar da morte os irmios, agora tem de ficar muda por sete anos, sem poder promunciar uma tiica Javea, Bla se submete a essa prova, que a faz correr perigo de vida; ou seja, ela morre pelos irmaos, como prometera antes de encontré-los. Perseverando na mu- dez, ela consegue finalmente resgatar os corvos, De igual modo, no conto dos “seis cisnes” os irmios transformados em passaros so resgatados pela mudex, da irma, isto 6, slo restituidos a vida. A garota decidiu firmemente salvar os irmios, “ainda que Ihe eustasse a vida", ¢, como esposa do rei, novamente poe em risco sua vida, por nao abandonar sua muder. para defender -se de acusages maldasas. Certamente as fibulas nos forneceriam ainda outras provas de quea mudez deve ser entendida como repre semtagiio da morte. Se pademos acompanhar esses indi- cios, a terccira das irmis entre as quais se realiza a esco- Tha seria uma morta. Mas ela pode também ser outra coisa, ou seja, a morte mesma, a deusa da morte. Gragas a um deslocamento que esti longe de ser raro, as carac- teristicas que uma divindade dispensa aos homens é atribuida a ela mesma. Tal desloeamento nos surpreen deri menos ainda no caso da deusa da motte, pois na concepgao ¢ representago moderna, que aqui seria pre= sunciada, a morte mesma é apenas um morto. Sea terceira das irmas & a deusa da morte, entao co nhecemos as irmis. So aquelas que personificam 0 OTEMADAESCOL ADO. COFRINHO Destino, as Moiras, Parcas ou Nornas, das quais a ter- ceira se chama Atropo, isto é, a Inexorivel Deixemos de lado, momentaneamente, a questao de ‘como inserir em nosso mito a interpretagio encontrada, « busquemos nos estudiosos da mitologia alguma infor- magio sobre a origem € 0 papel das deusas do Destino.” ‘A mais antiga mitologia grega (em Homero) conhece apenas uma Motpatpersonificando o Destino inevitavel © posterior desenvolvimento dessa Moira numa asso- ciago de trés divindades (duas, mais raramente) ocor- reu provavelmente com base em outeas figuras divinas a que se aparentavam as Moiras —as Gracas e as Horas, As Horas foram, originalmente, deusas das guas do céu, que dispensain a chuva e 6 orvalho, das nuvens de que cai a chuva; ¢, sendo as mavens vistas como algo te- cido, resulton que essas deusas tinham o carter de tece- doras, depois associado as Moiras. Nos paises mediter- rlineos, mimados pelo Sol, & da chuva que depende a fertilidade do solo, ¢ por iso as Horas se transformaram em divindades da vegetagio. A elas se deviam a beleza das florese a riqueza dos frutos, e foram dotadas de uma série de tragos encantadores e agradaveis. Tornaram-se as representantes divinas das estagdes do ano, e talvez Por isso tenham chegado a trés, sea natureza sageada do rndimero trés nio bastar como explicagdo. Pois esses po- +9 O quesegue fo achado nodicionécio de mitlogia gregae roma- na, de Roscher, nos verberes correspondents. [Ausfilicher Lexi= on der gression und romischen Mythologie, Leipzig 1884-1937] OTEMADAESCOLHADOCOFRINHO -vos antigos diferenciavam s6 trés estagdes inicialmente inverno, primavera e verdo. Apenas na época greco-ro- ‘mana acrescentou-se 0 outono; entao a arte frequente- ‘mente mostrava as Horas em niimero de quatro. AA relagio com o tempo foi mantida para as Horas; de pois velavam Sobre 05 momentos do dia, como antes sobre as estagies do ano; por fim, seu nome limitou-se a des nara hora do dia’ (hewre, ord). As Nornas da mitologia ale- ma, essencialmente afins &s Horas © Moiras, exibem nos seus nomes esta significagio temporal. Mas era inevitével que a esséncia destas divindades fosse concebida mais pro- fundamente e ransposta para a regularidade com que mu- dam as estagdes; assim as Horas tornaram-se guardis das leis naturais e da ordem sagrada, que em sequéncia inalte~ vel faz retornar as mesmas coisas na nature, Tal eonhecimento da natureza refletiu de volta sobre a concepgio da vida humana. O mito natural transfor- ‘mou-se em mito humano; as deusas do Tempo fizeram- -se deusas do Destino, Mas esse aspecto das Horas ma- nifestou-se apenas nas Moiras, jue zelam sobre a ordem necessdria da vida humana de forma t20 inexoravel ‘como as Horas sobre a regularidade da natureza. O ine- luxivel rigor das leis, a relagio com a morte eo declinio, {que tinham sido evitados nas amaveis figuras das Ho- ras, imprimiram-se entio nas Moiras, como se o homem sentisse toda a seriedade das leis naturais apenas quan- do tem de sujeitar-Ihes a prépria pessoa, * o rermo alemio & Stunde; por isso Preud acrescenta as designa- gies em francs e italiano entee pardatess. ‘OTEMADAESCOLHAUOCOFRINHO ‘Também os nomes das 18s tecels foram significa vamente compreendidos pelos mitélogos. A segunda, Laguese, parece indicar “o casual dentro da regulari- dade” — r6s diriamos: a experiéncia —, assim como A:ropo designa o inelutavel, a morte, restando para Clo~ 0 0 significado de disposicio inata, fatal. Agora éo momento de voltar ao tema que interpreta mos, 0 da escolha entre as trésirmais. Com desgosto per- ceberemios a que ponto se tornam incompreensiveis as situagdes, an inserirmos nelas a interpretagZo encontra- da, es contradigbes que surgem no seu contetido apa- reinte. A terceira das iemas deve ser a deusa da morte, a ‘morte mesma, mas no julgamento de Paris é a deusa do amor, no conto de Apuleio, uma beldade comparivel a esta, no Mecador, a rmulher mais bela e mais inteligente, ‘em Lear, a tinica filha fiel. Pode haver contradigio mais completa? No entanto,talver se ache préxima uma con- tradigio ainda maior. Ela existe, de fato, se a cada vez se eseolhe livremente entre as mulheres, em nosso tema, ¢ sea escolhie recai sobre a morte, que ninguém escolhe, afinal, pois dela cada um se torna fatalmente vitima. No entanto, contradigdes de uma determinada espé- cic, substitvigdes por algo inteiramente oposto, nao ofe= recem dificuldade séria ao trabalho de interpretagao ana- litico. Nato iavoeatemos o fato de que opostos, nas formas de expressio do inconsciente, como no sonho, S20 fre~ {quentemente representados pelo mesmo elemento. Mas recordarem9s que ha, na vida psiquica, motivos que le- + J. Roscher, vitando Preller e Robert, Griechiche Myehalone, ‘OTEMAOAESCOLHADO.COFRINKO vam & substituigio pelo contrario, na chamada formagao reativa, e poderemos achar a recompensa para nosso traba~ Iho justamente na devassa de tais motivos ocultos. A eriagioy das Moiras 6 consequéncia da percepgio que lembra 20 hhomem que também ele & um pedago da natureza e, por isso, sujeito & inalterdvel lei dal morte. Algo no homem tinha de se rebelar contra esta sujeigdo, pois apenas muito a contragosto ele renuncia a sua posigao privilegiada. Sa hemos que o homem usa a sua atividade imaginativa para a satisfago dos seus desejos que a realidade nao satistaz. Desse modo a sua fantasia revoltou-se contra a percepcio {ncorporada no mito das Moiras e eriow um mito dele de- rivado, em que a deusa da morte & substituida pela deusa do amor e 0 que a ela equivale em forma humana. A ter~ ira das irmis jé nao €a morte, €a mais bela, a melhor, a mais desejivel e mais digna de amor entre as mulheres. E, tal substituiglo niio era dificil teenicamente; fora prepa- rada por uma antiga ambivaléncia, realizou-se conforme ‘um antiquissimo nexo, que por muito tempo nao seria es quecido, A deusa do amor, que entao assumia o lugar da deusa da morte, jé fora antes identificada com ela. A gre- {§2 Afrodite ainda nao dispensava inteiramente o vinculo com 0 mundo inferior, apesar de hi muito haver cedido o seu papel etdnico a outras divindades: a Perséfone, ai ite de trés formas. As grandes divindades ma- ternais dos povos do Oriente parecem ter sido, todas elas, tanto geradoras como destruidoras, tanto deusas da vida da fecundidade como deusas da morte. Assim a substi- tuigdo por um contrario no desejo, em nosso tema, re= conduz a uma identidade remorissima / t ‘OTA DA ESCOLA DOCOFRINHO A mesma consideragio da resposta & pergunta de como 0 elemento da escolha veio a fazer parte do mito das trés irmis. Novamente houve aqui uma inversio pautada pelo desejo. A escolha se acha no lugar da neces- sidade, da fatalidade. Assim o homem supera a morte, que reconheceu com seu inteleeto. Nao Se pode imaginar ‘um mais poderoso triunfo da realizagao de desejo. Esco- Ihe-se ali onde, na realidade, obedece-se 8 coacio, escolhida no é a horrivel, mas.a bela e desejavel Othando mais atentamente, pereebemos que as distor~ es do mito original nao s2o profundas o bastante para pagar seus vestigios. A livre escolha entre as trés irmas, nao é realmente uma livre escolha, pois precisa cair sobre a terceira, sendo ocorrera toda espécie de infortiinio, como em Zar. A. mais bela e melhor, que tomou o lugar da deusa da morte, conservou tragos que tém algo de in- ‘quietante, de modo que partir deles poderiamos imagi- nar o que se acha oculto." 11 Taambém Psigué,em Apuleio, conserva bastantestragos que lem bam sua relagio com a morte Seu casamento € celebrado como um funeral ea tem que descer a0 mundo inferior, e depois cai num sono que senelha a morte (Otto Rank). Eoeww tp hcer he da ef cemer Sepeinls erect “noiva da mer [o temo alemso para “morte Tad, do geno mas calino], ver A. Zinzow, Pryce und Bras, Halle, 1881 [Num ourr0 conto dos Grimm (n-199, "A pastora de gansos na fone 1°) seacha,omo na “Gata Borrahira", aalkerndnca de beleaefeiura ‘a terceira fila, na qual bem se pode ver uma also sua duplanature- 14 — antes depois da substituiglo. Ela < rejeitada pelo pai apés urn teste quate igual 0 de Rei Lea: Tal qual suas irmas, ela deve declarar come gost copa mas no acha outra expresso doses amor aém da _comparasio com 0 sal (genilmentecomuniado pelo de Hanns Sachs). OTEMADAESCOLHADD COFRINH Até aqui acompanhamos 0 mito ¢ sua transformagiio, e esperamos haver indicado os motivos secretos dessa trans- formagao. Agora podemos voltar nosso interesse para a utilizagdo que o poeta far desse tema. Temos a impressio de que nele ha uma redugio do tema ao mito original, de ‘modo que o seu tocante significado, diminuido pela distor 620, & novamente sentido por nés. Por meio dessa atenus- 20 da distorg3o, do parcial retorno ao elemento original, ‘o poeta suscita em nés um efeito mais profundo, Paraevitar mal-entendidos, quero dizer que niio é mi- nha intengio negar que o drama do rei Lear pretende en- fatizar duas sibias ligdes, a de que nao se deve renunciar a seus bens e seus direitos ainda em vida, e de que se deve aprender @ ni aceitarlisonjas como se fossem dinheiro vivo. Essas ¢ outras adverténcias similares realmente de- correm da pega, mas no me parece possivel explicar o tremendo efeito de Lear pela impressio que tais pens ‘mentos produzem, ou supor que 0s motivos pessoais do escritor se esgotariam na intengdo de apresentar esses en- sinamentos. Também as sugestoes de que ele quis nos ex- pora tragédia da ingratidio, cujas ferroadas ele provavel- ‘mente sentiu na propria pele, ¢ de que o eftito da pega repousaria no fator puramente formal da roupagem ai tica, nlio me parecem substituir a compreensio que nos é aberta a0 apreciar o tema da escolha entre as tés irmas. Lear € um homem velho, Por isso as trés irmis sur- gem como suas filhas, dissemos antes. A relagio pater~ na, da qual poderiam emanar fecundos estimulos dra- ndticos, nao é explorada mais nesse drama. Mas Lear é no apenas um velho; é também um moribundo. A pe- TEMADAESCOLNADOCOFRINHO. culiar premissa da divisio da heranga perde assim a es- tranhezs. Mas esse homem fadado a morrer no quer rentuneiar ao amor da mulher; ele quer ouvir 0 quanto é amado, Recordemos a perturbadora cena final, um dos pontos culminantes da tragédia no teatro modern Lear traz 0 corpo de Cordélia nos bragos. Cordélia € a torte. Se invertemos a situagao, ela se torna compreen- sivel e familiar. Ea deusa da morte que leva do campo de batala o herdi que morreu, como a Valquitia na mi- tologia alema. A perene sabedoria, na indumentiria de ‘um mito antiquissimo, aconsetha ao homem idoso que renuncie ao amor ¢ escolhia a morte, reconciliando-se com a nacessidade de morrer. © poeta nos torna mais préximo o antigo tema, a0 fazer que um homem envelhecido ¢ moribundo escollia entre asirmas. A elaboragio regressiva que empreendeu ‘com 0 mito, distorcido pela transformago imposta pelo desejo,faztransparecer a tal ponto o seu velho sentido, que talyez nos permita uma interpretagio superficial, alegérica, das trés figuras femininas desse tema. Po -~se dizer que sao representados nele 0s trés Lagos inevit veis que homem tem com a mulher: coma genitora, a ‘companheira ¢ a destruidora: ou as trés formas que as- ‘sume para elea imagem da mae, no curso da vida: a pr ptia mae, a amada, porele escolhida segundo a imagem daquela, ¢ enfim a mae Terra, que de novo 0 acolhe em seu seio, Mas é em vio que 0 velho ambiciona o amor da ‘mulher, tal como primeiramente recebeu da mic; apenas a terceira das criaturas do Destino, asilenciosa deusa da miorle, ¢ tomar em seus bragos. DUAS MENTIRAS INFANTIS (1913) THfucoommGisat"2We1 KIDERLUGEN’ ‘PUBLICADO PRIMEIRAMENTE [EM INTERNATIONALE ZEITSCHRIT URARZTLICHE PSYCHOANALYSE IRevsTAINTERNACIONA: DE PSICANALISE ‘MEDICA ¥.,N-4,P.359.62 "RADUZIDO DE GESAMMELTE WERKE, PARI 2 TAMGEM SEACHAEM STUDENAUSGAREY, P. 229-34

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